quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22450: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XIV: Havana, Cuba, 2018



Foto nº1 


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 6

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Texto e fotos recebidos em 31/7/2021


1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74.

Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas em mundo, em cruzeiros. É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 280 referências no blogue.


Havana, Cuba, 2018


Chego a Cuba, cento e cinquenta anos depois de Eça de Queirós [ Foto nº 6 ]. O nosso romancista foi cônsul em Havana em 1872, por aqui defendeu, como pôde, os direitos dos culies, trabalhadores vindos da China através de Macau com documentos portugueses, quase reduzidos a escravos, impiedosamente explorados por fazendeiros cubanos nas plantações de cana-do-açúcar.

Estamos agora em 2018 , tenho apenas onze dias para me embeber nos fascínios da ilha caribenha [ Foto nº 4 ]. Nos Jardines de la Tropical, pétalas humedecidas por lágrimas de orvalho. Na Plaza de la Revolucion, memórias difusas de recuados tempos, Che Guevara [ Foto nº 1 ], Fidel, o vazio e espinhos à solta.

Foi lindo, trágico, heróico o início da revolução, mas hoje, passados tantos anos, vejo o povo cubano abúlico e entristecido. Ah, mas haverá um fogo lento, cadeias a rebentar, Cuba Libre, a pátria e a liberdade. Hasta la victoria, siempre|


Julián Moreno, meu motorista de táxi -- um carro apanhado ao acaso na rua [ Foto nº 2 ].--, não pára de falar, de me contar histórias. A sua esposa, psicóloga, ganha 25 euros por mês, o cunhado, médico enviado para o Brasil, deve entregar grande parte do salário pago pelos brasileiros ao Estado socialista cubano, ele próprio -- Julián a quem foi distribuído este táxi, um Lada com dez anos, made in Polónia --, quanto a receitas, necessita de fazer balanços diárias e semanais com o organismo estatal dos táxis, o que acontece falsificando dados, para seu proveito e proveito de todos.

Com o acenar dos dólares obtidos com os turistas, alguns dinheiros deslizam também, de forma subreptícia, para os bolsos dos funcionários estatais que controlam o seu trabalho de taxista. Na conversa, o rapaz não é assim tão explícito, mas as meias palavras explicam tudo. Ai, o socialismo, ai o velho Marx!

Julián Moreno leva-me à casa de Ernest Hemingway [ Foto nº 5 ] , a Finca La Vigia, num alto sobranceiro a Havana, com vista sobre a cidade, comprada pelo escritor norte-americano em 1939. Hemingway aqui viveu, intermitentemente, até 1959 e adorava Cuba. Nesta casa escreveu O Velho e o Mar. Todos os espaços, os quartos, a biblioteca, a cozinha estão bem conservados e consegue-se adivinhar, pairando no ar, a imponente figura de Hemingway. Gostava de ter tido a sorte de o encontrar, mas o escritor partiu em 1961, suicidando-se com um tiro na cabeça, desgostoso com a vida e com o mundo.

[ Imagem à esquerda, capa de  O velho e o mar / Ernest Hemingway ; trad. e pref. Jorge de Sena ; il. Bernardo Marques ; rev. Arnaldo de Carvalho. - Carnaxide : Livros do Brasil, 2013. - 108 p. ; 21 cm. - Tít. orig.: The old man and the sea. - ISBN 978-989-711-003-0].  [ Fonte: Porbase, com a devida vénia]. 


Depois a Habana Vieja, delapidada pela passagem de tempos atribulados. Fantástica cidade, com um extraordinário recheio de edifícios antigos, igrejas, teatros, palácios, alguns restaurados, outros degradados, a cair. As gentes afáveis e simpáticas inventando mil artifícios para ganhar alguns dólares e sobreviver, teatro de rua, saltimbancos e palhaços, pinturas naif e artesanato, a Bodeguita del Medio para beber um mojito, os coloridos carros antigos, presos por arames, atilhos e cordéis, os Buicks, os Dodges, os Studbakers, os Chevrolets, os Pontiacs dos anos cinquenta do século passado para passear ao ritmo da salsa cubana.

Não muito interessante o Malecon, ainda por cima à chuva. Uma longa marginal atlântica sem graça, a cidade maltratada junto ao mar, com imensos edifícios abandonados há décadas, tudo a precisar de reconstrução, reordenamento urbano, de mais cor e alegria.

No meu terceiro dia em Havana, Julián, o rapaz do táxi, leva-me para a praia de Santa Maria del Mar [ Foto nº 4 ], numa viagem curta, uns trinta quilómetros desde a capital. Vou ao banho nas águas quentes dos mares cubanos. Depois, tosto-me ao sol, de papo para o ar. 

Aparece uma mulher jovem, de curvas ondulantes, bonita, anicha-se na areia, senta-se ao meu lado. Pergunta-me: Como te llamas? Respondo em português: Meu nome é ninguém. Adios, Señora! 

Dama de pouca virtude, a mulher descruza as pernas, alteia ainda os seios avantajados num biquíni reduzido, sorri e continua a sua caminhada. Adeus, princesa cubana!

No vazio da tarde, vou com a espuma do mar e o voo dos pássaros.
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Nota do editor:

2 comentários:

Valdemar Silva disse...

Uma psicóloga esposa dum taxista que tem de dar contas com um cunhado médico e a casa aberta e bem conservada do Hemingway e uma foto ao volante dum Dodge 1960 para turista e estar sozinho na praia com visita duma sereia curiosa, quanto não vale isto.
Um taxista que tem de dar contas ao fisco ou ao patrão com a esposa empregada num supermercado e o cunhado numa loja de pneus e a casa do Pessoa fechada e uma foto encostado a um Seat no stand e estar com centenas na praia e levar uma banhada duma comareia batida e visitar muitas casas castiças e velhos palácios a cair de velhinhos, isto temos por cá para turista ver.

Belas fotografias, António Graça de Abreu
Abraço e saúde
Valdemar Queiroz

Hélder Valério disse...

Plá!

Confesso que cheguei a pensar que a resposta do António à pergunta "como te llamas?" seria na linha do que, alegadamente (pelo menos no filme é assim), o Lawrence of Arabia (Peter O'Toole) respondeu à mesma pergunta dum Sheik... "meu nome é para os meus amigos e tu não és meu amigo".
Mas não, foi um seco, mas cortês "Meu nome é ninguém. Adios, Señora!"

Hélder Sousa