sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5262: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (16): O baptismo de fogo da Regina, ou um Capitão não é um Capitão

1. Mensagem de Fernando Gouveia, ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70, com data de 10 de Novembro de 2009:

Caro Carlos:
Mais uma estória para a série A Guerra Vista de Bafatá. Parece grande mas é por causa das fotos. Se a publicares, agradecia que mantivesses a sequência texto/fotos, pois está tudo interligado. As fotos só terão sentido dessa maneira.

Ainda outro assunto: Tenho reparado que algumas frases que tenho mandado em itálico não aparecem postadas dessa maneira. Penso que isso terá mais a ver com a NET e que não chegará aí o dito itálico. Se me pudesses dizer algo sobre isso muito agradecia, pois nesta estória a parte em itálico das legendas reporta-se à correspondente parte do texto.

Desde já agradeço.

Um abraço.
Fernando Gouveia


A GUERRA VISTA DE BAFATÁ

15 – O meu (dela) baptismo de fogo, ou um Capitão não é um Capitão

Duas notas prévias:

1 - Esta estória, como sempre autêntica, é toda da minha inteira responsabilidade, apenas coloco a narrativa na voz da minha mulher, por ter sido por ela vivida. Só lamento não ser ela própria a contá-la pois imprimir-lhe-ia uma melhor qualidade e sobretudo uma sensibilidade que eu não conseguirei exteriorizar.

2 - Os versos incluídos são de Sérgio Godinho, da faixa Fotos do Fogo do CD Tinta Permanente.



Nos anos sessenta não havia a liberdade de que agora usufruímos. Recordo, como exemplo, que quando era professora em Braga para adquirir certas revistas, consideradas de esquerda, como os Cadernos Gedoc e a Seara Nova, ia ter com um livreiro meu conhecido que mas entregava já devidamente embrulhadas e fora das vistas dos demais clientes.

Toda essa falta de liberdade trazia como consequência que as notícias relevantes, ou não chegavam a ver a luz do dia, ou eram deturpadas pelos homenzinhos do lápis azul. Quero com isto dizer, que qualquer notícia menos favorável ao regime vigente e oriunda da Guiné, e não só, vinha sempre por caminhos enviesados, logo, tanto podia ser mais ou menos verdadeira, como redondamente falsa.

Um dia, de 1969, com o meu marido na guerra, na Guiné, chegou-me aos ouvidos, por intermédio de uma amiga em quem depositava bastante confiança, que a Província tinha sido tomada pelos guerrilheiros nacionalistas. Penso que nessa altura seria o culminar de outras notícias, em surdina, referindo alguns reveses das nossas tropas (dezenas de mortos no Ché Che, etc.) em contraponto com a habitual falta de informação estatal sobre a verdadeira situação.

Coincidência das coincidências: Já há alguns dias que não recebia os habituais aerogramas do Fernando, meu marido, e cúmulo dos cúmulos, telefonando de imediato para o Comando de Agrupamento, onde ele se encontrava, uma telefonista (pois nessa altura as ligações passavam por várias), disse-me que de momento não era possível estabelecer a ligação com a Guiné pois havia um corte nas comunicações. Pânico, desespero, raiva… entorpecimento. Penso que passei por todos os estados de alma possíveis.

Com uma troca de telegramas tudo se esclareceu. Tinha havido apenas uma avaria nas comunicações.

Foi um pouco debaixo desta tensão que fui duas vezes à Guiné passar umas temporadas com o Fernando.

Da primeira, fui passar as minhas férias de Agosto e Setembro. O Fernando estava em Bissau à minha espera e acabámos por ficar instalados em casa duns amigos, a família Taveira, situada junto ao Estádio de Futebol, não longe do bairro do Pilão.

Por volta da uma da manhã estávamos já no primeiro sono quando fomos acordados, ao que pensei, por três ou quatro fortes rebentamentos ali muito perto. Sentados na cama não ouvimos mais qualquer ruído estranho e nem dentro de casa os nossos anfitriões deram sinais de si. Estranho… Ainda pensei que seria o meu baptismo de fogo, como na tropa se dizia.

Logo o Fernando me foi dizendo que deviam ser os obuses a fazer tiro para o outro lado do rio Geba, para a zona de Tite. Como já me tinha falado nos obuses de Piche que até se ouviam em Bafatá, fiquei mais calma. Soube depois que me dera aquela explicação para me acalmar pois acreditava serem rebentamentos na cidade, a primeira flagelação a Bissau. Também depois me disse que não ficou preocupado connosco pois achava que a tropa toda que estava na zona de Bissau resolveria a situação. Assim eu, na ignorância, e ele com mais de um ano de Guiné adormecemos novamente.

Na manhã do dia seguinte perguntamos ao senhor Taveira, que já tinha saído à rua, se sabia o que tinha acontecido. Resposta breve:

- Já não é a primeira vez que os Fuzileiros vêm fazer desacatos no bairro do Pilão e desta vez rebentaram lá umas granadas…

Mais tarde, em Bafatá, viemos a saber que o Geneneral Spínola mandou esses Fuzileiros para uma operação de oito dias na ilha de Como.

