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sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22633: (De)Caras (178): Viriato Madeira (1938-2011), ilustre cidadão da Ribeira Grande, ilha de S. Miguel, Açores, ex-alf mil, CCAÇ 557 (Cachil, Bafatá, Bissau, 1963/65), citado no "Diário de Guerra", do Cristóvão de Aguiar


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (1963/65) > 1964 > A contar da esquerda: o açoriano de Santa Bárbara, Ribeira Grande, ex- alferes miliciano Viriato Madeira, comandante do 1º pelotão; a seguir o também açoriano, picaroto, ex-alferes miliciano Mário Goulart, comandante do 3º pelotão que todos os anos faz questão de nos acompanhar no almoço de convívio da CCaç 557; o algarvio, ex-alferes miliciano, Ildefonso Leal, comandante do 2º pelotão; e, em primeiro palno, à direita, o aveirense, ex-tenente miliciano médico, Rogério Leitão [, já falecido, em 2010].

Esta e outras fotos, do Cachil,. 1964, sãoão de fraca qualidade devido aos meios que havia naquele tempo e, além disso, foram reproduzidas de slides de um DVD que tenho da estada, na Guiné, da  minha  CCAÇ 557. 

O quarto alferes miliciano, comandante do 4º pelotão e 2º comandante da companhia (, e que não aparece aqui neste fotograma,)  era o  José Augusto Rocha (1938-2018), destacado dirigente estudantil (em 1962) e depois advogado, defensor de muitos presos políticos sob o marcelismo. (Tinha uma posição radical sobre a guerra colonial, a da denúncia ativa, razão por que declinara, em 2015, delicadamente, o nosso convite para integrar a Tabanca Grande; era um hoem afável mas firme nas suas convicções.).

Foto (e legenda): © José Colaço (2011). Todos os direitos reservados
. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O Viriato Madeira foi aqui citado no "Diário de Guerra", do Cristóvão de Aguiar (**):

Camamudo, 12 de Junho de 1965

Vim a este destacamento de Bafatá en­con­trar-me com o meu amigo Viriato Madeira, que está prestes a terminar a sua comis­são. Esteve anteriormente, com a sua companhia, na Ilha do Como, durante cerca de um ano, rodeado de arame farpado e sem poder sair do aquartelamento de cam­panha, im­plan­tado no chamado reino do Nino, onde ninguém se atre­via a entrar ou a sair. Vie­ram de lá todos bem marcados. 

Foi tal a nossa alegria, que chorámos como duas crianças perdidas que se reencontram e abraçam uma à outra. E, para festejar o nosso encon­tro, preparou-me uma bebida, que ele chama bomba, espécie de cocktail revolu­cio­nário, que me pôs a dormir ou em coma alcoólico quase ins­tan­tanea­mente. Quando des­pertei, já era tarde para seguir para Contuboel. Mandei um rádio a prevenir que passava a noite em Ba­fatá, na sede do batalhão.

2. Comentários ao poste P9360 (*):

José Câmara:

Caro Colaço: Por informação recebida de Carlos Cordeiro, o Alf Mil. Viriato Madeira faleceu o ano passado.

Segundo a mesma fonte, o Viriato mantinha grande actividade cívica. Por isso mesmo granjeou grande simpatia entre a população da Ribeira Grande, Ilha de São Miguel. (***)

Um abraço amigo,
José Câmara

16 de janeiro de 2012 às 04:14

Carlos Cordeiro:

Caros amigos,

De facto, o Viriato Madeira foi uma pessoa de notável intervenção cívica. A Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores aprovou, por unanimidade, um voto de pesar pelo seu falecimento:
http://base.alra.pt:82/Doc_Voto/IXvoto354_11.pdf (que se reproduz emnoata de rodapé (***)

Um abraço,
Carlos Cordeiro

16 de janeiro de 2012 às 13:00

José Botelho Colaço: 

O ex-alferes Viriato Madeira era um grande comunicador,  sempre bem disposto, ultimamente os nossos contactos eram menos assíduos devido ao seu estado de saúde segundo me dizia era do foro pancreático-

Estive nos Açores não o visitei porque o programa não contemplava a visita à Ribeira Grande.
A sua deslocação aos almoços da CCaç 557 só uma vez esteve presente, primeiro por motivos de trabalho e ultimamente pelo seu estado de saúde não o permitir, iam ficando sempre adiado para o próximo ano.

O Viriato dizia-me sempre quando eu me deslocasse à Ribeira Grande que não me preocupasse com hotel porque punha a casa dele à minha ordem.

E assim é aqueles que da lei da vida se vão libertando, a roda da vida não pára. (***)

Um abraço, Colaço

16 de janeiro de 2012 às 14:17

_____________



(***) O seu nome foi dado, por exemplo, a um equipamento de grandes prestígio e utildiade público, o Coplezo de Piscinas Viriato Madeira. Entre outras funções cívias, foi presidemte da direção dos Bomabeiros Voluntários da Ribeira Gramnde (2001-2011).

A Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores aprovou, por unanimidade, um voto de pesar pelo seu falecimento em 2011:






Disponível em: http://base.alra.pt:82/Doc_Voto/IXvoto354_11.pdf 

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19971: (De)Caras (133): Faz hoje um ano que morreu um dos "bravos do Cachil", o ex-alf mil José Augusto Rocha (1938-2018), destacado dirigente estudantil (em 1962) e depois advogado, defensor de muitos presos políticos sob o Marcelismo. Tinha uma posição radical sobre a guerra colonial, a da denúncia ativa, razão por que declinara, em 2015, delicadamente, o nosso convite para integrar a Tabanca Grande.


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (1963/65) > 1964 > Fotos falantes...que não precisariam de legenda... Um dos piores lugares do inferno verde e vermelho que foi, para muitos de nós, a Guiné... Fotos do álbum do José Colaço (ex-Soldado Trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) (*)

Foto (e legenda): © José Colaço (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) >  'Trabalho forçado': o transporte dos toros para a construção da paliçada e casernas. Foto do fur mil Vitor Neto, da CCAÇ 557.

Foto (e legenda): © Victor Neto / José Colaço (2019). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (,Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > 1964 > Mata destruída e a vista parcial do quartel do Cachil do lado do cais....É visível a  paliçada, vista da  entrada com cavalo de frisa, para quem vinha do cais .... porque no lado oposto seria muito perigoso para o fotógrafo, nunca se sabia quando é que um turra poderia estar na mata grande do Cachil... Uma das baixas que a companhia teve logo quase à chegada foi de um tiro isolado quando o soldado estava a cavar o abrigo. Além disso era uma zona que estava armadilhada e pessoal estava avisado para não a usar, embora durante o dia e nos dias em que havia batidas à mata do Cachil, as armadilhas eram desactivadas para evitar acidentes.

