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sábado, 17 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21459: Fotos à procura de... uma legenda (135): Levantamento de minas A/P no carreiro de Uane, em julho de 1974 (António Murta, ex-alf mil inf, MA, 2ª CCAÇ / BCAÇ 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)... E um grande texto de antologia, um grande documento humano de um grande português, dilacerado entre dois imperativos antagónicos, a sua consciência humana e as suas obrigações militares.

 

Foto nº 2  > Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > Julho de 1974  >   O alf mil inf MA Murta apontando uma mina A/P acabada de localizar.


Foto nº 2A  > Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > Julho de 1974  >   O alf mil inf MA Murta apontando uma mina A/P acabada de localizar (, assinalada a vermelho)


Foto nº  1 >  Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > Julho de 1974  > O guia que nos levou ao campo de minas. Pertencia à milícia de Nhala.



Foto nº 3  >  Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > Julho de 1974  >    Duas minas levantadas [, assaladas a vermelho[  e os restos de uma bota de cabedal.



Foto nº 4 >   Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > Julho de 1974  >    Junto à minas levantadas,   os restos de uma bota de cabedal [, assinalados a vermelho]
 



Foto nº 5 >  Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > 1973  > Aspecto parcial do 4.º Grupo de Combate da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 a caminho do carreiro de Uane, e após saída da mata



Foto  nº  6 > Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > 1973  > O José Gomes em passo acelerado depois de entrarmos em campo aberto.





Foto nº 7 > Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > 1973  > A retaguarda do 4.º Gr Comb a sair da mata.

 

Foto nº 8 > Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > 1973 > Já no regresso a Nhala, paragem para descansar numa zona rochosa.




Foto nº 9 > Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > 1973  > O Alf Mil M/A Murta a descansar junto do cão Pifas.



Foto nº 10 > Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > 1973  > Pose do alf mil  Murta em baga-baga.





Foto nº 11 > Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > 1973  >
 Zona de poilões monumentais. Aqui,  alguém  (assinalado a amarelo] junto do poilão,  por uma noção de escala.

Fotos (e legendas): © António Murta  (2016). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Notável  sequência de fotos do álbum de António Murta, ex-alf mil inf Minas e Armadilhas, da 2.ª CCAÇ / BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), com referência à minagem (em 1973) e desminagem (julho de 1974) do carreiro de Uane, utilizado pelo PAIGC. E, mais notável ainda, é um grande texto de antologia, um grande documento humano de um grande português, dilacerado entre dois imperativos antagónicos, a sua consciência humana e as suas obrigações militares.

Contexto: 

7 de julho de 1974 – Conforme pedido dos Comissários Políticos do PAIGC presentes em Aldeia  Formosa, foi solicitado,  a Bissau, autorização para a abertura da estrada Chamarra-Gandembel. Uma vez autorizado, iniciou-se a desminagem e a abertura da referida estrada.

8 de julho de 1974 – Prosseguem em todo o Sector os trabalhos de desminagem de diversos trilhos utilizados pelo PAIGC. Foram desminados trilhos na região de Buba, Nhala e Missirá.


  Julho de 1974: desminagem do carreiro de Uane (trilho do PAIGC)

por António Murta (*)


(...) Aproximavam-se os tempos das coisas derradeiras. Os sinais estavam um pouco por todo o lado, mas os acontecimentos não correspondiam à ânsia de uma resolução clara e definitiva, e arrastavam-se de forma penosa e desesperante. Fui-me abaixo. Em carta de 5 de julho de 1974 para a família, dou conta de estar a ser medicado por ter os nervos arrasados. 

Começo a ponderar vir de férias à Metrópole para recuperar a saúde e ganhar tempo. Podia ser que,  quando regressasse,  estivesse clarificada a situação e se procedesse à passagem do território para as novas autoridades. Amadurecida a ideia, decidi que só ficaria ali até ao fim deste mês de julho. Passaria o agosto na Metrópole, se entretanto não ocorresse algo de significativo que me alterasse os planos. Mas eu queria que ocorresse, para poupar uma viagem e evitar ser surpreendido pelos acontecimentos. Mas não aconteceu nada e no final do mês [de jukho] decidi partir, como pouco antes já tinham feito alguns dos meus camaradas da Companhia e até os Comandantes de Batalhão.

Mas foi o maior erro da minha vida. Tudo o que antes ansiara testemunhar, começou a ocorrer logo nos primeiros dias do mês seguinte. Agosto seria o mês da entrega do território ao PAIGC, fim da secular presença portuguesa naquele chão. Perdi a oportunidade de ser testemunha de momentos históricos de tão alto significado, em que tantas vezes havia reflectido, não fosse eu e os meus camaradas ainda ali, os últimos guardiões do templo. 

Ia-se entregar o templo sem eu estar presente. Sei que os momentos derradeiros da troca das bandeiras nacionais me iriam gerar fortes emoções e sentimentos ambíguos: regozijo pelo fim do colonialismo que abria caminho à independência da Guiné, e o sentimento vago da perda, todavia aceite. 

Foram esses momentos históricos que eu perdi, e isso deixou-me uma mágoa para sempre. Podia-se ser contra aquela guerra e contra o colonialismo, (que se não fosse português era outro qualquer), podia-se achar justo o direito à autodeterminação conseguida – ou não -, com as lutas de libertação, mas, para o bem e para o mal, foi português aquele chão africano desde que, há mais de quinhentos anos, ali chegaram os primeiros compatriotas. 

Nós seríamos os últimos. Só por isso, a nossa geração ficaria na História, mas ficará também pelo alto preço que pagou sobretudo em sacrifícios inimagináveis e em vidas humanas, para que se mantivesse lá a mossa bandeira. Tal como fizeram os primeiros, e sem menos valor e honra que eles. (...)

Era a quarta vez que ia àquela zona do carreiro [de Uane], no extremo norte da nossa área de acção, lá para os lados do Rio Corubal, mas ainda longe do rio. O objectivo foi sempre a minagem e desminagem do trilho usado frequentemente pelos guerrilheiros. 

