sábado, 14 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5267: História de vida (25): Um homem no Cachil, Ilha do Como, CCAÇ 557, 1964 (José Augusto Rocha)







Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como > 1964 > CCAÇ 557 (1963/65) > Construção, em 1964, do aquartelamento de Cachil. Fotocópias de fototografias do Dr. Rogério da Silva Leitão (*). Ficamos na expectativa de, em breve, as poder substituir por cópias dos originais.

1. Meu caro camarada e Dr. Rocha:

Foi um feliz acaso termo-nos encontrado na exibição do último filme da Diana[, no DocLisboa 2009]… Tomei boa nota dos dados que me deu a seu respeito, e nomeadamente no que concerne à experiência da guerra colonial da Guiné… A Diana teve a gentileza de me facultar o seu mail que só vou usar para este efeito. Tomei a liberdade de dar conhecimento da sua existência às pessoas que fazem e lêem o blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné (**)…

Temos, entre os membros da nossa tertúlia (ou Tabanca Grande), que já vão em cerca de 4 centenas, pelo menos dois homens da sua CCAÇ 557: José Colaço e o Francisco Santos. Por sua vez, o Jorge Cabral, que foi comandante do Pel Caç Nat 63 (Fá e Missirá, 1969/71) conhece-o de outras andanças, a advocacia (disse-me que partilharam um escritório, em 1974). Temos, de resto, mais advogados e outros juristas, no nosso blogue…

O José Colaço, que era soldado de transmissões, escreveu a seu respeito um pequeno texto de que lhe dou conhecimento, em anexo.

Acabo de ler o seu interessante depoimento, sobre os tempos difíceis, de brasa, que foram aqueles em que, expulso de Coimbra em 1962, fez a tropa e foi mobilizado, em 1963, para a Guiné (e logo para o Como)…

O público-alvo do blogue Caminhos da Memória não é exactamente o mesmo do meu/nosso blogue, mas gostaria de o ver também publicado no nosso espaço… Possivelmente vou que ter a dupla autorização do autor e dos editores (na redacção há dois membros do nosso blogue, o João Tunes e a Diana Andringa)...

Desde há cerca de 5 anos e meio que tenho tentado criar um espaço de partilha de memórias entre todos os antigos combatentes da guerra colonial na Guiné (1963/74), incluindo os antigos guerrilheiros do PAIGC (cuja esperança de vida é mais baixa do que a nossa, e cuja cultura é ainda largamente oral)... Temos uma média de 1500 páginas visitadas, mais de 5100 postes publicados, e 1,3 milhões de páginas visitadas... Na nossa Tabanca Grande há também um lugar para si (sei que não é fã destas lides bloguísticas, mas também, em relação à guerra colonial, temos todos um dever de memória…).

Um Alfa Bravo (abraço) para si. Luís Graça

2. Mensagem, de 22/10/2009, enviada por José Augusto Rocha, advogado, ex-Alf Mil, CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) (**)


Estimado Luís Graça,

Às vezes as coisas acontecem bem, e o acaso de o ter conhecido na exibição do Dundo, pela mão da Diana, foi mesmo um feliz acaso!... Neste declinar da longa estrada da vida, já não espero muito coisas boas, mas reivindico que a sorte da vida também não me traga as más… Por isso, quando as boas surgem, é sempre como se fosse uma chuva úbere que amacia a sede lancinante da terra ressequida…

Sensibiliza-me o que diz sobre o depoimento que fiz para os Caminhos da Memória, mas permita-me que lhe diga que e o seu depoimento sobre a guerra colonial é uma reflexão corajosa e muito lúcida. Se o termo não fosse controverso, acrescentaria: bela!

Bem, agora sim, estive a ler tudo o que consta do seu blogue, que se reveste de importância decisiva para a história da guerra colonial... ainda por fazer, ou não totalmente feita.


E a leitura que fiz, deu-me conhecimento de que, afinal, havia mesmo já alguém (o José Colaço)(***) que tinha escrito sobre o Como e CCaç 557, ao invés do que digo no meu depoimento… Só me admiro que ele [não] fale do engano da aviação, até porque penso que foi ele que enviou o meu pedido de socorro para o Comando de Catió!!!,

Envio-lhe a digitalização das fotografias, que são mera fotocópia do original em posse do médico da 557, Rogério Leitão, médico cardiologista em Aveiro (*) e que era um dos raros, embora moderado, apoiantes da guerra, em toda a Companhia 557. Ele tem uma boas fotografias da guerra e do Como, inclusive do engano do bombardeamento da aviação. Não sei se ainda é vivo, mas se conseguisse que lhe desse uma cópia, seria ouro sobre azul…

Segue um abraço(Alfa?)

José Augusto Rocha


Três dias antes, a 19, tinnha-me mandado o seguinte mail, de que reproduzo alguns excertos:

Estimado Luís Graça,

Obrigado pela sua mensagem e desde já refiro que tenho muito gosto em que fique com o meu mail, para eventuais outros contactos.

Sim, lembro-me bem do Jorge Cabral e do José Colaço. O Colaço é um bom amigo, talvez o companheiro de armas que mais me marcou na CÇAÇ 557. Se todos fossem como ele, não havia guerras ao cima da terra! Gostaria de ter o mail dele para o contactar. O que ele conta sobre a PIDE, é verdade, mas mais houve… e contei sempre com a solidariedade do magnífico companheiro que foi o hoje coronel, João Luis Ares.

Por mim, desde já pode dispor do meu singelo depoimento, se achar que reveste algum interesse para o seu blog.

Quanto ao seu blog, tenho as maiores dificuldades em nele colaborar. Tenho alguma radicalidade quanto a estas coisas da guerra colonial e sempre entendi que os encontros e confraternizações, a propósito dela, tendem a contar só meia memória, a memória boa, vista do lado de cá… Embora não pretenda julgar quem quer que seja, penso que compreender o passado implica um juízo de valor sobre o certo e o errado e muitas vezes nessas manifestações de convívio, não é possível esconder a nossa discordância em relação ao que se ouve e isso cria um ambiente pouco propício ao encontro. Fui duas vezes a coisas dessas e jurei não mais ir!

(...) Por estas e por outras, quanto à guerra colonial, vou ficar-me pela “curta memória da guerra colonial das Guiné”, a publicar nos Caminhos da Memória, dando, quanto a este capítulo, por encerrado o meu dever de memória…

Desejo-lhe as melhores felicidades para o seu blog.

Um abraço,

José Augusto Rocha



3. Um texto de José Augusto Rocha, devidamente autorizado autor,
originalmente publicado em
Caminhos da Memória > 19.Out.209 > Memória breve da Guerra Colonial

A 25 de Novembro de 1963, embarquei no cargueiro Ana Mafalda(1, adaptado à pressa para transportar outra e nova carga – homens soldados – rumo à guerra colonial da Guiné. A partir desta data, como que começou outro tempo na minha vida e, tantos anos passados, vem dar testemunho breve da memória daquela guerra o ex-tenente miliciano, José Augusto Rocha.

Fá-lo em condições privilegiadas de um amadurecimento de tempo passado, ou seja, potenciado por aquilo que um dia tão bem recordou Eduardo Lourenço, citando Teixeira de Pascoais: «o futuro é a aurora do passado». Na verdade, desde aquela longínqua data de 1963 até aos dias de hoje, já lá vai muito futuro, o suficiente para re-iluminar uma vivência pessoal que agora transmito pela primeira vez e que sei comporta elementos desconhecidos daquela guerra.

Nos anos sessenta, a ordem de incorporação e a ida para a guerra colonial estava indisfarçavelmente ligada à repressão política e à PIDE. Esta articulação era particularmente visível em relação ao movimento estudantil e em especial aos seus dirigentes. As medidas de repressão do aparelho do Estado, ao nível das forças armadas, eram várias e diversificadas e iam desde a incorporação em estabelecimentos militares disciplinares de correcção, como o de Penamacor, onde foi internado, por exemplo, o Hélder Costa e o João Morais, até incorporações antecipadas e transferências arbitrárias de quartéis, de acordo com estritas ordens da polícia política (PIDE).