Foto (e legenda): © Victor Neto / José Colaço (2019). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (,Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > 1964 > A construção da paliçada...

Foto (e legenda): © José Colaço (2015). Todos os direitos reservados. [Edição elegendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (,Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) >  1964 > Tourada no Cachil... Um camarada a demonstrar os seus dotes tauromáticos.. A malta dava largas à imaginação para se distrair...e não dar em doidos!...

Foto (e legenda): © Victor Neto / José Colaço (2014). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > 1964 > Abrigo "Cova do Comando" da CCAÇ 557 no Cachil. Alguém chamou a esta subunidade, que também participou na Op Tridente (jan/mar 1964), "a esquálida e esgroviada Companhia de Caçadores 557". Por detrás desta foto estão cinquenta e cinco dias a ração de combate, cerca sessenta dias sem mudar de roupa nem tomar banho, e com água racionada para beber

Legenda: a começar da esquerda para a direita o 1.º Cabo Enfermeiro Leiria; 1.º Cabo Radiotelegrafista Joaquim Robalo Dias; Dr. Rogério Leitão, que já partiu; atrás o 1.º Cabo Enfermeiro António Salvador, e por último, de quico, a sair do buraco, eu, Soldado de Transmissões José Colaço. As barbas com cerca de 90 dias. Os cabelos já tinham levado um corte para melhor se aguentar o calor. Aquela "divisória" entre o 1.º Cabo Dias e dr. Rogério, é uma cobra que durante a noite se lembrou de nos assaltar o abrigo e que só de manhã com a luz do dia foi detectada a um canto da cova. Foi condenada à morte pela catana de um milícia.

Foto (e legenda): © José Colaço (2015). Todos os direitos reservados. [Edição elegendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. A notícia da morte do José Augusto Rocha, amplamente noticiada pela comunicação social , (Público, Expresso, Diário de Notícias, RTP...), chegou-me, em primeira mão, por mail do José Colaço de 12/7/2018, às 13h32, a dizer telegraficamemte o seguinte: "Morreu o Dr. José Augusto Rocha, ex- alferes miliciano e 2º comandante da companhia de CCAÇ 557, 1963/65." (**)

 É justo que relembremos aqui, um ano depois, a sua morte deste nosso camarada que, depois da Guiné, acabou o curso de advocacia e foi um dos mais notórios defensores de presos políticos ao tempo do Marcelino. Defendeu gente de diferentes quadrantes político-ideológicos da esquerda, sem nunca levar um tostão.  Reproduzimos também parte do seu depoimento sobre a sua vida na tropa e  no TO da Guiné.

Algumas notas biográficas sobre este nosso camarada:

(i) foi director da Associação Académica de Coimbra, em 1962;

(ii) foi expulso de todas as Escolas Nacionais, por dois anos, na sequência da crise académica de 62;

(iii) esteve preso no Forte de Caxias; liberto sem culpa formada, ao fim de 4 meses;

(iv) cumpriu o serviço militar e foi mobilizado para a Guiné, como alferes miliciano (CCAÇ 557, 1963/65);

(v) termina a licenciatura em direito, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, depois de ter regressado do TO da Guiné, em novembro de 1965:

(vi) inscreve-se na Ordem dos Advogados, em 13 de agosto de 1968 [, foto acima, à esquerda, reproduzida do respetivo boletim de inscrição, cortesia do portal da Ordem dos Advogados]

(vii)  participou em numerosos julgamentos e processos no Tribunal Plenário Criminal de Lisboa, onde defendeu vários presos políticos, nomeadamente Victor Ramalho, Francisco Canais Rocha, João Pulido Valente, António Peres, Diana Andringa, Fernando Rosas, Maria José Morgado, José Mário Costa, Paula Rocha, Isabel Patrocínio Saldanha Sanches, José Maria Martins Soares, Amadeu Lopes Sabino, Sebastião Lima Rego e Paula Metelo (Fonte: Esquerda.net)


2. Excertos, com a devida vénia,  do blogue "Caminhos da Memória" > Segunda feira, 19 de outubro de 2009 > Memória breve da história da Guiné > Um texto de José Augusto Roch

[Aconselha-se a leitura na íntegra deste depoimento, na fonte original; os excertos que reproduzimos levam subtítulos da nossa responsabilidade. LG]

(i) expulso da Universidade, ém 1962, é chamado para a tropa e mobilizado para a Guiné, em 1963

(...) A 25 de Novembro de 1963, embarquei no cargueiro «Ana Mafalda» (...), adaptado à pressa para transportar outra e nova carga – homens soldados – rumo à guerra colonial da Guiné. (...)

Nos anos sessenta, a ordem de incorporação e a ida para a guerra colonial estava indisfarçavelmente ligada à repressão política e à PIDE. Esta articulação era particularmente visível em relação ao movimento estudantil e em especial aos seus dirigentes. As medidas de repressão do aparelho do Estado, ao nível das forças armadas, eram várias e diversificadas e iam desde a incorporação em estabelecimentos militares disciplinares de correcção, como o de Penamacor, onde foi internado, por exemplo, o Hélder Costa e o João Morais, até incorporações antecipadas e transferências arbitrárias de quartéis, de acordo com estritas ordens da polícia política (PIDE).

No meu caso, libertado do Forte de Caxias, em Julho de 1963, fui incorporado logo em Setembro, para minha total surpresa, no Regimento de Lanceiros 2, conhecido como o quartel da polícia militar, unidade de confiança do regime político do Estado Novo.

Vim a encontrar aí outro dirigente associativo, da Associação dos Estudantes da Faculdade de Letras, o João Paulo [Gomes] Monteiro [1938-2016], filho do exilado político Adolfo Casais Monteiro. A surpresa de imediato foi esclarecida. O treino militar do 1º ciclo, naquele Regimento, era muito duro e de verdadeiro castigo e, logo que terminou, ambos fomos transferidos para a Escola Prática de Infantaria de Mafra, por despacho do então Ministro da Defesa Nacional, General Mário Silva [, ministro do exército, de 13 de abril de 1961 a 4 de dezembro de 1962, sucedendo-lhe o general Joaquim  Luz Cunha, até  19 de agosto de 1968]

Cumpre assinalar que ambos gozávamos de forte simpatia entre os cadetes instruendos e mesmo dos Alferes instrutores do Quadro. Fui chamado ao Comando e aí o Capitão Semedo (irmão do actor de teatro, Artur Semedo) fez questão em dizer que a convocatória queria expressar o seu profundo desacordo pela transferência, mas que ela era exterior ao Regimento e provinda de ordens do poder político. Terminada a instrução em Mafra, fui colocado, como Alferes Miliciano, no Quartel de Caçadores 5, em Lisboa.

Esta unidade militar era a unidade da confiança política do governo e comandada pelo Major Portugal, conhecido elemento da Legião Portuguesa. Tal como tinha acontecido no Regimento de Lanceiros 2, cedo gozei de grande simpatia junto dos Alferes Milicianos e do próprio Capitão da Companhia, Capitão Vieitas. Por força disso, fui escolhido pelos oficiais milicianos para integrar a mesa do Comando no dia oficial da Unidade e para em nome deles fazer o discurso oficial.


(ii)  feito 2º comandante da CCAÇ 557 (Bissau, Cachil, Bafatá, 1963/65)

Não tardou que novo despacho do mesmo General Mário Silva ordenasse a minha transferência para Évora, para a Companhia de Caçadores de Infantaria 557 [CCAÇ 557], rumo à Guiné, sendo que a Companhia donde fui transferido embarcou para um lugar relativamente calmo, a cidade da Beira, em Moçambique.

Esta transferência foi muito controversa, com oposição, por escrito, do próprio Comandante da Companhia. Sincero ou não, por sua vez, o Major Portugal chamou-me ao Comando onde manifestou o apreço que os oficiais tinham por mim e sugeriu que apresentasse uma exposição escrita, que ele a remeteria às autoridades superiores. Recusei e lá fui para a Guiné, no «Ana Mafalda».

Cheguei à Guiné em 3/12/63 e, logo em 14 de Janeiro de 64, a Companhia 557, comandada pelo Capitão João Luis Ares e de que eu era o segundo comandante, por ser o Alferes Miliciano mais classificado, foi integrada na maior operação de toda a guerra colonial, a Operação Tridente, destinada a libertar a Ilha do Como, onde o PAIGC tinha a sua bandeira hasteada, simbolizando a primeira região libertada da Guiné Bissau.

Fui, então, transitoriamente retirado da Companhia e fiquei em Bissau como elo de ligação, para o envio de alimentos e o mais necessário à sua sobrevivência.

Em Bissau, acabei por formar uma espécie de tertúlia no «Café Bento» – à data, frequentado também pelo hoje Major Tomé e pelo advogado Orlando Curto – com o cirurgião do Hospital Militar de Bissau, António Almeida Henriques, que conhecia de Viseu, donde ambos éramos naturais, e o reanimador daquela equipa cirúrgica, António Rosa Araújo, que mais tarde, muitos anos depois, viria a defender, como advogado, no conhecido processo judicial «caso dos hemofílicos», também conhecido por «processo do sangue contaminado».

Estes dois oficiais médicos não escondiam a sua discordância com a guerra colonial (...).


(iii) A Op Tridente (Ilha do Como,  jan / mar 1964), em que participou a CCAÇ 557

Existe informação vária sobre as batalhas e forças militares que integraram a Operação Tridente, mas nenhuma sobre a CCÇ 557, de que eu era, como referi, o segundo Comandante. A Operação Tridente, assim chamada por integrar os três ramos das forças armadas portuguesa, implicou efectivos na ordem de 1200 homens, aviões, fragatas e lanchas de desembarque.

Na rigorosa descrição feita pelo oficial do exército da república da Guiné Bissau, Queba Sambu, a ilha do Como tem uma superfície de 210 kms quadrados, 166 dos quais são lodo das marés, sendo constituída por um litoral de tarrafe, lamaçais que, na maré baixa, chegam a atingir quatro kms entre a terra firme e os canais, de fluxo e refluxo marítimos. Seguindo-se ao tarrafe, estendem-se as bolanhas (arrozais) com alguns palmares, sendo o centro da ilha de matagal. Nas bolanhas, de largos canais de irrigação, o nevoeiro só permite uma visibilidade de três a cinco metros.

Foi nesta ilha que, no dia 14 de Janeiro de 1964, desembarcaram os 145 soldados e oficiais da CCAÇ 557, numa operação muito arriscada em que os soldados foram salvos de asfixia e atolamento completo no lodo, por cordas lançadas pelas lanchas de desembarque. O médico da Companhia, de nome [Rogério] Leitão – aliás um bom fotógrafo – tirou fotografias do acontecimento, mas o rolo acabaria por ser confiscado e perdeu-se esse testemunho documental.

A operação terminou de forma dramática para as populações da ilha, tendo sido destruídas e queimadas as tabancas (aldeias indígenas) aí existentes, e abatidas centena e meia de vacas e tudo o mais que constituía a forma de viver daquelas populações, como máquinas de costura, camas, roupas, etc…


(iii) A construção do aquartelamento do Cachil, pela CCAÇ 557

As tropas regressaram a Bissau e foi deixada na mata do Cachil a CCAÇ 557, num aquartelamento feito à pressa com troncos de palmeiras na vertical e em tudo parecido a um aquartelamento índio. Sem água potável, sem alimentação e expostos à malária e a severas condições de carência e sofrimento, estes homens, totalmente isolados e comendo meses a fio só rações, dependiam do mundo exterior de uma barcaça que, de vez em quando, ia ao centro de Comando situado na povoação de Catió.

Encurralados naquele curto espaço de mata, lamaçais e bolanhas, estes homens viveram uma verdadeira odisseia de isolamento e condições infra-humanas de sobrevivência, acossados por acções de ataques ao quartel e flagelações das forças do PAIGC, entretanto regressadas à Ilha, após a retirada das tropas da Operação Tridente para Bissau.


(iv) Regressado de Bissau, comandante interino da CCAÇ 557, no Cachil, sofre um ataque por engano da FAP

(...) Quando o capitão da Companhia foi de férias, vim de Bissau para o quartel de Cachil, para assumir as funções de comando, tomando contacto com homens destruídos psicológica e humanamente por condições tão duras de sobrevivência e onde situações de saúde física e mental se agravavam, dia a dia, à espera do dia redentor de uma substituição por outros efectivos.

Vivia-se este ambiente, quando um dia apareceram, lá no céu, dois aviões [F 86] [no original, Fiats lapso do autor, já que ainda não havia o Fiat G-91], que, para surpresa nossa, começaram a picar sobre o quartel e a metralhar toda aquela zona, nomeadamente junto ao improvisado cais do rio, onde estacionava a barcaça de ligação a Catió.

Em desespero, ordenei que fossem lançados para o ar very-lights e um grupo avançasse com a bandeira nacional, para mostrar que éramos tropa amiga, ao mesmo tempo que por via rádio comunicava com o Comando de Catió, para que o engano fosse desfeito. Os aviões desapareceram no horizonte e ninguém ficou ferido.

Na minha vida já tive dois acidentes graves de viação, mas aviões a jacto a picar sobre a minha cabeça, é acontecimento digno da linguagem própria de uma crónica de Fernão Lopes, quando no cerco a Lisboa, dizia: «era coisa espantosa de ver…».

Junto ao cais, entretanto, ficaram os destroços dos garrafões de vinho, grades de cerveja e rações de combate, que tinham sido abastecidos naquele dia à companhia!!!… O médico da companhia [, o Rogério Leitão, ] tirou fotografias do ataque, que infelizmente não disponho para ilustrar esta minha memória.

Fui a Bissau e protestei junto do Comando e encontrei-me com os aviadores que me informaram que tinham acabado de chegar à Guiné e faziam uma operação de reconhecimento, pensando que se tratava de forças inimigas… Que eu saiba, só houve dois enganos em ataques da aviação: este e um outro sobre os fuzileiros navais, de que resultaram, tanto quanto me lembro, dois mortos.

Acabámos por ser rendidos por outra Companhia e enviados para a zona da vila de Bafatá, donde regressei a Portugal a 24 de Novembro de 1965, para terminar o curso de Direito, que a minha expulsão da Universidade de Coimbra e de todas as escolas nacionais, por dois anos, tinha impedido de concluir.(...)

[Revisão / fixação de texto / subtítulos / hiperligações : LG]

3. O José Augusto Rocha e o nosso blogue:

(i) Comentário do nosso editor Luís Graça:

(...) Conheci, pessoalmente, o José Augusto Rocha em 15 de outubro de 2009 (**). Foi-me apresentado pela Diana Andringa, na estreia, no Doclisboa 2009, do seu filme Dundo, Memória Colonial.

Tivemos um conversa cordial, mas dise-me logo que não era homem de blogues nem pretendia "alimentar" o nosso banco de memórias... De resto não gostava de falar da Guiné e da guerra, a não ser no contexto das suas memórias políticas que estava a (ou tencionava) elaborar.. Falou-me do texto que estava a escrever (e de que reproduzimos acima  uma parte substancial), para o blogue "Caminhos da Memória", uma promessa que tinha feito, "a título excepcional"... Um dos autores que alimentava esse blogue era justamente a Diana Andringa. [Este blogue deixou de estar ativo a partir de 16 de maio de 2010, embora esteja "on line" e seja consultável.]

Falou-me por alto da Op Tridente, e de vários nomes do seu tempo: Cavaleiro Ferreira, Barão da Cunha, Saraiva... Fiquei a saber, por outro lado, que, na altura, em 1962, aquando da crise académica, e quando foi ele expulso de todas escolas do país, tinha a frequência do 5º ano do curso de licenciatura em direito... Só depois de regressar da Guiné, em finais de 1965, é que pôde completar o curso.

(ii) O José Colaço, nosso grã-tabanqueiro, ex-sold trms da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) acrescentou o seguinte a respeito do nosso camarada José Augusto Rocha:

(...) O ex-alferes miliciano Rocha era o meu comandante de pelotão, o 4º, ou seja, o pelotão de armas pesadas. Ele era também o 2º comandante da companhia.

Guardo dele, durante a nossa estada na guerra da Guiné, bem como de todos os oficiais e sargentos e restantes camaradas, as melhores recordações. Mas, para este ambiente funcionar como uma máquina bem oleada, houve, e ainda há, um homem que, além de militar com a sua patente de capitão, via no seu subordinado, no homem que estava à sua frente, outro ser humano como ele... Este homem dá pelo nome de João da Costa Martins Ares, hoje coronel reformado.

O Rocha possivelmente não te contou esta passagem: no início da nossa comissão é recebida uma mensagem dos serviços da PIDE com o seguinte teor, mais ou menos: que o capitão deunciasse o dia a dia do alferes Rocha pois ele era elemento a ser vigiado na sua conduta diária. As palavras não eram exactamente estas mas o sentido era vigiar o Rocha e informar os serviços da PIDE.

O capitão toma a seguinte resolução: chama o alferes Rocha, tem uma conversa séria de homem para homem, mostra-lhe a mensagem; o Rocha, por sua vez, conta-lhe todo o seu passado politico de oposicionista ao governo de Salazar, mas dá um voto de confiança ao capitão, o qual poderá contar com ele e, mais, que nunca seria atraiçoado.

Deste modo, o capitão conseguiu mais um amigo para levar a bom porto aquela nau durante vinte e três meses. (...)


(iii) Mensagem de email do José Augusto Rocha para o nosso editor Luís Graça, com data de 22/10/2009 :

(...) Sensibiliza-me o que diz sobre o depoimento que fiz para os Caminhos da Memória, mas permita-me que lhe diga que o seu depoimento sobre a guerra colonial é uma reflexão corajosa e muito lúcida. Se o termo não fosse controverso, acrescentaria: bela!

Bem, agora sim, estive a ler tudo o que consta do seu blogue, que se reveste de importância decisiva para a história da guerra colonial... ainda por fazer, ou não totalmente feita.

E a leitura que fiz, deu-me conhecimento de que, afinal, havia mesmo já alguém (o José Colaço) que tinha escrito sobre o Como e CCaç 557, ao invés do que digo no meu depoimento… Só me admiro que ele [não] fale do engano da aviação, até porque penso que foi ele que enviou o meu pedido de socorro para o Comando de Catió! ...

(iv) Três dias antes, a 19 de outubro de 2009, o José Augusto Rocha tinha esclarecido, sem qualquer margem para dúvidas, qual era a sua posição face ao nosso blogue e à nossa Tabanca Grande, razão por que emtendi não fazer sentido vir eu depois decidir, a título póstumo, sentá-lo à sombra do nosso poilão... Seria trair a sua confiança, desrespeitar a sua vontade e fazer batota, violando as nossas próprias regras do jogo...

(...) Quanto ao seu blogue, tenho as maiores dificuldades em nele colaborar. Tenho alguma radicalidade quanto a estas coisas da guerra colonial e sempre entendi que os encontros e confraternizações, a propósito dela, tendem a contar só meia memória, a memória boa, vista do lado de cá… Embora não pretenda julgar quem quer que seja, penso que compreender o passado implica um juízo de valor sobre o certo e o errado e, muitas vezes, nessas manifestações de convívio não é possível esconder a nossa discordância em relação ao que se ouve e isso cria um ambiente pouco propício ao encontro. Fui duas vezes a coisas dessas e jurei não mais ir!

(...) Por estas e por outras, quanto à guerra colonial, vou ficar-me pela “curta memória da guerra colonial das Guiné”, a publicar nos Caminhos da Memória, dando, quanto a este capítulo, por encerrado o meu dever de memória (...) 

(v) O último email que troquei com ele, nestes últimos 3 anos, em 8 de maio de 2015, e em que já nos tratávamos por tu, tirou-me as derradeiras ilusões sobre a possibilidade de ele vir um dia aceitar o nosso convite para se juntar ao nosso blogue, enquanto coletivo de ex-combatentes da guerra da Guiné. A sua posição sobre a guerra colonial era firme, coerente e definitiva, aos 76 anos, e só tive que respeitá-la... 

Tenho hoje pena de, não obstante a nossa troca de emails, nunca termos podido, em tempo útil, ou seja, em vida, sentarmo-nos, à mesa para uma conversa mais franca, "tête-à-tête", olhos nos olhos, sobre a nossa experiência enquanto combatentes e as nossas posições político-ideológicas face à guerra colonial:

(...) Quanto ao mais, tudo é mais difícil e diria mesmo impossível. A minha posição em relação à guerra colonial, a única que entendo possível, urgente e inadiável, é a sua denúncia activa, nela tendo um grau de responsabilidade incontornável, todos quantos assistiram e até participaram nos massacres( e depois até foram condecorados por esses feitos em nome da Pátria) de todo um povo cujo único crime foi existir. Ainda hoje vivo memórias horrorizadas de tudo que vi e presenciei e me foi narrado. 

Daí que pense que blogues como os "Camaradas da Guiné”, usando uma expressão de Roland Barthes, “ tendem em instituir-se como exteriores à História” e “é lá onde a História é recusada que ela mais claramente age”. Daí que a minha tribuna só possa ser política e ideológica, o que, como é evidente, não cabe no âmbito neutro e apolítico do teu blogue. Mas será que, bem vistas as coisas, existem blogues apolíticos a falar de acontecimentos de uma guerra, mesmo a propósito de camaradagem entre os seus autores e actores? Conversa longa que não cabe neste escrito. Não estaremos perante uma operação mitológica?

Espero que compreendas e não leves a mal esta minha posição, mas as minhas memórias da Guiné são políticas e como tal estão a ser escritas e delas darei justo testemunho cívico e republicano. (...)


Quando ele morreu, três anos depois, com 79 anos,   eu tive pena de não ter tido feito um esforço adicional, não para o convencer, mas pelo menos, para clarificar a missão (talvez impossível) do nosso blogue e sua íntrínseca ambiguidade. É possível fazer pontes, tentando concilitar o que é inconciliável ? Sem querer entrar em polémica, acho que sim, e é desejável.

Afinal, ao fim destes anos todos (mais de meio século), os combatentes de um lado e do outro nunca chegaram a fazer as pazes... Pôs-se uma pedra no sapato e, pronto!... À boa maneira portuguesa!... Onde está "reconcialiação" entre os inimigos de ontem ? Onde há espaços para falarmos, cada um à vez, das suas experiências de guerra ? O Blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné" provavelmente vai acabar sem o ter conseguido... Vai seguramente acabar um belo dia destes, porque estamos velhos e cansados... Como acabou, demasiado cedo, o blogue "Caminhos da Memória"... Espero, ao menos, que o nosso deixe alguma saudade...

Há 15 anos que o tentamos, recusando as posições radicais do tudo ou nada... Guardo, do José Augusto Rocha, a memória do homem e do cidadão,   afável,  coerente, inteligente, corajoso, solidário e frontal.  Foi seguramente também um dos "bravos do Cachil", ou seja, um camarada nosso. (***)
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Notas do editor:

(*) Alguns dos muitos postes que já publicados sobre o Cachil, ilustrados com fotos:

4 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13188: Memória dos lugares (266): Cachil, o meu suplício de Sísifo durante 30 dias (Benito Neves, ex-fur mil, CCAV 1484, Nhacra e Catió, 1965/67)

 4 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13688: Fotos à procura de uma legenda (36): Uma vacada... no Cachil (Victor Neto / José Colaço, CCAÇ 557, 1963/65)

5 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13692: Álbum fotográfico do Victor Neto, ex-fur mil, CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > Cachil: parte I

(**) Vd. poste de 13 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18842: In Memoriam (318): José Augusto Rocha (1938-2018), ex-alf mil, CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65... Um camarada cuja tribuna só podia ser "político-ideológica"...

(***) Último poste da série > 4 de julho de  2019 > Guiné 61/74 - P19948: (De) Caras (108): Manuel Barros Castro, ex-fur mil enf, CCAÇ 414 (Catió, Bissau e Cabo Verde, 1963/65), natural de Fafe, nosso grã-tabanqueiro nº 793..... Assumiu a paternidade da sua filha guineense, Maria Biai Barros Castro (1964-2009): uma história aqui (re)contada por Jaime Silva

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18842: In Memoriam (318): José Augusto Rocha (1938-2018), ex-alf mil, CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65... Um camarada cuja tribuna só podia ser "político-ideológica"...


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > 1964 > Abrigo "Cova do Comando" da CCAÇ 557 no Cachil. Alguém chamou a esta subunidade, que também participou na Op Tridente (jan/mar 1964), "a esquálida e esgroviada Companhia de Caçadores 557". Por detrás desta foto estão cinquenta e cinco dias a ração de combate, cerca sessenta dias sem mudar de roupa nem tomar banho, e com água racionada para beber

Legenda: a começar da esquerda para a direita o 1.º Cabo Enfermeiro Leiria; 1.º Cabo Radiotelegrafista Joaquim Robalo Dias; Dr. Rogério Leitão, que já partiu; atrás o 1.º Cabo Enfermeiro António Salvador, e por último, de quico, a sair do buraco, eu, Soldado de Transmissões José Colaço. mAs barbas com cerca de 90 dias. Os cabelos já tinham levado um corte para melhor se aguentar o calor. Aquela "divisória" entre o 1.º Cabo Dias e dr. Rogério, é uma cobra que durante a noite se lembrou de nos assaltar o abrigo e que só de manhã com a luz do dia foi detectada a um canto da cova. Foi condenada à morte pela catana de um milícia.

Foto (e legenda): © José Colaço (2015). Todos os direitos reservados. [Edição elegendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mandou-me o José Colaço um email, ontem, às 13h32,  a dizer telegraficamemte o seguinte:

"Morreu o Dr. José Augusto Rocha, ex- alferes miliciano e 2º comandante da companhia de CCAÇ 557, 1963/65."

Os jornais de hoje trouxeram de imediato a triste notícia (Público, Expresso, Diário de Notícias...).

O título do Expresso, digital, na secção Sociedade, dizia, às 13h28:

"Morreu José Augusto Rocha, um dos advogados que defenderam presos políticos". [De entre os inúmeros presos públicos que defendeu, conta-se o nome da Diana Andringa, membro da nossa Tabanca Grande.]

E acrescenta-se:

"Defendeu presos políticos no tempo em que ir a Tribunal Plenário era um risco que exigia coragem e vontade de ser solidário. Licenciou-se na Faculdade de Direito de Coimbra onde viveu a Crise Académica de 1962. O Senado da Universidade expulsou-o por ter organizado um encontro de estudantes contra as ordens do ministro da Educação. Partiu esta madrugada, aos 79 anos."

Em dezembro passado, o presidente da República tinha-o condecorado com a Ordem da Liberdade no Grau de Grande Oficial. Nasceu em Viseu, em 1938. Morreu antes de completar os 80m anos. Vai ser  cremado hoje, sexta-feira, dia 13, no Cemitério dos Olivais, às 17h.

Mais algumas notas biográficas sobre este nosso camarada:

(i) foi director da Associação Académica de Coimbra, em 1962;

(ii) foi expulso de todas as Escolas Nacionais, por dois anos, na sequência da crise académica de 62;

(iii) esteve preso no Forte de Caxias; liberto sem culpa formada, ao fim de 4 meses;

(iv) cumpriu o serviço militar e foi mobilizado para a Guiné, como alferes miliciano (CCAÇ 557, 1963/65);

(v) termina a licenciatura em direito, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, depois de ter regressado do TO da Guiné, em novembro de 1965:

(vi) inscreve-se  na Ordem dos Advogados, em 13 de agosto de 1968;


 2. Blogue "Caminhos da Memória" > Segunda feira, 19 de outubro de 2009 >   Memória breve da história da Guiné > Um texto de José Augusto Rocha

 [Excertos, com a devida vénia...] (*)

A 25 de Novembro de 1963, embarquei no cargueiro «Ana Mafalda» (...), adaptado à pressa para transportar outra e nova carga – homens soldados – rumo à guerra colonial da Guiné. (...)

Nos anos sessenta, a ordem de incorporação e a ida para a guerra colonial estava indisfarçavelmente ligada à repressão política e à PIDE. Esta articulação era particularmente visível em relação ao movimento estudantil e em especial aos seus dirigentes. As medidas de repressão do aparelho do Estado, ao nível das forças armadas, eram várias e diversificadas e iam desde a incorporação em estabelecimentos militares disciplinares de correcção, como o de Penamacor, onde foi internado, por exemplo, o Hélder Costa e o João Morais, até incorporações antecipadas e transferências arbitrárias de quartéis, de acordo com estritas ordens da polícia política (PIDE).

No meu caso, libertado do Forte de Caxias, em Julho de 1963, fui incorporado logo em Setembro, para minha total surpresa, no Regimento de Lanceiros 2, conhecido como o quartel da polícia militar, unidade de confiança do regime político do Estado Novo. Vim a encontrar aí outro dirigente associativo, da Associação dos Estudantes da Faculdade de Letras, o João Paulo Monteiro, filho do exilado político Adolfo Casais Monteiro. A surpresa de imediato foi esclarecida. O treino militar do 1º ciclo, naquele Regimento, era muito duro e de verdadeiro castigo e, logo que terminou, ambos fomos transferidos para a Escola Prática de Infantaria de Mafra, por despacho do então Ministro da Defesa Nacional, General Mário Silva.

Cumpre assinalar que ambos gozávamos de forte simpatia entre os cadetes instruendos e mesmo dos Alferes instrutores do Quadro. Fui chamado ao Comando e aí o Capitão Semedo (irmão do actor de teatro, Artur Semedo) fez questão em dizer que a convocatória queria expressar o seu profundo desacordo pela transferência, mas que ela era exterior ao Regimento e provinda de ordens do poder político. Terminada a instrução em Mafra, fui colocado, como Alferes Miliciano, no Quartel de Caçadores 5, em Lisboa. Esta unidade militar era a unidade da confiança política do governo e comandada pelo Major Portugal, conhecido elemento da Legião Portuguesa. Tal como tinha acontecido no Regimento de Lanceiros 2, cedo gozei de grande simpatia junto dos Alferes Milicianos e do próprio Capitão da Companhia, Capitão Vieitas. Por força disso, fui escolhido pelos oficiais milicianos para integrar a mesa do Comando no dia oficial da Unidade e para em nome deles fazer o discurso oficial.

Não tardou que novo despacho do mesmo General Mário Silva ordenasse a minha transferência para Évora, para a Companhia de Caçadores de Infantaria 557 [CCAÇ 557], rumo à Guiné, sendo que a Companhia donde fui transferido embarcou para um lugar relativamente calmo, a cidade da Beira, em Moçambique.

Esta transferência foi muito controversa, com oposição, por escrito, do próprio Comandante da Companhia. Sincero ou não, por sua vez, o Major Portugal chamou-me ao Comando onde manifestou o apreço que os oficiais tinham por mim e sugeriu que apresentasse uma exposição escrita, que ele a remeteria às autoridades superiores. Recusei e lá fui para a Guiné, no «Ana Mafalda».

Cheguei à Guiné em 3/12/63 e, logo em 14 de Janeiro de 64, a Companhia 557, comandada pelo Capitão João Luis Ares e de que eu era o segundo comandante, por ser o Alferes Miliciano mais classificado, foi integrada na maior operação de toda a guerra colonial, a Operação Tridente, destinada a libertar a Ilha do Como, onde o PAIGC tinha a sua bandeira hasteada, simbolizando a primeira região libertada da Guiné Bissau.

Fui, então, transitoriamente retirado da Companhia e fiquei em Bissau como elo de ligação, para o envio de alimentos e o mais necessário à sua sobrevivência.

Em Bissau, acabei por formar uma espécie de tertúlia no «Café Bento» – à data, frequentado também pelo hoje Major Tomé e pelo advogado Orlando Curto – com o cirurgião do Hospital Militar de Bissau, António Almeida Henriques, que conhecia de Viseu, donde ambos éramos naturais, e o reanimador daquela equipa cirúrgica, António Rosa Araújo, que mais tarde, muitos anos depois, viria a defender, como advogado, no conhecido processo judicial «caso dos hemofílicos», também conhecido por «processo do sangue contaminado».

Estes dois oficiais médicos não escondiam a sua discordância com a guerra colonial (...).

Existe informação vária sobre as batalhas e forças militares que integraram a Operação Tridente, mas nenhuma sobre a CCÇ 557, de que eu era, como referi, o segundo Comandante. A Operação Tridente, assim chamada por integrar os três ramos das forças armadas portuguesa, implicou efectivos na ordem de 1200 homens, aviões, fragatas e lanchas de desembarque. Na rigorosa descrição feita pelo oficial do exército da república da Guiné Bissau, Queba Sambu, a ilha do Como tem uma superfície de 210 kms quadrados, 166 dos quais são lodo das marés, sendo constituída por um litoral de tarrafe, lamaçais que, na maré baixa,  chegam a atingir quatro kms entre a terra firme e os canais, de fluxo e refluxo marítimos. Seguindo-se ao tarrafe, estendem-se as bolanhas (arrozais) com alguns palmares, sendo o centro da ilha de matagal. Nas bolanhas, de largos canais de irrigação, o nevoeiro só permite uma visibilidade de três a cinco metros.

Foi nesta ilha que, no dia 14 de Janeiro de 1964, desembarcaram os 145 soldados e oficiais da CCAÇ 557, numa operação muito arriscada em que os soldados foram salvos de asfixia e atolamento completo no lodo, por cordas lançadas pelas lanchas de desembarque. O médico da Companhia, de nome [Rogério] Leitão – aliás um bom fotógrafo – tirou fotografias do acontecimento, mas o rolo acabaria por ser confiscado e perdeu-se esse testemunho documental.

A operação terminou de forma dramática para as populações da ilha, tendo sido destruídas e queimadas as tabancas (aldeias indígenas) aí existentes, e abatidas centena e meia de vacas e tudo o mais que constituía a forma de viver daquelas populações, como máquinas de costura, camas, roupas, etc…

As tropas regressaram a Bissau e foi deixada na mata do Cachil a CCAÇ 557, num aquartelamento feito à pressa com troncos de palmeiras na vertical e em tudo parecido a um aquartelamento índio. Sem água potável, sem alimentação e expostos à malária e a severas condições de carência e sofrimento, estes homens,  totalmente isolados e comendo meses a fio só rações, dependiam do mundo exterior de uma barcaça que, de vez em quando, ia ao centro de Comando situado na povoação de Catió. Encurralados naquele curto espaço de mata, lamaçais e bolanhas, estes homens viveram uma verdadeira odisseia de isolamento e condições infra-humanas de sobrevivência, acossados por acções de ataques ao quartel e flagelações das forças do PAIGC, entretanto regressadas à Ilha, após a retirada das tropas da Operação Tridente para Bissau.

 (...) Quando o capitão da Companhia foi de férias, vim de Bissau para o quartel de Cachil, para assumir as funções de comando, tomando contacto com homens destruídos psicológica e humanamente por condições tão duras de sobrevivência e onde situações de saúde física e mental se agravavam, dia a dia, à espera do dia redentor de uma substituição por outros efectivos.

Vivia-se este ambiente, quando um dia apareceram, lá no céu, dois aviões [F 86] [no original, Fiats lapso do autor], que, para surpresa nossa, começaram a picar sobre o quartel e a metralhar toda aquela zona, nomeadamente junto ao improvisado cais do rio, onde estacionava a barcaça de ligação a Catió.

Em desespero, ordenei que fossem lançados para o ar very-lights e um grupo avançasse com a bandeira nacional, para mostrar que éramos tropa amiga, ao mesmo tempo que por via rádio comunicava com o Comando de Catió, para que o engano fosse desfeito. Os aviões desapareceram no horizonte e ninguém ficou ferido. Na minha vida já tive dois acidentes graves de viação, mas aviões a jacto a picar sobre a minha cabeça, é acontecimento digno da linguagem própria de uma crónica de Fernão Lopes, quando no cerco a Lisboa, dizia: «era coisa espantosa de ver…».

Junto ao cais, entretanto, ficaram os destroços dos garrafões de vinho, grades de cerveja e rações de combate, que tinham sido abastecidos naquele dia à companhia!!!… O médico da companhia tirou fotografias do ataque, que infelizmente não disponho para ilustrar esta minha memória.

Fui a Bissau e protestei junto do Comando e encontrei-me com os aviadores que me informaram que tinham acabado de chegar à Guiné e faziam uma operação de reconhecimento, pensando que se tratava de forças inimigas… Que eu saiba, só houve dois enganos em ataques da aviação: este e um outro sobre os fuzileiros navais, de que resultaram, tanto quanto me lembro, dois mortos.

Acabámos por ser rendidos por outra Companhia e enviados para a zona da vila de Bafatá, donde regressei a Portugal a 24 de Novembro de 1965, para terminar o curso de Direito, que a minha expulsão da Universidade de Coimbra e de todas as escolas nacionais, por dois anos, tinha impedido de concluir.(...)


3. O José Augusto Rocha e o nosso blogue:
O alf mil Rocha, em Bissau, 1964...
A única foto que o Zé Coleço
tem deke...


(i) Comentário do nosso editor Luís Graça:

(...) Conheci, pessoalmente, o  José Augusto Rocha em 15 de outubro de 2009 (**).  Foi-me apresentado pela Diana Andringa, na estreia, no Doclisboa 2009, do seu filme Dundo, Memória Colonial.

Tivémos um conversa cordial, mas  dise-me logo que não era homem de blogues nem pretendia "alimentar" o nosso banco de memórias...  De resto não gostava de falar da Guiné e da guerra, a não ser no contexto das suas memórias políticas que estava a (ou tencionava) elaborar.. Falou-me do texto que estava a escrever (e de que reproduzimos uma parte substancial), para o blogue "Caminhos da Memória", uma promessa que tinha feito, "a título excepcional"... Um dos autores que alimentava esse blogue era justamente a Diana Andringa.

Falou-me por alto da Op Tridente, e de vários nomes do seu tempo:  Cavaleiro Ferreira, Barão da Cunha, Saraiva...  Fiquei a saber, por outro lado, que, na altura, em 1962, aquando da crise académica, e quando foi ele expulso de todas escolas do país, tinha a frequência do 5º ano do curso de licenciatura em direito... Só depois de regressar da Guiné, em finais de 1965, é que pôde completar o curso.

(ii) O José Colaço, nosso grã-tabanqueiro, ex-sold  trms da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) acrescentou o seguinte a respeito do nosso camarada José Augusto Rocha:

(...) O ex-alferes miliciano Rocha era o meu comandante de pelotão, o 4º,  ou seja,  o pelotão de armas pesadas. Ele era também o 2º comandante da companhia.

Guardo dele, durante a nossa estada na guerra da Guiné, bem como de todos os oficiais e sargentos e restantes camaradas, as melhores recordações. Mas, para este ambiente funcionar como uma máquina bem oleada, houve, e ainda há, um homem que, além de militar com a sua patente de capitão, via no seu subordinado, no homem que estava à sua frente, outro ser humano como ele... Este homem dá pelo nome de João da Costa Martins Ares, hoje coronel reformado.

