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sábado, 10 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24383: Blogues da nossa blogosfera (182): Uma "mulher de armas", a holandesa Noraly (nome de guerra, "Itchy Boots") que, com a sua especial Honda CRF 300 L Rally, acaba de atravessar a Guiné-Bissau


Guiné-Bissau > 31 de maio de 2023 > Região de Cacheu > Vista, de drone, da ponte de São Vicente, construída pela empresa portuguesa Soares da Costa, financiada pela União Europeia, e inaugurada em 2009... Fotograma, com a devida vénia, do vídeo  da "youtuber" Itchy Boots, que merece as nossas palmas...


Ver Vídeo: 22' 17'' no You Tube > Itchy Boots. 




1. Mensagem do nosso amigo e camarada Valdemar Queiroz

Data . quinta, 1/06, 14:22 (há 8 dias)

Assunto -  Preciso falar PORTUGUÊS aqui na GUINÉ - BISSAU |S7E36| - YouTube

Luís, uma pérola enviada pelo meu filho, que vive na Holanda, como sabes, casado com uma holandesa (ou neerlandesa).

A loirinha  (do vídeo) é uma "ganda maluca". Fiquei com pena de ela, vinda do Senegal (Zinguinchor) não ter entrado pela fronteira de Pirada que passaria por Paúnca (onde eu também estive).

Em Bissau estão a arranjar a Avenida, e a Bissau-Velha está em bom estado de conservação.

Para fazer viagens destas é preciso ter muito gosto por aventuras.

Valdemar Queiroz

Clicar aqui; https://www.youtube.com/watch?v=A1FWR7tZf4E



2.  Comentário do editor LG:

Valdemar, acabo de ver, com legendas em inglês... Tiro o quico à valente holandesa (ou neerlandesa), "youtuber", mundiamente conhecida por Itchy Boots (à letra, "botas que coçam", como são as botas e o restante vestuário dos motoqueiros). Vou publicar, com um link para o vídeo no You Tube. Obrigado ao teu filho. Luís.

O canal no You Tube chama-se Itchy Boots (nome de guerra, registado, da aventureira solitária, "motoqueira", "filmaker", holandesa, Noraly, que em 2018 mandou o emprego às urtigas e decidiu correr mundo na sua Honda especial, superartilhada e equipada com a melhor tecnologia de imagem, incluindo um drone)...

Alguns dados estatístícos sobre os seus conteúdos no You Tube: 

(i) tem cerca de 1,7 milhóes de subscritores;

(ii) disponibiliza 567 vídeos;

(iii) regista mais de 343 milhões de vizualições

(v) tem na página pessoal em www.itchyboots.com

(vi) tem blogue, página no Facebool com mais de 200 mil seguidores, etc.;

(viii) e, claro, tem também bons patrocínios...

Descrição da autora no You Tube (em inglês e português)

I've ridden 140.000 kilometers solo around the world and still counting! 

My name is Noraly, I'm Dutch and passionate about motorcycles, traveling and adventuring. 

In 2018, I quit my job, sold my belongings and have been traveling the world fulltime by motorcycle since then. Over 40 countries later, I am in North Africa, making my way down South. 

My loyal companion is named Alaska, because I rode her all the way up to the northern tip of Alaska before coming to Africa. She is a Honda CRF300L Rally with tonnes of modifications! I share my adventures here on YouTube every Wednesday and Sunday! 

Welcome to the channel and I hope you'll enjoy the ride! Let's go!

Já andei  140 mil quilómetros sozinha ao redor do mundo e continuo a fazer quilómetros! 

O meu nome é Noraly, sou holandesa e apaixonada por motos, viagens e aventuras. 

Em 2018, deixei o meu emprego, vendi os meus pertences e, desde então, viajo pelo o mundo inteiro de moto.

Mais de 40 países depois, estou no norte da África, seguindo para o sul. A minha fiel companheira chama-se Alasca, porque eu a montei até à extremidade  norte do Alasca antes de vir para a África. Ela é uma Honda CRF300L Rally com montes de modificações! 

Compartilho as minhas aventuras aqui no YouTube,  todas as quartas-feiras e domingos! 

Sejam bem-vindo ao canal e espero que gostem do passeio! Vamos lá embora!  

(Traduçáo / adaptação livre: Google Translate + LG)


3. Sobre a viagem Ziguinchor-Bissau (via ponte de São Vicente) de final do mês de maio de 2023

"Preciso falar PORTUGUÊS aqui na GUINÉ - BISSAU |S7E36| (Ou seja, Temporada  7 - Regresso a África ! Episódio 36 - Guiné-Bissau) (Tem já cerca de 432 mil  visualizações) 

31/05/2023 BISSAU

In this video I am crossing the border into Guinea-Bissau. Guinea-Bissau was under the rule of Portugal for many centuries and Portuguese is still the official language here. By far the majority of the locals speak Creole or other languages, but since I don't speak those languages, I have to try my best Portuguese here. 

Want to learn how to use drones, GoPros and 360 cameras to film your solo motorcycle adventure? Check out: www.itchyboots.com/academy 

Here I teach all my filming techniques including getting drone shots while riding! 

Gear & Equipment that I use in this season:  
https://www.itchyboots.com/blog/gear-and-equipment-season-7


Follow my journey on: www.itchyboots.com


Neste vídeo  |S7E36, Temporada 7 / Episódio 36|  estou a  atravessar a fronteira para a Guiné-Bissau. A Guiné-Bissau esteve sob o domínio de Portugal durante muitos séculos e o português ainda é aqui a língua oficial. Mas a maioria dos habitantes locais fala crioulo ou outras línguas. Eu, como não falo essas línguas, tenho que tentar o meu melhor português aqui. 

