sábado, 14 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5269: Historiografia da presença portuguesa em África (30): O primeiro fotógrafo de guerra português andou no Cuor, Guiné, em 1908! (Beja Santos)



1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52,Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Novembro de 2009:

Camaradas,

O primeiro fotógrafo de guerra português andou no Cuor, Guiné, em 1908!

Eu nem queria acreditar. Pela primeira vez, via a fotografia de Infali Soncó, a campanha do Cuor, com povoações que percorri todos os dias. Acabo de telefonar ao bisneto, Abudurrame Serifo Soncó, quando lhe falei no seu ancestral, deu um berro do outro lado. Quem combateu no Cuor, quem junta fotografias da Guiné, não ficará indiferente a estes álbuns fotográficos, reunidos na mesma edição. É uma pedra preciosa, este livro. Acabo de o adquirir e não resisti a dar a notícia, incluindo as páginas inéditas que já escrevi na Mulher Grande (é o pior jogo de cintura de toda a minha vida, a minha heroína dá cabo de mim, a dormir e acordado).

Proponho que comprem um tesouro!



Não acreditei no que estava a folhear. Os conteúdos conhecia-os bem, abaixo se transcrevem algumas páginas do livro que tenho em preparação e em que falo na campanha do Cuor, em 1908, contra a rebelião de Infali Soncó. O que eu inteiramente desconhecia eram as preciosidades do fotógrafo José Henriques de Melo, álbuns que ele preparou em 1907 e 1908, imagens de paz e imagens das campanhas de “pacificação” no Cuor e na península de Bissau.

É um volume espantoso da autoria de Mário Matos e Lemos (conheci-o na Guiné, em 1991, era adido cultural) e Alexandre Ramirez. Temos uma excelente introdução sobre o fotógrafo, a Guiné do governador Muzanty, a descrição das campanhas, a Guiné depois das campanhas, os relatos da imprensa da época, etc. Adquiri este livro hoje, na Livraria Ferin (213424422 / 213469033 ou livraria.farin@ferin.pt).

É um livro espantoso, uma guloseima para bibliófilos. Malta como o Jorge Cabral, o Henrique Matos Francisco ou Joaquim Mexia Alves vão ficar assombrados quando virem o nosso Cuor a ferro e fogo. Até parece Mato de Cão e a canhoneira Cacheu e o Capitania. Custa 25 euros e a edição de 500 exemplares. Não esperem pelo dia de amanhã. Vou ler com cuidado e depois conto. Agora, junto o texto que preparei para o livro Mulher Grande.

Primeiro, a partir da página 110:

“As prendas da Benedita são anunciadas ao telefone, como disse, vou afogueado até ao Mucifal, chegou a invernia, ela anda debaixo das arcadas do jardim com o jardineiro, há arranjos urgentes nas plantas trepadeiras, nas hortênsias, estão os dois lá fora a falar em enxertos nas rosas, vejo a glicínia e buganvília descarnadas, a floração só virá com os dias primaveris. A Benedita deixou-me entregue à sua prenda, um livro hoje muito raro, intitulado “A campanha da Guiné (1908) ”, por Luiz Nunes da Ponte, tenente de artilharia, a edição é da Typographia a Vapor, da Empreza Guedes, Porto.

Que leitura aliciante! Em Dezembro de 1907, o Ministério da Marinha requisitou ao Ministério da Guerra forças para uma expedição à Guiné, composta por duas companhias de Infantaria, um pelotão de Cavalaria, um pelotão de Engenharia, um tenente e 30 praças de Artilharia. Antes da campanha, foram estudar o terreno o major do Estado-maior Castro Nazareth e o tenente D. José de Serpa.

Estamos na agonia da monarquia, não há meios nem capacidade de actuação para agir nas colónias revoltosas, a Guiné está sublevada do Leste aos Bijagós. O que se propôs em Dezembro não coincide com a nomeação que o governo vai fazer em Março (uma força de artilharia composta de 29 praças, uma companhia do Regimento de Infantaria 13, com 250 praças, um destacamento de engenharia, mas também forças auxiliares, um médico, um veterinário, um oficial de administração militar, ao todo 358 homens.