Como responsável pelas minas, armadilhas e afins da minha Companhia, era obrigado a fazer o levantamento das minas antes de uma ausência prolongada, como era o caso das férias.  No regresso tinha de lá voltar a instalá-las de novo. Agora a situação [, em julho de 1974, ] iria ser diferente: era a última vez que levantaria as minas, à imagem do que estava a acontecer em todo o território, face à situação de paz irreversível. O PAIGC fazia o mesmo.

Saímos muito cedo de Nhala, que a caminhada iria ser longa. Com o meu grupo [, o 2º Gr Comb, ]  seguia o meu guia preferido, milícia maduro e experiente, com um ar sempre sisudo mas de trato fácil e atencioso [, Foto nº 1]. Pouco falava e, em português, quase nada. Mas entendíamo-nos perfeitamente. Era marido da Fátima, a minha lavadeira, também ela uma excelente pessoa, dedicada e afável até à doçura. E falava com desenvoltura o português acrioulado, se assim se pode dizer. Tantas saudades desta gente...

Caminhámos quase sempre dentro de mata cerrada que, a certa altura, começava a mudar e a apresentar-se algo estranha e até misteriosa, onde havia poilões enormes [, Foto nº 11,]  e, numa certa zona, um solo de rochas de aspecto granítico  [, Foto nº 8,] como não conhecia em mais nenhum lado na Guiné. 

No regresso parávamos sempre aí para comer e descansar [, Fotos nºw 9 e 10]. Quando ali passámos no ano passado [, 1973,] , fiz algumas (péssimas) fotografias que mostrarei mais à frente. Aliás, as únicas fotografias que tenho da ida e regresso do carreiro, são do ano de 1973, que agora não repeti. Apenas a fotografias da desminagem [, Fotos nºs 2, 3 e 4] são desta acção de julho de 1974.

Saímos finalmente da mata [, Fotos nºs 5, 6 e 7]  para uma clareira que eu reconheci como próxima do local das minas. Era ainda muito cedo e a humidade extrema evaporava-se do chão como uma nuvem longa e densa, criando momentos tão desconcertantes que me adiantei para fotografar a caminhada do pessoal em fila indiana. 

Ao princípio os soldados caminhavam com essa nuvem ascendente a ocultar-lhes as pernas, revelando a imagem bizarra de um grupo de “amputados” a deslizarem suavemente num tapete de algodão. Mas com a ascensão acelerada da evaporação, os últimos do grupo marchavam com energia sem que se lhes visse o corpo da cintura para cima. Só se viam pernas em andamento. 

Mais à frente, já sem estas visões “paranormais”, todos nós transpirávamos com o sufoco do calor emergente. Guardei sempre estas imagens na memória, mas em película não. Não se aproveitou nada das fotografias do fenómeno.

Lá adiante o guia parou. Aproximei-me e ele apontou uma zona, talvez a cem metros. Mandei o grupo instalar-se na orla da mata ali ao lado e pedi uma pica trifurcada, pondo-me em andamento normal até estar próximo do local indicado. Peguei no croqui que fizera aquando da instalação das minas e estive um bocado a observar o local e o desenho no papel, mas não vendo qualquer semelhança com as referências ali desenhadas. 

Olhei para trás para o guia e ele, lá da mata, insistiu num ponto mais à frente. Comecei a picar e a avançar ainda com alguma ligeireza e depois voltei a consultar o papel. Em redor não encontrava nenhuma das minhas referências, menos ainda marcas do carreiro no chão. Já calculava que isto iria acontecer, era sempre assim. Bastava que as minas tivessem sido instaladas numa época diferente do ano e era suficiente para nada no terreno ser reconhecível. 

A bem dizer, o croqui só serviria para me indicar a posição relativa das minas entre si, e ainda precisava de sorte para que nenhuma tivesse sido mudada de sítio pelas enxurradas da época das chuvas, por algum animal ou, pior, por algum guerrilheiro que as tivesse localizado. 

Apenas era seguro avançar pressupondo que podiam estar em qualquer lugar naquela zona, caso não tivessem sido accionadas. Era uma operação solitária, demorada e perigosa, logo, de alguma tensão. Mas eu podia apenas contar comigo e com a minha experiência, numa acção que exigia tempo e sangue frio.

Comecei a picar cada sítio onde punha um pé, observando constantemente o chão e as raras árvores à volta em campo aberto. Pela escassa altura do capim, julgara que encontraria facilmente o carreiro, mas não. Há muito que, pelos vistos, não era utilizado. Depois, ao mudar de posição percebi, finalmente, que uma das árvores muito esganiçadas ali ao lado era a minha referência no croqui, embora sem semelhanças com os detalhes precisos que eu riscara muito tempo antes. 

A partir daí, tirando medidas a olho, não foi difícil colocar-me no ponto certo da passagem do carreiro e, pouco depois, identificar uma particularidade que eu registara e onde, na altura, aproveitara para colocar duas minas, com alguma maldade, diga-se. É que, uma dezena de metros antes, o carreiro bifurcava, passando a ser duplo ao longo de não mais vinte de metros e reencontrando-se novamente. 

Imaginei que resultasse do hábito natural de, por vezes, as pessoas, ao saírem da mata fechada,  terem necessidade de caminharem lado-a-lado, para um pouco de conversa. Na altura ocorreu-me logo usar essa particularidade de forma ardilosa e, infelizmente para alguém da guerrilha, o ardil resultou e uma das minas foi pisada. 

Devo dizer que foi o único caso concreto em que tive consciência de ter feito uma vítima naquela guerra. Facto que, desde do momento da verificação sempre senti de forma penosa, não me aliviando pensar que fiz o que tinha de fazer por estarmos em guerra. Tudo mais pesaroso por eu saber que a falta de evacuação pronta, numa situação daquelas, representava quase sempre a gangrena e a morte. 