No meu caso, libertado do Forte de Caxias, em Julho de 1963, fui incorporado logo em Setembro, para minha total surpresa, no Regimento de Lanceiros 2, conhecido como o quartel da polícia militar, unidade de confiança do regime político do Estado Novo. Vim a encontrar aí outro dirigente associativo, da Associação dos Estudantes da Faculdade de Letras, o João Paulo Monteiro, filho do exilado político
Adolfo Casais Monteiro. A surpresa de imediato foi esclarecida. O treino militar do 1º ciclo, naquele Regimento, era muito duro e de verdadeiro castigo e, logo que terminou, ambos fomos transferidos para a Escola Prática de Infantaria de Mafra, por despacho do então Ministro da Defesa Nacional, General Mário Silva.

Cumpre assinalar que ambos gozávamos de forte simpatia entre os cadetes instruendos e mesmo dos Alferes instrutores do Quadro. Fui chamado ao Comando e aí o Capitão Semedo (irmão do actor de teatro,
Artur Semedo) fez questão em dizer que a convocatória queria expressar o seu profundo desacordo pela transferência, mas que ela era exterior ao Regimento e provinda de ordens do poder político.

Terminada a instrução em Mafra, fui colocado, como Alferes Miliciano, no Quartel de Caçadores 5, em Lisboa. Esta unidade militar era a unidade da confiança política do governo e comandada pelo Major Portugal, conhecido elemento da
Legião Portuguesa. Tal como tinha acontecido no Regimento de Lanceiros 2, cedo gozei de grande simpatia junto dos Alferes Milicianos e do próprio Capitão da Companhia, Capitão Vieitas. Por força disso, fui escolhido pelos oficiais milicianos para integrar a mesa do Comando no dia oficial da Unidade e para em nome deles fazer o discurso oficial.

Não tardou que novo despacho do mesmo General Mário Silva ordenasse a minha transferência para Évora, para a Companhia de Caçadores de Infantaria 557 [ CCAÇ 557,], rumo à Guiné, sendo que a Companhia donde fui transferido embarcou para um lugar relativamente calmo, a cidade da Beira, em Moçambique.

Esta transferência foi muito controversa, com oposição, por escrito, do próprio Comandante da Companhia. Sincero ou não, por sua vez, o Major Portugal chamou-me ao Comando onde manifestou o apreço que os oficiais tinham por mim e sugeriu que apresentasse uma exposição escrita, que ele a remeteria às autoridades superiores. Recusei e lá fui para a Guiné, no Ana Mafalda.

Cheguei à Guiné em 3/12/63 e, logo em 14 de Janeiro de 64, a Companhia 557, comandada pelo Capitão João Luis Ares e de que eu era o segundo comandante, por ser o Alferes Miliciano mais classificado, foi integrada na maior operação de toda a guerra colonial, a Operação Tridente, destinada a libertar a Ilha do Como, onde o PAIGC tinha a sua bandeira hasteada, simbolizando a primeira região libertada da Guiné Bissau.

Fui, então, transitoriamente retirado da Companhia e fiquei em Bissau como elo de ligação, para o envio de alimentos e o mais necessário à sua sobrevivência.

Guiné > Bissau > O Café Bento > Maio de 1965 > O nosso editor Virgínio Briote na esplanada do Bento> Quem não conheceu a 5ª Rep ? Em Bissau todos os caminhos iam lá ter, aos mentideros da guerra... Mas também era um lugar de tertúlias...

Foto: Cortesia de Virgínio Briote > Blogue
Guiné Ir e Voltar, Tantas Vidas

Em Bissau, acabei por formar uma espécie de tertúlia no Café Bento – à data, frequentado também pelo hoje Major Tomé e pelo advogado Orlando Curto – com o cirurgião do Hospital Militar de Bissau, António Almeida Henriques, que conhecia de Viseu, donde ambos éramos naturais, e o reanimador daquela equipa cirúrgica, António Rosa Araújo, que mais tarde, muitos anos depois, viria a defender, como advogado, no conhecido processo judicial «caso dos hemofílicos», também conhecido por «processo do sangue contaminado» [, em 1995].

Estes dois oficiais médicos não escondiam a sua discordância com a guerra colonial e deles – e da guerra – vou contar duas significativas memórias, para, de seguida, passar à Operação Tridente.
Um dia, as tropas portuguesas, numa operação

não longe de Bissau, acabaram por capturar um dirigente da guerrilha que, gravemente ferido, acabou por dar entrada no hospital militar [, HM 241, foto à direita], onde foi operado pelo Almeida Henriques. A PIDE montou uma segurança especial no hospital e o Almeida Henriques e o Rosa Araújo tudo fizeram para retardar a alta do prisioneiro, que iria cair nas mãos da PIDE. Até que um dia foi marcada a sua saída para o dia seguinte. Quando na madrugada desse dia Almeida Henriques foi ver o prisioneiro, este estava cheio de sangue, com os intestinos todos fora da barriga, que ele tinha aberto com uma lâmina de barbear para, assim, evitar – o que conseguiu – os interrogatórios daquela polícia.

António Rosa Araújo – infelizmente já ceifado pela morte – era um cidadão exemplar, cheio de determinação e coragem, com quem vim a fazer uma das melhores amizades da minha vida.

O Movimento Nacional Feminino fazia umas incursões femininas à Guiné, para fazer a chamada acção psicossocial e retemperar as solidões de muitos elementos do exército… Um dia, coube a vez da própria presidente do movimento – Cecília Supico Pinto – ir a Bissau e visitar o Hospital, acompanhada pelo Comandante em Chefe, Brigadeiro Louro de Sousa. Logo que chegaram, este mandou chamar o oficial de dia, na circunstância o Rosa Araújo, que se recusou a comparecer, alegando afazeres médicos, tendo enviado, em substituição, o sargento de dia. Foi um evento considerado da maior gravidade – grande bronca! – e o Rosa Araújo foi de castigo para o mato, donde regressou passados alguns dias, por ser insubstituível no Hospital.

Um terceiro testemunho e este bem diferente, diz respeito aos primeiros sintomas de pública contestação da própria guerra. Um dia fui abordado no sentido de poder auxiliar um Capitão que se recusava a continuar a combater nas condições que existiam. Esse capitão era o Barão da Cunha, que contava com a solidariedade de um outro, o Capitão Cavaleiro. Com ele, dirigi-me ao Notário de Bissau e aí foi feita uma procuração em nome de Mário Soares e, penso, não tenho a certeza, que também de Salgado Zenha, para que o pudessem patrocinar, para a hipótese de vir a ser detido, o que logo aconteceu.

Este oficial veio preso para Lisboa e, ao que me informaram, encarcerado na Trafaria, mas nunca soube dos desenvolvimentos posteriores que este caso assumiu, mas que considero da maior importância, porque marca o início de uma contestação militar mais vasta e intensa que viria a acontecer.

Existe informação vária sobre as batalhas e forças militares que integraram a Operação Tridente, mas nenhuma sobre a CCAÇ 557, de que eu era, como referi, o segundo Comandante.

A Operação Tridente, assim chamada por integrar os três ramos das forças armadas portuguesas, implicou efectivos na ordem de 1200 homens, aviões, fragatas e lanchas de desembarque. Na rigorosa descrição feita pelo oficial do exército da república da Guiné Bissau, Queba Sambu, a ilha do Como tem uma superfície de 210 kms quadrados, 166 dos quais são lodo das marés, sendo constituída por um litoral de tarrafo, lamaçais que, na maré baixa chegam a atingir quatro kms entre a terra firme e os canais, de fluxo e refluxo marítimos. Seguindo-se ao tarrafo, estendem-se as bolanhas (arrozais) com alguns palmares, sendo o centro da ilha de matagal. Nas bolanhas, de largos canais de irrigação, o nevoeiro só permite uma visibilidade de três a cinco metros.

Foi nesta ilha que, no dia 14 de Janeiro de 1964, desembarcaram os 145 soldados e oficiais da CCAÇ 557, numa operação muito arriscada em que os soldados foram salvos de asfixia e atolamento completo no lodo, por cordas lançadas pelas lanchas de desembarque (****). O médico da Companhia, de nome Leitão – aliás um bom fotógrafo – tirou fotografias do acontecimento, mas o rolo acabaria por ser confiscado e perdeu-se esse testemunho documental.

A operação terminou de forma dramática para as populações da ilha, tendo sido destruídas e queimadas as tabancas (aldeias indígenas) aí existentes, e abatidas centena e meia de vacas e tudo o mais que constituía a forma de viver daquelas populações, como máquinas de costura, camas, roupas, etc…

As tropas regressaram a Bissau e foi deixada na mata do Cachil a CCAÇ 557, num aquartelamento feito à pressa com troncos de palmeiras na vertical e em tudo parecido a um aquartelamento índio. Sem água potável, sem alimentação e expostos à malária e a severas condições de carência e sofrimento, estes homens totalmente isolados e comendo meses a fio só rações, dependiam do mundo exterior de uma barcaça que, de vez em quando, ia ao centro de Comando situado na povoação de Catió.



Encurralados naquele curto espaço de mata, lamaçais e bolanhas, estes homens viveram uma verdadeira odisseia de isolamento e condições infra-humanas de sobrevivência, acossados por acções de ataques ao quartel e flagelações das forças do PAIGC, entretanto regressadas à Ilha, após a retirada das tropas da Operação Tridente para Bissau. [Foto à esquerda: Cachil> 1966> Interior do Aquartelamento
Foto: © Benito Neves (2008). Direitos reservados].

Embora oficialmente conste que a Operação Tridente (****) desalojou o inimigo da ilha do Como, a verdade é que a guerrilha a retomou e actuou nessa operação de acordo com a flexibilidade de ir e vir, evitando sempre o combate frontal e concretizando no terreno a subtil definição do guerrilheiro de Che Guevara, segundo a qual «o guerrilheiro é o jesuíta da guerra, quer isto dizer que os elementos essenciais da guerrilha são a surpresa, a perfídia e a acção nocturna.»(2).

Quando o capitão da Companhia foi de férias, vim de Bissau para o quartel de Cachil, para assumir as funções de comando, tomando contacto com homens destruídos psicológica e humanamente por condições tão duras de sobrevivência e onde situações de saúde física e mental se agravavam, dia a dia, à espera do dia redentor de uma substituição por outros efectivos.

Vivia-se este ambiente, quando um dia apareceram, lá no céu, dois aviões Fiat que, para surpresa nossa, começaram a picar sobre o quartel e a metralhar toda aquela zona, nomeadamente junto ao improvisado cais do rio, onde estacionava a barcaça de ligação a Catió.

Em desespero, ordenei que fossem lançados para o ar very-lights e um grupo avançasse com a bandeira nacional, para mostrar que éramos tropa amiga, ao mesmo tempo que por via rádio comunicava com o Comando de Catió, para que o engano fosse desfeito. Os aviões desapareceram no horizonte e ninguém ficou ferido. Na minha vida já tive dois acidentes graves de viação, mas aviões a jacto, a picar sobre a minha cabeça, é acontecimento digno da linguagem própria de uma crónica de Fernão Lopes, quando no cerco a Lisboa, dizia: «era coisa espantosa de ver…».


Junto ao cais, entretanto, ficaram os destroços dos garrafões de vinho, grades de cerveja e rações de combate, que tinham sido abastecidos naquele dia à companhia!!!… O médico da companhia tirou fotografias do ataque, que infelizmente não disponho para ilustrar esta minha memória.

Fui a Bissau e protestei junto do Comando e encontrei-me com os aviadores que me informaram que tinham acabado de chegar à Guiné e faziam uma operação de reconhecimento, pensando que se tratava de forças inimigas… Que eu saiba, só houve dois enganos em ataques da aviação: este e um outro sobre os fuzileiros navais, de que resultaram, tanto quanto me lembro, dois mortos.

Acabámos por ser rendidos por outra Companhia e enviados para a zona da vila de Bafatá, donde regressei a Portugal a 24 de Novembro de 1965, para terminar o curso de Direito, que a minha expulsão da Universidade de Coimbra e de todas as escolas nacionais, por dois anos, tinha impedido de concluir.

Assim, também concluo, em prosa necessariamente enxuta e breve, esta crónica da guerra da Guiné, que espero ampliar nas minhas memórias, em curso de escrita.

*************

(1) – O navio Ana Mafalda e o Ana Rita pertenciam à família dos Melos e os nomes deles correspondiam a nomes das suas netas… Estes barcos transportavam da Guiné amendoím (mancarra, em linguagem guineense) que era produzido na zona de população de etnia Fula, por isso, penso que o chamado
Óleo Fula, que anda por aí no mercado, tem a ver com esta origem do amendoím.

(2) – «Manual do Guerrilheiro», Che Guevara.

(3) – As fotografias dizem respeito à construção do quartel do Cachil e nelas se pode ver também os atolamentos de viaturas Unimog e construções em zinco dos dormitórios, bem assim os alagamentos de toda a zona do quartel.


[ Revisão / fixação de texto / título / bold a cores: L.G.]

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 13 de Novembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P5264: Os nossos médicos (8): O Dr. Rogério da Silva Leitão, aveirense, cardiologista, CÇAÇ 557, Cachil, Como, 1963/65 (José Colaço)

(**) Vd. poste de 18 de Outubro de 2009 >
Guiné 63/74 - P5125: José Augusto Rocha: da crise estudantil de 1962 à Op Tridente, Ilha do Como, 1964 (José Colaço / Luís Graça)

(***) Vd. postes de:

2 de Junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2912: Tabanca Grande (73): José Botelho Colaço, ex-Soldado de Trms da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)

20 de Junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2970: Ilha do Como, Cachil, Cassacá, 1964: O pós-Operação Tridente (José Colaço)

9 de Outubro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3287: Controvérsias (2): Repor a realidade vivida, CCAÇ 557, Cachil, Como, Janeiro-Novembro de 1964 (José Colaço)

19 de Outubro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3334 O meu baptismo de fogo (14): Cachil, Ilha do Como, meia-noite, 25 ou 26 de Janeiro de 1964 (José Colaço)

(****) Sobre a Op Tridente (ou Batalha do Como), vd. postes de:

28 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2892: A verdade e a ficção (2): Ilha do Como, Op Tridente: Queres vender a tua água ? Dou-te 100, dou-te 200 pesos (Anónimo)

27 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2889: A verdade e a ficção (1): Op Tridente, Ilha do Como, Jan / Mar 1964 (Mário Dias)

23 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2874: Um dia na Ilha do Como: Operação Tridente, Fevereiro de 1964 (Valentim Oliveira, CCAV 489/BCAV 490)

15 de Janeiro de 2006 >
Guiné 63/74 - CDLI: Falsificação da história: a batalha da Ilha do Como (Mário Dias)

15 de Dezembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2352: Ilha do Como: os bravos de um Pelotão de Morteiros, o 912, que nunca existiu... (Santos Oliveira)

7 comentários:

Anónimo disse...

Os diversos pontos de vista de cada interveniente no blog Luis Graça, embora alguns repetitivos, vão concerteza com o tempo tornar-se o que de mais completo se escreveu sobre a guerra do ultramar.

