sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22453: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (65): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Pode parecer bazófia, mas é pedir muito à memória que reconstitua, quase ao milímetro, a operação Tigre Vadio. Paulo Guilherme é um cinquentão maduro, bateu-lhe a felicidade à porta, adora o trabalho, propôs à mulher que ama profundamente que ela operasse como uma cronista de acontecimentos pretéritos, marcantes, agora revividos na grande angular de dois anos de comissão, sem intervalos nem desfalecimentos, narrados tal como ele os recorda. E o que é mais surpreendente é que ele pode, a partir das decisões tomadas na sala de operações, descrever o que se passou, os preparativos que não foram tão minuciosos como isso, cometeu o erro palmar de se esquecer dos jerricans de água, coisa que não passou pela cabeça dos capitães, mas isso também não o alivia, ao escrever a Annette o que mais o confunde e perturba é a memória fotográfica do tempo e dos lugares, revê feições, contempla panoramas, percorre novamente Cancumba, Paté Gidé, Sancorlã, Salá, tem diante dos olhos uma monumental queimada que vem de Madina, e que tudo vai alterar, e chega-se a um trilho que foi indicado lá dos céus por um major de operações, são duas horas tórridas, impensável que alguém se possa aproximar do centro nevrálgico de Belel e trazer a besta do Apocalipse. Pois aconteceu.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (65): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette adorée, ma fidèle chroniqueur, mesmo enquanto me desenvencilho das últimas frequências que estou a classificar, e pressionado pelos prazos imperativos de dois documentos que esta semana a Associação Europeia de Consumidores tem que enviar para os serviços da Comissão Europeia, não posso furtar-me de dizer que estou cheia de saudades tuas, que já estão esboçadas as primeiras duas semanas de férias, tu pediste-me dois dias em Lisboa para irmos ao Parque das Nações, ver a exposição das joias de Goa, conhecer o Museu da Cidade e voltar novamente aos Jerónimos e Museu do Chiado, encontrei duas casas maravilhosas numa freguesia do concelho da Lourinhã, perto de tudo, iremos a Óbidos, às Caldas da Rainha, a Alcobaça, às praias, comer peixe a Peniche, na primeira semana, e penso ficarás feliz por esta iniciativa, Jules andará connosco por Lisboa e pela chamada região do Oeste, hesito se não devíamos visitar o Porto e o Douro demoradamente. Se não te importas, é assunto que trataremos telefonicamente dentro de dias, quando eu tiver dado as classificações dos meus alunos.

Não quero iludir que me estás a pôr questões que exigem respostas bem dolorosas, até porque mantenho a memória em carne viva. Continuava combalido pela notícia da morte daquele que foi o meu mais querido amigo da juventude, entregue a rotinas, coisas como montar a segurança à volta do Bambadincazinho, isto quando o Ministro do Ultramar, o comandante-chefe e o comandante de Bafatá visitavam o reordenamento dos Nhabijões. O que antes era seguro deixara de o ser. Apareceram minas entre a ponte de Undunduma e Amedalai. Num local chamado Fá formava-se a 1ª Companhia de Comandos Africana, destacavam-se mais efetivos para montar segurança no Cuor, e nós fazíamos parte destas andanças que, regra geral, nos eram ditadas em cima da hora. Tens aí os documentos, meu adorado amor, guardei o calendário dos preparativos que conduziram à mais sangrenta das operações em que intervim, a Tigre Vadio. Foi na manhã de 28 de março que o major das operações me convocou, compareceram os intervenientes, duas companhias reduzidas sediadas em Bafatá, companhia de caçadores de Bambadinca, dois pelotões de caçadores nativos, duas esquadras de morteiro, adicionando grupos de milícias. O que o Sr. major nos queria dizer era que o objetivo da operação seria o de bater a região Ocidental do Cuor e procurar destruir os acampamentos de Madina e Belel, se possível trazer prisioneiros e armamento. Sabia-se da existência de um bigrupo bem equipado que protegia as populações em Madina, Quebá Jilã, Belel e talvez em Sinchã Banir, à entrada do Oio, com ligação ao corredor de Sara-Sarauol, no voo de reconhecimento aéreo ele próprio verificara uma extensa rede de vias de comunicação. Há poucos dias, na região de Madina, fora desencadeada uma operação de paraquedistas, incendiaram um conjunto de barracas e havia sinais evidentes de vida organizada. Pediu sugestões para a organização de duas colunas, em seu entender não fazia qualquer sentido pormos tão grande contingente a irem uns atrás dos outros quando os objetivos da destruição e aniquilamento distanciavam cerca de dez quilómetros. Lembrado do desaire do ano anterior, daí a sugestão de que os dois destacamentos podiam partir separadamente, um do Enxalé em direção a Madina, o outro de Missirá para Belel, ou então partirem conjuntamente de Missirá e bifurcarem na região de Quebá Jilã, a retirada ficaria condicionada à evolução dos acontecimentos, devia pôr-se sempre a hipótese de que, ultrapassado o fator surpresa, qualquer uma das forças retiraria para o ponto de onde partiu. Senti-me feliz quando me disseram que os dois destacamentos se iriam autonomizar. E quero confessar-te, eu adorado amor, que nesse momento em que eu discutia com todos, as transmissões, as munições, os carregadores (falo de seres humanos que nos ajudariam a transportar os morteiros 81) esvaiu-se-me da memória os carregadores para jerricãs de água. Enquanto te escrevo, parece que sinto os lábios ressequidos, ando aos tombos num helicóptero com vidros estilhaçados, jamais me sai da memória aquele momento em que o piloto, numa lala completamente desconhecida e sem vivalma me convidou a sair com os jerricãs, ele deve ter percebido no meu olhar que não me lançaria em tão dementada operação.