Destas estadias na Guiné já dei conta em estórias anteriores. Vivi lá momentos inolvidáveis. A África, sempre a África, os odores tão característicos, o vermelho da terra de tom tão singular, a pureza das gentes, o olhar e o sorriso das crianças, o colorido das vestes, o verde das matas, os pescadores nas suas canoas, o transbordar dos rios na época das chuvas, as tempestades diárias mas belas com o seu relampejar ao longe.

Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira

A guerra deu na tv
foi na retrospectiva
corpo dormente em carne viva
revi p’ra mim o cheiro aceso
dos sítios tão remotos
e de corpo ileso
vou-te mostrar as fotos
olha o meu corpo ileso

………..
………..

Foto 1 > O vermelho da terra de tom tão singular. Na tabanca da Rocha em frente à minha casa. Atrás de mim era a casa do Cap. protagonista desta estória.

Foto 2 > A pureza das gentes. Tabanca da Rocha (foi a partir deste momento que ficámos a saber, eu e o Fernando, que os bebés africanos nasciam completamente brancos e só depois iam escurecendo.

Foto 3 > O olhar e o sorriso das crianças. Na tabanca da Rocha em Bafatá.

Foto 4 > O colorido das vestes. No Mercado de Bafatá.

Foto 5 > O verde das matas. Algures entre Bafatá e Candemba Uri.

Foto 6 > Os pescadores nas suas canoas. No rio Geba em Bafatá.

Foto 7 > O transbordar dos rios na época das chuvas. Na ponte do rio Colufe com a água a chegar aos meus pés.

Fotos e legendas: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados.


…………
…………
O meu baptismo de fogo
não se vê nestas fotos
tudo tremeu e os terremotos
costumam desfocar as formas

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Álbum das fotos fechado
volto a ser quem não era
como a memória, a primavera
rebenta em flores impensadas
num livro as amassamos
logo após cortadas
já foi há muitos anos
e ainda as mãos geladas


Na segunda ida à Guiné fui passar as férias de Natal de 1969. Mais uma vez fiz escala na ilha do Sal em Cabo Verde e mais uma vez tive aquela sensação estranha ao sair do avião: A terrível humidade, que trespassando a roupa tornava todo o corpo pegajoso. O Fernando já me tinha marcado um lugar no Dakota desse dia pelo que, e já não sendo periquita, iria sozinha ter com ele a Bafatá. Quando já estava a entrar para o avião, aparece um oficial de patente algo elevada, que em atitude nada elevada foi dizendo que eu não podia embarcar pois ele e a esposa, mesmo sem marcação, tinham que ir sem falta.

Mais tarde vim a saber que era o actual Comandante do meu marido, Coronel Neves Cardoso. Telefonei ao Fernando, tendo ele vindo nesse mesmo Dakota ter comigo. No mesmo dia fomos para Bafatá, penso que num quadrimotor Eron, civil.

Chegados lá à tarde, o Fernando foi trabalhar para o Agrupamento e eu fiquei a rever o que foi a nossa primeira casa. Parte da tarde passei-a à conversa com as crianças já minhas conhecidas, o Carlos o Adrião e a Angelina e entreguei-lhes os presentes que trouxera.

Perto da nossa casa, na tabanca da Rocha morava agora um casal, um Capitão e a esposa. Esse Capitão estava lá há pouco tempo pois em Setembro não o tinha visto por lá. Numa atitude simpática convidaram-nos para jantar com eles essa noite.

Como o Fernando trabalhava todos os dias até às oito da noite fui mais cedo para a casa do senhor Capitão.

Seriam umas sete e meia quando se começaram a ouvir rebentamentos. O Capitão foi à rua e logo tornou a entrar dizendo que pelo som das explosões e porque se viam os rastos das granadas e dos projecteis tracejantes, estariam a atacar Bafatá. Disse que se ia a apresentar no quartel e que nós as duas fechássemos tudo e nos agachássemos junto de uma parede mestra.

Ali estava eu agora, com o meu baptismo de fogo. Desta vez era a sério. Um Capitão é um Capitão. Era pois um ataque e o Fernando não estava ali. Em nossa casa ele tinha um pequeno arsenal, para uma possível defesa, ali só uma parede mestra…

Às oito aparece o Fernando, nas calmas, pois tinha trabalhado até essa hora, pôs-nos à vontade e foi-nos dizendo que não tinha sido nenhum ataque a Bafatá mas sim ao aquartelamento da tabanca de Geba, distante uns dez quilómetros. O meu marido já tinha assistido a vários.

Para a semana, por falar em Geba e outra vez na primeira pessoa, vou contar a minha ida lá, propositadamente para olhar na cara o que achava que seria um nazi fugido depois da segunda guerra mundial. Poder-me-ia ter saído muito caro….