O leitor quer aprender a usar drones, GoPros e câmeras 360 para filmar a sua aventura a solo de moto? Confira: www.itchyboots.com/academy 

Aqui eu ensino todas as minhas técnicas de filmagem, incluindo tirar fotos de drone enquanto ando! 

Máquinas e equipamentos que uso nesta temporada:  

4. Segundo a Noraly diz, antes de entrar pela fronteira norte da Guiné-Bissau, vinda de Ziguinchor,   passou 9 meses no Brasil, há largos anos, fala português (embora esteja esquecido,,,), e também espanhol... 

É uma mulher atraente, empática, simpática,  aventureira, corajosa, apaixonada pela aventura e pelas motos todo o terreno, dotada para este tipo de desporto-aventura, poliglota (além da língua materna, é fluente  em inglès e no Senegal falou também francês...), comunicadora excecional, contadora de histórias e realizadora de vídeos.  

Imaginamos que tenha um staff de apoio, mas não sabemos quem faz o quê... 

Por favor vejam o vídeo (que tem maios de 22 minutos)  com legendas em inglês ou em português, em ecrã grande... (Ativar as legendas, nas "definições", na barra inferior, do lado direito do vídeo.)

E obrigado à "Itchy Boots"... pelas imagens fantásticas que nos mostra do norte da Guiné-Bissau, região do Cacheu, rio Cacheu, ponte de  São Vicente, além da velha, renovada, cidade de Bissau... Enfim, um país que continua no nosso coração e a quem desejamos as melhores (a)venturas.  

Boa continuação da viagem !... Cuidado com as "minas & armadilhas"... E alguns delas são as "ideias estereotipadas" que se tem dos países e da sua história... (LG)
___________

Nota do editor

(*) Último poste da série > 14 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24142. Blogues da nossa blogosfera (181): Lista de provérbios crioulo-guineenses (página do professor Hildo Honório do Couto, departamento de Linguística, Universidade de Brasília) - II (e última) Parte (M a U)

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23149: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXV: O "meu" regresso à Guiné (1): Enfim, pontes em vez de...muros!

 

Foto  1>  Guiné-Bissau>  Região do Cacheu > Rio Cacheu > S. Vicente >  2010 > Ponte de S. Vicente (Ponte Europa) sobre o Rio Cacheu, ligando S. Vicente ao Ingoré.  Construída pela Soares da Costa.


Foto 2> Guiné-Bissau> Região do Cacheu > Rio Cacheu > S. Vicente > 2008 > Ponte de S. Vicente em construção. Vd. blogue criado na altura por Pedro Moço (e que ainda está "on line"). obre o período de outubro de 2007 a junho de 2011. Tiago Costa também lá escreveu.



Foto 3 > Guiné Bissau> Região do Cacheu > S. Vicente > A travessia do Rio Cacheu, antes da ponte, era feita por um "ferry" que transportava veículos e pessoas (e, claro, porcos galinhas a cabras!), de seu nome “Saco Vaz”. nome de um herói de guerra guineense




Foto 4 > Guiné-Bissau> Região do Cacheu > Rio Cacheu > S. Vicente> 2009 > Mais uma travessia da “Saco Vaz”, depois de longos dias parada devido a mais uma avaria. Em frente a ponte promete desenvolvimento, contudo a "Saco Vaz"  vai deixar saudade…



Foto 5 > Guiné-Bissau> Região de Cacheu> S. Vicente> 2008 >  Festa de Natal > A cumplicidade com as gentes de S. Vicente mitigava as saudades de Portugal. Ninguém fica indiferente à afabilidade destas gentes. Como família se reuniram nos estaleiros da empresa para festejarem, conjuntamente, o Natal, onde as prendes às crianças, como em qualquer outra família, é o ponto alto da festa> 

 

Foto 6> Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Rio Cacheu >  S. Vicente > 2009 >  Jaime Gama,  chefiando os representantes dos financiadores da obra (a União Europeia), numa visita à construção da ponte, cujo nome oficial é “Ponte Europa”. O Tiago Costa é o quarto a contar da direita. É engenheiro civil pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP).

A ponte Euro-africana tem 730 metros de comprimento, 11 metros de largura total,  dividido em duas faixas de rodagem de três metros e meio e dois passeios. O finaciamento da UE foi de 31 milhões de euros.



Foto 7 > Guiné Bissau> Cacheu> S. Vicente > A equipa de trabalhadores da Soares da Costa que construiu a Ponte de S. Vicente. O  Tiago Costa é o terceiro da esquerda da primeira fila.



Foto 8 > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > S. Vicente> A equipa de trabalhadores guineenses contratados pela Soares da Costa (Era conhecida pela equipa maravilha!) 


Fotos (e legeendas) © Tiago Costa / Joaquim Costa (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Joaquim Costa, hoje e ontem. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondamar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado. Foi também professor.

Já saiu o seu livro de memórias (a sua história de vida),
de que temos estado a editar largos excertos, por cortesia sua.
Tem um pósfácio da autoria do nosso editor Luís Graça (*)


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) (*)


Parte XXV - O "meu" regresso à Guiné (1): Enfim!, pontes em vez de muros


Aproveitando o facto de ter o meu filho Tiago (Engenheiro  Civil da Soares da Costa) a trabalhar na Guiné (de 2007 a 2009), na construção de uma ponte sobre o rio Cacheu, junto a S. Vicente, considerei fortemente a possibilidade do meu regresso à Guiné, aproveitando toda a logística da empresa em termos de mobilidade e segurança. 