No caso de José Augusto Rocha, sobre a observação de Che Guevara, inspirando a guerra de guerrilha na actuação de JESUITAS, torna este post um dos mais emblemáticos post deste blog. A par de outros pormenores.

Antº Rosinha

Anónimo disse...

Caro Sr.António Rosinha. Como um dos que por lá andou nos tais bandos armados do Sr.Gen.Bruno vejo como muito importante a referência que o autor faz ao escrever:"Encurralados naquele curto espaco de mata,lamacais e bolhanhas,estes homens viveram uma verdadeira odisseia de isolamento e condicoes infra-humanas de sobrevivência,acossados por accoes de ataques ao quartel e flagelacoes das forcas do PAIGC,entretanto regressadas á ilha,após a retirada das tropas da Operacao Tridente".................Quanto ás ideias teóricas de Guevara,estas acabaram por ter muito em comum com as ideias teóricas coloniais de Salazar.Ambas,nos aspectos prácticos,falharam completamente! Concordo em que referëncias aos membros da Companhia de Jesus possam ser menos convenientes para os...mais sensíveis.Mas,para os que como eu,e tantos outros,que fui educado(bem?mal?)desde a minha primeira classe até ao entao 5 ano liceal(tive que continuar no pecaminoso Liceu Frances de Lisboa,por entao essa ordem religiosa só dispor de classes até ao 5 ano)as referências aos "Irmaos",mesmo que feitas com ironias várias nao chegam para ofender.E,se me for permetido desenvolver um raciocínio que há muito me preocupa,relacionado com isto dos "internacionalismos",estas ordens religiosas(a que me educou está presente em mais de vinte países com os seus colégios)elas concorrem de facto com outros tipos de amadores ditos....internacionalistas.Mas mais concretamente,para evitar mal entendidos que de modo algum procuro,facto é que (e já que se falou de Guevara) Tanto Fidel de Castro como o seu irmaozinho agora no "poleiro",foram.em pequeninos.educados por uma destas Ordens Religiosas Internacionais.Com companheiros de carteira deste tipo........José Belo.

Anónimo disse...

José Belo,

exactamente por ser do corriculum de Fidel Castro ter sido educado por Jesuitas, mais me chamou a atenção aquela obsevação de José Augusto Rocha sobre os Jesuitas e a guerra de guerrilha.

São exactamente os imensos pontos de vista neste blog, inclusive o que tu acabas de afirmar: o falhanço de Guevara igual ao falhanço de Salazar, que fazem esquecer tudo o que outros que nunca viveram a guerra tentam explicar.

Antº Rosinha

Anónimo disse...

Em 1964 já voavam Fiats na Guiné?

Miguel disse...

Embora não me agrade muito esclarecer anónimos, dado o facto de a pergunta ser inócua e não ofender ninguém deixo algumas achegas. Os Fiats iniciaram a sua actividade na Guiné em Abril de 1966, informação que obtive no Google porque não vivi esse tempo na Guiné nem disponho de uma arquivo histórico pessoal. Sugiro a consulta ao post que aqui indico, e aos respectivos comentários, que poderão elucidar: http://especialistasdaba12.blogspot.com/2009/03/post-867-o-fiat-g-91-r4-5407.html
ou simplesmente ir àquele blogue e procurar o post 867.
Se o episódio ocorreu antes de Abril de 1966, naturalmente não poderiam ser Fiats G91 os intervenientes neste acontecimento.
Miguel Pessoa

Anónimo disse...

Apresento as minhas desculpas a todos, em especial ao José A. Rocha por não ter assinado o comentário dos Fiats. O que se falava na altura era nos F-84 (ou F-86?), que alguns asseguravam partirem do Sal para incursões na Guiné.De facto,só ouvi falar nos Fiats em meados de 65 e vi-os em treinos (julgo) sobre a BA12.
vbriote

Colaço disse...

Este engano entre os F86 e os fiats já foi esclarecido com o autor do poste, eu também por engano uma vez chamei aos F86, F16 o que seria maravilhoso termos F16 em 1964 a combater na guerra da Guine.