Viagem a Timor: maio/julho de 2016 - Parte IV: um encontro, privado, com Ramos-Orta
por Rui Chamusco (*)
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Rui Camusco e Gaspar Sobral (2017). A família Sobral tem um antepassado comum que foi lurai, régulo, no tempo dos portugueses. As insígnias do poder (incluindo a espada) estão na posse do Gaspar, que vive em Coimbra. Foto: LG (2017). |
(Continuação)
1 de junho de 2016, quarta feira– Dia Mundial da Criança
Quase não me dava conta da efeméride, caso não fosse a Adobe (sobrinha do Gaspar, filha do Estáquio e da Aurora) a lembrar-me quando chegou da escola.
Com tantas crianças à minha volta, imediatamente dou comigo a pensar nas crianças de todo o mundo e particularmente destas crianças que tanto necessitam do nosso apoio para poderem crescer em estatura, sabedoria e graça.
Penso também nas crianças de todo o mundo, particularmente nos países super desenvolvidos, que apesar de terem tudo o que precisam, vivem infelizes e sempre a exigirem
coisas demais. Nada as satisfaz, e por isso
são birrentas, agressivas, mandonas, difíceis
de contentar e de educar. (...)
2 de junho de 2016, quinta feira – Contagem decrescente
Daqui a um mês será o regresso a Portugal. Os dias vão passando e a nossa missão vai sendo cumprida. Da minha parte está quase tudo resolvido. Por isso posso partir em paz. Da parte do Gaspar muito falta ainda fazer: entrevistas, contatos, mais isto, mais aquilo. (...)
Quanto a mim, gostava de ir visitar o meu primo Quim, que está na Austrália, mas as complicações de viagens estão a desmotivar-me. Tenho de admitir que os preços dos voos são um exagero, propriedade de gente rica. Neste momento em que precisamos do dinheiro como de pão para a boca, devido aos projetos em curso, não me sinto à vontade para gastar tantos dólares em viagens. Será mais prático e económico viajar diretamente de Lisboa para Melbourne que de Dili para Melbourne. A não ser que mude alguma coisa bem me parece que a visita ao Quim ficará para outra vez.
Entretanto, vamos andando na implantação da escola e no programa de apadrinhamento que são neste momento ações mais importantes. Desculpa, Quim!...
Dia 3 de junho de 2016, sexta feira - Preparando a viagem de regresso
Até parece que estou com pressa. Estes sentimentos contraditórios de querer estar aonde não estamos corroem o corpo e a mente. Será a saudade, sentimento tão português?... Mas não. Como cantava António Variações, “ eu só quero estar… aonde eu estou.” Ou então como diz o povo: “Quem está mal que se mude”.
Então porquê todo este frenesim com a viagem de regresso? Ora o nosso amigo Gaspar decidiu alterar os seus planos. Tem a viagem de regresso marcada para fins de setembro e agora quer antecipá-la para princípios de julho, aquando da minha marcação. E vai daí “telefona à tua sobrinha para proceder à alteração”. Azar! Não há disponibilidade para o mesmo voo nem para o mesmo dia. De modo que os amigos terão que viajar separados, a não ser que algo aconteça em contrário.
5 de junho de 2016, domingo - Esta salutar promiscuidade
Quem pensar que já viu tudo no caminho do progresso e que voltar às origens é um atraso está completamente enganado. Aqui, em Ailok Laran, tudo é diferente. A natureza é maestra e tudo dirige em harmonia perfeita, com acordes dissonantes às vezes, num entendimento permanente entre pessoas, animais, aves, plantas, etc…
Todos são livres de circularem por onde lhes apetecer. A privacidade não é coisa que se preze. Portanto não é de estranhar que galinhas, pardais, lagartixas (teque-teque) ou outros seres em liberdade te visitem em qualquer parte onde estiveres, e livremente te saúdem (outros dirão, incomodem) sem qualquer protocolo. O acesso aos espaços é comum, as crianças em grande número, como pardais à solta, são presença constante, o encontro com familiares e vizinhos é natural. Quem chega é da casa, e é convidado natural para participar na ação presente: conversar, cantar, comer…e outras.