Fui planeando com entusiasmo o meu regresso não só aos locais mais marcantes no tempo de guerra, mas também, uma visita às várias ilhas do arquipélago dos Bijagós, e, se possível, ao Senegal e à Gâmbia. Por razões várias, a visita foi sempre adiada e, infelizmente, nunca chegou a acontecer.

Concretizei o “regresso”, por interposta pessoa, neste caso o meu filho, que não obstante as dificuldades colocadas na construção de uma ponte de grande complexidade no meio do nada e onde tudo falta, deu ainda para conhecer toda a Guiné continental, as mais importantes ilhas dos Bijagós e fazer umas incursões aos "resorts" do Senegal e da Gâmbia.

 

Imagens arcantes durante a construção da ponte. 


Foto 9 > Guiné Bissau> Região de Cacheu> S. Vicente> A segurança do estaleiro da Soares da Costa era levada muito a sério. Para além do musculado guarda, havia sinalética  (ISTOP) e equipamentos de intrusão sofisticadíssimos 


Foto 10


Foto 11

 
A grande família da Obra de S. Vicente, na Guiné-Bissau, conta com um novo e surpreendente membro. O seu nome é Vicentina, tem uns poucos meses de idade, e uns belos e sedutores olhos castanhos. (Fotos  1o e 11).

A Vicentina rapidamente seduziu todos os trabalhadores, com o seu ar frágil e inseguro, e a sua graciosidade própria das gazelas.

Dada a sua tenra idade, foi no início da sua estadia alimentada a biberão, com toda a paciência e desvelo. Passada a infância, mais arisca, mais confiante, já se desloca pelo estaleiro, comendo tudo o que é verde no jardim, e confraternizando com a restante equipa técnica. Foi a mascote da obra e já faz parte das vidas de todos, com o seu ar que desperta ternura.

Seria uma ótima companhia para a Cabra Joana que a minha Ccav 8351 trouxe de Nhacobá para o Cumbijã, em 1973, na operação Balanço Final.

(Fonte: Fotos 9, 10 e 11: Cortesia do blogue Construção da Ponte S. Vicente - Guiné Bissau

(Continua)

_________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 8 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23057: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXIV: O regresso a casa, com a cidade do Porto a abrir os seus braços só para mim

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20038: Escritos do António Lúcio Vieira (2): De novo o tempo se quedou... (Excerto do livro "O Mouro da Praia da Foz")


Guiné > Região do Cachei > Rio Cacheu > c. 1966/1967 > Destacamento de São Vicente, ligando Bula a Ingoré.  Uma LDM [, a 308,] da Marinha fazia a cambança do rio Cacheu. Na foto, o Lúcio, à direita, com o Miranda e outro militar.

(...) Estive seis meses de intervenção em Bula e 17 meses em Ingoré, na fronteira norte com o Senegal. Daí conhecer muito bem as passagens em João Landim e S. Vicente- (...) O Machado era um dos vários exemplares da Companhia [, a CCAV 788 / BCAV 790, Bula e Ingoré, 1965/67], com aptidões variadas. Uma delas era exactamente a apetência para dar nas vistas. Representava, como poucos, as cenas mais desconcertantes que possas imaginar. As vítimas, muitas vezes, eram os "maçaricos" das Companhias que "estagiavam" connosco, tanto em Bula, como depois em Ingoré.

[...) Trata-se de uma barraca do pequeno destacamento da Marinha que ali assegurava a manutenção da LDM que fazia a travessia do rio. Vejam-se mensagens e os "autógrafos" que a rapaziada lá ia deixando, "grafiatadas" nas paredes"! (...): "Visite o hotel Bandalho",  "LDM 308 C/M Rego", "Coruche, 31-1-66", Parque de Nudismo"...

Foto (e legenda): ©Lúcio Vieira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Carta da Província (1961) > Escala: 1/500 mil > Posição relativa de São Vicente, no rio Cacheu entre Bula e Ingoré. Hoje há uma moderna ponte, de tecnologia e construção portuguesas, em São Vicente, no Rio Cacheu, É a chamada "euroafricana" (*)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)



Guiné-Bissau > Região do  Cacheu > Rio Cacheu > Ponte de São Vicente (ou ponte Euro-Africana). Início da construção construção em 2007.


Guiné-Bissau > Região do  Cacheu > Rio Cacheu > Ponte de São Vicente (ou ponte Euro-Africana), em betão armado, com 670 metros de comprimento, inaugurada em 2009. A construção esteve a cargo da portuguesa Soares da Costa.

Fotos do geólogo e fotógrafo Pedro Moço, autor do blogue "Construção da Ponte de S. Vicente - Guiné.Bissau" (com a devida vénia).


António Lúcio Vieira, ex-fur mil,
CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67)
DE NOVO O TEMPO SE QUEDOU - Nenhum acto é mais irracional que a morte de um ser humano às mãos de outro (**)

por António Lúcio Vieira (***)

Os contornos alaranjados, de um sol que prometia calcinar, surgiram por entre as copas do mangal. A um sinal do guia, a coluna parou. Embora soprasse uma brisa fresca, naqueles derradeiros dias da época das chuvas, quando as temperaturas se tornam impiedosas, os corpos transpiravam abundantemente, como resultado da longa  caminhada nocturna, de muitas horas. Por isso parámos.

Daí a pouco – diziam-nos a experiência e os sentidos – as aves acordariam com o som infernal das rajadas e rebentamentos e nenhum homem podia estar fisicamente cansado, quando entrasse no mortífero jogo. olhámos uns para os outros, em busca de reacções, mas os rostos denotavam a mesma frieza e impassibilidade de tantas outras ocasiões anteriores.