Até para a semana camaradas.
Fernando Gouveia
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5232: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (15): Uma estória de faca e alguidar

4 comentários:

Luís Graça disse...

A Regina (Raínha, em latim)não é, semântica, conceptual, técnica e militarmente falando, uma "camarada" nossa, como o foram/são a Giselda e as outras enfermeiras pára-quedistas, as únicas mulheres que combateram na guerra colonial...

Mas a Regina - a Raínha de Bafatá - foi e é nossa companheira (do latinório, 'cum pane', o que come o mesmo pão à mesma mesa...).

Que diferença, meus amigos e camaradas, na visão das coisas, das gentes, das paisagens, dos acontecimentos... Ainda bem, que temos o privilégio e ler (e ver as respectivas fotos, algumas magníficas, da autoria do Fernando, a quem saúdo fraternalmente) as impressões da Regina sobre a doce, terna, mágica, belísssima Bafatá do nosso tempo, o nosso oásis de paz, na época de 1969/71...

Obrigado, Regina/Raínha, as tuas crónicas trazem os cinco sentidos da Guiné para o nosso blogue... Mais o sexto, que é a vossa intuição feminina... Prometo reler as crónicas atrasadas que, na voragem dos dias, às vezes só consigo ler na vertical...

PS - Fernando e Regina: temos de pensar numa publicação em suporte de papel... Bafatá merece, vocês merecem... Editor, precisa-se.

Anónimo disse...

Caro Luís Graça
Obrigada pelas palavras sempre generosas. Mas desta vez têm que ir por inteiro para o Fernando. Ele pediu-me para escrever sobre as experiências de que fala mas eu tenho andado sem tempo. Por isso ele optou, com o meu aval, por escrevê-las em meu nome, daí a nota introdutória. Mas eu prometo que um dia destes volto...
Um grande abraço
Regina Gouveia

nuno gouveia disse...

Caros amigos,
Acho muito bem que incitem o meu pai a publicar as memórias que trouxe da Guiné. Apesar do absurdo e da estupidez que enchem qualquer guerra, ele consegue por vezes sobrevoar o fumo dos obuzes com a máquina fotográfica ou com a serenidade com que agora descreve esse "voo". Continuação de bom blogue a todos, e muita paz.
nuno gouveia

José Botelho Colaço disse...

Mais tarde, em Bafatá, viemos a saber que o General Spinola mandou esses Fuzileiros para uma operação de oito dias na ilha de Como.
D. Regina surpreende-me bastante esta alínea da sua narrativa porque a ilha do Como passado a operação tridente e dentro de pouco tempo passou a ser um dos lugares talismã na Guiné onde até os próprios aviadores estavam proibidos de metralhar ou bombardear motivo não sei e mesmo os aviadores só tinham que cumprir com o que estava determinado!
Será por a nossa aviação composta por dois F86 em Setembro de 1964 ter metralhado uma secção da C. caç. 557 que estava a descarregar da lancha a agua que ia-mos buscar a Catió, felizmente não houve feridos os danos foram só nas jarricanas da agua garrafões com sabor a tinto e nos fardos ou caixotes do bacalhau.
O que é do conhecimento "geral" é que em 1965 o segundo comandante do batalhão caç.619 Major Manuel de Jesus Correia organizou um grupo à revelia do comandante chefe e foi para a Ilha do Como o resultado não interessa para aqui, só que foi advertido e repreendido, na mesma fase também o carismático alferes comando Maurício Saraiva cometeu a mesma gafe esse segundo rezam as más línguas viu,se como se costuma dizer em "palpos de aranha" para sair de lá são e salvo, resultado o mesmo sermão. Eu não sou dono da verdade mas operações explorações militares na ilha do Como com ordem do comando chefe resumem-se à operação tridente e também em meados de Abril de 1964 uma tentativa composta por tropa do exército na qual estava incluído a minha c. caç.557 e forças especiais de comandos e fuzileiros e esta exploração foi foi conduzida ao pormenor tal como se fazia na operação tridente ao inicio da noite os obuses de Catió bombardearam a mata durante cerca de 45 minutos a 1 hora+ ou - e ai por volta das 2 ou três da manhã veio o avião PV 2-5 sediado na Ilha do Sal Cabo Verde e largou a suas bombas e pouco após o sol nascer vieram dois aviões F86 e metralharam a mata, o objectivo ir à mata do Cassaca destruir as tabancas, iniciativa gorada porque do lado do inimigo fomos surpreendidos com fogo de armas pesadas , morteiros e as chamadas costureirinhas para adoçar o caldo, as nossas tropas recuaram e retiraram com um saldo de doze feridos evacuados via helicóptero para Catió e daí em avionetas para Bissau.
É que nem sequer conseguimos chegar onde no dia anterior tinha estado a fazer o reconhecimento um pelotão da companhia de caç. 557 com a presença do nosso capitão Ares e o comandante do dito pelotão neste caso o 2º.
É tudo cumprimentos. Colaço.