terça-feira, 10 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22446: Passatempos de Verão (26): A cabra Joana de Nhacobá e o cão Tigre do Cumbijã, uma fábula que pode ser entendida como uma metáfora das relações coloniais do passado (Lucinda Aranha)


1. Mensagem de , Lucinda Aranha (, nossa amiga e grã-tabanqueira, escritora, filha do Manuel Joaquim dos Prazeres, o homem do cinema ambulante no nosso tempo, na Guiné, autora de uma biografia ficcionada do pai, a que chamou "romance":  "O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim", Alcochete, Alfarroba, 2018, 165 pp.; tem página no Facebook, Lucinda Aranha - Andanças na Escrita.

É também autora do livro "No Reino das Orelhas de Burro", recheado de histórias e memórias dos tempos em que o seu pai viveu, em Cabo Verde e na Guiné, desde os anos 30 até 1972. Tem cerca de 3 dezenas de referências no nosso blogue e integra a Tabanca Grande desde 15 /4/2014 (Vd. poste P12991).

Data - terça, 3/08, 12:29
Assunto - Desafio aos/às nossos/as escritores/as: a fábula da cabra Joana e do cão Tigre


Luís, tudo bem?

Recebi o teu repto e estive para não responder por dois motivos. O primeiro respeita à fase horrível por que estou a passar, desde Março perdi três irmãs, um sobrinho por afinidade ( nenhum com Covid) e uma outra irmã fracturou um joelho e o colo do fémur. O segundo porque não me via a fazer pesquisa pelo Boletim Cultural da Guiné para me inspirar nos hábitos dos animais africanos.

Finalmente e até para tentar arejar a cabeça lembrei-me de escrever um pequeno texto que, embora passado em Portugal, pode, penso eu, ser entendido como uma metáfora das relações coloniais entre Portugal e a Guiné. Tens toda a liberdade, não me ofenderei se entenderes que não cabe no Luís Graça & Camaradas da Guine.

Enfim, foi o que saiu. Tu dirás de tua justiça  
Beijos saudosos e até um dia destes. Lucinda Aranha


A cabra Joana e o cão Tigre

por Lucinda Aranha


Matreiro, o Tigrado estava de tocaia à presa, a atrevida cabra Joana, uma pérfida dada ao latrocínio.

Quando lhe dava na real gana, lá vinha ela numa expedição de saque,  atacando a propriedade dos donos de que ele, cão cumpridor, se via como fiel guardador. Invariavelmente impunha-lhe pesadas derrotas com os seus ataques de supetão, de bate e foge.

Mas hoje não o havia de fintar. Estava preparado para dar uma lição àquela guerrilheira lusitana. Hoje é que iam ser elas : a grande gulosa havia de ver as verdes e tenras alfaces da Florinda por um canudo. Hoje é que havia de provar no corpo os seus dentes afiados, quais bisarmas. E com os olhos semicerrados, antevia com deleite o momento em que a poria definitivamente KO. Ela havia de saber o que era a paz tigre à romana.

Nestas cogitações, salta do nada a cabra Joana para a surtida habitual. O Tigrado investe e, num segundo, as suas expectativas de vitória saem goradas. Como sempre, ela finta-o, pula pelas serras e montes, arrastando-o, cego de fúria, numa corrida feita de trambolhões até o fazer dar com os costados num baixio onde cai feito prisioneiro.

– Com que então vais pelas nossas galinhas todo ancho como se fosses o pai da tua dona nas caçadas pelos matos da Guiné! – invetiva-o a Joana, enquanto o Tigrado tentava em vão saltar da sua prisão. – Aprende: todos temos de ser respeitados e termos a liberdade de fazermos o que queremos e como queremos. Muitas galinhas pagaram os teus donos aos meus e nem por isso eles te perseguem. Não dão eles volta e meia aos teus donos boas tronchas e até uns anhos? Porque és tão ganancioso?

Em transe tão aflitivo, o pobre cão cai em si.
– Tens razão, Joana, agora enxergo a minha soberba, realmente eu era um egoísta. Só via os meus interesses e os dos meus donos, achava que os dos outros não contavam.

Com dois coices, a cabra rebentou a cancela escancarando-lhe o portão da prisão e lá foram os dois serra acima, uma cabriolando, o outro correndo em grande companheirismo e cumplicidade.

Lucinda Aranha

2. Comentário do editor LG:

Querida amiga Lucinda:

Antes de mais, a minha solidariedade na dor pela perda dos teus entes queridos, as tuas manas cujas pequenas grandes vidas tu evocaste, com tanto talento e fina ironia no teu livro "O homem do cinema". 

A capacidade de fazer o luto faz parte da nossa condição humana. Desde que nascemos e temos consciência de nós e dos outros, aprendemos a lidar com a perda (, de que a morte é a mais dolorosa e irrversível). 

Quanto à versão que me mandaste, da fábula da Cabra Joana e do Cão Tigre, não podia ser mais original. Estou-te grato, em meu nome e em nome da Tabanca Grande. Espero que os nossos leitores a saibam ler e queiram comentar. 

Por outro lado, é bom saber de ti, depois de tantos meses de silêncio, em grande parte imposto pelas contingências da pandemia de Covid-19 (, que não nos deixou, por exemplo, concretizar a ideia de poderes vir à Lourinhã falar do teu livro e das memórias do teu pai).

Recorde-se o ponto de partida, real: A cabra Joana de Nhacobá foi apanhada pelo pessoal da CCAV 8351, justamente em Nhacobá, tabanca até então controlada pelo PAIGC, no "corredor de Guileje", no decurso da Op Balanço Final (17-23 de maio de 1973). Nhacobá era um lugar de importância estratégica para ambos os contendores. Foi levada, a Joana, para Cumbijã, sendo obrigada a coexistir, pacificamente, com o cão rafeiro, o "Tigre de Cumbijã", mascote do pessoal. 

Não sabemos como esta história acabou, a pequena, insignificante, história destes dois animais domésticos, só sabemos, pelo Joaquim Costa,  que estavam vivos quando o aquartelamento de Cumbijã foi entregue ao PAIGC, em 7 de agosto de 1974. Em todo o caso,  sabemos também que não fazem parte da História com H Grande. (**)
Vd. também: 

1 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22422: Passatempos de Verão (24): A cabra Joana de Nhacobá e o cão rafeiro Tigre de Cumbijã: fábula 2: "Ao que parece, nem os macacos se salvaram" (Joaquim Costa)

31 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22420: Passatempos de Verão (23): A cabra Joana de Nhacobá e o cão rafeiro Tigre de Cumbijã: fábula 1: "Não se pode servir dois senhores ao mesmo tempo" (Luís Graça)

30 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22417: Passatempos de verão (22): A fábula da cabra Joana de Nhacobá e do cão rafeiro Tigre do Cumbijã, obrigados a coexistir pacificamente até ao final da guerra

(**) Vd. poste de 29 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22413: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XIII: O Dia Mais Negro: o segundo murro no estômago (Op Balanço Final)

3 comentários:

Anónimo disse...

João Crisóstomo (by email)

10 agosto 2021, 11h28

Querida Lucinda Aranha

Faço minhas as palavras do Luis Graça, que melhor que eu sabe sempre encontrar as palavras certas para cada momento: "a minha solidariedade na dor pela perda dos teus entes queridos, as tuas manas cujas pequenas grandes vidas tu evocaste, com tanto talento e fina ironia no teu livro "O homem do cinema".

A capacidade de fazer o luto faz parte da nossa condição humana. Desde que nascemos e temos consciência de nós e dos outros, aprendemos a lidar com a perda (, de que a morte é a mais dolorosa e irrversível)."

Infelizmente sei bem o que tens passado pois como talvez tenhas sabido eu passei por semelhante experiência perdendo duas das minhas manas no mesmo dia para o Covid. O teu caso é mais recente, "desde Março". A tua coragem e "capacidade de luto" nas palavras do Luís Graca, são inspiração para todos. Obrigado.

E porque é tão recente, "fase horrível que estou a passar", dizes tu, se a solidariedade pode de alguma maneira servir de alívio, podes ter a certeza de que não estás só.

Aceita um abraco grande meu e da Vilma: estamos contigo comungando da tua dor.

João e Vilma, Nova iorque, a 10 de Agosto de 2021

António J. P. Costa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...


Lucinda Aranha (by email)
10 agosto 2021 17:44


Luís,
O J Crisóstomo e a Vilma fizeran-me chegar este mail que muito me sensibilizou. Agradeço-te também as tuas palavras de solidariedade. Confesso que estou profundamente reconhecida. Sinto que um ciclo de vida se fechou com a morte das minhas irmãs mais velhas. É como que o princípio do fim, do ciclo iniciado com os meus pais e a nossa querida ama Nené. Na minha família as mortes foram sempre muito espaçadas e nada me preparou para esta espécie de hecatombe. Desculpa-me estes desabafos.

Um beijo muito amigo.