Estávamos, “apenas”, mergulhados em mais uma operação de assalto a um reduto inimigo, desta feita na região de Zinguichor, na linha de fronteira com o Senegal. Só isso. E isso era o que de mais vulgar nos podia acontecer, naqueles estranhos dias, no mato húmido e ardiloso da Guiné. Havia já tanto tempo que vestíamos a pele de guerrilheiros experimentados, que as recordações dos dias banais quase se haviam desvanecido. Porquê preocuparmo-nos agora com um acontecimento, tão aparentemente banal, como pode ser um desafio à morte?

A guerrilha transformara-se, com a rotina permitida pelo tempo, num indelével estigma da nossa existência: um poderoso e inebriante elixir, que nos provocava os sentidos, com desusado vício, e uma quase constante sensação de embriaguez. Tratava-se, afinal, de mais um banal desafio às nossas capacidades e nenhum de nós sabia porquê, nem de que modo, se recusam assim os levianos desafios de vida e morte. A voz do capitão soou no AVF, num aviso sussurrado e lacónico: “Entrámos na zona do objectivo. Máximo silêncio, progressão fantasma”.

Lentamente, com mil cautelas, de olhos e sentidos despertos, recomeçámos a caminhada, agora medindo os passos e as sombras, já de armas em riste e prontas a  iniciar acção de fogo. À frente a atrás da coluna, sentiam--se os olhares de muitas dezenas de homens perscrutando a barreira verde-densa, que ornava as margens da picada, sinuosa e atapetada de ramos e folhas secas. Da progressão de mais de centena e meia de militares, apenas pairava no ar um breve quebrar abafado, provocado pelas folhas secas esmagadas pelas botas de lona.

O pesado silêncio que se abatera sobre a mata – dizia-nos o saber adquirido – não augurava nada de bom. Cherno, o experimentado guia fula, sábio na leitura de pistas e sinais, agitava-se, inquieto e olhava-nos, a espaços, com uma estranha expressão que nunca antes lhe vira. Um pouco adiante, ao dobrar um pequeno renque de cajueiros, a testa da coluna entrou em zona menos arborizada, pejada de mato rasteiro e bordejada por um pequeno mangal. Bruscamente, uma estreita barreira de capim anunciava o fim da savana. À nossa frente, em semicírculo, perfilava-se de novo a mata densa, de árvores enormes, de musculados troncos. Entre a parede de capim e a fronteira da mata, abria-se uma extensa clareira, demasiado extensa e aberta, como as suspeitas e o temor que nos assaltaram.

Quando as primeiras rajadas de pistola-metralhadora acordaram o silêncio, lançadas raso ao solo por duas sentinelas entrincheiradas em abrigos individuais, os homens da  frente, na testa da coluna, atingiam a orla da mata. Era uma ratoeira. Apercebemo-nos da situação no primeiro instante, quando o fogo inimigo começou a esventrar o solo à  nossa volta, abrindo, com incessantes rajadas, caprichosos sulcos mortíferos, como bichas-de-rabear, que nos zurziam aos ouvidos, se infiltravam enfileiradas no chão, quais formações de formigas e nos contornavam os corpos deitados, como se batucassem uma ritual dança de morte.

A mata à nossa frente abria-se em apertado circulo e o inimigo acoitava-se aí, em todo o redor da “ferradura”, a coberto dos trocos espessos e, lá no cimo, dissimulado na ramagem frondosa das imponentes árvores centenárias. No meio, desprotegidos na calva clareira que a mata envolvia, estávamos nós. Expostos e vulneráveis.

O matraquear medonho das armas esboçava uma visão de apocalipse, abalando-nos o âmago e acordando-nos de novo para a eminência do perigo que, em tantas ocasiões semelhantes, de imediato nos tornava animais acossados. E era desse medo, estranhamente inconsciente, porém controlado, que germinava um quase sobre-humano, levianamente inevitável e incorrigível, desprezo pelo silvar das balas, com que, persistente e com demasiada eficácia, tentavam silenciar-nos.

Era imperiosa uma leitura serena da situação e uma tomada urgente de decisões, antes que os morteiros 82, dos artilheiros do PAIGC, corrigissem o ângulo e a Companhia de Infantaria, recém-desembarcada em Bissau – que nos reforçava a retaguarda, naquele que foi o seu baptismo de fogo – se visse envolvida pelos experimentados guerrilheiros guineenses.

O capitão mandou assim avançar o grupo de assalto “Os Dragões”, para envolvimento pela direita, enquanto me ordenava que deslocasse, pelo flanco esquerdo da ferradura, os homens dos “Craques”, numa tentativa de espartilhar os elementos mais avançados do inimigo.

À minha frente, o Jaime, um dos mais hábeis artilheiros do meu grupo, praguejava com a Dreyse, que se encravara, enquanto, muito perto da minha posição e à ilharga dos homens sob o meu comando, o recém-transferido Furriel Miranda, surpreendentemente calmo, acendia um cigarro e percorria com o olhar as copas das árvores, em busca de alvos. Impressionava a frieza e domínio daquele moço cabo-verdiano, serenamente sorridente e despreocupado.

Do interior da mata, ceifando capim e descarnando arbustos, soavam novas rajadas, por entre as quais se distinguia, com enervante nitidez, o cantar irritante de duas metralhadoras ligeiras, estrategicamente instaladas nos flancos da mata. A escassos metros dos homens do meu grupo, o “Aranha”, artilheiro-mor dos “Dragões”, procurava raivosamente silenciar uma delas, à morteirada – com o morteiro 60 abraçado junto ao sovaco, em posição de tiro tenso – e com a destreza e o sangue frio que toda a Companhia lhe reconhecia.

Ao segundo disparo, a metralhadora suspendeu o matraquear e, como que obedecendo a um sinal, todas as armas, de ambos os lados do campo, se calaram. Um manto impressionante de silêncio desceu na mata e envolveu tudo e todos. Olhei em redor os homens do meu grupo, em busca de feridos. Ilesos, dispersos pelo chão, acoitando-se à protecção de troncos caídos, ou nos pouco numerosos morros de baga-baga – altas formações de rijo barro, construídas pelas vorazes colónias de formiga salalé – rompiam com o olhar a densidade da mata, tentando adivinhar as sombras e os segredos, que se aprestavam para um confronto que, do outro lado do bosque, se suspeitava persistente e se tornaria, se necessário, desprendida e pacientemente longo.

Sentia-se, em muitos daqueles jovens militares, uma inabalável decisão, uma quase  teimosa valentia, denunciadas pela estranha tranquilidade nos rostos e nos gestos. Homens, tão arreigadamente decididos, quase sempre aldeões, tão cedo e tão abruptamente arrancados ao conforto materno, viam-se movidos, quantas vezes sem sequer entenderem princípios e razão, para as malhas de obstinados interesses, tão distantes e desligados dos sonhos de futuro, com que, no dia-a-dia, alimentavam a pacatez da arrastada existência, que ao povo humilde coubera em sorte.

Quase sempre, também, sem um gesto de revolta, sem uma palavra de raiva, sem um arredar da barricada, sem comida e sem água, tanta vez, sem uma lágrima de desespero. Sem pernas, sem braços, quantos deles; sem futuro nem esperança: outros ainda sem vida.

Alguns metros atrás, no flanco direito da orla da mata, o furriel enfermeiro, irrequieto madeirense, gracejava, enquanto acudia ao braço do Cabo “Mané”, riscado por uma bala, felizmente sem sorte. Mesmo ali, enquanto dispersas salvas de rajada, mantinham vigilantes as forças em confronto, o funchalense Ilídio – meu particular companheiro de ócios e perigos – mantinha o apurado e incorrigível sentido de humor, que o distinguia no conjunto da Companhia, enquanto se entregava à nobre tarefa de sarar os corpos dos homens no terreno.

Escolhi esse momento para me levantar e correr para um abrigo melhor, que vislumbrara pouco antes, formado por um tronco caído, junto a um trilho, trinta metros  adiante. Mal me havia erguido do chão quando, de uma árvore próxima, saiu uma curta rajada e depois outra mais longa. A primeira cravou-se no extremo do tronco onde antes me abrigava: a segunda, alguns metros adiante, levantou um sopro de poalha acastanhada, quando se cravou num morro de salalé, onde um dos homens do meu grupo pouco antes se havia recolhido.

Corri a trintena de metros, em busca de melhor local para me acoitar, enquanto disparava pequenas rajadas para as copas de duas das árvores, de onde me visavam. Mas os meus disparos já não se ouviam, confundidos na macabra sinfonia do estouro das muitas armas dos rapazes da frente. Recomposto, o “Mané” aprontara já o morteiro 60 quase na vertical, soltando-lhe, logo depois, uma granada. Segundos volvidos, o projéctil mergulhava na copa do bissilão, fazendo saltar ramos e folhas, pedaços de tronco, carne humana e metal.

Depois, o silêncio abateu-se de novo. Pelo ANGRC9 a troante voz de tenor do capitão perguntava se os T6 estavam demorados. Respondeu-lhe o comandante da pequena esquadrilha, avisando da chegada do apoio aéreo ao objectivo em cerca de três minutos. E pedia coordenadas para o lançamento das bombas. No alto, sobrevoando  a zona, a bordo da pequena Dornier, o comandante de batalhão informava: “Abutres na zona”. O Poiares afastou, por momentos, o ouvido do AVF, olhou-me e gritou: “Estão a chegar os aviões. Ouvi agora no rádio”.

Não tardou o som tonificante dos motores dos dois T6 da Força Aérea. Localizado o alvo, picavam, em sucessivas passagens sobre o denso bosque, com manobras de voo rasante, libertando das asas cargas mortíferas, que afundavam crateras e mutilavam árvores e homens, enquanto as armas ligeiras, dos efectivos do PAICG, disparavam descoordenadamente sobre eles, tentando abatê-los. Tudo em redor pareceu eclodir, num apocalíptico derrocar da própria natureza e das vidas que ali se acoitavam.

Respirámos fundo, por escassos momentos. Aliviados de munições, os Harvard T6 rumaram à base em Bissalanca, deixando no seu rasto, para além de sementes da morte, um estranho e cavado silêncio. Pelo rádio chegou o aviso de que as munições  dos “Dragões”, que ocupavam a frente da flecha, ameaçavam esgotar-se. A uma ordem do capitão, o meu grupo e o do Furriel Miranda avançaram. Possuíamos um resto de munições e era-nos ordenado que reforçássemos a vanguarda, na zona mais próxima da primeira linha da guerrilha africana, dissimulada na mata. Cerca de trinta homens apenas, naquela ponta da flecha e uma, preocupantemente reduzida, reserva de munições. Ninguém, no seio dos dois pequenos grupos de assalto, queria pensar no que aconteceria quando, balas e granadas, do nosso escasso grupo de homens, se acabassem.

Éramos, nas circunstâncias, a derradeira esperança de romper a passagem e fazer recuar a força sitiante, após horas de confronto, sem avanços, nem vislumbre de saída daquela armadilha em que, mesmo após a eternidade de uma já longa experiência de guerrilha, havíamos ingenuamente caído.

Algures, já em “chão francês” – como ainda, muitos anos após a independência, era apelidado o território senegalês – na orla da densa floresta, por entre pragas e gritos, sentíamos a movimentação dos homens acoitados na mata, deslocando apressadamente para a retaguarda, nos subterrâneos da base de Zinguichor, situada a escassas dezenas de metros, os mortos e os feridos, que a acção conjunta das forças no terreno e os aviões bombardeiros haviam causado.

Era aí, na referenciada base, agora estrategicamente instalada centenas de metros para o interior, em recém-construído conjunto de instalações e estreitos corredores, dissimulados no subsolo, onde não faltava um improvisado hospital de campanha, que se havia apontado o objectivo da missão. E era a segunda vez que as nossas forças demandavam o local, meses antes arrasado, aquando de uma primeira incursão à estratégica base inimiga.

Algures, alguém pedia desesperadamente um helicóptero, para evacuação de feridos. Na “DO” de comando, que sobrevoava a zona, estava-se por certo a pedir à torre de controlo de Bissau o apoio aéreo, porque, durante breves minutos, nenhum som se ouvia no auscultador do meu rádio. Quando o silêncio pouco depois foi quebrado, a voz serena do comandante Calado restabelecia o contacto, informando que o heli se dirigia a norte, rumo ao objectivo, na zona de fronteira onde nos encontrávamos.

Logo depois vi o Morais, em terreno aberto, deitado sobre um ensanguentado braço esquerdo, que a outra mão amparava. Quando ao longe se destacou a silhueta do helicóptero, chamei o cabo enfermeiro, indiquei-lhe a posição do ferido e ordenei aos homens que avançassem para a língua de bolanha à nossa esquerda, onde se montaria a segurança para a aterragem. Era um local ornado de palmeiras esguias e de frondosa ramagem, alto capim e arbustos flexíveis, que dificilmente se deixam quebrar. Não era a posição ideal para o pouso, mas a urgência da evacuação de, pelo  menos um dos feridos e a proximidade das forças adversárias, não permitiam escolha melhor e mais segura.

Metros atrás, no interior da “ferradura” da clareira, dispersas pelo chão, o grosso das nossas forças vigiava. Estava-se, claramente, numa fase de mútuo estudo de estratégia, durante a qual apenas pequenas rajadas, ou tiros isolados, quebravam o silêncio e mantinham atentos os atiradores de ambos os lados. O mato estendia-se a todo o espaço que a vista abrangia, da orla do pântano à densa floresta ao longe, que uma névoa difusa só agora, várias horas após a nossa chegada, aparentava dissipar-se. Aproximávamo-nos de meio do dia e o chão queimava. Reflexos castanho-avermelhados rodopiavam ao sol, espelhavam nos caules de capim e nas águas lodosas do braço pantanoso da bolanha.

Quando o heli, numa súbita elipse, se aproximou do solo, o vento levantado pelas pás do hélice envolveu-nos numa onda de frescura. Do interior do aparelho saíram o mecânico e uma, estranhamente calma, enfermeira paraquedista. Escassos minutos após o pouso, enquanto da mata os homens do PAIGC metralhavam a zona onde nos encontrávamos, numa tentativa de abatê-lo, o aparelho elevou-se no ar, num quase acrobático salto, brusco e veloz, levando a bordo um primeiro grupo de feridos. Antes, porém, deixara-nos o mais desejado dos presentes: garrafões de fresca água e cunhetes de munições de G3, de Dreyse, de morteiro e bazooka.

Decorreu uma silenciosa eternidade. As munições recém-chegadas distribuíam-se pelos homens, em breves lances de corrida, quase sempre acompanhados por curtas  rajadas de cobertura. Entretanto, quase sem nos apercebermos, o Alouette III regressava, terminando a evacuação dos feridos. Concluída a missão de segurança, atravessámos, em sentido inverso, a estreita língua de pântano, agora sob uma mais cerrada barreira de fogo da guerrilha. As granadas de morteiro caíam à frente e atrás de nós, erguendo cogumelos de lodo e água pestilenta e poupando, milagrosamente, o punhado de homens, que me seguiam de volta à zona da clareira que nos fora destinada.

A bolanha ali era pouco profunda, porém o facto de estarmos enterrados nela até quase aos joelhos e com as botas encalhadas no fundo lodoso e movediço, criava-nos  uma incómoda sensação de aprisionamento. De pé, quase sem capacidade de movimentos e à mercê das balas que, do interior da mata encetavam nova flagelação, tentávamos desesperadamente encetar uma resposta. “Tá um gajo de camisa verde naquela árvore, meu furriel!”- gritava o China, enquanto disparava na direcção do atirador furtivo, que se dissimulara com a ramagem, na forca formada pelo tronco. Na frente, bem no interior da ferradura, já se respondia de novo às armas do PAIGC, que pouco depois voltaram ao silêncio.

Era, porém, um silêncio pesado e angustiante, que nem as aves ousavam quebrar. um silêncio que se elevava no espaço, que parecia subir velozmente rumo ao céu, como se fosse uma maldição, ou uma prece. Mas foi efémero. Daí a pouco, por entre gritos e pragas, as forças inimigas voltaram a disparar.

Abateu-se o céu naquela antecâmara do inferno, dividida pelo espaço aberto da clareira e a fiada de árvores que escondiam a floresta. o estrondo enorme de todas as nossa armas e a consciência de que não estávamos dispostos a ceder, deve ter abalado a moral dos homens na mata porque, pouco depois, os sentimos recuar. Sabíamo-lo porque os tiros nos chegavam agora mais dispersos e distantes.