Mas voltemos atrás, tens aí nos documentos a descrição detalhada dos preparativos, se houvesse informadores em Bambadinca eles seguramente que ficariam desorientados e gente a caminhar para Fá, gente a caminhar para Finete, gente num Sintex a subir o Geba estreito, não houve percalços, ao anoitecer do dia 30 de março entramos todos sossegadamente em Missirá, disfarço emoções, preparei-me para entrar aqui como em qualquer outro teatro de operações, claro está que abracei todos os meus amigos, pedi licença para descansar em cima de uma manta, mastiguei umas coisas de uma ração de combate. É nesse momento que se fez luz, estava em Missirá comigo o melhor conhecedor de toda a região, Cibo Indjai, faço-lhe a proposta de que ele seja o batedor com Queta Baldé, seguir-se-ão os meus bazuqueiros de elite, eu e Cherno Suane e depois os meus habilidosos apontadores de dilagrama, Sadjo Seidi e Tunca Sanhá. Não podia prescindir de Quebá Soncó e do meu querido amigo Bacari Soncó. Estamos juntos e ficou acordado que o ponto de separação seria perto de Quebá Jilã, então Cibo seguiria connosco para Belela, Quetá Baldé, Bacari e Quebá Soncó seguiriam na testa do destacamento que iria em direção a Madina.

Annette, talvez pela adiantada hora, talvez porque neste momento sinta incendiada a minha memória fotográfica, estamos a sair de Missirá ainda não é meia-noite, a temperatura excecionalmente elevada, seguimos para Cancumba, daqui para Paté Gidé, falta aqui um detalhe, depois de conversar com os guias fui falar com os capitães e com o meu camarada Alferes do pelotão 54, o capitão dos caçadores de Bambadinca, o capitão Brito, deu-me logo inteiramente luz verde para a escolha do itinerário. O capim é elevado, marchamos silenciosamente, todo aquele calor atabafa, seguimos para Sancorlã, graças à lua dou comigo embevecido, maravilhado, é uma vegetação frondosa, não sei como foram parar ali aqueles poilões gigantes, misturado com palmeiras, em dado momento entramos num túnel de vegetação, a luz altera-se e é com os alvores do dia que chegamos ao extremo do território onde por vezes fiz reconhecimentos, sabendo que a escassos quilómetros estamos em Quebá Jilã, paramos em Salá para um curto descanso, não se veem trilhos, não se ouve nenhum ruído nas proximidades. E inopinadamente sou procurado por Cibo Indjai, o caçador ágil, que tem uma visão de águia, encontrou um trilho, bem dissimulado, por vezes andamos por ali atarantados no meio de um terreno alcantilado, ainda não se sabe se já entrámos no corredor do Oio, que do avião nos dê indicações sobre a orientação dos trilhos. Amanheceu completamente, nunca se viu àquela hora da manhã um calor de frigideira, meu adorado amor neste exato momento parece-me que está a escorrer o suor em bagas e nesse momento, enquanto não se recebe qualquer informação de quem anda ou poderá vir a andar nos ares ficamos estarrecidos por uma extensa cortina de fumo. Paramos, embaraçados. O que fora gizado na sala de operações é contraditado pelo imprevisto daquela imensidão de fogo. Neste ínterim, somos sobrevoados pela avioneta quando o major de operações nos manda contornar a queimada e determina que os destacamentos devem continuar juntos, em direção a Belel, estou junto ao cabo das transmissões, António Fernando Ribeiro Teixeira, nos céus vem indicação de que um pouco mais à frente há um trilho, é para aí que nos devemos dirigir. Dou instruções aos guias, Sadjo Seidi segue na vanguarda, é de facto um trilho largo, são duas horas da tarde, ninguém pode imaginar que em breve vai começar o inferno em Belel. Peço-te perdão, é tudo fruto da idade e do trabalho, acredita que estou neste momento num trilho, estou a ver um rodado de bicicletas, volto àquele dia de 1970 em que disse para mim que felizmente estávamos protegidos pelo arvoredo denso, chegara alguma frescura. Amanhã continuo, espero que estejas preparada, já que leste os documentos que te enviei, para o turbilhão de fogo que se vai seguir.