Então porquê remexer agora na morbidez destas lembranças? Talvez esperando que o desabafo público permita algum alívio, já que não o senti das raras vezes em que o fiz em privado. E para que, quem nunca foi à guerra, conheça e compreenda que ela não representa apenas uma contabilidade de mortos e feridos entre os beligerantes, mas também um grande sofrimento para as vítimas, para quem as provoca e para os que as viram acontecer. Trauma de graduações várias que, muitas vezes, são para o resto dos dias. 

Finalmente localizei a primeira mina [, Foto nº 2]. Com a ajuda do croqui foi fácil encontrar a segunda [, Foto nº 3[ . Sempre agachado e picando o terreno com a faca de mato, não mexendo um pé sem que o sítio para o pôr estivesse seguro, fui-me deslocando para o local da terceira mina.... mas ela não estava lá. 

Embora sempre calmo, fiquei apreensivo. A mina podia ter sido detectada e mudada de local, entre muitas outras hipóteses. Foi remexendo à superfície o capim rasteiro, quase a um metro do local, que descobri os vestígios que explicavam a falta da mina: um pedaço de cabedal ainda com o tacão de uma bota agarrado [, Foto nº 4], depois outro pedaço com a série de furos dos atacadores, mais uns fragmentos menores e nada mais. O resto voara. 

Perante a evidência, fui tomado por um sentimento de grande pesar e desconsolo. Por momentos fiquei ali a olhar para aqueles restos, pensando na estupidez da guerra. Para me aliviar, por certo, e reagir, pensei: mas não é para isto que servem as minas? Não foi para isto que calcorreei tantos quilómetros para vir cá pô-las? 

Levantei-me e fiz sinal na direcção do grupo que modorrava na borda da mata, para que se aproximassem. Passei a máquina fotográfica a um e pedi-lhe para me fotografar junto das minas no chão. Todos observaram a cena, silenciosos e pensativos. Preparámo-nos para o regresso, pois não havia mais nada a fazer ali. Para além do sucedido, hoje interrogo-me sobre as razões de uma tão grande canseira para ir ali implantar apenas três minas. 

Não era por falta de minas, creio. Que eficiência teria este tipo de segurança afastada? Por quê os guerrilheiros não contornavam a zona das minas, não sendo credível que ignorassem que sempre ali existiu minagem? E outras considerações...

PS - A fotografia n.º 2, embora não desfocada, estava tão “tremida” que teve de ser sujeita a edição severa. Sempre que a revejo e me foco apenas nesse defeito que quase gerou duas imagens sobrepostas, não evito um sorriso ao pensar: será que o fotógrafo estava mais nervoso do que eu? 

Saberia da história de outros que perderam as pernas e a vida ao pisar minas enquanto fotógrafos de guerra? Por certo que não. Nem eu sabia naquele tempo. Para só citar dois de uma lista infindável, refiro um dos meus preferidos e o mais notável dos antigos fotógrafos de guerra, Robert Capa. #(Segundo a Wikipédia, actualmente um dos mais importantes é o americano James Nachtwey, n. Nova Iorque, 1948). Citarei ainda o português João Silva. ##

As fotografias que se seguem  [, do nº 5 a nº 11] são de uma das idas ao carreiro em 1973 para implantar minas naquele local, provavelmente estas que agora (em Julho de 1974) foram levantadas como acabei de relatar acima.

# Robert Capa (1913-1954). Húngaro, de seu nome verdadeiro Endre Friedemann, foi cofundador da Agência Magnum em 1947. Fotografou a Guerra Civil Espanhola, Segunda Guerra Sino-Japonesa, Segunda Guerra Mundial, Guerra Árabe-Israelita de 1948 e Primeira Guerra da Indochina onde morreria ao pisar uma mina.

## João Silva (n. Lisboa, 1966). Vive na África do Sul, trabalha para o “The York Times”, foi várias vezes premiado com o “World Press Photo”. Perdeu as duas pernas ao pisar uma mina no Afeganistão. Continua a fotografar.

[Revisão / fixação de texto, para efeitos de edição deste poste: LG]
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(**) Último poste da série > 0 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21437: Fotos à procura de... uma legenda (127): Levantamento de um campo de minas A/P: chão felupe, setembro de 1974, uma notável sequência fotográfica do António Inverno (ex-alf mil Op Esp / Ranger, 1º e 2ª CART / BART 6522 e Pel Caç Nat 60, São Domingos, 1972/74)

terça-feira, 7 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16172: A guerra vista do outro lado... Explorando o Arquivo Amílcar Cabral e outros / Casa Comum (19): Declarações do 1º cabo mec auto, CCS/BART 1896 (Buba, 1966/68) à Rádio Libertação, do PAIGC, em Conacri, em 1968... O Correia foi aprisionado, em 20/5/1968, com mais 7 camaradas, na picada entre Mampatá e Uane


O Rui Rafael Correia,  no dia da homenagem
que lhe foi feita pelo Núcleo de Matosinhos da Liga 


O Rui Rafael Correia, antes de ser mobilizado
 para Guiné como 1º cabo mecânico auto, 
CCS/BART 1896 (Buba, 1966/68). 
Vive na Galiza desde 1972.







Instituição: Fundação Mário Soares

Pasta: 04309.007.011

Título: Guiné 1 - Falam os portugueses prisioneiros de guerra 

Assunto: Editado pela FPLN / Portugal [, Frente Patriótica de Libertação Nacional], em Argel, exemplar 1 de publicação com declarações dos militares portugueses, feitos prisioneiros pelo PAIGC. Pretende-se dar conhecimento da verdade às famílias, ao mesmo tempo que se acusa o governo português de os referir como desaparecidos (militares das incorporações de 1966). Este número inclui transcrição de uma comunicação de Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC, aos microfones de "A Voz da Liberdade" [, da FPLN, em Argel], dirigida aos prisioneiros portugueses, no dia 3 de Agosto de 1968, com a promessa de fornecer em breve fitas magnéticas com testemunhos dos prisioneiros, bem como o tratamento que lhes é dado, quando feridos e ligação com a Cruz Vermelha Internacional, para o seu repatriamento para junto das suas famílias.

Data: 1968

Observações: Declarações gravadas em fita magnética e difundidas pela Rádio Libertação, pelo PAIGC, que autorizou retransmissão pela emissora da FPLN, a Voz da Liberdade.

Fundo: Arquivo Mário Pinto de Andrade

Tipo Documental: Documentos

Direitos: A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.[ Cortesia da Fundação Mário Soares / Portal Casa Comum]

Arquivo Mário Pinto de Andrade > 04. Lutas de Libertação > 04. Investigação e Textos >
Mário Pinto de Andrade e outros

Citação:
(1968), "Guiné 1 - Falam os portugueses prisioneiros de guerra", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_84394 (2016-6-6)



Lista dos prisioneiros "entrevistados" (p. 23)  pela Rádio Libertação, do PAIGC, em Conacri, em 1968... Sublinhados, a vermelho, os nomes de alguns dos nossos camaradas da CCS/BART 1896 e CART 1612, aprisionados em 20/5/1968, na picada Mampatá-Uane-Nhala. (Ao todo, foram oito).

Tratou-se de um operação de "marketing" político, habilmente conduzida por Amílcar Cabral: o objetivo explícito era mostar à opinião pública, portuguesa e internacional, que: 

(i) havia uma "guerra de libertação" em curso, na Guiné, com baixas de ambos os lados, incluindo prisioneiros; 

(ii)  os "prisioneiros de guerra" feitos pelo PAIGC tinham um tratamento, de acordo com as mais elementares regras de humanidade e de respeito pela Convenção de Genebra; 

(iii) os militantes e simpatizantes do PAIGC capturados pelas tropas portugueses eram, em contrapartida, tratados como simples "presos de delito comum"; 

(iv) não estando Portugal oficialmente em guerra com nenhum país vizinho, os militares portugueses aprisionados pelo PAIGC eram dados como "desaparecidos" ou "retidos pelo IN", situação de grande incerteza e angústia para as famílias.

A FPLN - Frente Patriótica de Libertação Nacional, que combatia no exílio, o regime do Estado Novo, fez depois uma edição, em papel, com estas declarações gravadas, em duas brochuras. A nº 1 tem 24 páginas, a 2ª tem 26 páginas. Na 2ª  reproduzem-se as declarações do Manuel Ferreira e do José Medeiros, que pertenciam ao mesmo grupo de prisioneiros.

Reproduzimos, com a devida vénia, as declarações (, a pp. 7/8), do Rui Rafael Correia, natural de Leça da Palmeira, Matosinhos, 1º cabo mecânico auto da CCS/BART 1896 (Buba, 1966/68). O Correia só será libertado em 20 de novembro de 1970, na sequência da Op Mar Verde. Teve portanto dois anos e meio de cativeiro.

De acordo com as declarações que o Rui Rafael Correia prestou aos microfones da Rádio Libertação, fica-se a saber que: 

(i) estava na CCS, em Buba; 

(ii) foi chamado para ir a Aldeia Formosa reparar uma viatura que estava avariada na estrada: 

(iii) recuperada a viatura, ficou à espera dos camaradas que estavam no matoM

(iv) quando estes regressaram, deram conta que faltava a "milícia"; 

(v) por ordem do alferes, comandante da força, foi um pequeno grupo a caminho de Uane buscar a "milícia"; 

(vi) o cabo mecânico Correia sentiu-se na obrigação de acompanhar a viatura à qual tinha acabado de dar assistência; 

(vii) entre Mampatá e Uane (vd. carta de Xitole) foram emboscados; 

e (viii) o pequeno grupo ficou completamente indefeso perante "uma emboscada tão forte e tão bem montada"... Balanço: 4 mortos e 8 prisioneiros. (LG)


Guiné > Carta de Xitole (1955) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Mampatá, Uane, Nhala, Buba, Aldeia Formosa e Chamara.


Segundo o nosso camarada José Teixeira, da CCAÇ 2381, que rendeu a CART 1612 [que estava em Aldeia Formosa desde novembro de 1967], "este trágico acontecimento [deu-se] no pontão de Uane entre Mampatá e Nhala, na velha picada de ligação Aldeia Formosa / Buba"... 

Era "um sítio muito complicado e temido junto a uma bolanha, onde existia um carreiro por onde PAIGC fazia passar o material de guerra vindo da Guiné Conacri para o interior da Guiné, via Cantanhez"... Era "um lugar para muitos cuidados, com emboscadas às colunas que faziam a ligação de Buba a Aldeia Formosa a par de outro conhecido pela Bolanha dos Passarinhos, já muito perto de Buba".

As NT estacionadas em Aldeia Formosa faziam patrulhamentos e montavam emboscadas na zona, mas as coisas aconteciam "ao mais pequeno descuido, como parece ter acontecido, ou pelo menos era o que constava, quando ali chegou a CCaç 2381 em julho de 1968 para render a Companhia [, a CART 1612,]  que sofreu esta emboscada, em 20 de maio".