Para o conceito de um europeu evoluído é difícil entender e conviver com a falta de comodidades e as privações deste povo. Mas há valores humanos que esta gente ainda tem que superam todas as carências. Tanto me dá que digam que é uma sociedade que reporta aos anos cinquenta como que rejeitem a lição que este povo nos presenteia. A verdade é que os seus valores são intemporais, ficam bem em qualquer sociedade humana a caminho do desenvolvimento…
Crenças e rituais
Da repente, enquanto estávamos a jantar, mais ou menos pelas 20h30, começou a ouvir-se um toque contínuo de metal que mais parecia uma jante de um carro ou um prato imitando um gongo. Claro que o meu ouvido absoluto captou logo essas ondas sonoras e, perante a pergunta o que é isto, veio de imediato a resposta do Eustáquio:
"Esta noite com a lua em quarto crescente está a decorrer um eclipse parcial. Quando algo de estranho acontece ()tremor de terra, eclipse ou outros fenómenos naturais) é de tradição tocar, fazer barulho com estes objetos sonoros para avisar Deus de que ainda há homens, gente, cá em baixo, em Timor."
Quem puder entender que entenda!...
O Gaspar com a corda toda
Já não é a primeira vez que me refiro ao Gaspar como pessoa eloquente que usa e abusa da palavra sempre que a oportunidade lhe surja. Com ou não sentido, ele diz que a bandeira de Timor entre os símbolos que ostenta (martelo, arma,….) tem também uma caneta.
Portanto sente-se legitimado para utilizar a palavra escrita e oral como meio de combate e luta pelo seu povo. Até aqui tudo bem. O problema é que quando ele liga o motor, nunca mais se cala. Fala, fala, fala que se farta, com registo de voz grave, incomodativo para quem não quer ouvir mais ou pretende descansar. As suas pilhas “duracel” são de uma validade interminável. (...)
Esta é uma descrição de um amigo e companheiro que, mais que uma ofensa, é um ato de carinho e de estima. Longe de mim denegrir ou difamar seja quem for, muito menos o Gaspar que é uma pessoa muito culta e com um gabarito moral intocável. Umas pancadinhas em tempo certo só fazem bem.
8 de junho de 2016, quarta feira - Emoções fortes
A tarde de hoje foi carregada de fortes emoções. O Museu da Resistência em Dili foi a primeira visita. Inaugurado em 2012, é uma visita obrigatória para quem queira inteirar-se e compreender a história recente deste povo.
Desde a ocupação indonésia em 1975, muito sofreu esta gente. O suporte multimédia do tempo da guerrilha mostra-nos em pormenor as lutas, os ataque, os mortos, os feridos, os suores e os cansaços de um punhado de heróis que, a troco de uma nação independente, arriscaram ou deram as suas vidas abnegadamente. Dizem que em todo este processo de independência morreram mais de 200 mil pessoas.
Neste ambiente carregado de emoções, um episódio para quebrar a “rigidez” de um museu: no átrio, um bando de crianças rodeavam um segurança que, num gesto altruísta, ajudava os pequenos a varejar com um cana os tamarinhos (frutos) da grande árvore que ali mora. Coisas de Timor: o grande e o pequeno, a criança e o adulto, o forte e o fraco, o simples e o complexo… uma amálgama de atitudes e de sentimentos que coexistem em perpétuo devir ou movimento. E assim se vai edificando a nação.
Visita à igreja de Motael
Já por diversas vezes me perguntaram se já tinha visitado a igreja de Motael. Para além de ser um lugar lindíssimo no seguimento da baía de Dili, só hoje me dei conta do valor simbólico que este templo representa no processo da resistência e da independência.
Foi aqui que o jovem Sebastião Gomes foi fuzilado pela tropa indonésia, quando, fugindo da perseguição, tentava esconder-se junto ao altar lateral direito. Confesso que senti uma forte emoção, quase chorei, ao pisar o mesmo chão. O Sebastião foi sepultado no cemitério de Santa Cruz e, uma semana depois, foi organizada uma marcha (manifestação) com deposição de flores na campa do jovem abatido.
O pior estava para acontecer. A tropa indonésia seguiu-lhes os movimentos até que, num ato de brutalidade, disparou inclemente sobre aquela multidão presente no cemitério. Mais de 200 mortos, mais de 200 feridos, mais de 200 desaparecidos, resultado do massacre de Santa Cruz.
Gostemos ou não de Timor, tudo isto nos emociona profundamente. Mas, como diz o provérbio, “por cada flor estrangulada há milhões de flores que florescem “. Timor é um país em vias de desenvolvimento mas com um futuro muito promissor, sem esquecer os seus heróis.