Entretanto, reabastecidos, os aviões voltaram a rasar o terreno, lançando, uma e outra vez, pesados projecteis, que abalavam a mata até às vísceras. Era uma estranha e assustadora melopeia, que se esbatia, lá longe, em ondas sucessivas. o Micas olhava os enormes pássaros de fogo, com uma expressão quase patética, enquanto gritava, eufórico, naquele seu jeito de dizer as coisas que, mesmo ali, às portas do inferno, arrancava sorrisos aos companheiros.

Era o espectáculo da morte, no seu apogeu, traduzido em nós como algo de imponente e cruelmente tonificante. O nosso primeiro objectivo era a própria sobrevivência e os T6 estavam, decididamente, a contribuir profundamente para a conseguirmos. Era isso, afinal, a premissa de todas as guerras, dos grandes conflitos às curtas escaramuças; das legítimas, onde se defende o berço, o sangue e os haveres, às movidas por obscuros interesses de hegemonia e de conquista.

Enquanto os T6 cumpriam o ritual do extermínio, em bombardeamentos retaliatórios, sentado junto a um morro de baga-baga, um cigarro tremulando entre os dedos, todo esse incómodo desfiar de ideias me atormentava a mente e repercutia no cérebro, quase tanto como o estrondo das bombas lançadas pelos Harvard, a escassos cem metros do meu improvisado abrigo. Quando nos levantámos para o assalto, cumprindo a clássica acção de busca e recolha na mata, após o som dos aviões se ter perdido para os lados do Cacheu, o equipamento pesava-nos como chumbo. A lama e o lodo,  colados ao camuflado e ao corpo e a quase incapacidade de raciocínio, inspiravam-nos laivos de inquietante irracionalidade e desvario.

E isso notava-se bastante mais quando riscávamos os olhares uns pelos outros, sem nos atrevermos a fitar demoradamente os companheiros de missão, de infortúnio, porém de sobrevivência. Autómatos, como muitos de nós pareciam ter por condição, naqueles decisivos momentos da existência. Filhos retirados às mães, perdidos num turbilhão fervente de decisões e tratados e manobras, de uma política que nenhum aprendera a ler e da qual muito menos sabia os reais motivos.

Entrámos, cautelosos, afoitando a densidade da floresta. A frescura provocada pelas sombras da mata colidiu connosco, fazendo-nos sentir, por breves instantes, seres humanos. Mas foi curto o fragor da sensação. A visão apocalíptica dos corpos mutilados, ou totalmente desfeitos, por onde o sangue ainda abundantemente se derramava, regando a terra e ceifando o que de vida lhes restava, ribombou aos nossos olhos.

Ali nos confrontávamos com o cru dilema e nenhum de nós era capaz de discernir o que os nossos olhos viam: se peças de uma máquina desfeita pelo homem, se o próprio homem esmagado pela máquina. No fundo, para as estatísticas oficiais, tratava-se apenas de, fria e levianamente, inimigos abatidos, números para constar nos relatórios, com que os feitores da guerra – habitualmente alheios às dores e traumas dos conflitos – geriam a sorte dos que matam e dos que morrem.

Autómatos, como então pensei, sorriamos, incredulamente renascidos, esquecidos já de perigos e canseiras, mesmo na presença daquela tão cruel e irreparável visão da morte. No chão, cadáveres ou moribundos, deixados para trás, jaziam homens cujo crime se resumia à ignomínia de terem nascido na sua própria terra, a uma teimosa vontade de liberdade, de viverem e morrerem naquele chão que os parira e alimentava, livres de opressões e de destinos alheios.

A acção da guerrilha, sabíamo-lo pela propaganda do movimento, não visava o povo dominador e menos ainda o dominado, que aceitava o jugo, o alvo eram os teimosamente cegos e insensíveis poderes instalados em Lisboa, que rodeavam de grilhetas todos os pulsos e todos os destinos do povo. Pior; dos povos. Sofria-se, “do Minho a Timor”, um longo e desgastante cativeiro, disfarçado, além fronteiras, pelo folclore e pela psicossocial. “Não voltaremos a ser um campo de trabalhos forçados”,  ecoava nas palavras serenas, determinadas e contidas de Amílcar Cabral.

Açoitavam-nos a mente as avisadas palavras dos líderes da guerrilha. os panfletos de propaganda, recolhidos nas tabancas, ou de mistura com o espólio capturado em bases inimigas, açoitavam-nos os olhos e as palavras transmitidas via rádio, a partir de Conacri, invadiam-nos as horas de sono e latejavam-nos na mente, tanto quanto as granadas, que se abatiam sobre a débil moral dos homens, nos esventravam abrigos e casernas e nos minavam a resistência. Que luta aquela e o que fazia, naquela distante terra de outras gentes, a juventude de um país que apenas ambicionava viver solidária e, se possível, feliz. E em paz.

De casa, bem longe, chegavam aerogramas; palavras pungentes, escritas com tinta de lágrimas, linhas de trémula caligrafia, por entre as banais consultas sobre a saúde e o bem-estar, no habitual tropel de interrogações, se queria saber se “já cá vens passar o Natal?”.

Nos homens quase em fim de comissão, prenhes de incertezas, vazios de destino e de futuro; homens de brandos costumes, cansados de guerra e de medos e raivas, os silêncios, mais do que gritados nas entrelinhas das cartas, sentiam-se nos rostos e nos olhares vazios, nos desalentos, de quantos sabíamos não poder responder a muito do que, na longínqua e descuidada “Metrópole”, nos perguntavam os do nosso sangue e os do nosso afecto: os da nossa raça.

E era maior o sentimento de frustração quando, junto às perguntas para as quais, de todo, desconhecíamos resposta, se juntavam as respostas que a prudência aconselhava a evitar. Tal como o amor, imortalizado por Camões, também as palavras, escritas ou faladas, chegadas aos ouvidos atentos dos que, na sombra, “zelavam pela defesa do Estado”, mesmo ali na antecâmara da morte, eram algo que soava como um perigoso “fogo que ardia sem se ver”, uma geração inteira, o sangue novo, generoso e  fértil da juventude de um país, levado em porões de navio para terras que não sabia, sofria amordaçado a sina de ser povo e os caprichos de quantos, muito antes ainda de ter nascido, lhe traçaram o destino e lhe ameaçaram a existência e o futuro.

Pensava-se em tudo isso, numa amálgama confusa de sensações e sentimentos, de razões e motivos, que nenhum de nós, em verdade, conseguia conscientemente entender. Embarcaram os melhores filhos de uma nação em porões de barcos e eles foram. Decretaram-se neles ordens de matar ou, heroicamente morrer. E os filhos do povo, que já tanto sofria na carne a agrura de ser cativo na sua própria terra, partiram, tão espiritualmente vulneráveis, como galhardamente afoitos. Matando, muitos deles; morrendo, ingloriamente, outros tantos. Crianças, há tão pouco, tantos de nós por ali errantes, por entre os nevoeiros da vida, procurando nortes e caminhos, sem saber, quantas vezes, que passos encetar em busca de futuro e sorte.

Pensamentos que, tantos de nós, nos rincões da branda terra portuguesa, ou nos densos e ardilosos matos africanos, sentíamos ecoarem nas mentes, martelando com desusado estrondo as horas de vigília das longas noites de atalaia. ou furtando os pés aos segredos, em longas progressões nocturnas no terreno, semeado de mistério e incertezas. As nossas noites eram, havia muito, noites sem sono, noites sem estradas nem destinos. Sem luar, ou um farol: noites, sequer, sem certezas de haver amanhecer.

Naquele discreto espaço, anichado ao Golfo da Guiné, que a imprensa estrangeira tenebrosamente apelidava de “Vietname de África”, parcela de território pouco mais vasta do que a continental superfície alentejana – escassos 36 mil quilómetros quadrados de chão pantanoso, onde as febres mortais abundam; nesga de África espartilhada pelos limites do moderado Senegal e da hostil República da Guiné-Conacri – ali mesmo, perdido no abafado e castigador clima tropical, adiava-se o futuro de dois povos, distintos e distantes.

De um lado o sangue novo e válido de Portugal que, na mente e no corpo, sofria traumas, que as gerações seguintes não iriam poder sarar. Do outro lado do conflito, a juventude africana que, em recurso, de armas na mão, dizia ao secular colonizador que era tempo de assumir nas suas mãos os destinos do seu próprio povo e que apenas a ele cabia escrever o futuro da sua própria terra.

Já por todo o mundo civilizado as potências colonizadoras tinha escutado e entendido as legítimas aspirações do martirizado continente africano. Menos em Lisboa, onde repousava o autismo e a alma de todo um povo se vestia de luto, em cada barco que chegava, em cada medalha póstuma.

Vinha-nos à mente tudo isso enquanto, perscrutando a ardilosa floresta, invadimos a proibida barreira da fronteira senegalesa. Para além dela, em zona tabu, a base inimiga desalojava, apressadamente, para o interior, os mortos e feridos que, ao longo daquela longa manhã, os guerrilheiros conseguiram evacuar. Numa rápida acção de busca e recolha, capturámos armas e documentos e encetámos o regresso. Não era aconselhável prolongar o avanço, já que o território que pisávamos era soberano e o Senegal não se apresentava como opositor declarado de Portugal. Nada mais havia ali a fazer. As duas centenas de homens, autómatos macerados das duas companhias no terreno, estavam exaustos após seis terríveis horas de fogo.

Sobreviver a um dia assim, dilacera na alma cicatrizes, tão dolorosamente insanáveis e tão eternamente demoníacas, que nenhum homem, nascido e moldado no barro dos afectos e da razão, espiritualmente lhe resiste. Algures, o poema recorda: “nunca se regressa apenas vivo / ainda que a guerra finja não matar”.

Ouvem-se os tambores da guerra, por uma vez, “e nunca mais se retoma a inocência / nem a vida”. E nenhum bálsamo era, ainda assim, mais prodigioso do que a certeza que, para além do germinar dos sinistros e infindáveis pesadelos, arautos do ruir do humano, que nos enfeitiçara a existência, a epopeia da morte não lograva dissipar o pensamento de que podíamos, apesar de tudo, lidar com o inferno e a sombra da mortalha. o sol do meio-dia, que só então parecia ter despertado, espelhava-se a oeste num ténue cirro de nuvens, que se alongava em línguas poeirentas, como tempestades de areia e queimava, mais do que o sibilar das balas e o explodir das granadas, que nos haviam tentado o corpo.

Mas a ligeira brisa que se levantou de sul surgia como uma revigorante terapia de esperança, rasgando as fronteiras de um dia que se anunciava mais promissor e radioso, porque a vida nos devolvia aos recantos da alma, onde o espectro da morte, uma vez mais, se tentara dissimuladamente insidiar.

Depois, na penosa caminhada para sul, a coluna regressou, pelos meandros sinuosos da picada.

António Lúcio Vieira

In “O Mouro da Praia da Foz”  (Lisboa, Chiado Editora, 2014) (cortesia do autor) (****)
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Notas do editor: