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quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26209: Ser solidário (275): Quatro anos como médico cooperante (1980-1984), em Fulacunda e em Bissau (Henk Eggens, neerlandês, consultor internacional em saúde pública, reformado, a viver em Santa Comba Dão)



Foto nº 1 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Fulacunda > 1980 > "Eu,  Henk Eggens, médico  neerlandês, cooperante"... Esteve dois anos em Fulacunda (1980-82) e depois em Bissau (1982-84)


Foto nº 2 > Antiga Guiné Portuguesa > Região de Quínara > Fulacunda > s/d > "
Casa no quartel onde depois fiquei, em 1980".  

Fonte: https://rumoafulacunda.wordpress.com/fulacunda/ (com a devida vénia).



Foto nº 4 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Fulacunda > 
"Farmácia da Tabanca" .  



 Foto nº 5 > 
Guiné-Bissau > Região de Quínara > Fulacunda > 1980 > *Ilustração: parto",.   Fonte: Livro Formação das matronas, 1978, MINSAS, Guiné-Bissau.




Foto nº 6 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Fulacunda > 1980 > "Ilustração: rede mosquiteira para crianças*,  Fonte: Livro Formação das matronas, 1978, MINSAS, Guiné-Bissau. 



Foto nº 7 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Fulacunda > 1980 > "Ilustração: 
   Cinco doenças a tratar pelos Agente de Saúde de Base",  Fonte:  Fonte: Livro Formação das matronas e dos agentes de saúde de base (A.S.B.) nas tabancas, 1980, CESAS, Guiné-Bissau.



Foto nº 8 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Fulacunda > 1980 > "Ilustração:  latrina".  Fonte: Livro Formação das matronas e dos agentes de saúde de base (A.S.B.) nas tabancas, 1980, CESAS, Guiné-Bissau.



Foto nº 9 > Antiga Guiné Portuguesa > Região de Quínara > Fulacunda > s/d >  "
Fulacunda no tempo colonial com campo de vólei". Fonte desconhecida




 Foto nº 10> Guiné-Bissau > Região de Quínara > Fulacunda > 1980 >   "Casa do médico, Land Rover do projeto,  mota da noiva e carro 404 privado".



Foto nº 1 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > 1980 > "Bomba da água,  do projeto de Buba". 


1.  Já troquei alguns mails, com o meu colega holandês (ou neerlandês), Henk Eggens, especialista em medicina tropical e saúde pública, que vive, aposentado, em Portugal, em Santa Comba Dão, e é o administrador e editor de Portugal Portal (em neerlandês ou holandês) (*).

No passado dia 9 de setembro último, ele escreveu-me o seguinte, em resposta a um email que lhe tinha mandado:

 (...) Bom dia, Luís!
Foi bom ver o teu e-mail. Temos algumas coisas em comum, isto foi claro para mim.

Primeiramente o nosso primeiro ano nesta terra: 1947!

Segundo, a paixão para conhecer outras terras: Conheceste o mundo académico do TNO na Holanda (que conheço só por nome), além do teu passado na Guiné, e provavelmente outros países.
Trabalhei 20 anos no Royal Tropical Institute (**), Amesterdão,  como consultor de saúde pública (lepra, tuberculose, cuidados primários de saúde). O que me levou a todos continentes no Sul. A minha vida nunca foi monótona... A nossa vida atual na aldeia,  perto de Santa Comba Dão,  é mais tranquila (...).
Terceiro, a paixão de comunicar algo de substancial para um público (nos blogues, no ensino). Tua carreira académica, o blogue 'Tabanca Grande' que admiro.
Durante a minha vida profissional desenvolvi cursos de saúde tropical, também 'online', e dei muitas aulas. Com muita satisfação. Gosto de ser editor de Portugal Portal e partilhar com o público neerlandófono (como se diz isso, mesmo?) sobre Portugal, a sua história, cultura, pequenas histórias da vida.(...)
 Mantenhas!
(Na altura na Guiné, aprendi bem a conversar em crioulo, não havia outra hipótese de comunicar com o povo lá. Agora perdi já muito a fluidez)

Henk
2. Nova mensagem do nosso leitor Henk Eggens, médico, especialista em medicina tropical, reformado, a viver em Portugal.
Data - sexta, 1/11/2024, 13:03


Boa tarde, Luís.

Espero que estejas  bem, já de volta da vindima no Norte no mês passado.

Vi a mensagem recente do bloguista Patrício Ribeiro no blogue (...) e decidi escrever-te.

(i) Recebeste o meu e-mail de 12 de setembro 2024 com a apresentação dum amigo meu, intitulado 'Amílcar Cabral e os cuidados de saúde durante a luta de libertação' ? Achas apto para publicar no teu blogue?

(ii) Acabei de escrever algumas das minhas aventuras na Guiné-Bissau nos anos 1980-1984. Me pediste para contar as minhas experiências durante minha estadia como médico na região de Quínara. Segue o texto e as fotografias em anexo.

Se achas oportuno,  podes publicar no teu blogue.

Um abraço desde Santa Comba Dão,

Henk



3. Comentário do editor LG:

Obrigado, Henk. Já vi que tens página no Facebook.   Fazes parte do grupo público Santa Comba Dão - Luagres, Factos e a Nossa Gente.  E do teu CV, no Linkedin, respiguei o seguinte:

"Consultor internacional em saúde públiva, aposentou-se após quarenta e cinco anos de experiência na prestação de cuidados de saúde em países com poucos recursos em três continentes. Amplas relações de trabalho entre governos e ONG internacionais.. Missões de longo prazo em Angola, Guiné Bissau, Tanzânia e Indonésia. Missões de curto prazo  em mais de 15 países. 

"Idiomas: Inglês, Português: excelente. Francês: bom. Espanhol, Kiswahili, Indonésio: básico. Holandês: língua materna.  Competências curriculares: : monitoização e avaliação, controle da tuberculose, controle da hanseníase (doença de Hansen ou lepra), desenvolvimento curricular, e-learning".  Fonte: Linkedin > Henk Eggens.

Espero que esta seja a primeira de muitas colaborações tuas no nosso blogue (***), onde cabem todos os amigos da Guiné-Bissau com tudo o  que os une e até com aquilo que nos pode separar. O teu portuguê é muito bom. Dei apenas um retoque numa palavra ou outra (e nomeadamente no tempo dos verbos)...

E a teu pedido, acrescento mais duas linhas sobre o período em que estiveste na Guiné: (...) 

"Trabalhei apenas dois anos em Fulacunda (1980-1982). Depois, fui coordenador do Projeto de Saúde de Base no Ministério da Saúde em Bissau (1982-1984)."



Esta é a história dum médico holandês que foi trabalhar na província rural de Quínara, Guiné-Bissau, de 1980-1984, quando o país se tornou independente havia poucos anos.

Por Henk Eggens 
 

Em abril de 1980, desembarquei no aeroporto de Bissalanca. Estava bem preparado. Já durante pos meus estudos de medicina, eu tinha decidido que queria trabalhar em África. 

Após cinco anos de estudos teóricos, tirei um ano sabático. Viajei pela África Ocidental através do Saara e pelo Congo até a África Oriental. Durante sete meses, conheci muitas Áfricas. No final dos meus estudos de medicina, fiz um curso de três meses sobre doenças tropicais, o que me preparou melhor para reconhecer e tratar essas doenças.

O meu primeiro emprego foi em Angola. Em 1976, quatro meses após a declaração de independência (****), viajei para Cabinda e trabalhei lá durante  dois anos na ala pediátrica do hospital provincial. Lá, aprendi muito: a falar português, e palavrões cubanos dos meus colegas médicos. Aprendi na prática a tratar a patologia tropical. Perdi também a ilusão da viabilidade e desejabilidade duma sociedade comunista.

Em 1980, tive a oportunidade de trabalhar na Guiné-Bissau. Consegui um emprego no Ministério da Saúde da Guiné-Bissau e fui colocado na região de Quínara, no sul da Guiné-Bissau. A província tinha cerca de 40.000 habitantes. Ninguém sabia exatamente quantos. Já fazia parte da área libertadada durante a guerra colonial, com exceção dos quarteis do exército português e as tabancas. 


Excerto da carta de Fulacunda  (1955) (Escala 1/50 mil)
  Fonte: Cortesia  do Blogue Luís Graça
& Camaradas da Guiné
Fui morar em Fulacunda, uma vila de mil habitantes onde existiu um quartel militar (Vd. fotos nº 1  e 3).

 O que encontrei quando cheguei em Fulacunda? 

Não havia hospital. Um posto de saúde em Fulacunda consistia em uma cabana, parte do antigo quartel
 e havia uma cadeira ginecológica enferrujada. E uma caixa de medicamentos enviada pelo ministério. 

Outros lugares na região de Quínara tinham cabanas semelhantes com um mínimo básico de recursos.

Havia mais pessoal de saúde. Em Tite, morava Augusto, um enfermeiro treinado na época colonial que sabia de tudo e me explicou muitas coisas, me tornando mais sábio sobre como as coisas aconteciam na região. 

Em Fulacunda e Empada, trabalhavam dois ‘meio-médicos’ guineenses. Digo ‘meio-médicos’ porque eram jovens que foram treinados na União Soviética como feldshers, um tipo de treinamento prático para atuação médica (*****). 

Além disso, havia alguns socorristas presentes nas tabancas. Em Nhala, que também era um antigo quartel do exército colonial português, havia um centro de treinamento onde os socorristas, muitas vezes analfabetos e que haviam trabalhados na guerra de libertação, recebiam treinamento formal como auxiliares de enfermagem. 

No início, eu viajava muito por todas as vilas e postos de saúde para ver o que estava acontecendo. Era muito pouco. Sempre faltavam medicamentos.

As pessoas moravam longe dos postos de saúde e a medicina tradicional era a principal fonte de cuidados de saúde. Logo comecei a organizar cuidados materno-infantis. Sob a mangueira (ou o poilão), reuníamos regularmente as grávidas e as crianças e administrávamos as vacinas necessárias, contra tuberculose, sarampo, difteria, tétano, poliomielite e coqueluche.  
Providenciávamos medicamentos (foto nº 4) e conselhos ás grávidas. Com um cartão onde os pesos das crianças eram anotados e que eu mesmo havia mimeografado, acompanhávamos o crescimento e desenvolvimento das crianças pequenas. 

Eram passeios populares. Mães e crianças vinham de longe para receber as vacinas e ouvir nossas palestras.

Parte do meu trabalho era treinar os voluntários (Agentes de Saúde de Base) nas tabancas para reconhecer e tratar cinco doenças (fotos nºs 5, 6 e 7).

Também treinámos as parteiras tradicionais (matronas). Elas recebiam um pequeno kit, uma caixinha com uma faca esterilizada e fios esterilizados  para cortar e amarrar o cordão umbilical depois do parto. Além disso, eram instruídas sobre a importância de um comportamento antisséptico durante o parto (foto nº 5).

A ideia era que os voluntários na tabanca recebessem uma caixa de medicamentos com os quais pudessem tratar cinco doenças (foto nº 7). Essas eram:

  • paludismo (corpo quente), 
  • conjuntivite (dor di udjo), 
  • dor de cabeça,
  • diarreia (panga barriga), 
  • tosse e feridas. 

Posteriormente à formação,  a tabanca recebia uma caixa de medicamentos. Depois, a própria tabanca, por meio de contribuições voluntárias (abota), arrecadava dinheiro para comprar novos medicamentos no Depósito Central de Medicamentos em Bissau. 

Havia muita hesitação na tabanca para juntar dinheiro, pois nem todos confiavam que seria bem utilizado. Foi necessária muita persuasão para convencer as pessoas a contribuir, e, eventualmente, isso funcionou em algumas tabancas.

Além de poder tratar estas doenças,  os Agentes foram ensinados sobre medidas preventivas da higiene nas tabancas  (fotos nº 7 e 8).

Este Projeto de Saúde de Base ocorreu em vários lugares da Guiné-Bissau, sob a inspiradora liderança do vice-ministro da saúde, Dr. Manuel Boal. Havia projetos no Oio, na ilha de Canhabaque, em Tombali e no extremo leste, em Lugadjol, no setor de Madina do Boé, e em Quínara, onde eu trabalhava. 

O projeto teve bastante sucesso nos primeiros anos, graças à liderança entusiástica dos coordenadores guineenses e dos cooperantes estrangeiros. Depois de algum tempo, a confiança dos aldeões foi conquistada e eles contribuíram voluntariamente com dinheiro, e isso era muito pouco dinheiro, para comprar medicamentos para serem usados na tabanca. No entanto, ficou claro que este projeto nunca seria completamente autossuficiente, pois sempre havia preços que eram altos demais para o que os aldeões podiam pagar.

As minhas atividades curativas (ou mais propriamente clínicas) eram bastante limitadas porque eu não tinha muitos recursos. Poucos medicamentos e nenhum instrumento para realizar qualquer procedimento terapêutico mesmo simples. 

Um dos eventos mais impressionantes foi quando, numa manhã, uma jovem mulher chegou a Fulacunda dizendo que havia sido mordida por uma cobra enquanto pegava água no rio. Ela não sabia exatamente que tipo de cobra era, mas foi mordida na perna. 

O que podíamos fazer? Tínhamos soro antiofídico, mas não sabíamos há quanto tempo estava fora da geladeira, então não sabíamos se ainda era eficaz, mas usámo-lo mesmo assim. Injetámos na esperança de que ajudasse. 

Observávamos a jovem mulher e, após algumas horas, os seus dedos de pé começaram a paralisar. As suas pernas começaram a enfraquecer e paralisar, e em seis horas, ela acabou por faleceu porque os seus músculos respiratórios também paralisaram. 

Tentámos de tudo: respiração artificial, administração de oxigênio que tínhamos por acaso. Mas nada ajudou. Nunca esquecerei os olhos assustados e suplicantes da jovem mulher que morreu de uma picada de cobra.

Outro evento que me marcou foi ajudar no chamado fanado

O fanado é um ritual realizado pelo grupo étnico Beafada, onde eu morava. Uma vez a cada poucos anos, jovens homens e meninos de 7 a 12 anos eram isolados na floresta por meses, onde aprendiam os segredos da tribo e como sobreviver e cumprir seu papel nas comunidades da tabanca. 

Durante o período colonial, esses fanados eram realizados em segredo, e agora, com a independência, os líderes decidiram que os serviços de saúde poderiam contribuir. No final dos meses de isolamento, os jovens eram circuncidados. Meu assistente e fiel colaborador Sanquinho, o auxiliar médico, foi convidado a ir à floresta para desinfetar os pénis recém-circuncidados. Eu não podia ir porque era branco, um estrangeiro. 

Ele foi. No dia seguinte, ele voltou dizendo que não conseguiu. Ele levou iodo como desinfetante, que é à base de álcool, mas o primeiro menino que foi desinfetado começou a gritar tão alto que desistiram dessa ajuda. O que fazer?

Felizmente, tínhamos outro desinfetante, a violeta genciana, que era à base de água. Sugeri usá-lo, mas com a condição de que eu mesmo fosse à floresta para observar e aplicar. Após alguma discussão, isso foi permitido e viajámos para a floresta. Em um determinado momento, chegámos a uma árvore caída, que era o limite absoluto até onde podíamos ir. Dali para a frente, a área era proibida para nós e, atrás da árvore caída, havia uma fila de meninos. Meninos com rostos assustados, com as mãos cobrindo suas partes íntimas, esperando para desinfetar os seus pénis recém-circuncidados.

Um por um, eles levantavam os panos sujos que cobriam suas partes íntimas e podíamos aplicar o desinfetante. Como era à base de água, não era irritante e foi bem tolerado pelos meninos. Ganhei uma experiência valiosa e os meninos, espero, foram desinfetados após uma circuncisão que não foi feita completamente de acordo com as normas antissépticas.

A minha vida em Fulacunda não era tão fácil. A sra. Maria cuidava de mim, preparava as comidas e limpava a casa. Tinha algumas galinhas para ter um ovo no mata-bicho. Importei legumes desidratadas de Holanda e, de vez em quando, conseguíamos uns tomatinhos. Os pescadores traziam-me de vez em quando uma barracuda, peixe grande e deliciosa.

Na frente da minha casa havia um campo de jogos (antigamente para jogar vólei?) (foto nº 9).  Às vezes eu instalava o meu gravador lá à noite e os moradores e nós dançávamos ao som de uma música animada.

Antes de viajar para Guiné-Bissau, comprei na Bélgica uma caixa de cartuchos (calibre 12). Provou ser muito útil. Não sabia caçar, mas o meu amigo Manuel sabia. Levou de noite um ou dois cartuchos para o mato e voltou de manhã com um antílope. Dividimos a carcaça e havia carne para umas semanas. 

Raramente era  abatida uma vaca na tabanca. Costumavam-me chamar para inspecionar o estado de saúde da carne. Tinha um livro de medicina veterinária, assim podia verificar os pulmões, o fígado e se a carne oferecia as condições mínimas de salubridade. Levava  uma balde grande para  inspeção: depois de autorizar a venda da carne, era o primeiro a poder escolher a minha parte da vaca.

 A minha noiva (holandesa) vivia em Bissau. Tanto quando possível viajávamos para nos encontrarmo-nos (foto nº 10). Ela tinha uma mota Honda 125 cc off-the-road. Com um barco tradicional ou um barco dum projeto holandês costumávamos travessar o rio Geba. Nem sempre havia águas tranquilas.

Em Buba havia na altura um grande projeto de abastecimento de água (foto nº 11). No antigo quartel foi estabelecido o centro do projeto, que incluiu também uns 5 a 7 técnicos holandeses. No Catió era o centro duma empresa holandesa Stenaks, que construiu centros de saúde na região de Tombali e Quínara. 
Foi uma grande ajuda ter estes compatriotas relativamente perto. 

No tempo da chuva era praticamente impossível viajar, pois as estradas eram intransitáveis, mesmo com meu carro de trabalho, o formidável Land Rover (foto nº 10).

Foram alguns anos de muitas experiências. Foi a base para minha futura carreira na área de saúde tropical. 

Obrigado, Guiné, obrigado,  guineenses!

(Revisão / fixação de texto, edição de fotos: LG)

______________

Notas do editor:


(**) Equivalente ao nosso Instituto de Higiene e Medicina Tropical / NOVA, Lisboa

(***) Último poste da série > 25 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25981: Ser solidário (274): Bilhete-postal que vai dando notícias sobre a "viagem" da campanha de recolha de fundos para construir uma escola na aldeia de Sincha Alfa - Guiné-Bissau (10): O mel da Guiné-Bissau (Renato Brito)

(****) 11 de novembro de 1975

(*****) Na China e em Moçambique eram chamados "médicos de pé descalço"... Prestadores de cuidados de saúde, sem qualificações formais, atuando sobretudo na áreas da prevenção da doença e da promoção da saúde.

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24697: Notas de leitura (1619): "PAIGC A Face do Monopartidarismo na Guiné-Bissau", por Rui Jorge Semedo; Nimba edições, 2021 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Dezembro de 2021:

Queridos amigos,
É sempre meritório que investigadores guineenses se debrucem sobre a história do seu país, seja antes ou depois da independência, ao mesmo tendo em conta todo o histórico da guerra da libertação. O autor achou que já estava tudo dito quanto ao binómio Amílcar Cabral PAIGC, as resistências sentidas durante a presidência de Luís Cabral no contexto das tradições e de um círculo de interesses instalados na sua órbita de gente manifestamente corrupta e incompetente dentro do chamado Estado "suave" como observou Joshua Forrest, parece-me não ter cuidado da importância dos agrupamentos étnicos que obstaram à criação de uma consciência nacional, e é dentro deste quadro precário que se instituirá o regime de Nino Vieira, com as suas sucessivas intentonas, prisões e execuções. É incompreensível que um livro editado em 2021 omita, coletivamente ao estudo em apreço, bibliografia fundamental. Mais uma dissertação de mestrado com poucochinho.

Um abraço do
Mário



História do PAIGC monopartidário (1974-1990) por Rui Jorge Semedo

Mário Beja Santos

A história do PAIGC tem sido motivo de dezenas de livros de investigação, uma infinidade de ensaios, artigos, entrevistas. Rui Jorge Semedo [foto à direita] propõe-se a investigar a dinâmica política e a organização interna do PAIGC desde que a Guiné-Bissau se tornou independente até aos primeiros alvores de uma abertura ao multipartidarismo, processo que se iniciou, timidamente e controversamente, no início da década de 1990.

A investigação deste escritor, poeta e analista político guienense, intitula-se "PAIGC, A Face do Monopartidarismo na Guiné-Bissau", Nimba edições 2021. Algo surpreende, quer pela bibliografia utilizada, quer pelas entrevistas que o autor fez, estas últimas ocorreram em 2008 e 2009 e a bibliografia proposta no essencial é do século XX, apresenta lacunas incompreensíveis, desde o incontornável trabalho de Julião Soares Sousa sobre Amílcar Cabral, os trabalhos de leitura obrigatória assinados por Joshua Forrest (o seu trabalho mais importante não é citado), Patrick Chabal, Toby Green, Carlos Lopes, António Duarte Silva, Tcherno Djaló, entre outros. Fica-se com a ideia que o trabalho foi preparado alguns anos atrás e não atualizado para a presente publicação. Aliás, é o próprio autor que diz que ele resulta da sua dissertação de mestrado, numa universidade brasileira.

Nesta conformidade de trabalho de mestrado, o autor contextualiza, muito sumariamente o quadro das independências e tece um bilhete de identidade de um partido com duas nações, o seu alegado ato fundacional (sujeito a muitas dúvidas que tenha sido celebrado em 1956, recorde-se que só se começa a falar do PAI em 1960, quando se impôs que os movimentos independentistas tivessem partido e sigla), faz-se referência ao quadro político e militar decorrente do Congresso de Cassasá, a existência de certos conflitos internos, a sua organização como partido único, a sua passagem de opositor revolucionário para um controlo absoluto do poder governativo. Amílcar Cabral sempre anteviu os perigos de concentrar a nova classe política em Bissau, era um defensor da decentralização, como proferiu: “Queremos acima de tudo decentralizar o mais que for possível… Porque é que os ministérios não hão de estar dispersos pelo País? Ao fim ao cabo, o nosso País é um país pequeno… Para que é que havemos sobrecarregar com todo esse peso morto de palácios presidenciais, grande concentração de ministérios, tendo sinais evidentes de uma elite emergente que em breve se pode torna em grupo privilegiado?”.

O PAIGC que entra em Bissau em outubro de 1974 veio para se instalar, a sua elite ocupou os edifícios da administração colonial. Escreve o autor: “O que aconteceu foi apenas a substituição de uma força repressora estrangeira por outra nacional igualmente repressora. Pode-se dizer que não houve conciliação entre o que podemos chamar de projeto independência e uma liberdade efetiva com ações que visem melhorar as condições de vida das populações. E as contradições encontradas, principalmente na implementação de políticas públicas deveu-se a essa ausência limitada de liberdade que se acentuava sobretudo no medo de partilhar poder dentro do próprio partido”.

O autor elenca os preceitos constitucionais e a legitimação do PAIGC como única força política, ressalta a constituição da nova elite guineense, os atos de ajuste de contas com quem quer que lhe se opusesse, e mostra as contradições da Unidade Guiné-Cabo Verde, o rastilho de pólvora que fez eclodir o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, revelam-se as discriminações constitucionais propostas para os dois países, inegavelmente ofensivas para os guineenses. Efetuada a rutura, entra-se num período cesarista encabeçado por João Bernardo Ninho Vieira, vão avultar as crises, logo com Víctor Saúde Maria, em 1984, e temos o tenebroso processo de 17 de outubro de 1985, que levou a prisões arbitrárias e as execuções sumárias de figuras cimeiras do sistema político-militar, com destaque para Paulo Correia. Para o autor é incontestável que o golpe de 1980 produziu o militarismo sobre o partido e o estado, o César foi afastando sistematicamente quem lhe pudesse fazer frente, recorrendo a uma polícia de segurança que a todos intimidada.

Passando para a estrutura organizacional do PAIGC, ela possuí a lógica de um partido único, todas as estruturas eram dóceis e espelhavam o que Nino Vieira deles esperava, desde sindicatos, organização da juventude ou organização das mulheres. Uma das lacunas de análise deste trabalho passa por não dar conta da incapacidade em montar uma rede de influência do PAIGC em toda a sociedade, Joshua Forrest explica claramente que os denominados comités de tabanca acabaram por ser aglutinados pelo sistema tradicional, Luís Cabral tinha imaginado grandes projetos visando aspetos socioeconómicos que acelerassem o desenvolvimento, foram um rematado falhanço, Nino Vieira também não soube fazer melhor, grassava o nepotismo, a ocupação de lugares estratégicos por gente incompetente que se locupletava com dinheiros e mercadorias desviadas. Rui Jorge Semedo esqueceu-se de um trabalho fundamental para analisar o sistema do amiguismo instituído por Nino Vieira quando foi forçado a abrir o mercado. O trabalho “Guinea-Bissau: politics, economics and society”, por Rosemary E. Galli e Jocelyn Jones, Frances Pinter, Londres, 1987, ainda hoje é o documento de referência que evidencia claramente como a classe possidente que gravitava nos círculos de Nino Vieira se apoderou da agricultura e de praticamente todos os negócios.

Surge, entretanto, em 1987, e no exterior, o Ba-fata, Resistência da Guiné-Bissau, apresentava-se como o grupo de pressão e alternativa ao regime de Nino Vieira, será mesmo até ao fim do regime de partido único, o único grupo de pressão constituído e atuante. A partir de 1991, o PAIGC vê-se compelido a autorizar o multipartidarismo, tudo vai começar pela lei constitucional n.º 1/91, de 29 de maio, foi assim que se abriu caminho para as primeiras eleições multipartidárias de julho de 1994, ganhas inequivocamente pelo PAIGC. Só que os conflitos persistiram, o que leva o autor a um conjunto de considerações finais, primeiro os conflitos internos, que perduraram desde a presidência de Luís Cabral até ao exílio de Nino Vieira, derrotado depois da guerra de 1989-1999.

O autor finaliza assim:
“A indagação a fazer é sobre o sentido da mudança e/ou revolução preconizada pelo PAIGC. Ou seja, até que ponto pode ser considerado a Guiné-Bissau um país independente? Ou, nesse caso, a independência pode apenas ser considerada a ausência de forças coloniais? Talvez, observando o cenário que se desenhou desde 1974 a este momento nos levaria necessariamente a considerar que houve apenas uma transição do poder das mãos de uma força repressora estrangeira para as de uma força nacional. A legitimação da repressão como uma prática corrente no período pós-independência tirou do PAIGC a possibilidade de estabelecer interna e externamente uma relação baseada no respeito pelos direitos humanos, por um lado e, por outro, desconstruiu o vínculo que o partido tinha com as massas populares. Além de conflitos e contradições gerados, outro fator determinante são falhas verificadas na gestão da coisa pública, o partido não só retrocedeu na promissora política agrícola e industrial iniciada nos primeiros anos da independência, como também não conseguiu aproveitar, principalmente a partir de 1980, o escasso quadro que o país dispunha para maximizar o desempenho”.

Trabalho modesto, muito incompleto, manifestamente repetitivo do que já se encontra nas mais variadas investigações e pouco apreciador das políticas praticadas, como é o caso da referência que faz à promissora política agrícola e industrial de Luís Cabral, unanimemente condenada por todos a que a estudaram.


António Mamadu Camará, antigo soldado Comando com a sua foto da juventude (Tirada do Jornal Expresso, com a devida vénia)
Aristides Pereira
Nino Vieira
____________

Nota do editor

Último poste da série de 22 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24688: Notas de leitura (1618): "A Guerra de Moçambique 1964-1974", por Francisco Proença Garcia; Coleção Guerras e Campanhas Militares da História de Portugal, edição da Quidnovi, 2010 (Beja Santos)

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22479: Notas de leitura (1373): “Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura", por Ângela Benoliel Coutinho; edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, Novembro de 2017 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo à apreciação da tese de doutoramento de Ângela Benoliel Coutinho. Que investigou afincadamente, é dado irrefutável. Põe-se em dúvida quanto à utilidade do levantamento a que procedeu quanto a trajetórias pessoais e profissionais, tanto dos fundadores como dos líderes e combatentes da segunda geração. Dos eventuais seis fundadores, só dois prevaleceram, Amílcar Cabral e Aristides Pereira, nunca se fala daquele que efetivamente deu o corpo ao manifesto na mobilização de todos aqueles jovens que foram encaminhados para Conacri, Rafael Barbosa. A questão iconográfica, como foram encarados os heróis e o líder por ambos os países, parece-me uma visão acertada. E tudo descamba na análise do golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, a historiadora veste-se de juíza e encontra razões de sobra para culpar os guineenses de tudo quanto se passou até à consumação da rutura. Vale pelo que vale, mas deu direito a doutoramento.

Um abraço do
Mário



Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura,
por Ângela Benoliel Coutinho (3)


Beja Santos

Este livro resulta da tese de doutoramento em História da África Negra Contemporânea, defendida em 2005 na Universidade de Paris I – Panthéon – Sorbonne: “Os Dirigentes do PAIGC” é uma edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, novembro de 2017.

A que se afoitou Ângela Benoliel Coutinho? Ela responde: “O presente estudo debruça-se sobre as trajetórias dos fundadores do PAIGC e dos membros do seu Comité Executivo de Luta. Interrogar-nos-emos acerca do recrutamento destes dirigentes, mais precisamente o recrutamento geracional, geográfico, de género, social, procurando também saber que formação tiveram, tendo em vista as suas atividades de direção política”.

O estudo a que a autora se acomete sobre as trajetórias destas figuras gradas do PAIGC inclui uma verificação de quem é quem entre os fundadores do partido, traços comuns das trajetórias familiares, quem é quem entre os combatentes, o seu recrutamento e história familiar, valores e princípios proclamados e tratamento da figura dos heróis, tanto na Guiné como em Cabo Verde, como, nos dois países, se procurou implementar políticas de democracia revolucionária e como caraterizar o fim abrupto do PAIGC. É este o último ponto que aqui se analisa, sugerindo sempre aos leitores a leitura integral desta tese de doutoramento defendida em 2005 e agora publicada pela Imprensa da Universidade de Coimbra.

É estranho como a autora formula as suas premissas sem, em nenhuma circunstância, nos oferecer o contraditório. O golpe de Estado de 14 de novembro de 1980 é sumariamente descrito, lembra-se que o golpe de Estado era moeda-corrente da época, dá-se conta das medidas tomadas: aprovação da primeira lei do Conselho da Revolução, destituição de Luís Cabral, dissolução da Assembleia Nacional Popular, do Conselho de Estado e do Conselho dos Comissários de Estado, o Conselho da Revolução passa a ter o poder que tinham estes órgãos políticos. Ficamos a saber a composição do Conselho da Revolução e a sua proveniência. A 24 de novembro é nomeado um Governo Provisório, e desencadeia-se um rol de acusações quanto ao falhanço da unidade Guiné-Cabo Verde. Os golpistas acusavam a ala cabo-verdiana do partido por diferentes razões, era acusado o Governo anterior de corrupção, de irresponsabilidade, de laxismo face aos erros, de nepotismo, de ostentação e de ambição pessoal dos seus membros. Tivesse Ângela Benoliel Coutinho consultado o acervo documental do CIDAC, em Lisboa, e não teria escrito “não se deram exemplos destas práticas e não se nomearam os indivíduos que as teriam praticado”. Atenda-se que o próprio Luís Cabral em discursos proferidos, nomeadamente em 1978 e 1979, já referia casos de corrupção, de irresponsabilidade e de laxismo, vem nos documentos. A autora encontra muitas semelhanças entre a composição do Governo anterior e o Governo de transição sob a responsabilidade do Conselho da Revolução, o que sendo verdade só abona como os golpistas eram dirigentes de extração guineense e aderiram à rutura, não sabemos com que alma e coração. Ângela Coutinho não esconde o tratamento parcial na análise a que procede a este golpe: fala nas contradições de Nino, nas acusações graves, retoma o evento do assassinato de Amílcar Cabral em que já era patente o profundo sentimento anti-cabo-verdiano, em que mesmo os golpistas de 20 de janeiro de 1973 falavam em eliminar os cabo-verdianos e os mestiços.

Nino Vieira e Aristides Pereira travam-se de razões, trocam mensagens acusatórias, consumava-se na prática a rutura. A imprensa cabo-verdiana publicou os protestos e as críticas profundas ao golpe, o fantasma do assassinato de Cabral paira permanente no ar, em janeiro de 1991 cria-se o PAICV em Cabo-Verde, mantém-se o PAIGC na Guiné-Bissau. A autora procura afincadamente demonstrar que não havia nenhuma hegemonia cabo-verdiana, uma vez mais é esquecido o espírito do Congresso de Cassacá e em nenhuma circunstância a autora aponta para as razões próximas do golpe, nomeadamente as discriminações entre as novas Constituições de Cabo-Verde e Guiné-Bissau. A autora também critica o palavrório usado pelo PAIGC quanto a fuzilamentos perpetrados pelo Governo de Luís Cabral, Luís Cabral, no exílio iria sempre evocar a existência de inimigos do PAIGC, supostos agentes da ex-PIDE e Comandos guineenses que teriam tentado dar um golpe de Estado a 11 de março de 1975. Só que Luís Cabral nunca apresentou documentação nem mesmo provas de julgamento que pudessem justificar os fuzilamentos contínuos que se praticaram durante o seu mandato. Quem lê esta tese de doutoramento pode ficar com a sensação de que houve um grupo de maus da fita, os golpistas, e os mártires da unidade Guiné-Cabo Verde, que foram escorraçados pelos primeiros. Se isto é ciência histórica, o mundo anda às avessas.

E assim chegamos às conclusões. Dá-se como provado que houve uma renovação da direção política do PAIGC muito antes da declaração da independência da Guiné-Bissau, em 1973, não é rigorosamente verdade, houve mexidas, entrou muita gente na segunda geração mas o poder ficou nas mãos da dupla Aristides Pereira – Luís Cabral, ao longo do Governo deste último grassou o descontentamento e surgiram problemas políticos de grande melindre, suficientes para os militares guineenses terem encerrado fileiras. Há pontos suscitados que merecem estudos posteriores, é o caso da questão das mulheres, ausentes da fundação do partido, Carmen Pereira foi a única militante cabo-verdiana eleita para a direção do partido. Igualmente acertado aparece o tratamento da imagem de Cabral nos dois países. A direção do processo revolucionário, a que a autora faz alusão, tem vindo a ser estudado por variados autores, é incontestável que o PAIGC rapidamente perdeu a dinâmica revolucionária na prática, usou-a nos seus planos de desenvolvimento, enquanto se afastava das massas, completamente intimidadas pelas provas de terror de execuções, prisões e banimentos, afastamento de régulos, a par de nomeações sem qualquer relevância de comissários de nulo poder de decisão, o poder estava concentrado em Bissau. Comparando Guiné com Cabo Verde, obviamente que este último país vai ficar melhor na fotografia.

Enfim, uma investigação a que se pode reconhecer muito trabalho, mas um exercício que se deplora de tratamento faccioso da história de uma rutura. Aliás, não é só Ângela Benoliel Coutinho que foge ao estudo da verdade quanto à essência da rutura, o fantasma e a iconografia de uma unidade que foi extremamente proveitosa para a independência dos dois países nunca passou de um sonho arquitetado por Amílcar Cabral num cenário idílico que nunca existiu. E os dois países continuam a pagar caro a fantasmagoria de todas essa ficções.
Amílcar Cabral com Carmen Pereira, imagem do jornal Público, 5 de junho de 2016, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22459: Notas de leitura (1372): “Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura", por Ângela Benoliel Coutinho; edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, Novembro de 2017 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22459: Notas de leitura (1372): “Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura", por Ângela Benoliel Coutinho; edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, Novembro de 2017 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Publicar um trabalho universitário, datado de 2004 em 2017, quando a historiografia deu passos significativos em matérias que a então doutoranda investigou e que hoje são, em certos casos, matéria refutável, acarreta uma severa interpolação: por que razão a historiadora dá à estampa um trabalho que em pontos fundamentais a investigação já encontrou outras respostas? Historiadores cabo-verdianos, guineenses, portugueses e de outras nacionalidades têm continuado a estudar a génese do PAIGC, as suas atividades na luta armada, as questões internas, o legado de Cabral, o fracasso da política de unidade, designadamente na Guiné-Bissau.

Mas o mais grave de tudo é quando a historiadora desembainha o sabre sobre os dirigentes guineenses, culpa-os diretamente da rutura de 1980. Pergunto seriamente como é que este trabalho foi aplaudido numa universidade da Sorbonne e como é que o professor Luís Reis Torgal vem saudar a publicação deste livro na Universidade de Coimbra, como é possível?


Um abraço do
Mário



Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura,
por Ângela Benoliel Coutinho (2)


Beja Santos

Este livro resulta da tese de doutoramento em História da África Negra Contemporânea, defendida em 2005 na Universidade de Paris I – Panthéon – Sorbonne: “Os Dirigentes do PAIGC” é uma edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, novembro de 2017.

A que se afoitou Ângela Benoliel Coutinho? Ela responde: “O presente estudo debruça-se sobre as trajetórias dos fundadores do PAIGC e dos membros do seu Comité Executivo de Luta. Interrogar-nos-emos acerca do recrutamento destes dirigentes, mais precisamente o recrutamento geracional, geográfico, de género, social, procurando também saber que formação tiveram, tendo em vista as suas atividades de direção política”.

Lançada luz sobre a primeira geração dos dirigentes do PAIGC, tendo-se mostrado quem eram os combatentes desde a primeira hora da luta, como, no fundo, se constituíram como a segunda geração dos dirigentes do PAIGC, a investigadora procura traçar o perfil dos valores e princípios dos heróis e ideólogos do PAIGC. As publicações guineenses, caso de Nô Pintcha, os heróis são guineenses, a maioria pertence à segunda geração, só Amílcar Cabral pertence à dos fundadores. Como são apresentados? Como dedicados, nunca se poupando a sacrifícios, abnegados, corajosos, verdadeiros filhos do povo. Cabral está noutro pedestal, é estudante brilhante, foi engenheiro brilhante, homem profundamente humano, honesto e de grande estatura, aceitou o sacrifício mais elevado, foi guia incontestado. O Nô Pintcha não deixa de relevar o universalismo de Cabral e a internacionalização da sua imagem. Analisando os selos de correio, Amílcar Cabral é a imagem maioritária, tanto na Guiné como Cabo Verde. Depois de exprimir o entendimento sobre a ideologia do PAIGC, a autora destaca expressões e trabalhos de Cabral sobre a cultura, o trabalho, a promoção da mulher, a gestão do tempo, a dedicação, a apologia de uma nova sociedade em consonância com os valores do PAIGC e retoma a controversa questão das relações suicidárias da pequena burguesia e do PAIGC, o que Cabral pensava da democracia revolucionária e também da união política, não descurando esta observação das atividades do PAIGC num quadro de unidade com certos movimentos ou partidos políticos africanos, com destaque para o MPLA e Frelimo. Ângela Coutinho não traz nada de novo sobre a questão das principais linhas ideológicas nem da questão da unidade, em momento algum no seu trabalho se relevam as questiúnculas permanentes, as dúvidas permanentes, os ressentimentos de longuíssima data, entre guineenses e cabo-verdianos.

Em novo capítulo, a autora tem um olhar de relance sobre os revolucionários no poder, no fundo não se ultrapassou o legado ideológico de Cabral no conceito de partido-Estado, vemos que houve uma gradual sobreposição de cargos de direção dos militares no poder político, o que é compreensível na época da escassez de quadros técnicos altamente qualificados. Não nos explica como começou logo a falhar a democracia revolucionária, o militantismo muito cedo foi desaparecendo, mesmo nos comités de tabanca.

Já estamos na independência, as heranças económicas eram distintas, o modelo ideológico o mesmo, ainda que mais atenuado em Cabo Verde, o PAIGC sabia que não podia afrontar literalmente os seus emigrantes, caso tentasse um modelo de nacionalizações em massa, haveria uma estrondosa quebra na remessa dos emigrantes tanto da América como da Europa. A grande polémica passava sobre o modelo de desenvolvimento, como introduzir novas formas de progresso sem chocar com os milenários usos e costumes africanos. Mas o modelo existia, era dado incontornável: havia que romper com a economia de autossuficiência que ocupava 80% da população. Escreve a autora: “Defendia-se uma articulação entre a agricultura e a indústria, no sentido em que a primeira era o setor de base da economia e a segunda seria a dinamizadora do seu desenvolvimento. Ou seja, de forma a romper com a economia de autossuficiência, a indústria devia colocar produtos no mercado, o que deveria criar nos camponeses o desejo de produzir mais e melhor, de forma a poder vender o excedente e adquirir os referidos produtos. Era necessário modernizar previamente o setor agrícola, tarefa que seria cumprida com a introdução de fatores de produção suscetíveis de aumentar a produtividade, tais como os utensílios de lavoura e os fertilizantes”. Mais tarde, virão as críticas ao modo como se tentou esta modernização, que falhou redondamente. Como igualmente se irão fazer críticas duríssimas à criação de indústrias de transformação. Estas tinham como objetivo primordial a resolução de problemas de desemprego e de subemprego nas cidades. Por altura da independência, o potencial circunscrevia-se a 14 unidades de produção industrial. Após a independência criaram-se novas estruturas, a prazo, irão todas ao fundo, desde as cervejas e refrigerantes, passando pelos sumos e compotas, pelo descasque de arroz, pelos móveis, pelas casas pré-fabricadas e colchões e estofos de espuma.

Na altura em que Ângela Coutinho preparou o seu doutoramento ainda não tinha saído o testemunho de Filinto Barros, um Ministro da Indústria que pouco antes do seu falecimento resolveu revelar o porquê de tantos fracassos, a começar pelos Armazéns do Povo até à indústria do descasque. Falando de Cabo Verde, a tomar como referência os dados utilizados pela autora, as coisas correram um pouco melhor. Falando de outras mudanças, elenca-se o que se pretendeu fazer na Justiça, na Educação, na Saúde, contando-se com imensos apoios da cooperação internacional.

O III Congresso do PAIGC (1977) apostou na educação, na conceção científica do mundo, tudo sob a alçada do partido-Estado. Aumentou de facto o número de escolas, tanto na Guiné-Bissau como em Cabo Verde e ganhou prioridade a política cultural.

Sem nunca nos oferecer qualquer tipo de esclarecimento sobre os confrontos internos no PAIGC, Ângela Benoliel Coutinho reserva a última parte do seu trabalho ao golpe de Estado de Bissau de 14 de novembro de 1980. Se até agora pudemos contar com uma postura tendencialmente neutral relativamente à evolução da conduta destes dirigentes, tanto na Guiné como em Cabo Verde, agora, em plena tese de doutoramento, e contrariando as regras elementares da ciência histórica, a historiadora desmanda-se sobre o PAIGC da Guiné-Bissau, veremos como ela vai exprimir a triste figura dos seus argumentos.

(Continua)
Os dirigentes do PAIGC Amílcar Cabral, Luís Cabral e Aristides Pereira saindo da reunião do CSL em Boké, 1971. Imagem da Fundação Mário Soares, com a devida vénia.
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Notas do editor:

Poste anterior de 9 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22444: Notas de leitura (1369): “Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura", por Ângela Benoliel Coutinho; edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, Novembro de 2017 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 13 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22454: Notas de leitura (1371): "Os Roncos de Farim", por Carlos Silva; editora 5 Livros, 2021, a ser apresentado amanhã na Tabanca dos Melros (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22444: Notas de leitura (1369): “Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura", por Ângela Benoliel Coutinho; edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, Novembro de 2017 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,

A dissertação de doutoramento de Ângela Benoliel Coutinho visou colmatar conhecidas e reconhecidas lacunas sobre os dirigentes do PAIGC: extração, profissões, famílias, aferir diferenças entre a primeira e a segunda geração de combatentes. A autora não esconde um móbil principal que é procurar desfazer o que ela chama um mito da hegemonia cabo-verdiana no PAIGC. Como se verá, bem procura mas não alcança. A História tem destas vicissitudes que é comprovar a veracidade dos factos pelos comportamentos políticos posteriores. 

Os combatentes guineenses tinham duas razões de tomo para desconfiarem da sigla da unidade Guiné Cabo-Verde: tiveram séculos de patrões cabo-verdianos e não gostaram; e foram fundamentalmente dirigidos até 1980 de acordo com uma lógica que davam por inaceitável. Trabalho com bastantes méritos, mas surpreende como é que se edita a seco uma tese defendida em 2005 quando, no entretanto, surgiu muita outra documentação de elevada pertinência. Não teria sido útil publicar a tese de 2005 com comentários a investigações posteriores que trouxeram, iniludivelmente, apreciações distintas à que a autora defendeu, então?

Um abraço do
Mário



Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura,
por Ângela Benoliel Coutinho (1)


Beja Santos

Este livro resulta da tese de doutoramento em História da África Negra Contemporânea, defendida em 2005 na Universidade de Paris I – Panthéon – Sorbonne. A sua tradução para português, nos dias de hoje, obriga-nos a questionar se não devia ser objeto de um texto complementar decorrente da importante bibliografia publicada nos últimos treze anos. Logo Leopoldo Amado e Julião Soares Sousa, António Tomás, Daniel Santos e Tomás Medeiros. Mas também Piero Gleijeses que estudou a presença cubana na luta armada; a entrevista de José Vicente Lopes a Aristides Pereira, com data de 2012, A Criação e Invenção da Guiné-Bissau por António Duarte Silva, mas há mais. 

Um olhar sobre a História é por definição sempre datado, mas publicar treze anos depois um documento destes sem um comentário acerca de investigações posteriores que podem pesar nas conclusões então produzidas, parece-nos um tanto bizarro.

A que se afoitou Ângela Benoliel Coutinho? Ela responde: 

“O presente estudo debruça-se sobre as trajetórias dos fundadores do PAIGC e dos membros do seu Comité Executivo de Luta. Interrogar-nos-emos acerca do recrutamento destes dirigentes, mais precisamente o recrutamento geracional, geográfico, de género, social, procurando também saber que formação tiveram, tendo em vista as suas atividades de direção política”

Mostra-se entusiasta pelo cruzamento de diferentes disciplinas, tendo como núcleo central a Sociologia Política e organiza o seu trabalho sondando a primeira geração dos dirigentes do PAIGC, a longa e progressiva tomada do poder pela segunda geração dos dirigentes do PAIGC, discreteia sobre heróis ideólogos após a independência, o que aconteceu aos revolucionários no poder e elabora as conclusões.

É de lamentar que ao referir a organização política do PAIGC traçada no Congresso de Cassacá não extraia a mais devida das considerações: o poder militar ficou, a partir desse momento, custodiado, totalmente dependente do decisor político. Durante anos, o cérebro da estratégia, tanto militar, como organizacional, política e diplomática, foi Amílcar Cabral; Aristides Pereira era o pontífice da logística e Luís Cabral o dirigente que funcionava como uma antena no Senegal. Há que tirar ilações desta cúspide, eles foram os verdadeiros dirigentes e interlocutores dos comandos militares.

Quanto à fundação do PAIGC, sabe-se que há dados obscuros, e de há muito. Quem esteve presente em 19 de setembro de 1956 é uma verdadeira incógnita; Julião Soares Sousa avança mesmo que era fisicamente impossível Amílcar Cabral ter assistido àquela reunião; e quanto à existência do PAI continua a pertinência da pergunta porque é que Amílcar Cabral nunca falou dele em sessões públicas ou na sua correspondência até 1960.

Para a investigadora, temos um conjunto de fundadores, nascidos entre 1923 e 1930, Aristides Pereira, Amílcar Cabral, Júlio Almeida, Fernando Fortes, Luís Cabral e Elysée Turpin. Eles podem ter sido todos fundadores mas para a história do PAIGC o que conta são os irmãos Cabral e Aristides Pereira, três homens extraídos da cultura cabo-verdiana, e a autora desenvolve mesmo as respetivas genealogias, releva a importância do Liceu Gil Eanes no Mindelo, o papel de Baltazar Lopes da Silva e da revista Claridade e interroga-se mesmo de quem influenciou quem no meio universitário lisboeta, Dalila Mateus ouviu Marcelino Santos sobre leituras e intercâmbios ideológicos, não parece haver dúvida que a grande plataforma de encontro foi o Centro de Estudos Africanos, funcionava na Rua Ator Vale, em pleno Bairro dos Atores, em Lisboa.

A autora aborda as fugas e as partidas para o exílio, não há uma palavra para Rafael Barbosa e o seu determinante papel dirigente nesse período decisivo de 1960 a 1962.

Estamos agora na segunda geração dos dirigentes do PAIGC, os combatentes. Oiçamos a autora a propósito do recrutamento dos militantes no mundo obscuro da clandestinidade:

“Considerámos que existiram duas fases cruciais de recrutamento deste grupo de dirigentes. A primeira diz respeito ao início da sua militância no PAIGC, enquanto a segunda ocorreu no interior do próprio partido, tratando-se do seu recrutamento na qualidade de dirigente deste. A fim de compreender a primeira fase em causa, visto a falta de estudos sobre o PAIGC e a indisponibilidade de fontes do partido, apoiámo-nos em vários outras fontes: processos da PIDE / DGS, entrevistas, relatos de vida publicados e obras ou estudos publicados”.

Concluiu que o recrutamento dos dirigentes ocorreu durante um período muito curto, primeiro em Conacri e depois no Senegal. Esclarece que os militantes do PAIGC que agiram no espaço político sob domínio português e que não fugiram durante este período, não fizeram carreira até ao topo da direção política do PAIGC. 

A maioria dos militantes que chegaram à direção política do movimento entre 1963 e 1967 já se encontravam na cena política africana e já tinham sido recrutados pelo PAIGC pelo menos até 1962. Luís Cabral, em entrevista à autora, enumera-os: Rafael Barbosa, Victor Saúde Maria, Carlos Correia, Francisco Mendes, Osvaldo Vieira, Constantino Teixeira, Nino Vieira, Abdulai Bari, Pascoal Correia Alves, Tiago Aleluia Lopes, Otto Schacht, Vasco Cabral, todos guineenses, e Abílio Duarte, Silvino da Luz, Pedro Pires, José Araújo e Osvaldo Lopes da Silva, todos cabo-verdianos. 

A autora dá pormenores sobre o seu recrutamento, as suas trajetórias, profissões e atividades antes de entrarem na luta armada e as conclusões são de há muito conhecidas: os cabo-verdianos eram estudantes universitários; com estudos universitários só o guineense Vasco Cabral, todos os outros guineenses eram pequenos funcionários, em casas comerciais ou organismos do Estado.

A autora não esconde a intenção em pretender demolir a tese da hegemonia cabo-verdiana, como se esta se revelasse em percentagens, e o equilíbrio fosse patente. A questão de fundo é tratada veladamente: a decisão ideológica e política, a orientação militar estava a cargo de três líderes políticos, competindo a Amílcar Cabral todas as grandes decisões: os combatentes na fase de arranque eram todos guineenses. 

Com o evoluir da luta armada e a deslocação dos cabo-verdianos para o interior da Guiné deram-se substanciais alterações. Refere-se igualmente a quase ausência de mulheres da direção, a exceção mais relevante era Carmen Pereira, havendo figuras de prestígio como Titina Silá, Dulce Almada, Francisca Pereira e Ana Maria Gomes, isto quanto a uma primeira geração. Há também uma exposição sobre as fugas dos militantes cabo-verdianos, vamos ficar a conhecer a sua genealogia.

A obra “Os Dirigentes do PAIGC” é uma edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, novembro de 2017.

(Continua)

Carlos Correia, imagem retirada do Arquivo Amílcar Cabral / Fundação Mário Soares, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22425: Notas de leitura (1368): “Repórter de Guerra”, por Luís Castro; Oficina do Livro, 2007 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19733: Os nossos seres, saberes e lazeres (321): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte IV: Xangai, 24 de maio de 1980




República Popular da China > Xangai > 24 de maio de 1980

Fotos (e texto): © António Graça de Abreu (2019). Todos os direitos reservados. [Edição / revisão e fixação de texto para este blogue: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Mensagem do António Graça de Abreu com data de ontem

"Um texto espantoso! Já me tinha esquecido que o tinha escrito. Foi publicado no Diário de Notícias, a 5.7.1980. Este é para o blogue, com as fotos."



[Recorde-se: foi professor de Português em Pequim (Beijing) e tradutor nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras. Viveu em Pequim e Xangai entre 1977 e 1983. Ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), é membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com mais de 230 referências. Vive em Cascais. É um cidadão do mundo, poeta, escritor e reputado sinólogo. Chama-se António [José] Graça de Abreu, nascido no Porto em 1947.] (*)



Xangai, 24 de Maio de 1980 (**)


Xangai não me surpreendeu. 10.800.000 de habitantes, uma terra com mais dois milhões de habitantes do que Tóquio, Londres ou a cidade do México, as outras urbes megalómanas com maior população no globo. 


Se fosse possível esvaziar Xangai da sua imensa mole humana, metiam-se cá todos os portugueses e ainda sobrava espaço. É a metrópole mais aberta da China, burgo diferente de todas as outras cidades do império. Parecer-se-ia com Hong Kong se Hong Kong tivesse parado de se desenvolver em 1949. 

A imponente Xangai, da Bund, da Avenida Nanquim que se estende por sete quilómetros, dos hotéis, teatros e cinemas permanentemente cheios desde as nove da manhã, foi toda construída antes de os comunistas tomarem o poder.

Só depois de viver há quase três anos na China, tive ocasião de visitar Xangai. Já atravessei este país por duas vezes, de lés-a-lés, de Pequim às fronteiras com o Laos e o Vietnam, da Manchúria, no norte, a Cantão e Macau, bem lá no sul, porém Xangai nunca tinha ficado nos espelhos do caminho. 

Desta vez, Xangai foi o objectivo da viagem e cheguei à cidade do delta do rio Yangtsé com uma enorme vontade de ver e conhecer. Esta fantástica urbe é motivo de permanente conversa e busca de entendimentos entre chineses, e não só. Eu tinha de atravessar Xangai, da a meter na minha vida, esta é a cidade onde tudo aconteceu, acontece e tudo pode vir a acontecer.

Na China existe uma certa rivalidade entre Pequim e Xangai, pequinenses e xangaineses puxam, à vez, a brasa à sua sardinha e tentam provar que a cidade onde nasceram é que é a melhor. Algo semelhante à nossa rivalidadezinha entre Porto e Lisboa, procurando tripeiros e alfacinhas pôr no galarim, fazer valer a superior e excelsa qualidade de cada uma das suas terras.

Pequim é o centro político da China, uma cidade com a História surgindo em cada canto, os palácios dos imperadores Ming e Qing, os templos, os parques, os jardins, três milhões de bicicletas para oito milhões de habitantes, um certo conservadorismo nos modos e hábitos das pessoas. 

Xangai é o grande centro industrial e comercial da China, uma cidade agitada, jovem, cheia de força, permanentemente voltada para horizontes mais amplos. 

Não por acaso, foi fundado em Xangai, em 1921, o Partido Comunista da China, e também aqui nasceu, na década de sessenta, o grupo de Xangai que, depois da morte de Mao Zedong, viria a ser tristemente famoso como o execrável “bando dos quatro.”

Nesta terra, num passado ainda próximo, cometeram-se as maiores brutalidades sobre o povo chinês, impiedosamente explorado pelo capital inglês, francês, norte-americano, japonês, cidade também à mercê dos gangues e das tríades chinesas. Paraíso de aventureiros sem escrúpulos, cadinho de um proletariado incipiente que talvez nunca se tivesse libertado das garras de uma exploração feroz sem a ajuda de Mao, Zhu De e dos milhares de camponeses que constituiam o grosso dos soldados do exército comunista que tomou Xangai em 1949. 

Mas, contradição em que a China, mais do que qualquer outro país é fértil, foi devida à espantosa invasão estrangeira dos séculos XIX e primeiras décadas do século XX que Xangai se transformou na mais moderna e avançada cidade da China. O contacto com o capitalismo selvagem, desenfreado, abriu os olhos aos chineses e o capital estrangeiro e também o saber como se cria riqueza, proporcionou a Xangai os meios para fabricar tudo o que precisa e continuar a dar cartas em toda a Ásia. 

Não falta comida neste imenso burgo, a variedade e qualidade dos produtos ultrapassa de longe o que é feito em qualquer outra cidade do império. Xangai não só fabrica muito e bem, abastece-se e abastece a China.
Claro que a vida não é fácil para os milhões e milhões de pessoas que aqui vivem. O problema número um talvez não seja o arroz de cada dia, mas a casa, a habitação, o quarto para cada um. Há milhares de quarteirões inteiros a cair que precisam de ser arrasados e construídos de novo. Há milhões de jovens que querem casar, mas onde encontrar um tecto para os abrigar, onde descobrir um espaço para os ajudar a alinhar as suas vidas? 

Nesta cidade de brandos costumes, a mais liberal da China, ao fim da tarde, na Bund, no parque do Povo, junto ao rio, gostei de ver os namorados aos milhares, praticamente encostados uns aos outros, em filas compactas, debruçados no extenso parapeito sobre as águas do Huangpu. Beijando-se, longamente, ignorando quem passa e finge que não vê. Talvez seja a maior aglomeração amorosa do mundo. Estas meninas de Xangai (ou da China inteira?), suaves, pretensamente recatadas, enroscando-se nos namorados, enlaçando-se neles. Ah!...

Talvez não gostasse de viver em Xangai, este mundo enorme quase me assusta para a vida de todos os dias. Tenho uma costela forte de anacoreta frustrado, descontente com o mundo dos homens, procurando refúgio no isolamento das montanhas, longe das vilanias terrenas, mais perto do céu. No entanto, se velho monge panteísta, eu me escondesse nas faldas de um qualquer Gerês ou Soajo, lá no Portugal do outro lado do mundo, ou aqui na China, na magia de outras montanhas, entre nuvens do amanhecer e azáleas em flor, desejaria, por certo esquecer o meu bordão de reverente asceta da Natureza e adoraria descer, de vez em quando, para uma grande cidade, como Xangai, ao encontro da vida que por aqui se cria, queima, esbate e recomeça sempre.


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Notas do editor:

(*) Vd, poste de 20 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19701: Os nossos seres, saberes e lazeres (319): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte III: Pequim e Macau, out / nov 1982

(**) Último poste da série > 27 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19722: Os nossos seres, saberes e lazeres (320): No condado de Oxford, a pretexto de um casamento em Fairford (2) (Mário Beja Santos)