O Rocha possivelmente não te contou esta passagem: no início da nossa comissão é recebida uma mensagem dos serviços da PIDE com o seguinte teor, mais ou menos: que  o capitão deunciasse o dia a dia do alferes Rocha pois ele era elemento a ser vigiado na sua conduta diária. As palavras não eram exactamente estas mas o sentido era vigiar o Rocha e informar os serviços da PIDE.

O capitão toma a seguinte resolução: chama o alferes Rocha, tem uma conversa séria de homem para homem, mostra-lhe a mensagem; o Rocha, por sua vez, conta-lhe todo o seu passado politico de oposicionista ao governo de Salazar, mas dá um voto de confiança ao capitão, o qual poderá contar com ele e, mais, que nunca seria atraiçoado.

Deste modo, o capitão conseguiu mais um amigo para levar a bom porto aquela nau durante vinte e três meses. (...) (**)

(iii)  Mensagem de email do José Augusto Rocha para o nosso editor Luís Graça, com data de 22/10/2009 :

(...) Sensibiliza-me o que diz sobre o depoimento que fiz para os Caminhos da Memória, mas permita-me que lhe diga que o seu depoimento sobre a guerra colonial é uma reflexão corajosa e muito lúcida. Se o termo não fosse controverso, acrescentaria: bela!

Bem, agora sim, estive a ler tudo o que consta do seu blogue, que se reveste de importância decisiva para a história da guerra colonial... ainda por fazer, ou não totalmente feita.

E a leitura que fiz, deu-me conhecimento de que, afinal, havia mesmo já alguém (o José Colaço) que tinha escrito sobre o Como e CCaç 557, ao invés do que digo no meu depoimento… Só me admiro que ele [não] fale do engano da avi(ação, até porque penso que foi ele que enviou o meu pedido de socorro para o Comando de Catió! ...) (***)

 (iv) Três dias antes, a 19 de outubro de 2009, o José Augusto Rocha tinha esclarecido, sem qualquer margem para dúvidas, qual era a sua posição face ao nosso blogue e à nossa Tabanca Grande,  razão por que não faria sentido eu vir agora decidir,  a título póstumo, sentá-lo à sombra do nosso poilão... Seria trair a sua confiança, desrespeitar a sua vonatde e fazer batota, violando as nossas próprias regras do jogo... O José Augusto Rocha nunca faria nem fará parte do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. 

(...) Quanto ao seu blogue, tenho as maiores dificuldades em nele colaborar. Tenho alguma radicalidade quanto a estas coisas da guerra colonial e sempre entendi que os encontros e confraternizações, a propósito dela, tendem a contar só meia memória, a memória boa, vista do lado de cá… Embora não pretenda julgar quem quer que seja, penso que compreender o passado implica um juízo de valor sobre o certo e o errado e, muitas vezes, nessas manifestações de convívio não é possível esconder a nossa discordância em relação ao que se ouve e isso cria um ambiente pouco propício ao encontro. Fui duas vezes a coisas dessas e jurei não mais ir! 

(...) Por estas e por outras, quanto à guerra colonial, vou ficar-me pela “curta memória da guerra colonial das Guiné”, a publicar nos Caminhos da Memória, dando, quanto a este capítulo, por encerrado o meu dever de memória (...) (***)

(v) O último email que troquei com ele, nestes últimos 3 anos, em 8 de maio de 2015, e em que já nos tratávamos por tu, tirou-me as derradeiras ilusões sobre a possibilidade de ele vir um dia aceitar o nosso convite para se juntar ao nosso blogue, enquanto coletivo de ex-combatentes da guerra da Guiné. A sua posição sobre a guerra colonial era firme, coerente e definitiva, aos 76 anos, e só tive que respeitá-la... Tenho hoje pena de, não obstante a nossa  troca de emails, nunca termos podido, em tempo útil, ou seja, em vida, sentarmo-nos, à mesa para  uma conversa mais franca, "tête-à-tête", olhos nos olhos, sobre a nossa experiência enquanto combatentes e as nossas posições político-ideológicas face à guerra colonial:

(...) Quanto ao mais, tudo é mais difícil e diria mesmo impossível. A minha posição em relação à guerra colonial, a única que  entendo  possível, urgente e inadiável, é a sua denúncia activa, nela tendo um grau de responsabilidade incontornável, todos quantos assistiram e até participaram nos massacres( e depois até foram condecorados por esses feitos em nome da Pátria) de todo um povo cujo único crime foi existir. Ainda hoje vivo memórias horrorizadas de tudo que vi e presenciei e me foi narrado. Daí que pense que blogues como os "Camaradas da Guiné”, usando uma expressão de Roland Barthes,  “ tendem em instituir-se como exteriores à História” e “é lá onde a História é recusada que ela mais claramente age”. Daí que a minha tribuna só possa ser política e ideológica, o que, como é evidente, não cabe no âmbito neutro e apolítico do teu blogue. Mas será que, bem vistas as coisas, existem blogues apolíticos a falar de acontecimentos de uma guerra, mesmo a propósito de camaradagem entre os seus autores e actores? Conversa longa que não cabe neste escrito. Não estaremos perante uma operação mitológica?

Espero que compreendas e não leves a mal esta minha posição, mas as minhas memórias da Guiné são políticas e como tal estão a ser escritas e delas darei justo testemunho cívico e republicano. (...)

Não, não lhe levei a mal... Sei ver, ouvir, ler, parar, escutar... Ou penso que sei... Mas confesso que nunca lhe respondi, por falta de oportunidade ou talvez por laxismo, lassidão, cansaço... E hoje, que ele morreu, eu tenho pena de não ter feito um esforço adicional, não para o convencer, mas pelo menos, para clarificar  a missão (talvez impossível) do nosso blogue e sua íntrínseca ambiguidade.  É possível fazer pontes, tentando concilitar o que é inconciliável ? Às vezes também tenho dúvidas... Mas há 14 anos que o tentamos, recusando as posições radicais...

Aqui fica, entretanto, a posição, intelectualmente honesta, do nosso camarada José Augusto Rocha  (1938.2018) cuja memória eu faço questão de honrar. Porque a função do blogue não é julgar, muito menos a discriminar os camaradas que combateram na Guiné... E o José Augusto Rocha foi um combatente e um camarada...

Para a sua família e amigos mais  íntimos, incluindo os seus camaradas de companhia. e nossos grã-tabanqueiros José Colaço e Francisco Santos, endereçamos os nossos votos de pesar e de solidariedade na dor. (ªªª)
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