segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22444: Notas de leitura (1369): “Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura", por Ângela Benoliel Coutinho; edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, Novembro de 2017 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,

A dissertação de doutoramento de Ângela Benoliel Coutinho visou colmatar conhecidas e reconhecidas lacunas sobre os dirigentes do PAIGC: extração, profissões, famílias, aferir diferenças entre a primeira e a segunda geração de combatentes. A autora não esconde um móbil principal que é procurar desfazer o que ela chama um mito da hegemonia cabo-verdiana no PAIGC. Como se verá, bem procura mas não alcança. A História tem destas vicissitudes que é comprovar a veracidade dos factos pelos comportamentos políticos posteriores. 

Os combatentes guineenses tinham duas razões de tomo para desconfiarem da sigla da unidade Guiné Cabo-Verde: tiveram séculos de patrões cabo-verdianos e não gostaram; e foram fundamentalmente dirigidos até 1980 de acordo com uma lógica que davam por inaceitável. Trabalho com bastantes méritos, mas surpreende como é que se edita a seco uma tese defendida em 2005 quando, no entretanto, surgiu muita outra documentação de elevada pertinência. Não teria sido útil publicar a tese de 2005 com comentários a investigações posteriores que trouxeram, iniludivelmente, apreciações distintas à que a autora defendeu, então?

Um abraço do
Mário



Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura,
por Ângela Benoliel Coutinho (1)


Beja Santos

Este livro resulta da tese de doutoramento em História da África Negra Contemporânea, defendida em 2005 na Universidade de Paris I – Panthéon – Sorbonne. A sua tradução para português, nos dias de hoje, obriga-nos a questionar se não devia ser objeto de um texto complementar decorrente da importante bibliografia publicada nos últimos treze anos. Logo Leopoldo Amado e Julião Soares Sousa, António Tomás, Daniel Santos e Tomás Medeiros. Mas também Piero Gleijeses que estudou a presença cubana na luta armada; a entrevista de José Vicente Lopes a Aristides Pereira, com data de 2012, A Criação e Invenção da Guiné-Bissau por António Duarte Silva, mas há mais. 

Um olhar sobre a História é por definição sempre datado, mas publicar treze anos depois um documento destes sem um comentário acerca de investigações posteriores que podem pesar nas conclusões então produzidas, parece-nos um tanto bizarro.

A que se afoitou Ângela Benoliel Coutinho? Ela responde: 

“O presente estudo debruça-se sobre as trajetórias dos fundadores do PAIGC e dos membros do seu Comité Executivo de Luta. Interrogar-nos-emos acerca do recrutamento destes dirigentes, mais precisamente o recrutamento geracional, geográfico, de género, social, procurando também saber que formação tiveram, tendo em vista as suas atividades de direção política”

Mostra-se entusiasta pelo cruzamento de diferentes disciplinas, tendo como núcleo central a Sociologia Política e organiza o seu trabalho sondando a primeira geração dos dirigentes do PAIGC, a longa e progressiva tomada do poder pela segunda geração dos dirigentes do PAIGC, discreteia sobre heróis ideólogos após a independência, o que aconteceu aos revolucionários no poder e elabora as conclusões.

É de lamentar que ao referir a organização política do PAIGC traçada no Congresso de Cassacá não extraia a mais devida das considerações: o poder militar ficou, a partir desse momento, custodiado, totalmente dependente do decisor político. Durante anos, o cérebro da estratégia, tanto militar, como organizacional, política e diplomática, foi Amílcar Cabral; Aristides Pereira era o pontífice da logística e Luís Cabral o dirigente que funcionava como uma antena no Senegal. Há que tirar ilações desta cúspide, eles foram os verdadeiros dirigentes e interlocutores dos comandos militares.

Quanto à fundação do PAIGC, sabe-se que há dados obscuros, e de há muito. Quem esteve presente em 19 de setembro de 1956 é uma verdadeira incógnita; Julião Soares Sousa avança mesmo que era fisicamente impossível Amílcar Cabral ter assistido àquela reunião; e quanto à existência do PAI continua a pertinência da pergunta porque é que Amílcar Cabral nunca falou dele em sessões públicas ou na sua correspondência até 1960.

Para a investigadora, temos um conjunto de fundadores, nascidos entre 1923 e 1930, Aristides Pereira, Amílcar Cabral, Júlio Almeida, Fernando Fortes, Luís Cabral e Elysée Turpin. Eles podem ter sido todos fundadores mas para a história do PAIGC o que conta são os irmãos Cabral e Aristides Pereira, três homens extraídos da cultura cabo-verdiana, e a autora desenvolve mesmo as respetivas genealogias, releva a importância do Liceu Gil Eanes no Mindelo, o papel de Baltazar Lopes da Silva e da revista Claridade e interroga-se mesmo de quem influenciou quem no meio universitário lisboeta, Dalila Mateus ouviu Marcelino Santos sobre leituras e intercâmbios ideológicos, não parece haver dúvida que a grande plataforma de encontro foi o Centro de Estudos Africanos, funcionava na Rua Ator Vale, em pleno Bairro dos Atores, em Lisboa.

A autora aborda as fugas e as partidas para o exílio, não há uma palavra para Rafael Barbosa e o seu determinante papel dirigente nesse período decisivo de 1960 a 1962.

Estamos agora na segunda geração dos dirigentes do PAIGC, os combatentes. Oiçamos a autora a propósito do recrutamento dos militantes no mundo obscuro da clandestinidade:

“Considerámos que existiram duas fases cruciais de recrutamento deste grupo de dirigentes. A primeira diz respeito ao início da sua militância no PAIGC, enquanto a segunda ocorreu no interior do próprio partido, tratando-se do seu recrutamento na qualidade de dirigente deste. A fim de compreender a primeira fase em causa, visto a falta de estudos sobre o PAIGC e a indisponibilidade de fontes do partido, apoiámo-nos em vários outras fontes: processos da PIDE / DGS, entrevistas, relatos de vida publicados e obras ou estudos publicados”.

Concluiu que o recrutamento dos dirigentes ocorreu durante um período muito curto, primeiro em Conacri e depois no Senegal. Esclarece que os militantes do PAIGC que agiram no espaço político sob domínio português e que não fugiram durante este período, não fizeram carreira até ao topo da direção política do PAIGC. 

A maioria dos militantes que chegaram à direção política do movimento entre 1963 e 1967 já se encontravam na cena política africana e já tinham sido recrutados pelo PAIGC pelo menos até 1962. Luís Cabral, em entrevista à autora, enumera-os: Rafael Barbosa, Victor Saúde Maria, Carlos Correia, Francisco Mendes, Osvaldo Vieira, Constantino Teixeira, Nino Vieira, Abdulai Bari, Pascoal Correia Alves, Tiago Aleluia Lopes, Otto Schacht, Vasco Cabral, todos guineenses, e Abílio Duarte, Silvino da Luz, Pedro Pires, José Araújo e Osvaldo Lopes da Silva, todos cabo-verdianos. 

A autora dá pormenores sobre o seu recrutamento, as suas trajetórias, profissões e atividades antes de entrarem na luta armada e as conclusões são de há muito conhecidas: os cabo-verdianos eram estudantes universitários; com estudos universitários só o guineense Vasco Cabral, todos os outros guineenses eram pequenos funcionários, em casas comerciais ou organismos do Estado.

A autora não esconde a intenção em pretender demolir a tese da hegemonia cabo-verdiana, como se esta se revelasse em percentagens, e o equilíbrio fosse patente. A questão de fundo é tratada veladamente: a decisão ideológica e política, a orientação militar estava a cargo de três líderes políticos, competindo a Amílcar Cabral todas as grandes decisões: os combatentes na fase de arranque eram todos guineenses. 

Com o evoluir da luta armada e a deslocação dos cabo-verdianos para o interior da Guiné deram-se substanciais alterações. Refere-se igualmente a quase ausência de mulheres da direção, a exceção mais relevante era Carmen Pereira, havendo figuras de prestígio como Titina Silá, Dulce Almada, Francisca Pereira e Ana Maria Gomes, isto quanto a uma primeira geração. Há também uma exposição sobre as fugas dos militantes cabo-verdianos, vamos ficar a conhecer a sua genealogia.

A obra “Os Dirigentes do PAIGC” é uma edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, novembro de 2017.

(Continua)

Carlos Correia, imagem retirada do Arquivo Amílcar Cabral / Fundação Mário Soares, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22425: Notas de leitura (1368): “Repórter de Guerra”, por Luís Castro; Oficina do Livro, 2007 (2) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mário, tenho que concordar com as tuas pertinentes observações críticas:

(i) não atualização da "revisão de literatura" (em relação aos 12 últimos anos, ou seja, entre 2005, data da tese de doutoramento, e 2017, data de publicação do livro);

(ii) o "enviesamento" (, de natureza político-ideológica) da "pergunta de investigação, a da hegemonia cabo-verdiana na direção do PAIGC...

É das coisas mais elementares que se ensina a um doutorando: esquece onde nasceste, despoja-te dos teus preconceitos, não te deixes trair pelos teus valores e sentimentos...

Antº Rosinha disse...

Havia e ainda há o ponto de vista de Caboverdeanos, de um e outro lado, o ponto de vista de fulas e ou de balantas, e outros, e ainda o ponto de vista de Spínola.

E como Beja Santos facilmente aqui desmonta alguns pareceres da autora, imaginemos o que seria aquela "boca" de Spínola que a "Guiné é dos Guinéus", em plena guerra de libertação, aos ouvidos dos futuros autores do assassinato de Amílcar.

Africanizar a guerra por parte do "colon", foi muito fácil.

Não só na Guiné.

Para o PAIGC de Amílcar Cabral, seria a perfeita "quadratura do circulo" se a "UNIDADE GUINÉ CABOVERDE" tivesse resultado.

Quem acreditava plenamente era o irmão de Amílcar Cabral, guineu, Luís que também era guineu.