(continua)


Abdulai Djaló, mais conhecido por O Campino, alguém lhe ofereceu um barrete de homem das lezírias, nos momentos de ócio vestia-se à paisana, um perfeito galã embarretado. Um bazuqueiro destemido, competia em heroísmo e bravura com Mamadu Djau, mas superava-o como galã, quando aceitou ser fotografado colheu a pose, nada aqui está por acaso, a mão delicadamente assente no joelho, fazendo jus à sua fama de cavalheiro sem rival.
Dir-me-ão que é uma imagem banal, como esta há aos milhões, só que o sentimento, a apreensão e a expetativa de quem vai nesta caminhada não é transmissível. Nesta imagem estamos todos os que atravessaram lalas, neste oceano de capim jovem, sabendo de antemão que há imponderáveis, surpresas, a hipótese de um morteiro fazer estalar aqui o caos, fracionar a coluna, desmotivar quem se apresta para o combate. Uma imagem do nosso blogue, seguramente que nela todos nos revemos.
Bendito helicóptero que traz notícias de quem amamos, nos evacua os feridos ou transporta generais ou coronéis que falam zangadamente, admoestando. Foi numa destas máquinas que vim a Bambadinca numa tarde num dia de abril de 1970 buscar 27 jerricãs de água que desafortunadamente não chegaram ao seu destino, o piloto lá teria as suas razões por ter os vidros estilhaçados, eu ia feliz com os sopros do ar, experiência irrepetível. E fui largado no Xime com toda esta carga de água enquanto os meus camaradas viviam o horror da sede.
Em novembro de 2010, em dia de emoções descomunais, na motocicleta de Lânsana Sori, entrei em Belel cheio de vontade de me reconciliar com o que aqui aconteceu num dia de abril de 1970, dia de luto para quem vivia no mato, pois a operação Tigre Vadio destruiu muitas vidas, deixou múltiplos sofrimentos. Encontrei antigos combatentes e conheci camponeses, houve quem pensasse que eu era médico ou fazia parte de um projeto de água potável, trazia uma bomba de água para Belel. Se houve dia de reconciliação na minha vida foi este, experiência inaudita, abraçar alguém que seria meu inimigo 40 anos antes e que me convidou a regressar. O que ainda não foi possível.
Os meus velhos soldados, a alegria do encontro, mas neste momento saúdo particularmente o homem que está ao centro, Sadjo Seidi, quando nos reencontrámos foi um abraço de choro convulsivo, Sadjo foi o único ferido do Pel Caç Nat 52 na operação Tigre Vadio, ele será o primeiro a entrar em Belel, o sentinela ainda tentará matá-lo, a granada rebentou na palmeira, ficou com o peito estilhaçado, será evacuado no mesmo helicóptero que me levará a Bambadinca para vir buscar água que não impediu que centenas de homens vivessem o inferno da sede.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22437: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (64): A funda que arremessa para o fundo da memória

1 comentário:

Valdemar Silva disse...

A imagem da progressão pelo capim em fila indiana, bem poderia ser apresentada na instrução para explicar o que não se deve fazer.
Progressão da tropa quase de mão dada em terreno aberto, com a mata serrada bem próxima podendo esconder o in e ser atacada com fogo de metralhadora ligeira e morteiro.

Valdemar Queiroz