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016)







Guião, escrito pelo punho de Amílcar Cabral, para "conversa c/ os prisioneiros a libertar" (sic),  datado de 15/12/68". Clicar aqui para ampliar. [Cortesia do portal Casa Comum / Fundação Mário Soares]

Tópicos:

Augusto Dias - amigo (?) S [Sim ?]; Manuel Ferreira - amigo (?) S [Sim ?]; João da Costa Sousa -  amigo (?) N [Não ?]; [anotações ilegíveis, a seguir aos nomes]

Saudação - Estado deles. Tratamento, profissão, instrução, família; A situação deles. A juventude portuguesa; As mães, os pais, a família; O que é a nossa luta; o colonialismo português; A nossa posição; estamos certos de vencer; A posição do povo português (?); A posição do governo português, M. Caetano; Os crimes da guerra colonial; O nosso gesto: a vida deles está salva; O que esperamos deles. Documento disponível

[Observações - Estes 3 prisioneiros, Augusto Dias, Manuel Ferreira e João Costa Sousa, foram efetivamente entregues por Amílcar Cabral, em dezembro de 1068,  à Cruz Vermelha do Senegal, na pessoa de Rito Alcântara, Presidente da Cruz Vermelha no Senegal, e ex-vice-presidente da Cruz Vermelha Internacional durante 12 anos. Ver aqui foto do Arquivo Amílcar Cabral]





Instituição: Fundação Mário Soares

Pasta: 07060.029.011

Título: Apontamentos para a conversa com os prisioneiros de guerra.

Assunto: Apontamentos de Amílcar Cabral para uma conversa a ter com os prisioneiros de guerra portugueses, Augusto Dias, Manuel Ferreira e João da Costa Sousa, a serem libertados.

Data: Domingo, 15 de Dezembro de 1968.

Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Manuscritos de Amílcar Cabral.

Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral

Tipo Documental: Documentos

Direitos: A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.

Arquivo Amílcar Cabral
04. PAI/PAIGC
Segurança

Citação:
(1968), "Apontamentos para a conversa com os prisioneiros de guerra", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41211 (2016-6-7)
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terça-feira, 17 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15376: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (29): De 08 a 16 de Abril de 1974

1. Em mensagem do dia 14 de Novembro de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 29.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

29 - De 8 a 16 de Abril de 1974

Da História da Unidade do BCAÇ 4513: O reconhecimento de Sua Excelência

ABR74/08 – (...) De Sua Excelência o General Governador e Comandante-Chefe, foi recebida uma mensagem, manifestando o seu apreço pelo esforço desenvolvido pelo pessoal empenhado na segurança e trabalhos das duas frentes de estrada A. FORMOSA-BUBA.


Das minhas memórias:

15 de Abril de 1974 – (segunda-feira) – A estrada. Sempre a estrada

Em carta para a Metrópole refiro a dado passo: “Neste momento estão, ao todo, 7 grupos de combate em Nhala. Três, para além dos da minha Companhia, devido às obras da estrada nova. As máquinas ficam no mato a cerca de 9km daqui e temos de pernoitar lá para as proteger. Ainda mais, junto a um corredor do PAIGC. Passam-se, assim, 26 horas fora do aquartelamento”.

Era mesmo assim. Depois do encontro das duas frentes de trabalho ocorrido no passado dia 7 e com as máquinas a operar cada vez mais longe, para além das picagens de manhã cedo e da protecção às obras ao longo do dia, ainda tínhamos que dormir no mato para proteger a maquinaria. Era necessário rodar os grupos de combate nestas rotinas. Daí o reforço da tropa em Nhala.

E como era dormir no mato, em campo aberto, quase em cima de um trilho do inimigo? E, já agora, como era a última refeição do dia em tais circunstâncias? Tentarei dar uma ideia a seguir. Antes, referir que a preparação, de véspera, para um dia tão longo, era feita com mil cuidados e muitas preocupações. A Engenharia construíra no local de pernoita um abrigo à superfície, apenas com terra, que parecia uma LDG com uma barreira de segurança que a dividia em duas. Era assim uma espécie de barca do inferno mas, para não associar o Gil Vicente a um empreendimento sem grandiosidade, chamar-lhe-ei “LDG” em terra.

Antes de escurecer instalávamo-nos na “LDG” e organizávamo-nos como num destacamento, de modo estratégico e com sentinelas toda a noite em rotação. Dada a proximidade da mata nas nossas costas, o que eu mais temia era um assalto. E nós éramos apenas um grupo de combate desfalcado. Instruía todos para essa eventualidade. Recordo bem que, a pensar nessa situação extrema, arranjei de véspera uma saca velha de farinha e nela carreguei seis ou sete granadas defensivas (um peso do caraças, para além das que sempre usei à cintura), e que foi a minha cabeceira no dia das fotografias que junto.

Da mata à nossa frente, muito para além da estrada, e onde por mais de uma vez foram vistos vultos em movimento na orla, o meu receio era a flagelação prolongada. Mas também essa hipótese foi acautelada com maior quantidade de granadas.

Outro receio fundamentado era que, de manhã, com a chegada dos novos grupos de combate e as viaturas que nos levariam de regresso, fôssemos atacados aproveitando a inevitável confusão e excesso de homens no terreno, como já ocorrera noutros locais. Mas nem de noite nem de manhã aconteceu nada. Também poderíamos ser emboscados na correria maluca de regresso a Nhala, duas ou três viaturas com um pelotão mal dormido, desacautelado de cuidados. Enfim, mesmo ao almoço não estávamos livres de nos engasgarmos e morrermos asfixiados com as salsichas da bianda...

Imagem de satélite do Google Earth (2013), com a devida vénia, onde realcei a branco a estrada de A. Formosa-Buba (1973-74). A linha que tracei do “carreiro” de Uane é aproximada e intercepta a estrada (círculo vermelho) a, mais ou menos, 9 km de Nhala. Do lado de Buba não recordo a localização dos carreiros. As imagens que se seguem referem-se a uma das dormidas no mato na zona do círculo vermelho. 

Foto 1: Abril de 1974 – Local de concentração das máquinas da Engenharia após mais um dia de trabalho. É aqui que iremos passar a noite para a sua protecção. Em primeiro plano, parte do pessoal de um grupo de combate da CCAÇ 18, creio, que estiveram com o meu grupo na protecção às obras durante o dia, e que agora se preparam para regressar a A. Formosa, deixando-nos sós. Vê-se uma White dos nossos camaradas da Cavalaria que os vão acompanhar. Tirando este bocadinho de terreno com sombras, onde até se podia fazer um piquenique, tudo em redor é inóspito e desolador. Um cenário de matas e terras revolvidas, quase apocalíptico. Em contraponto, o humor do pessoal parecia desenquadrado, como se não estivessem ali para o que se sabia. E quando assim era, significava que nada de mal nos acontecia. E não aconteceu.

Foto 2: Lamentavelmente desfocada, mas única, esta fotografia de mais alguns elementos do grupo de Cavalaria. 

Foto 3: Todo o pessoal abandona o local e regressa a A. Formosa. Esta White teve um dia uma fraqueza de ânimo mesmo à minha frente, em Nhala. Mais tarde contarei o episódio.

Foto 4: O meu grupo de combate dispersa-se e toma a última refeição do dia, antes de se abrigar para passar a noite. Que virá rápida. De pé, da esquerda para a direita: Furriel Oliveira, Rui Pereira, Furriel Pastor e 1.º Cabo “Tarouca”. Sentados: Manuel Gomes, à esquerda, e o Baptista à direita. O do centro não recordo o nome. 

Foto 5: O Furriel Oliveira faz a distribuição de água. 

Foto 6: Este é o Victor, andrajoso mas de grande carácter e bonomia. E safado. Foi preciso a película dos slides fazer o périplo Guiné-Metrópole-Espanha-Metrópole-Guiné, para eu perceber aquele riso sarcástico: tinha as calças rotas e uma exposição indecorosa. Na altura, com o cantinho de uma lâmina raspei do slide as indecências. Quer dizer, estraguei o slide.

Foto 7: O grande e eficiente bazuqueiro do grupo, “Mafra” (por ser de lá). Ao fundo vê-se o 1.º Cabo maqueiro, Custódio. 

Foto 8: O Alferes António Murta a dar corda a uma lata de feijoada, creio. O que recordo bem é que no final do repasto comi duas ou três mangas apanhadas ali próximo (Samba Sabali?). Fora o conselho de alguém para que passasse a noite sem ter frio... 

Foto 9: Rapazes do melhor que havia, e eram muitos no meu grupo. Da esquerda para a direita: José Gomes, “Mafra”, Victor e Osório (de costas). O Osório é de Coimbra e encontrei-o uma vez, para alegria de ambos. Pena que não tenha fotografado a totalidade do grupo, mas nem sei se tinha película para todos. Nem os custos eram como os de hoje.

Foto 10: O Sol ainda não espreita. Uns dormem, outros vigiam. Eu recomeço a fotografar. Esta imagem foi captada da barreira que divide em dois o grande abrigo: “LDG” em terra, lado do morteiro. E de Nhala.

Foto 11: Ainda do lado do morteiro, com o pessoal já despertar. A humidade nos ossos ficaria ainda por muito tempo.

Foto 12: O lado oposto da “LDG” com o “posto de comando” em primeiro plano, onde se vê o Furriel Oliveira a tomar o pequeno-almoço junto à minha cama. Na minha cabeceira é visível o cordão da saca das granadas defensivas. Felizmente, teria de carregar com elas de novo no regresso. Próximo, vê-se o “posto de rádio”, com o operador ainda a dormir. Lá para onde o nevoeiro ainda tudo cobre, a meia dúzia de quilómetros, fica Mampatá.

Foto 13: Em tempo de guerra também se limpam armas, e o Fur. Oliveira esmera-se. Está na hora de “desembarcar” e montar guarda às viaturas que entretanto chegarão para nos levarem de regresso a Nhala. Não tarda, a nossa tranquilidade vai ser perturbada pela chegada, sempre caótica, dos grupos que nos virão render em jornada igual. Mas a nossa alegria vai ser muita ao vê-los chegar. Por nós, está cumprida a missão.

(continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Poste anterior de 10 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15348: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (28): De 01 a 7 de Abril de 1974

terça-feira, 9 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14720: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (7): Levantar minas. Ponte interrompida

1. Em mensagem do dia 31 de Maio de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 7.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

7 - LEVANTAR MINAS. PONTE INTERROMPIDA

5 de Maio de 1973 (sábado)

É a primeira grande saída do meu grupo de combate (GC) para o mato, em sobreposição com um GC da Companhia que viemos render. Ao todo somos cerca de 60 homens. Vamos fazer um levantamento de minas antipessoais (A/P) num troço do carreiro turra de Uane. Para o interceptar, saímos por trilhos e a corta-mato, como se fôssemos para o rio Corubal, lá muito longe.
Os “velhinhos” parecem confiantes, mas são pouco faladores, como já tinha notado antes. Se eu tiver dúvidas em relação à progressão ou relacionadas com o campo de minas, já sei que terei de estar sempre a perguntar e esperar respostas curtas. Mas esta operação para mim é muito importante, porque depois de eles levantarem as minas que lá haviam instalado, terei de ser eu a voltar lá, só com o meu GC, e instalar as minhas.
[Hoje não entendo porque ficou a zona desminada até eu voltar lá de propósito para voltar a minar].

Depois de chegados à zona minada, o pessoal ficou na orla da mata à distância e os especialistas, eu incluído, dirigimo-nos para o campo aberto onde passa o carreiro, a fim de o localizar. Croquis nas mãos, procurando referências no terreno e picando sempre, chegámos ao carreiro e às minas. Não tendo anotado na altura, não recordo quantas eram mas sim que nenhuma tinha sido accionada e que todas foram levantadas sem problemas, embora com alguma demora devido às questões de segurança a respeitar. Fiquei com a impressão de que a implantação era demasiado óbvia, e tinha deixado alternativas aos turras para as evitarem. É uma lição a colher. Aproveitámos para trocar impressões sobre os problemas relacionados com a época do ano em que se implantam as minas e se fazem os croquis, para não haver grandes surpresas se as formos levantar numa época diferente. (...).

O que mais me agradou nesta operação, e porque não estava a contar, foi termos saído dali em direcção ao rio Corubal e não de volta ao aquartelamento, como era suposto. Foram mais uns 13 quilómetros por mata cerrada que ia mudando de características à medida que nos aproximávamos do rio, cada vez mais bela e luxuriante. Sem querer abusar de efusões líricas, anoto que era assim a África do meu imaginário. Muito diferente da mata grotesca e irregular, intercalada de savana árida, que já conheço. Caminho com entusiasmo, esquecido de fadigas, e tento absorver aquela beleza e a paz que transmite, só perturbada pelo latir, ao longe, dos macacos cães, segundo me informaram porque, com ingenuidade, tinha perguntado se morava para ali alguém..., e os latidos parecem de cães a sério.

Rio Corubal e ponte interrompida. 
Imagem retirada da Google Earth, tal como as duas seguintes, com a devida vénia.

Saímos da mata e deparámo-nos com um terreiro magnífico. Na nossa frente, ainda meio oculta, a surpresa que nos tinham prometido à saída do campo de minas: A PONTE INTERROMPIDA!
[Só muitos anos depois saberia o seu verdadeiro nome: Ponte Marechal Carmona. E, apesar de tantos anos decorridos, ainda hoje lamento não ter podido fotografar tudo o que vi ].

Entramos no tabuleiro da ponte e quase me emociono: tão longe de tudo, perdida no meio do mato, ali está uma obra portentosa e bela, a provar que naquele sítio remoto, houve gente a construí-la, houve gente a passá-la de uma margem para a outra do enorme rio.

Ponte interrompida e troço do tabuleiro que eu explorei.

Fico sempre impressionado quando, no meio do nada, encontro um vestígio da obra humana ainda que já inútil, como é o caso desta. Caminho ao longo deste troço da ponte atento ao estado de conservação, ainda razoável, do piso e das guardas laterais, até ficar perante o corte do tabuleiro onde a ponte é interrompida. Em baixo, o Corubal corre manso, como uma massa mole e negra que impressiona. A mata, nas duas margens, entra pelo rio dentro. Não se vislumbram pontos de penetração nas margens que indiciem travessias mas, dada a largura enorme do rio, não há certezas.

Pergunto aos graduados dos “velhinhos” quem cortou a ponte, mas não sabem dizer: «Diz-se que foram os sapadores da NT para impedir a passagem dos turras, mas também se diz que foram os turras para nos impedir a ligação entre Aldeia Formosa e o Xitole, Bambadinca, etc.». A hipótese de derrocada não é referida e, de facto, os cortes no tabuleiro parecem perfeitos demais para terem origem numa derrocada. Mas também é certo que se houvesse derrocada de pegões e o tabuleiro quebrasse pelas juntas, o corte pareceria perfeito. Ficará sempre a dúvida.

Ponte interrompida numa imagem Google Eart recente (2015), onde é visível um novo corte do tabuleiro, próximo da margem oposta. É por demais evidente que se trata de uma derrocada actual. Donde, apesar da longa separação temporal entre o primeiro corte e este, é de admitir que, afinal, a ponte ruiu simplesmente.


Chegamos a Nhala já tarde e exaustos. Para primeira saída para o mato, foi uma caminhada dura. Durante a formatura da ordem para verificações de segurança, antes do merecido descanso, tenho um dissabor com o meu GC que me deixou furioso. Os soldados andaram todo o dia carregados com as granadas de morteiro às costas e não levaram o respectivo tubo. Em caso de necessidade, apenas poderíamos municiar o pelotão “velhinho”! Como foi possível? Os furriéis não souberam responder, mas eram responsáveis por secções de homens e armamento. Certo é que o principal responsável fui eu. Mas o que mais me enfureceu foi ninguém me ter dito nada, a ver se passava, pois não acredito que ao longo de todo o dia não se tivessem apercebido da falha. Como lição valeu, e fica registada. Terei de estar mais vigilante.

(Ao transcrever notas como estas, bagatelas com mais de 40 anos, interrogo-me amiúde: que interesse tem tudo isto? E interessa a quem? Mas depois penso que é engraçado rever estas vivências com os olhos e o senso de quem já passou a barreira dos 60 anos. Éramos quase adolescentes, embora muitos com grandes responsabilidades. E pode ser que venha a ter ainda mais interesse para os meus descendentes. Sim, porque embora eu publique tudo isto no nosso Blogue, quiçá enfastiando os meus queridos camaradas, a razão última destas transcrições, (adiadas de ano para ano), é constituir uma espécie de espólio diarístico – não sei se lhe poderia chamar “diário” – a que juntarei as minhas fotografias, para os meus descendentes saberem algo mais desta fase da minha vida. Que nunca interessou à minha filha nem à restante família, nem aos amigos).

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14691: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (6): Chegada a Nhala

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9079: (Ex)citações (157): O sentido da expressão "assassinos de Mampatá" (Mário Pinto, CART 2519, 1969/71)

1. Comentário ao poste P9059, colocado por Mário Pinto (de seu nome completo, Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519, "Os morcegos de Mampatá", Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71):

do Mário Pinto Caros camaradas:


A Cart 2519 a que eu pertencia quando se instalou em Mampatá por volta do fim de Agosto de 1969, depois da construção da estrada Buba-Aldeia Formosa,  de má memória, recebeu como missão interceptar as colunas do PAIGC no corredor de Missirá que se deslocavam de Sul para norte via Nhacobá-Uane-Xitole.

Para cumprimento desta missão todos os dias um Grupo de Combate reforçado fazia emboscada no dito corredor em quanto outro Gr Comb patrulhava as imediações perto do corredor.

Neste contexto de acção foram diversas as vezes que interceptámos as colunas do PAIGC que na sua maioria era composta por carregadores civis, (população nativa controlada pelo PAIGC,) que se tornaram vítimas da guerra por força das circunstâncias do fogo aberto por nós quando caíam na zona da emboscada.

Era habitual depois da emboscada fazermos aproximação e reconhecimento ao local para recolher o material e feridos do IN se os houvesse e confrontarmo-nos com a realidade da acção.

Fomos também muitas vezes apeliados de ASSASSINOS pela Rádio Conakry, julgo que era norma o trato dado a todos nós pelo PAIGC quando tinham baixas.

Por isso acho que o termo Assassinos de Mampatá, a meu ver,  é um termo mais antigo que a CCAÇ  3326, herdou quando rendeu a minha Companhia em Mampatá.

Quanto á expressão: "Quando chegámos a Mampatá entrámos a matar, naquela zona em que praticamente se havia perdido o controle e rapidamente o reconquistámos"... 

Camaradas, lamento dizer mas não é correcto e posso confirmar pelos relatórios que tenho em meu poder.

Toda a Zona era complicada, sim, mas dominada pelas nossas forças que se movimentavam por toda a ZA causando vários desaires ao PAIGC, conforme se pode ver nos documentos e Historial da CART 2519. Agora julgo existir aqui é uma discrepância, pois como é sabido que as condições apartir do segundo semestre de 1971 tornaram-se mais duras e cresceram de intensidade por força de uma acção mais forte das tropas do PAIGC.

Posto isto...

Um abraço

Mário Pinto


PS - Em poste de 4 de Agosto de 2011, publicado no seu blogue (CART 2519 - Os Morcegos de Mampatá), o Mário Pinto informa o seguinte:

"Informo todos os Morcegos que já tenho pronto vários livros em Fotocópias do nosso Cap Jacinto Manuel Barrelas  Há Sangue na Picada. Quem o pretender deverá fazer o pedido para o meu email, pintanof@gmail.com ou pelo telm 931648953. O mesmo será enviado gratuitamente para a morada indicada pelos camaradas" .
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Nota do editor:

Vd. último poste da série > 15 de Novembro de 2011 >  Guiné 63/74 - P9046: (Ex)citações (156): A recensão a Pami Na Dondo foi feita não ao livro mas à pessoa do autor (Mário Fitas)

quarta-feira, 19 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2665: Poemário do José Manuel (4): No carreiro de Uane... todos os sentidos / são poucos / escaparão com vida ? / não ficarão loucos ?






Guiné > Região de Tombali > Simpósio Internacional de Guiledje > Visita ao sul > 3 de Março de 2008 > Imagens, eternas, do Rio Corubal: rápidos do Saltinho (a primeira, de cima); rápidos de Cusselinta, as restantes.

Fotos: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


1. Mais poemas do dia, do José Manuel, recebidos, dia a dia, ao longo de uma semana, de 8 a 15 de Março de 2008. Foram escritos na Guiné. Estavam guardados no baú do sótão. O José Manuel foi Fur Mil, Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74. Obrigado, camarada, por quereres partilhar connosco a tua escrita poética.

Já nada é igual
num mundo que cai
onde havia esperança
espreita o mal
é uma vida que se vai.

Salancaur 1973

josema
__________

A escuridão
pode não ser o fim
se após a noite
vier o dia
na escuridão
podemos encontrar estrelas
se depois de nós
houver sempre crianças.
josema
___________________

Pensar que amar é dor
é não amar
amar
é dominar
a violência
que há em nós
é um não á guerra
é não haver polícias
nem milícias
é procurar carícias
num prazer por acabar
josema
Guiné 1973
________

-Sabes? Sonhei
que as coisas boas
não acabaram
pois
não têm fim
acreditei
que vale a pena esperar
vale a pena
saber
que o nosso inferno
um dia
vai acaba
o maldita
ou a má sina
como lhe queiras chamar
havemos de enganar
juro-te
sinto dentro de mim
confiança
uma força renovada
-dos tolos! dizes tu
-seja, porra,
mas vale a pena
pois 'tou
farto de escutar
aquela voz
que tanto quero calar
‘tou farto de lamentar
este destino traçado
foda-se!
quero um futuro
marcado
com traço
por mim riscado.

Kolibuia (2) 1973
Josema
___________________

Seria bom pronunciarnuma doce ilusão
um até sempre
a dor atenuar
com um tímido
acenar de mão
não deixar
que a crueza da razão
se sobreponha à paixão
é bom sonhar
é bom esquecer
ou então nunca saber
que só nos pode ficar
um adeus como opção.

Guiné 1973
___________

Quero sonhar
e não consigo
viver um mundo
que não tenho
nem encontro
desejo amar
e não morrer
quero esquecer
a luta ódio
e não sentir
a amargura do suor
encontrar a paz
enterrar a dor
sim irmão
além no horizonte
bem longe
para lá daquele monte
mas o mundo ri
é louco
não vê
nem um pouco
e caminha para o fim.

Guiné 1973
_________________

Gostava de vos falar
dos esquecidos
dos heróis que a história
não narra
que as viúvas choraram
mas já não recordam
daqueles
que nem tempo tiveram
de ter filhos
que os amassem
descendentes
que os lembrassem
daqueles
que nunca tiveram
o dia do pai
vítimas de guerras
que não inventaram
em tempo que já lá vai
falar deles é prevenir
se bem que de nada lhes valha
de guerras que possam vir
geradas pela ambição
dos que nunca morrerão
num campo de batalha.
__________________

Olhos semi cerradosquerendo ver
para além das árvores
passo controlado
procurando caminho
já calcado e pisado
orelhas a pino
a querer ouvir
além da neblina
todos os sentidos
são poucos
escaparão com vida?
não ficarão loucos?

Carreiro de Uane 1972
josema
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Notas de L. G.:

(1) Vd. postes anteriores:





(2) Colibuía: povoação junto ao Rio Corubal, perto de Aldeia Formosa ou Quebo, que não consigo identificar na Carta do Xitole. Vd. poste de 26 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXVIII: Os rios (e os lugares) da nossa memória (2): Corubal (Saltinho e Contabane) (José Neto)