Nunes da Ponte vai ver e assombra-se: as praças, na sua maioria, são recrutas! Felizmente que o Governo fala em mandar mais 200 landins em ajuda desta força. Depois fala nos defeitos de organização: o material em estado deplorável, o pessoal a adoecer, mal chegados a Bissau descobre-se que não há mudanças de farda, cada um só trouxe a que está vestida.

A tropa embarca para o Xime na canhoneira Salvador Correia. Nunes da Ponte, tão bom observador, não refere coisíssima nenhuma sobre a natureza, sobre a viagem Geba acima. Ficamos a saber que num outro vapor vão albardões, cangalhos, varais, sacos de rações, baldes, muares, carros e peças de artilharia. Terá sido porventura a primeira vez que tantos brancos viajaram pelo Geba ao mesmo tempo, vão ali um pelotão de Infantaria 13, sob o comando do alferes Duque, e 30 grumetes dirigidos pelo segundo-tenente Proença Fortes.

Agora temos uma discrição: “O Xime é uma povoação insignificante. Fica a 100 metros do rio aproximadamente. Tem duas ou três casas comerciais e o posto militar; o resto são só palhotas. Ali, o comércio é mantido em grande parte com os Balantas, negros que ocupam a margem oposta e que, atravessando o rio nos seus dongos (embarcações muito compridas) vêm trocar por arroz o artigos de que carecem”. Partem do Xime para Bambadinca na canhoneira Cacheu. Começam aqui os ataques dos Biafadas, que colocaram dois grossos cabos de arame farpado, e que foram atravessados no Geba, para impedir a progressão.

A Benedita está a despedir-se do jardineiro, oiço a sua voz tonitruante na cozinha, conversa com Svetlana acerca de um prato de lulas recheadas, parece ser este o pitéu que me está destinado para o almoço. É a contragosto que paro esta leitura, exactamente quando se vai dar o primeiro combate, em 7 de Maio de 1908, à entrada do Cuor.”.

O segundo, a partir da página 115:

“Estou finalmente rendido à desordem que a Benedita instalou nas suas memórias: já não percebo se o Toninho morreu ou não, quando ocorreu esta nova fase violenta da leucemia do Rui; o magnífico historiador está combalido mas, pelos vistos, viajam a toda a hora, está exausto mas parece que o seu rendimento intelectual não foi afectado. É nisto que medito enquanto me refugio do frio e da chuva na paragem do autocarro, que me vai levar até à Portela de Sintra.

O leitor não leve a mal, a Benedita, qualquer dia, vai fazer 90 anos, o que lhe temos que gabar é a memória e condescender com estes ziguezagues, se eu próprio estou contagiado pelo desnorte, o leitor não pode fazer mais nada.A ferver de curiosidade, esquecido destes incidentes, volto à guerra da Guiné em 1908, ao relato de Luiz Nunes da Ponte, tenente de artilharia.

As tropas saem de Bambadinca, atravessam a bolanha, internam-se no Cuor. Leio tudo com a emoção contida, foi ali que eu vivi entre Agosto de 1968 e Novembro de 1969, o que me apetecia agora, exactamente agora, era marchar pelos mesmos itinerários deste confronto entre as forças portuguesas e as de Infali Soncó, o avô do meu querido amigo Malâ Soncó. Primeiro, a coluna inicia a sua marcha ao sinal dado pelo corneteiro. Estamos a 7 de Maio de 1908, a ordem é de avançar sobre Ganturé, a quatro quilómetros do bivaque.

A disposição da marcha dentro do território inimigo era a seguinte: cem metros na frente seguem trinta grumetes, sob o comando do capitão Teixeira de Barros e o segundo tenente Fortes; vem depois uma guarda avançada da companhia de marinha, seguida do quartel-general e bateria de artilharia; nos flancos, dois pelotões de Infantaria 13 e a companhia mista; à retaguarda, o comboio de víveres, munições, todos os aprestos necessários. O relato é minucioso: “Cada praça transportava consigo, para além do cantil, sacos rectangulares de lona com um gargalo de garrafa a um dos cantos, comportando cinco litros de água, cada um”.

Amanhece, o calor está verdadeiramente asfixiante, muitos soldados fazem esforços sobre-humanos para não caírem extenuados. Ao longe, ouvem-se tiros de longa (armas muitos compridas que os naturais enchiam de zagalotes apertados com pólvora) e espingardas Snider.

A tabanca de Ganturé foi tomada,não houve resistência, a gente fiel a Infali recuou, mas virá a dar sinal de resistência com um grande tiroteio junto da fonte. À cautela, e verificado que as tropas estão exaustas, acampou-se em Ganturé. Pelas quatro da manhã de oito, a coluna avançou sobre Sambel-Nhantá (no meu tempo era conhecida por Sansão, é assim que consta nos mapas, fui lá muitas vezes) a tabanca principal de Infali Soncó. As aves de rapina acompanham nos céus o avanço das tropas.

Também aqui não houve resistência e as tropas incendiaram a tabanca. Muito perto, novo tiroteio do inimigo, que depois se põe em fuga. A coluna progride para a povoação de Gã-Sapateiro (que no meu tempo se chamava Caraquecunda), e aqui se estabeleceu bivaque. O relator tomou mesmo nota de tudo, como passo a citar: “Nessa tarde, chegou um régulo amigo de nome Dembacuta, rapaz novo ainda, com o peito coberto de guardas (pequenos estojos de coiro, contendo papéis com regras que, segundo a sua religião, os livram das balas inimigas), montava a cavalo”.

Este Dembacuta informou que vinha de Mansoná, tabanca que acabara de destruir, e informou que Infali andava fugido. A nove, partiu-se para o último reduto do Cuor, a tabanca fortificada de Madina, que foi tomada nesse dia, depois de uma resistência de meia hora de fogo.

O comboio em que viajo vai chegar em breve a Roma – Areeiro, por mim não me importava que seguisse até ao Porto para ler tudo até ao fim e tomar as devidas notas. Nunes da Ponte escreveu sobre delírios, insânias, gente com a saúde abalada, um soldado louco que teve de ser abatido. A dezoito desse mês, a força bivacada em Gã-Sapateiro abandonou o Cuor (a junta médica considerara doentes mais de 40 soldados).

No Cuor, ficaram 50 homens comandados por um tenente e um alferes. O governador da Guiné nomeou Abdul Indjai, um destemido guerreiro que combatera ao lado de Teixeira Pinto, como régulo do Cuor. Não cabe aqui explicar, vai ser uma nomeação que acabará muito mal.Em casa, depois de jantado, passo tudo a limpo, registo que a tropa que fizera a campanha do Cuor voltou a Bissau, é daqui que ela vai partir para nova campanha, desta vez contra o régulo de Intim e Antula.

Em Maio de 1908, dera-se a ocupação efectiva da ilha de Bissau. Nas conclusões do seu relato, Luiz Nunes da Ponte tira as suas conclusões: em toda a Guiné há dois territórios apenas aonde as operações são arriscadas e difíceis, necessitando para a sua imediata ocupação de forças importantes e bem organizadas: Bissau e o Oio. Duvido que assim fosse, mas para o caso as minhas dúvidas não têm importância.

Comoveu-me muito ter regressado ao Cuor como ali voltei hoje, graças a esta oferta imprevista da Benedita. Gosto muito dos pormenores deste tenente de artilharia, sobretudo quando ele descreveu um tornado como um imponente espectáculo:“Antes o sol escalda, parece que andamos metidos numa verdadeira fornalha; entretanto, nota-se ao longe uma grande barra escura e um relampejar constante; sente-se depois um vento, ao princípio muito brando, mas que vai aumentando gradualmente, ao mesmo tempo que os relâmpagos vêm já acompanhados do ruído do trovão que começa a distinguir-se.

Depressa o vento sopra com fúria, o ribombar do trovão acentua-se fortíssimo, as nuvens surgem constantemente cortadas por muitas fitas luminosas em caprichosos ziguezagues, e logo a chuva cai em torrentes, parecendo que se despenha sobre nós o firmamento transformado em água. Então, pude ver a pequena ou nenhuma importância que os negros dão ao fenómeno; apanhavam as mangas que tombavam das árvores, debaixo daquela chuva torrencial, abandonando somente esse entretenimento quando o vento os arremessava ao chão.

A seguir, produz-se uma evaporação forte, refrescando imenso o ar e tornando a temperatura muito agradável. Dura pouco, porém, esse refrigério; decorridas algumas horas, seca tudo novamente”. Nunes da Ponte não se esquece de anotar que estes tornados tinham péssimas consequências na vida dos soldados: tendas encharcadas ou desfeitas, mais doenças, mais febres.Procurei novamente num blogue referências à guerrilha na Guiné, em 1961. Pela primeira vez, encontro uma versão que me parece consistente.

Em Maio desse ano, François Mendy conseguiu fundir dois movimentos de libertação, o que deu lugar à Frente da Libertação da Guiné, e no final desse mês distribuíram-se em Bissau folhetos de propaganda. Em 17 e 18 de Julho, um pequeno grupo de elementos do denominado «Movimento de Libertação para a Guiné» (seria o mesmo que a Frente?) cortou a linha telefónica de S. Domingos e tentou incendiar a ponte de Campada. Na noite de 20 para 21 de Julho, um grupo mais numeroso (falou-se em cerca de 600 indivíduos) atacou S. Domingos fazendo uso de terçados, armas de caça, espingardas, garrafas de gasolina e “cavadores” (paus com a ponta afiada).

Na maioria, envergavam camisolas e calções pretos. Em 25 de Julho, um outro grupo provocou danos materiais na zona de turismo de Varela e em Suzana, fazendo depredações e pilhando a maioria dos edifícios públicos. Segundo o autor do blogue, estes movimentos nunca se entenderam com o PAIGC. É estranho, insisto, que as pessoas a quem eu telefonei a rogo da Benedita e que viveram estes acontecimentos na Guiné ignorassem estes dados. A ver se de uma vez por todas esclareço tudo quanto a Benedita viveu na Guiné, onde cheguei alguns anos depois.

Sim, oxalá a Benedita não me traga mais regressos à Guiné, com o que temos pela frente, nos anos de 1980: a vida efémera, mas intensa, que levou ao lado do Rui; a partida do Toninho, entretanto (se não partiu já...); as peripécias da doação de uma parte importante do património de um dos nossos maiores historiadores de todas as épocas; os últimos anos de trabalho na Embaixada; a evolução da doença, mas também a sua evolução espiritual, cada vez mais a cuidar dos outros, até chegar aos sem-abrigo; a sua participação numa universidade da terceira idade; e as muitas surpresas que ainda nos vão reservar ao longo de décadas de vida palpitante, onde floresce o seu heroísmo anónimo, a discrição espontânea, medular, inerentes ao seu pensamento e acção, agora que ela caminha para os 90 anos.”




Um abraço,
Mário Beja Santos
Alf Mil, Cmdt do Pel Caç Nat 52
____________
Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:



2 comentários:

Unknown disse...

Meu caro Beja Santos:
Luiz nunes da Ponte era meu avô e foi condecorado com a Grâ Cruz da Ordem de Torre e Espada,pela sua atuação nessa campanha.Era um militar e um homem integro,bravo e impoluto.Dele referente à guiné existe também publicada uma Conferência dedicada a Honorio Pereira Barreto heróico Governador da Guiné e ao que sei o único de raça negra.Tem ainda publicado um opusculo referente a Moçambique(Notas da Campanha de Moçambique-1917-1918)em que foi também um interveniente ativo como militar.
Curiosamente 2 netos (Eu e meu irmão Miguel)fizemos a guerra na Guiné.Eu em 1970-71,em Gadamael Porto como alferes miliciano de operações especiais.Fui ferido e evacuado.Meu irmão Miguel de 1970?a 1972 com Alf. Milic. de Engenharia no Quartel da engenharia em Bissau.
Cumprimentos
Manuel Nunes da Ponte

Unknown disse...

Meu caro Beja Santos:
Luiz nunes da Ponte era meu avô e foi condecorado com a Grâ Cruz da Ordem de Torre e Espada,pela sua atuação nessa campanha.Era um militar e um homem integro,bravo e impoluto.Dele referente à guiné existe também publicada uma Conferência dedicada a Honorio Pereira Barreto heróico Governador da Guiné e ao que sei o único de raça negra.Tem ainda publicado um opusculo referente a Moçambique(Notas da Campanha de Moçambique-1917-1918)em que foi também um interveniente ativo como militar.
Curiosamente 2 netos (Eu e meu irmão Miguel)fizemos a guerra na Guiné.Eu em 1970-71,em Gadamael Porto como alferes miliciano de operações especiais.Fui ferido e evacuado.Meu irmão Miguel de 1970?a 1972 com Alf. Milic. de Engenharia no Quartel da engenharia em Bissau.
Cumprimentos
Manuel Nunes da Ponte