Visita ao sr. Alexandre e família
O senhor Alexandre é o padrinho de batismo do Gaspar, que há dezasseis anos não se viam. De modo que se justificava plenamente esta visita. A família desfez-se em amabilidades não só com o Gaspar mas também com o Eustáquio e comigo, que sou o intruso.
Conversa puxa conversa, sobretudo do eloquente Gaspar, que mais uma vez repete os discursos já ouvidos por mim há não sei quantas vezes. Tudo bem, os outros também precisam de ouvir e de conhecer a sua visão da vida e dos problemas deste mundo. Acabamos por lá jantar, iguarias que ainda nunca tinha provado: sagu (uma espécie de crepes em que a massa provém do miolo do tronco da palmeira), peixe com molho de tamarinho, e outros.
O senhor Alexandre, com 79 anos feitos em maio passado, fez questão que eu soubesse que ele e a família andaram fugidos quase quatro anos nas montanhas enquanto houve a ocupação indonésia. Perdeu dois filhos (machos, como ele diz) e um outro presente completa o relato dizendo que nem chinelos tinham, andaram sempre descalços.
Enfim, as provações e dificuldades estão passadas e vivem neste momento bem, como eu pude testemunhar. Pelo andar da conversa vim a saber que Berta, filha que esteve a estudar Geologia em Coimbra, já tinha estado em Malcata, Sabugal, por duas vezes com a família Gaspar. Berta casou ainda há pouco tempo com um ex-seminarista com o qual travei animada conversa uma vez que sentia alguma afinidade devido ao meu passado e presente. Combinámos encontrar-nos para lhe dar umas lições de acordeão. Que aproveite até 7 de julho…
À família do senhor Alexandre um grande obrigado pela forma como me fizeram sentir: à vontade, como se fosse da casa.
Dia 10 de junho de 2016, sexta fdeira - Dia da portugalidadeHoje é dia de Portugal, de Luís de Camões, da portugalidade, dos que vivem em territóriportuguês ou na diáspora. Esta é a quarta vez que passo esta efeméride fora do país; em Timor e, para minha surpresa, parece-me que é a vez que mais profundamente esta celebração me atinge, mesmo sem celebrações oficiais, condecorações, desfiles e outras coisas mais.
Logo de manhã, no terreiro da cozinha da casa do Eustáquio, com toda a simplicidade foi cantado o hino como se se tratasse de um grupo coral bem afinado. Não admira pois esta família é toda musical.
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Rui Chamusco, o homem dos sete instrumentos, aqui tocador de acordeão. Lourinhã (2012). Foto do autor. |
Logo de tarde vamos ser recebidos pelo ex-presidente da República Ramos Horta, mas sem qualquer formalidade. Depois de conversar com estes amigos que me rodeiam chego à conclusão que este sentimento de ser português está mais arreigado em Timor Lorosae do que em muitas localidades do território continental.
Será que a opção do atual presidente da República com a comunidade portuguesa de França / Paris tem alguma coisa a ver com esta constatação?... “Oh mia pátria si bella é perduta !", onde estão as tuas conquistas?... Nem Camões, nem Fernando Pessoa, nem Agostinho da Silva estarão contentes com esta perda de memória coletiva. É saudade, é sentimento, é nostalgia. É o que quiserem mas, por favor, não deixem morrer Portugal…
Mais uma festa de anos
Desta vez foram os 59 de uma irmã da Aurora,
a esposa do Eustáquio, em Bébora. Depressa
a família ficou junta. Ao toque do acordeão foram
cantados os parabéns, seguindo-se uma fausta refeição onde nem o vinho faltou. O casal que acolheu o festim foi de uma simpatia sem limite, até no esforço de falarem em português. O acordeão entrou nos corações dos presentes que foram ouvindo algumas interpretações de músicas conhecidas ou não. Não me livrei de muitas palmas e, como era o dia de Portugal, até a “Portuguesa” foi tocada e cantada. Mais umas músicas a pedido e o serão acabou por volta das 23.30h.
Registo com muito agrado a ideia e quase pedido de se criar aqui uma escola de acordeão. Nunca se sabe!...
11 de junho de 2016, sábado
(...) Os políticos também mentem
Sem surpresa, não é verdade? Hoje era um dos dias muito esperado pelo Gaspar – o encontro com o seu antigo companheiro Ramos Horta. Até eu estava um pouco entusiasmado. Mais ou menos à hora combinada lá chegamos nós à Casa (quartel) do ex-presidente da República de Timor. Casa bem guardada, com escolta policial, tivemos que ficar um bom quarto de hora à espera que alguém nos chamasse e deixasse entrar. Engano! Chegou um mensageiro a comunicar-nos que o sr. doutor não nos poderia receber por ter uma agenda sobrecarregada.
Mais uma desilusão, inexplicável para quem não está habituado a estas geringonças. Ainda comentei com o Gaspar:” ou tu entendeste mal ou então isto é uma bagunçada”. Disse o homem de recados para apareceremos segunda ou terça que vem. Sem hora marcada, sem dia certo, será que vale mesmo a pena a visita? O Gaspar já anda a dizer que, perante tantos obstáculos que se deparam em obter as entrevistas desejadas, vai desistir das mesmas. Mais, começa a convencer-se de que não é desejado, talvez figura não grata, entre os poderes timorenses. Vou tentar convencê-lo a ir à entrevista…
A estátua de Cristo Rei. Fonte:
com a devida vénia...
Há males que vêm por bem
Para amenizar as contrariedades que surgiram decidimos fazer uma caminhada até ao Cristo ReCristo Rei. Nada menos que subir 570 degraus, mas que compensa o esforço despendido. Paisagens encantadoras, idílicas que se conseguem avistar ao longo de todo o percurso mas sobretudo lá do morro de Cristo Rei: Ataúro, Indonésia, a antiga ilha das Flores que em tempos foi vendida aos holandeses como forma de o Governador fazer face às despesas correntes, uma vez que de Lisboa não chegava a remessa de dinheiro necessário.
Comentava-se que afinal os indonésios ainda fizeram muita coisa durante a invasão: a catedral, o Cristo rei com todo o caminho do calvário ilustrado pelas cenas da via sacra, etc…etc…
O que é estranho é que, sendo a Indonésia um país onde o islamismo é a religião predominante, tenha presenteado os timorenses que são católicos com obras manifestamente de cariz cristológico. Também há quem diga que isto terá sido uma jogada política para atrair a simpatia pelos indonésios mas que a jogada saiu-lhes ao contrário.
Muitas coisas boas fizeram e deixaram em Timor, mas cometeram um erro muito grave, a saber: a utilização da violência e os mortos que causaram durante a invasão e a permanência. Recorde-se que houve mais de 200 mil mortos, feridos e fugitivos sem conta.
Enfim, só Deus conhece os seus desígnios… mas bem melhor seria que não houvesse vidas perdidas e que os benfeitores deste povo contribuíssem desinteressadamente no bem e no progresso deste país.
A cereja no topo do bolo
Já a noite era entrada quando, ao jantar, o Eustáquio se sai com esta: “Ti Rui, faz uma casa cá que eu dou o terreno, em Liquiçá”.
Confesso que me deixou baralhado mas dou-me conta do grande desejo desta gente que eu fique por cá. Já dizem que eu não sou malaio (estrangeiro) mas timorense. Estão com receio que eu parta para Portugal no dia 7 de julho e que não volte mais. Sofrem já por antecipação, pois dizem que as saudades vão ser muitas.
Por mais que agente lhes diga que havemos de voltar para a inauguração da escola em Boebau, parece-me que não acreditam. Isto é mesmo assim. Quando abnegadamente nos entregamos a uma causa, encarnando a vida dos pobres, corremos o risco de sermos como eles fazendo parte das suas vidas. Como diz a canção do Ricardo Canta la Piedra, “no queremos a un hombre pregonero; queremos a un hombre que se embarre com nosotros, que viva com nosotros, que beba con nosotros el vino en las tabernas. Los otros no interessan, los otros no interessan…”
Pela parte que me toca só tenho a agradecer estes gestos de estima e de aceitação.
Ailok Laran - abundância de Ailok
Este é o nome da aldeia onde estamos sediados, povoação dos arredores de Dili, no complexo do Bairro Pité. Foi das zonas mais martirizadas pela invasão indonésia. Muitos mortos, feridos, fugitivos, desaparecidos. A maioria das casas foram arrasadas e o seu recheio queimado. Ainda hoje se encontram habitações com esses sinais. A casa dos Sobral também foi arrasada e queimada. Esta habitação foi a primeira a ser construída em Ailok Laran, por isso é um ícone para a família. O Eustáquio procedeu à reparação, que ainda não está concluída por falta de verbas, fazendo assim jus à memória coletiva.
Mas porquê o nome Ailok Laran? Ailok é o nome de uma árvore abundante nesta região e que por isso caracterizou e deu o nome à aldeia. Ailok + Laran que em tétum quer dizer muito.
Ora vim a dar-me conta que eu já conhecia esta árvore em Alter do Chão (e na Lourinhã levada por mim). Perante esta constatação, e tendo-a eu comunicado ao Eustáquio e ao Gaspar, logo o sr. doutor de leis quis desmentir-me dizendo que era impossível. Perante tanta prosápia propus-lhe uma aposta, ao que ele imediatamente acedeu. Pronto, fica assim: quem perder, paga o almoço ou o jantar. Aguardemos portanto pelas provas, mas a aposta já está ganha para o meu lado.
Em prol dos benefícios para a saúde a casca do Ailok é utilizada em chá ou em masque para dores intestinais (dores de barriga) contra a diarreia. Verifiquei com o amigo Eustáquio que é verdade.
Usos e costumes - influência da religião católica
Timor é um país fortemente influenciado pela religião católica, fruto do longo período de colonização mas sobretudo da presença e testemunho da igreja católica em instituições de ensino e das igrejas espalhadas por todo o lado.
Os timorenses são por essência seres religiosos que, sem vergonha nem complexos, expressam a sua fé naquilo em que acreditam. Quase em todas as casas o “ oratório “ ocupa um lugar de relevo. Imagens de santos, velas, flores preenchem cantos e espaços iluminados todos os dias ao cair da noite.
Uma religião repleta de ritos muito ligados à tradição, que lhe dão um colorido característico, mas devidamente “agiornada” pelos agentes da pastoral eclesial. O respeito e veneração pelo clero é notável. Clero, nobreza e povo são elementos fundamentais a ter em conta no processo de desenvolvimento em curso.
A par de toda esta organização, o povo vai espontaneamente manifestando atos de fé. Quase todos os dias deparamos com ruas enfeitadas (marcadas) indicando que vai haver uma vigília de oração, que dura toda a noite, em que se reza e se canta, se come e bebe, se conversa e se ri. Em maio e outubro é à Senhora do Rosário; no mês de lunho é ao Coração de Jesus. Cada família que o deseje informa a paróquia que atempadamente elabora o calendário das visitas. Ontem, dia 12 de junho, foi mesmo aqui ao lado e tive a oportunidade de ouvir as rezas e cantorias até altas horas da noite.
Mesmo ao lado o sr. Felisberto, homem que já descrevi anteriormente, que não professa religião alguma porque segundo ele o Messias é ele mesmo, teve de aguentar e mais nada. É que aqui ainda não vigora a lei do ruído. Cada um ouve o que quer, como e onde quer. Outros usos, outros costumes…
Dia 13 de junho de 2016, domingo - As árvores morrem de pé!...
Vem este slogan a propósito de uma visita que fizemos ao senhor Silvino que, segundo dizem, é a pessoa mais velha da região. Não sabe quando nasceu mas diz-nos que, quando começou a II Guerra Mndial guerra já tinha 20 anos ou mais. Perguntamos-lhe a idade e ele responde sempre “ tudo acima de 100 “.
Perdeu a conta ao número de netos, bisnetos mas todos sabem que a família é grande. Vive com um neto na sua casa, com dois filhos a morarem nas redondezas. Come bem e dorme pouco, sempre de olho aberto não venha por aí a irmã morte. “omo bem, sinto-me bem, ainda não quero morrer”.
Todos os dias, encostado ao seu cajado, vai até a casa do filho para jantar ( por volta das 18h00). O Ti Silvino tem resistido a tudo ao longo de tantos anos de vida. Não fugiu dos indonésios e, talvez pela sua coragem, a sua casa não foi destruída e queimada. A última prova que teve de superar foi a morte do filho mais velho que, devedores sem escrúpulo, decidiram envenenar, para se livrarem do pagamento das dívidas.
Mas este homem continua com uma enorme vontade de viver, a fazer lembrar a saudosa Palmira Bastos que, também já velhinha, gritava em palco a plenos pulmões: “ As árvores morrem de pé!!!” Obrigado Ti Silvino por nos lembrar que a vida é um dom de Deus e que, por mais anos que a gente viva, nunca a devemos descuidar. Obrigado pela oportunidade de o conhecer, de o ouvir e de lhe apertar a mão. Não o irei esquecer…
Dia 14 de junho de 2016, segunda feira - Laços emocionais muito fortes
Com tantos anos de história a criar laços não será de estranhar que o nome de Portugal seja aqui tão venerado. Se não bastassem os nomes e apelidos que encontramos na maioria dos timorenses, existe nos nossos dias uma forte ligação emocional que tem expressão religiosa, cultural e desportiva. Hoje vou falar evidentemente da desportiva, uma vez que, às quatro horas locais, vão transmitir o jogo de Futebol Portugal-Islândia, jogo de estreia de Portugal no campeonato europeu 2016.
Já estávamos previamente avisados das fortes manifestações sempre que há jogos que envolvem Portugal. Em caso de vitória gritam, cantam e até tiros chegam a dar para o ar. Desta vez não se ouviram disparos pois Portugal empatou, mas sempre que o ataque provocava situações de perigo, a gritaria ecoava pele noite a fora.
Que em Portugal, na França, no Brasil ou qualquer outro país onde houver portugueses se sinta esta vibração forte naturalmente compreensível. Mas aqui tão longe, a vinte cinco e tal mil quilómetros de distância, como é possível haver tanta gente sem ligação direta com o nosso país a vibrar desta maneira? Que laços afetivos são estes que mantêm tamanha transcendência? Se ao menos fosse dada alguma correspondência por parte dos poderes governativos de Portugal!... Aí está: nos corações ninguém manda; ou se gosta ou não se gosta. E viva Timor! E viva Portugal!...
Dia 15 de julho de 2016. terça feira - Visita ao Ramos-Horta
Desta foi de vez! À hora marcada, 16 horas, mandaram-nos entrar para o desejado encontro com esta figura pública timorense, que já foi presidente da República, 1º ministro, ministro dos negócios estrangeiros e que até já ganhou o Prémio Nobel da Paz em parceria com o D. Ximenes Belo.
O encontro foi informal e por isso aconteceu de tudo: piadas, perguntas, respostas, pareceres, notícias, revelações – uma hora e meia de conversa que nos permitiu conhecer melhor esta personalidade. Até o corso, animal bem tratado que faz parte dos habitantes desta mansão, se quis associar ao encontro, concretamente estabelecendo uma relação de lambidelas no meu braço esquerdo e procurando festinhas no lombo.
Tudo estava a decorrer pelo melhor até que o espertalhão do Gaspar tirou o seu amigo e companheiro de escola do sério. Então não é que cometeu a asneira de lhe dizer que pretendia fazer um programa com a entrevista que estava a ser gravada na Rádio Coimbra?
Reação imediata:
“Estão proibidos de utilizar qualquer declaração minha para fins de campanha ou de publicidade. Se acontecer algo diferente, ser-vos-á movido um processo por rutura de confiança. Isto foi uma conversa entre amigos e nada mais. Entendidos?... Queres uma entrevista para a rádio então manda-me as perguntas por email, e marcamos outro encontro para a entrevista.”
De minha parte está tudo bem porque eu não quero imiscuir-me em politiquice. Da parte do Gaspar, duvido. Tem o coração ao pé da boca e não sei se terá juízo suficiente para calar aquilo que ouviu. Ele já é grande o suficiente para provar que é responsável. Mas confesso que tenho algum receio…
Keos – uma das palavras mais ouvidas em Ailok Laran
Keos é a abreviatura de kiosque. Aqui quase todas as casas têm um pequeno negócio de sobrevivência. Cada um vende o que lhe dá mais jeito, sem necessidade de licenças ou pagamento de impostos.
Na casa da família do Eustáquio há uma panóplia de artigos que se vendem: pulsas, chocolates, leite indonésio empastado, tabaco, etc…etc… Ou seja, durante o dia e à noite, não há horário de abertura ou de encerramento, ouvem-se constantemente crianças e adultos gritando á janela de serviço: “Keos! Keos!”…
E de um a um lá vão sendo atendidos os pedidos por quem está de serviço. Uma animação constante sem necessidade de megafones, que se junta à animação dos vendedores ambulantes que todos os dias percorrem os becos e ruelas cá da aldeia com os pregões e as bandas sonoras a anunciar a sua passagem e os seus produtos. Grão a grão enche a galinha o papo…
(Continua)
(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)
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Nota do editor: