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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25225: (In)citações (265): A Guerra. Nos últimos tempos as notícias tendem a ser brutais e deprimentes (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

1. Em mensagem de 23 de Fevereiro de 2024, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos mais um excelente texto de sua autoria, desta vez discorrendo sobre o estado de guerra em que vivemos, originado por ódios ancestrais e tentativas de recuperação de impérios, por parte de ditadores sanguinários. O resto do mundo assiste, aparentemente, impávido e impotente. Entretanto a indústria do armamento pospera.


A GUERRA

Dia 24/11/2023
Nos últimos tempos as notícias tendem a ser brutais e deprimentes, são dias de nevoeiro, em que os olhos reflectem para dentro imagens negras e tristes. Para me libertar delas, apetecia-me banhar corpo e alma com a água límpida, transparente, saborosa e pura das fontes que conheci, quando menino e adolescente na minha aldeia, já adulto, com bom vinho, tal como os meus avós, o meu padrinho José Baptista, Fernando Pessoa, Luís de Camões, grande boémio, um e outro, os maiores poetas de Portugal, meus ídolos e heróis. O vinho bebido, sem toldar as capacidades sensoriais e intelectuais, dá alimento ao espírito, melhora o gosto estético e facilita a comunicação entre as pessoas.

Há mais de um ano temos sido bombardeados com notícias catastróficas.

- Há pouco mais de um mês reacendeu-se o conflito entre árabes e judeus na Palestina, com o ataque desumano do Hamas a civis judeus, com muitas mortes e reféns capturados. Por sua vez os israelitas responderam com um ataque desmedido e desumano porque o seu poderio militar é muito superior e o respeito pelas vidas humanas desses povos inimigos é idêntico. Esse ataque sobre a faixa de Gaza, que não tem poupado habitações, escolas e hospitais e já terá matado muitos milhares de inocentes. Guerras sanguinárias alimentadas pelo ódio de ocupações de territórios que povos milenares diferentes reclamam como seus há muitos séculos e a quem a comunidade das nações no último século não tem sabido dar a melhor ajuda a bem da paz entre eles e da paz mundial.
Judeus e árabes palestinianos, tutelados por dois deuses únicos e omnipotentes, eles e os seus crentes os mesmos templos e terras sagradas, que foram de uns, mais tarde de outros, depois dos mesmos num vaivém trágico de guerras, sangue, dor e morte, que tem alimentado um ódio infernal, que torna difícil o diálogo e a paz. Os cristãos, seguidores de Jesus Cristo, um judeu, (um Deus, um Profeta?) da outra grande religião monoteista, há séculos com as Cruzadas para conquistar e manter os seus lugares sagrados, também já entraram nessas orgias de sangue e de morte.

- A Invasão da Ucrânia, agora menos audível, pelo estrondear das bombas aéreas, mísseis e granadas de canhões e carros de combate, israelitas sobre a Faixa de Gaza, continua a fazer muitos mortos militares russos e ucranianos e a espalhar a destruição e a morte na Ucrânia, uma Pátria mártir.
Infelizmente Vladimir Putin, esse ditador sanguinário e megalómano, que quer restaurar o Império da Rússia, não morre, enquanto mulheres, meninos, velhos e outros morrem todos os dias.


Dia 18/12/2023

A tragédia dos homens é olhar o mundo com todo o rol de desastres, guerras, acontecimentos fastos e nefastos e não saberem as palavras melhores e mais adequadas para formar uma corrente de pensamento, que os transporte pelos caminhos da Paz Universal.

Falo desta quadra com horror, em que os cristãos, eu também o sou, por nascimento e formação, se aliaram aos judeus para matar os palestinianos da Faixa de Gaza, futuramente haverá outros. Matam velhos, mulheres e meninos. Matam os meninos com intenção de extirpar as sementes de ódio que estão a alimentar nesta guerra cruel que poderá alimentar outras guerras contra eles. Mas haverá sempre meninos que se salvam e com a sua memória magoada irão lutar para se libertarem e o ciclo de guerra continuará.

Os meninos cristãos do ocidente felizes com excessos alimentares e excessos de brinquedos, não têm culpa da morte, da doença, da sede, da fome, e da desgraça que grassa entre os meninos do médio-oriente e muitos outros milhões de meninos lindos de toda a Terra. Os seus pais e os seus avós terão culpas pelo egoísmo, alheamento e indiferença, os políticos que eles elegeram são cúmplices também desses assassínios em massa. As religiões orientam os homens para o bem, outras vezes no caminho do mal, mas os meninos quando nascem são todos inocentes e iguais.
Longa vida para os meninos de toda a Terra e que cada vez mais sejam dadas oportunidades de vida, de alimentação, de saúde, de educação e diversão a todos eles.

Ver é melhor que pensar mas só o pensamento activa e dá calor ao cérebro cria o novo e o belo, o horrível.
Está frio e sentimos uma sensação térmica desconfortável.
Na Europa festeja-se o Natal, uma festa religiosa, capitalista e pagã nos excessos e desperdícios, tal como os romanos, os grandes arquitectos deste continente, festejavam as bacanais.


Dia 15/02/2024

A música do silêncio percorre estrelas, planetas, constelações, galáxias, e faz-se ouvir em mensagens sonhadas entre as almas presas nos corpos humanos ou libertas deles.

Cronos é o deus grego do tempo, minutos, horas, dias, anos, que sem nos dar a vida nem a morte, estará sempre presente nessa contagem, entre o princípio e o fim. Os romanos que foram copiar a mitologia e a filosofia a essa civilização mais antiga e culturalmente mais avançada, deram-lhe o nome de Saturno. O que nos desgasta e envelhece é o poder dos deuses que controlam o tempo do nosso viver.

Mais tarde os nossos grandes aliados americanos, grandes guerreiros tal como os romanos, viriam alimentar-se da vasta cultura e da religião europeia, para dar forma, alma e palavra, à grande nação que tais como os romanos fundaram em grandes batalhas de independência contra nações colonizadoras e de conquista contra os povos indígenas, que em grande parte dizimaram.
A história dos homens quando não fala do seu esforço e suor para conseguir alimentos e conforto, fala da dor, do sangue e das lágrimas derramadas, pelas guerras selvagens e desumanas, que povos bem armados provocaram ou povos mal armados sofreram.

Enfim, a nossa civilização judaico-cristã tem um verniz moderno e enganador que não nos liberta, da pré-história em que os homens em luta podiam matar famílias e até comer guerreiros inimigos.

Em Gaza não se comem guerreiros, mas matam-se famílias inteiras indiscriminadamente, com as armas fornecidas pela grande América e o beneplácito ou cobardia da Europa Ocidental. Conheci os lobos, mais pacíficos do que os cães, uivavam à distância, em noites escuras ou de luar, os cães seus primos ou irmãos, aliados aos homens, respondiam num ladrar prolongado, que se assemelhava ao uivar deles.
Ouvi-os muitas vezes, já na cama, aconchegado debaixo de lençóis e cobertores, em noites frias, quando a chuva caía e o vento assobiava entre as telhas, ou em noites de aguaceiros e trovoadas. Os lobos, animais inteligentes, que nunca atacavam os homens, no seu uivar, que parecia um lamento, queixavam-se dos homens por eles terem matado todos os animais herbívoros selvagens e não lhes permitirem comer uma cabra ou ovelha.

Os animais mais sanguinários da Terra são os homens. Nem consigo entender como ainda há deuses que os queiram salvar.


Dia 22/02/2024 - "O Observador"

"Edgar Morin, o famoso filósofo francês e filho de judeus sefarditas, acusa "o silêncio do mundo" perante a onda de violência massiva que atinge a população de Gaza."

Deste grande pensador e estudioso de várias áreas do conhecimento, que já tem 103 anos, muita experiência de vida e conhecimentos vastos em ciências humanas, que na França ocupada lutou contra os ocupantes nazis, continua lúcido e atento aos males presentes e futuros. Dele li, há mais de trinta anos, o Paradigma Perdido e o Homem e a Morte, leituras que me marcaram. Escreveu muitos outros livros.

Sinto-me confortado pelas suas palavras acusatórias. Finalmente encontro um pensador universal que sempre admirei, que projecta para toda a terra, com a autoridade que eu não tenho, a minha raiva e a minha angústia contra os senhores da guerra, os seus apaniguados, os políticos sem coragem e carácter e os pensadores menores que comem à mesa dos financeiros e dos capitalistas russos, judeus, americanos.

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25151: (In)citações (264): Adjarama, Amadu Bailo Djaló, por essa lição de vida (Cherno Baldé)

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22293: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte X: Igreja de Santa Sofia, Constantinopla, Bizâncio / Mesquita Azul, Istambul,Turquia, 2012





Igreja de Santa Sofia / Mesquita Azul, Istambul, Turquia

Texto e fotos recebidos em 15/6/2021



1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74.

Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas em mundo, em cruzeiros.

É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 280 referências no blogue.



Igreja de Santa Sofia, Constantinopla ou Bizâncio, ou Istambul, Turquia, 2012


De um lado, uma flamejante Mesquita Azul, do outro uma enfeitiçada igreja de Santa Sofia. Quase no meio, o espaço-memória do hipódromo romano, lugar, outrora, de elevadas cavalarias, execuções primárias, mil tragédias e farsas no teatro do mundo. Por perto, a Cisterna mergulhada na terra, há quinze séculos dando de beber às gentes de Bizâncio, Istambul. Lá em baixo, o azul do mar.

Santa Sofia me entristece. No tempo do imperador Justiniano, em 537, era o maior templo cristão jamais construído, se não tocava as estrelas, pelo menos abraçava o céu.

Na cidade, ao longo dos séculos, tantos guerreiros, tantos conluios, tanto malquerer, tantos exércitos…Trinta quilómetros de colossais muralhas circundavam Constantinopla, Istambul. A brutalidade ignóbil das lutas pelo poder. Assassinavam-se, envenenavam-se, cegavam-se imperadores, decapitava-se gente honesta. As naves da igreja de Santa Sofia inundadas de lágrimas. No entanto, luxo e arte também floresciam. Candelabros gigantes iluminando a escuridão, pilares de mármore, painéis coloridos, mosaicos enormes, os retratos de santos, de Jesus Cristo e de Maria, a vastidão dos espaços, o dourado do tempo. Houve igualmente muitas primaveras de concórdia e harmonia, e pessoas felizes em vidas tão breves.

1453, os turcos tomaram Constantinopla, vieram os sultões muçulmanos, inventaram Istambul, o império otomano tomou forma. Expulsaram e mataram cristãos, transformaram Santa Sofia numa imensa mesquita.

Hoje, entro na espantosa Hagia Santa Sofia, mesquita e igreja, a da Divina Sabedoria. Que Alá seja grande no seu trono invisível, que o humilde Jesus, todo-poderoso, nas pinturas e mosaicos do século XI, meio escondidos pelo veredicto temeroso do Islão, continue o seu caminho, por dentro, por fora de Santa Sofia, para além dos séculos, rumo ao infinito.

António Graça de Abreu, em Istambul, 2012

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terça-feira, 11 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22192: 17º aniversário do nosso blogue (10): por que é que das "lavadeiras" ao "sexo em tempo de guerra" vai um passo ? (Carlos Arnaut / Cherno Baldé / Luís Graça)


Baião > Ancede > Mosteiro de Santo André de Ancede > Mosteiro, masculino, cuja origem remonta aos primórdios da nacionalidade,,, Vale a pena uma visita,,, Está em restauro, com projeto de Siza Vieira... São quase mil anos de história que nos contemplam e nos confrontam ... Faz parte também da "rota do românico" (Vale do Tâmega)...

Mas tem também uma capela, octognal, do séc. XVIII, chamada do "bom despacho", que merece uma visita especialmemte guiada... Foi lá que descobrimos  a 'anjinha de Ancede', que parece passar despercebida aos visitantes e aos guias locais (*)... Uma delícia, essa e todas as demais peças da arte barroca popular, sob a forma de cenas de teatro, relativas aos mistériso da vida de Cristo... com destaque para a cena da circuncisão do menino Jesus...  Questão do foro teológica com muitos século, entre os cristãos, é a a discussão (por vezes acolarada, apaixonada e dramática) do "sexo dos anjos": são meninos ou meninas, ou não têm sexo ? Se são meninas, faz-se a "infibulação" (ou cobre-se com um véu para "tapar as vergonhas", os "pipis", ou o "pito", como se diz no Norte em bom calão); se são meninos... "cortam-se... as pilinhas", como aconteceu há décadas na igreja da frequesia de Paredes de Viadores, Marco de Canaveses (!)... (A arte islâmica tem  uma vantagem: não permite a figuração, seja humana, seja animal...)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentários ao poste P22173 (**)

(i) Carlos Arnaut  
 
Caro Luís: curiosa a questão das lavadeiras e o imaginário da contratação de "só roupa" ou "corpo todo".

Por tudo o que fui ouvindo ao longo da comissão, embora a amostra ao inquérito seja pequena, acredito que as percentagens encontradas estejam muito próximas da verdade . Acredito ainda que um contrato que englobasse a cláusula "corpo todo",  fosse mais fácil de conseguir com umas etnias do que com outras. 

Refiro-me concretamente às bajudas fulas, a quem, pelas razões conhecidas,  o sexo pouco ou nada dizia, enquanto que as balantas, por exemplo, tinham nessa questão toda uma outra postura. Mais uma variável, a étnica, para aprofundamento do estudo. 

A minha lavadeira, ao longo de 21 meses, desde que passei a comandar o 16º Pel Art, foi sempre a mesma, mulher do meu municiador Bona Baldé já referido anteriormente, e que sempre tratou da minha roupa com um desvelo sem par. (...)

6 de maio de 2021 às 12:23


(ii) Cherno Baldé

 Caro Arnaut,  interessante o teu ponto de vista sobre a variável étnica, mas não no sentido em que tu referes: "Refiro-me concretamente às bajudas fulas, a quem pelas razões conhecidas o sexo pouco ou nada dizia, enquanto que as balantas, por exemplo, tinham nessa questão toda uma outra postura". 

Na Guiné do periodo da guerra colonial ou na Guiné-Bissau actual, não existiu antes e não existe hoje nenhuma etnia em relação a qual "o sexo pouco ou nada dizia", isto não existia em África. É um fenomeno que surgiu com o período colonial e se acentuou com as independências e o alargamento da globalizaçao. 

Sociologicamente falando, o sexo sempre foi e ainda é um importante factor sócio-cultural que as sociedades, de uma forma ou outra, tentaram e tentam regular ou controlar de forma a influenciar o comportamento da reprodução e sustentabilidade das mesmas, assim como manter um nível aceitável de saúde materno-infantil. 

Em África, muitas vezes, o sexo estava ligado não só à procriação dos filhos, mas também à dinâmica da produção económica,  ou seja, na orientação dos mais jovens e mais fortes em relação ao factor trabalho,  etc. De modo que, e aí concordo, pode-se estudar o comportamento das mulheres usando as variáveis étnica e, talvez religiosa, no sentido de saber que factores podiam entrar nesse jogo, assim podemos questionar: 

(i) Quais eram os grupos populacionais ou étnicos maioritários no território em geral ou em determinadas regiões? 

(ii) Quais eram os grupos mais próximos em termos de aliança estratégica com os Portugueses e que mais facilmente podiam interagir com os soldados metropolitanos? 

(iii) Em que grupos populacionais os casos dos "filhos de vento" foram mais numerosos ?

(iv)  Quais eram as confissõs religiosas desses grupos populacionais e em que medida o factor religião facilitava ou dificultava a interaç~zo com os militares portugueses? 

A análise dos outros aspectos sociais como a maior ou menor dependência das mulheres e/ou a liberdade sexual entre outros, ja são mais difíceis de avaliar. Por exemplo, é geralmente consensual a opinião segundo a qual a mulher Bijagó é a mais livre e autónoma e, logo a seguir, vem a mulher Balanta e Manjaca. 

De todas, as mulheres muçulmanas são consideradas as menos livres e com menor grau de autonomia de decisão, aparecendo em primeiro lugar as mulheres Fulas, seguidas das Mandingas e outras da mesma religião. Todavia, dos casos de filhos vivos de portugueses com nativas que conheci, as mulheres muçulmanas (sobretudo fulas) aparecem em primeiro lugar, logo seguidas das Balantas (animistas) e em terceiro lugar vem as Manjacas (animistas). 

Mas, eu não me coloco no lugar de um estudioso desta matéria, pois eu, sendo nacional e pertencente a uma região e a um certo grupo étnico,  não posso ter o distanciamento necessário para o efeito. Sá queria demonstrar, se necessário fosse, que a variável étnica pode ajudar, mas não sera suficiente, de per si, para explicar toda a dimensão do fenómeno em discussão.  (...)

6 de maio de 2021 às 14:22


(iii) Luís Graça

Infelizmente, o tema ("lavadeiras", que já tem mais de 4 dezenas de referências no blogue...) tende a cruzar-se (e a sobrepor-se) com outros como bajudas, sexo, etnias, mutilação genital feminina, filhos do vento... mas também religião, etc. É um terreno um pouco "minado". E, como tal, tem que ser tratado com serenidade, informação, conhecimento, e sobretudo sem pré-conceitos.

Talvez o Carlos Arnaut possa explicitar melhor o que escreveu: "Refiro-me concretamente às bajudas fulas, a quem, pelas razões conhecidas, o sexo pouco ou nada dizia, enquanto que as balantas, por exemplo, tinham nessa questão toda uma outra postura."

O simples convívio, na Guiné, há 50/60 anos, com populações desta ou daquela etnia, e nomeadamente com a população feminina, não nos autoriza (, a menos que tenhamos feito estudos aprofundados sobre o assunto, ou tenhamos um grande conhecimento da literatura especializada...) a fazer comparações entre grupos e sobretudo a tirar conclusões numa matéria tão complexa e sensível como a sexualidade humana...

Julgq que o Carlos Arnaut quando diz que, naquela época, "o sexo pouco ou nada dizia" às raparigas e às mulheres fulas, "pelas razões conhecidas", estava a subentender o facto, estatisticamente fundamentado, da generalização da MGF (Mutilação Genital Feminina, para usar uma expressão adotada pela OMS - Organização Mundial de Saúde, e outras instâncias internacionais), entre as mulheres de religião muçulmana (e nomeadamente fulas).

Na época, poucos de nós tinha informação sobre este problema (que é antes de mais de saúde pública tanto quanto o é de direitos humanos). Nem as autoridades portuguesas nem o PAIGC se preocupavam com a tragédia imensa que representava então a MGF (,ou, de maneira mais grosseira, o "fanado" feminino, que também era e é um rito de passagem, um ritual de iniciação, com profundo significado sociocultural).

Em resumo, as fulas são (ou eram) "excisadas", as balantas não... Sabe-se que não é um problema de religião, opondo muçulmanas contra cristãs e animistas... É um problema mais vasto, de natureza socioantropológica, com raízes históricas complexas.

Que a MGF tem imnplicações, não só na saúde sexual e reprodutiva das mulheres, mas também na vivência da plena sexualidade (de mulheres e homens), isso tem... Mas eu seria incapaz de fazer comparações neste domínio (da sexualidade humana) baseado no factor étnico... E, por formação sociológica, não o faria...

É, de resto, um domínio onde há uma imensão de mitos e de preconceitos...ainda hoje, em pleno séc. XXI.

10 de maio de 2021 às 22:50
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Notas do editor:

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19213: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (59): os reordenamentos no desenvolvimento sócio-económico das populações, brochura da Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológioco [ACAP], do QG / CCFAG - Parte I



Guiné > Região de Tombali > Cufar > Matofarroba > Tabanca > 1973 > Aspeto parcial do reordenamento com o fontenário à direita


Guiné > Região de Tombali > Cufar > Matofarroba > Tabanca > 1973 > Aspeto do reordenamento feito pelas NT. Matofarroba ficava/fica, a 2km/3km, a sul de Cufar.


Fotos (e legendas): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Capa da brochura "Os reordenamentos no desenvolvimento sócio-económico das populações". Província da Guiné, Bissau: QG/CCFAG [Quartel General do Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné]. Repartição AC/AP [, Assuntos Civis e Ação Psicológioco].  s/d.

Foto: © A. Marques Lopes / António Pimentel (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

I. Na sequência do poste P19196 (*), decidimos reproduzir o documento supracitado, que nos chegou, em tempos, pela mão dos nossos camaradas António Pimentel e A. Marques Lopes, e que já foi publicado, no nosso blogue em 2007 (**) , com revisão e fixação de texto do nosso coeditor Virgínio Briote.  

Vamos pedir ao A. Marques Lopes que nos confirme: (i) o número de páginas da brochura; e (ii) se o texto foi publicado na íntegra na altura. Uma ou outra palavra está ilegível.

Vamos pedir aos nossos leitores, amigos e camaradas da Guiné, que nos disponibilizem textos, fotografias e outros documentos sobre os reordenamentos populacionais. Tanto quanto sabemos, não há trabalhos académicos publicados sobre este tópico. Muitos de nós estiveram envolvidos, direta ou indiretamente, nos reordenamentos populacionais no TO da Guiné, nomeadamente no tempo do Com-Chefe e Governador Geral António Spínola (1968-1973).

Gostávamos de poder fazer um levantamento de todos os reordenamentos populacionais realizados ma Guiné, durante toda a guerra. E idenficar os nossos camaradas que integraram as equipas técnicas dos reordenamentos (graduados e praças) (, caso. por exemplo, do Luís R. Moreira) e que no BENG 447 planearam, coordenaram, apoiaram e/ou supervisionaram a construação de reordenamentos (caso,. pro exemplo, do Fernando Valente Magro).

Reprodução do documento [Revisão e fixação de texto: VB / LG].


INTRODUÇÃO (pag. 1)


1. O problema de fundo de toda a manobra de contra-subversão é a conquista das populações. Na Guiné os argumentos sob os quais o PAIGC construiu a sua máquina subversiva e os objectivos que se propõe atingir, estão sendo anulados ou apropriados pela política prosseguida pelo Governo da Província, que se baseia no desenvolvimento sócio-económico da população em tempo útil.

A estagnação sócio-económica que se verificou no passado, facilitou a tarefa inicial do PAIGC em ordem à mobilização subversiva. Contudo não foi ainda, e não é a curto prazo, possível a
o partido de Amílcar Cabral concretizar os programas de fomento que propagandeia, por não ter ainda a adesão da esmagadora maioria da população e por não ter estruturas e quadros que os ponham em prática, em tempo.

Por outro lado, em relação ao Governo da Província, este esforço de fomento, no campo da manobra contra-subversiva, apresenta alguns aspectos favoráveis ao êxito:

  • reduzidas dimensões do território da Guiné, permitindo a rápida deslocação e que, com meios pouco vultuosos e dentro das possibilidades da Nação, se desenvolva a manobra contra-subversiva pelo fomento; 
  • o baixo nível de vida dos países limítrofes, possibilitando que uma sensível melhoria provoque um contraste notável.


Como atrás foi dito, a conquista das populações pelo desenvolvimento
sócio-económico, terá de fazer-se em tempo útil, "rapidamente e em força", provocando o desiquilíbrio das populações indecisas e mesmo das controladas pelo IN, a favor da causa portuguesa. 

As populações da Guiné apresentam-se extremamente receptivas e sensíveis às realizações que se traduzam numa melhoria visível da situação da Província. Assim, a necessidade de aproveitar todos os meios disponíveis e a colaboração a que as Forças Armadas são chamadas a prestar.


2. Os reordenamentos são um meio de promoção, mesmo quando impostos pela evolução da manobra militar do IN. O desenvolvimento sócio-económico através deles, alcançar-se-á mais facilmente pela:

  • concentração populacional em menores espaços, permitindo auferir maiores benefícios colectivos;
  • maior economia de meios humanos e técnicos;
  • o controle mais eficaz e adequado das populações, subtraindo-as à acção subversiva e impedindo qualquer ajuda que, eventualmente, pudessem dar ao IN;
  • a defesa mais fácil, pela concentração, possibilitando a auto-defesa, a existência de destacamentos militares ou a integração do agregado em planos mais vastos de defesa.

PANORAMA DOS PRINCIPAIS GRUPOS ÉTNICOS (pag. 2-3)



1. Podemos considerar que existem dois grandes grupos humanos na Guiné: islamizados e animistas. No primeiro grupo incluiremos os Fulas, Mandingas, Beafadas, Saracolés, Sossos e Panjadincas e no segundo, Balantas, Manjacos, Papeis, Felupes, Baiotes, Brames, Banhua e Bijagós.


Existem, no entanto, pequenos núcleos híbridos, formados por etnias que utilizam práticas animistas e islâmicas e são, geralmente, sub-grupos em vias de se islamizarem. 
O factor religioso condiciona todo um comportamento social feito de usos, costumes e tradições ligadas às práticas religiosas. 

Assim, existem dentro de cada um dos sub-grupos elementos de afinidade e repulsão, como existem também, e mais vincadamente, entre os islamizados e os animistas. Interessará conhecer os principais elementos de cada grupo e, ainda, de algumas etnias principais, tomadas como padrão.


ISLAMIZADOS
  • forte sentimento tribal;
  • quase fanatismo religioso;
  • apreço pelo gado bovino;
  • fidelidade tradicional às autoridades;
  • respeito pela hierarquia religiosa;
  • dependência jurídica do Alcorão;
  • culto da hospitalidade;
  • espírito guerreiro;
  • desejo de cultura, assistência social e melhoria de vida.

ANIMISTAS
  • sentimento tribal menos intenso;
  • sentimento religioso normal;
  • preconceito racial (em relação aos islamizados);
  • apego à família e à terra;
  • espírito guerreiro;
  • espírito de vingança;
  • desejo de cultura, assistência social e melhoria de vida;
  • coesão familiar;
  • respeito pela vida da mulher;
  • desejo de justiça.
Entre os islamizados existem também afinidades e repulsões, elementos que os caracterizam e que são suficientemente fortes para os opor e, simultaneamente, os unir. Usando como exemplo duas etnias islamizadas, as mais representativas quantitativa e qualitativamente, vamos verificar essas motivações.

FULAS
  • ódio ao mandinga;
  • apreço e dependência do gado bovino...
  • [ilegível].

MANDINGAS

  • ódio ao Fula; 
  • apreço de gado bovino só para fins ... [ilegível].


As afinidades entre os animistas são talvez mais flagrantes, visto que as religiões são diversificadas e não existe uma unidade sob o ponto de vista religioso que, como já se disse, condiciona o seu comportamento social. No entanto, existe similitude de práticas religiosas, o respeito pelos espíritos dos mortos e pelos símbolos que os representam (os Irãs), o respeito e aceitação espontânea e indiscutível das interpretações dos guardas de Irã que constituem uma espécie de sacerdotes do animismo.

Das etnias tomadas como exemplo, os Balantas e os Manjacos constituem as principais dentro do grupo animista. Os Balantas têm uma população de 150.000 habitantes e a totalidade do grupo constitui dois terços da população guineense. Os Felupes, sendo uma minoria étnica é, sem dúvida, extraordináriamente característica por ser uma das mais primitivas e, ainda, a mais antiga que se conhece como originária do território guineense.

BALANTAS
  • culto do roubo como prática social;
  • resistência à cultura europeia;
  • desrespeito pelas hierarquias verticais;
  • interesse material pela família;
  • resistência ao cristianismo e islamismo.
MANJACOS
  • aversão ao roubo;
  • desejo de toda a cultura;
  • respeito pelas hierarquias verticais;
  • interesse relativo pela família;
  • resistência ao cristianismo e islamismo.
FELUPES
  • não aceitação do roubo;
  • resistência à cultura europeia;
  • respeito pelas hierarquias verticais;
  • interesse pela família (influência da mulher);
  • permeabilidade ao cristianismo.
Existindo dentro de cada um dos grupos humanos- Islamizados e Animistas- motivações tão flagrantes, é lógico que entre ambos essas motivações aumentem, já que são duas sociedades distintas em presença, cada uma das quais mantendo em relação à outra uma certa animosidade. A compreensão dessas motivações, facilitará esta visão geral do mosaico étnico- religioso e humano- da Guiné Portuguesa.

ISLAMIZADOS
  • monoteístas;
  • forte sentimento religioso;
  • dependência jurídica do Alcorão.
ANIMISTAS
  • diferentes concepções da divindade;
  • relativo sentimento religioso;
  • independência jurídica de fórmulas religiosas.
(Continua)

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Notas do editor:


segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16854: O nosso querido mês de Natal de 2016 e Ano Novo de 2017 (8): António Carvalho (ex-fur mil enf, CART 6250/72, Os Unidos de Mampatá, Mampatá, 1972/74)


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250, "Os Unidos de Mampatá" (1972/74) > Um foto aérea de povoação e aquartelamento...  A esquerda o heliporto. Era uma tabanca fula, ,logo muçulmana.

Foto: © José Manuel Lopes (2008). Todo os direitos reservados.  /Edição e legenbdagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Um Natal Feliz

Para todos os meus amigos 
e para todas as pessoas do mundo. 
Mesmo para aqueles 
para quem o Menino Jesus 
não é Deus feito homem. 

É que eu tenho amigos das mais diversas religiões, 
nomeadamente amigos Muçulmanos, 
e não quero ferir a susceptibilidade religiosa de nenhum deles. 

Na verdade, ninguém tem que acreditar que Jesus é Deus, 
essa é uma crença dos Cristãos. 
Facto historicamente provado 
é que Jesus anunciou uma nova religião 
em dissidência com o Judaísmo, 
e mais está provado que Jesus difundiu uma doutrina 
baseada no bem, na bondade e no perdão absoluto 
e isso, se não o deifica, no mínimo, confere-lhe heroicidade. 

Pois, no dia em que se comemora o nascimento de Jesus, 
meditemos todos no que podemos contribuir 
para que a paz tome o lugar 
nos estúpidos conflitos 
que grassam no mundo.

António Carvalho 
[ex-Fur Mil Enf.
CART 6250/72, Os Unidos de Mampatá,
Mampatá, 1972/74; 
é natural de (e vive em) Gondomar]
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quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15556: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (50): Na minha língua materna, o fula, não existe a expressão "Feliz Natal"... Mas felizmente que a Guiné-Bissau é um país de tolerância religiosa, em que as duas religiões monoteístas, Islamismo e Cristianismo, coexistem bem com o animismo


Guiné-Bissau > Bissau >  2004 > Festa do Tabaski (ou do carneiro) (em árabe, Aïd el- Kebir ou Aïd el-Adha) > O nosso grã-tabanqueiro Cherno Baldé com os seus 4 filhos...  A festa do Tabaski (designação corrente nos países de forte tradição muçulmana da África ocidental)  é, a seguir à festa do fim do Ramadão, a mais importante do Islamismo, equivalente ao Natal cristão. A data é variável, em 2015, foi a 24 de setembro.

"Segundo o Islamismo, o filho herdeiro de Abraão foi Ismael e não Isaac. Esta festa é a comemoração do Livramento, do filho de Abraão que foi substituído por um cordeiro no momento exato em que seu pai iria sacrificá-lo, em obediência ao Senhor. Esta providência divina livrando (segundo o Islão) a Ismael, pai da nação árabe e antepassado do profeta, é lembrada anualmente por todo o povo muçulmano, como a Festa do Sacrifício ou a Festa do Cordeiro." (Fonte: Ordidja)

Foto: © Cherno Baldé (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legenda: LG]



Guiné-Bissau > Região de Bissau > Tabatô > 28 de Novembro de 2009 > A cerimónia do Tabaski... em que pela primeira vez participaram três europeus, não-muçulmanos, duas portuguesas e um espanhol... Uma das portuguesas foi a Catarina Meireles, médica, antiga aluna do nosso editor Luís Graça e amiga do nosso grã-tabanqueiro João Graça... Nesta foto temos uma vista geral da assembleia, durante a cerimónia do Tabaski, na aldeia mandinga de Tabatô, a escassos 10 km de Bafatá, na estrada Bafatá-Gabu. É a terra do nosso grã-tabanqueiro Mamadu Baio, ator e músico. (*)

Foto: © Catarina Meireles (2010). Todos os direitos reservados[Edição e legenda: LG]


1. Mensagem, de 29 do corrente, do nosso amigo  Cherno Baldé em resposta a um pedido do nosso editor ("Eh!, Cherno Baldé, aí em Bissau, bom dia!... Como se diz 'Feliz Natal'  na tua língua, em fula ?") (**)

Bom dia, amigo Luis! Que a paz esteja contigo e que tenhas um feliz Natal junto a familia.

Na minha lingua materna (Pullar), não existe a expressão "feliz Natal" porque o Natal é uma invenção recente, histórica e religiosamente falando, pois fosse mais antigo seria aceite e incorporado nas festividades religiosas muçulmanas porque o Profeta Mohamed sempre se via como o Profeta da continuidade das duas grandes religiões monoteistas anteriores e não enveredou pela ruptura, mesmo se os 'Surats' chamados de Medina são muito críticos em relação aos Cristãos e sobretudo aos Judeus que a habitavam e que estavam relutantes em o reconhecer como verdadeiro profeta e acima de tudo unificador.

Mas, ser Guineense significa, de uma certa forma, situar-se um pouco no meio das duas religiões e sobretudo solidarizar-se com os irmãos das outras confissões o que, penso eu,  representa uma particularidade específica da Guiné-Bissau, país onde a maioria muçulmana nunca esteve em confronto com a minoria cristã e onde os adeptos das religioes monoteístas nunca estiveram muito afastados das práticas e cultos animistas.

Esta convivência pacífica, em parte, é uma herançaa e resultou da prática colonial que ao mesmo tempo que promovia a religião cristã no seio dos povos do litoral animista e anti-colonial, era obrigada a colaborar com os muçulmanos por força da sua moderação e aliança no seio do "pacto colonial".

Já deixei os meus contactos para um possível encontro com o João Martel e a Ana Maria Gala [, voluntários na Missão da Cumura].

Para si e a todos os editores, assim como todos os restantes Régulos, Almamis, Conselheiros e Djargas da Tabanca Grande os meus votos de um bom e excelente novo ano, cheio de prosperidade, saúde e longa vida.

Um abraço amigo de muita saudade desde Bissau (Guiné-Bissau).
Cherno A. Baldé, Chico de Fajonquito

PS - Sobre o que disse antes, queria acrescentar o facto amplamente conhecido de que o venerando Cherno Rachid de Quebo (Aldeia Formosa) era um dos mais bem escutados Conselheiros do gen Spínola durante todo o período que esteve na Guiné como Governador e Com-Chefe da Provincia e, certamente os dois se terão influenciado mutuamente, facto que vem reforcar a tese da convivência pacífica.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 8 de julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6695: Memória dos lugares (89): Bafatá, Tabatô, Tabaski 2009: Não há preto nem branco, somos todos irmãos, disse a Fátima de Portugal numa cadeia de união... (Catarina Meireles)

 (**) Último poste da série > 1 de agosto de 2015 >  Guiné 63/74 - P14956: Relativamente ao desaparecimento do Alferes Leite, trata-se de um caso do qual ouvi falar desde a minha infância (Cherno Baldé)

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15215: Fotos à procura de... uma legenda (63): Bajudas de Bambadinca, fevereiro de 1970: um "grupo de idade" da etnia fula num dia de festa tradicional (Cherno Baldé, Bissau)



Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > BCAÇ 2852 (1968/70) > Pel Rec Daimler 2046 (1968/1970) > Fevereiro de 1970 > "Eu com um belo conjunto de bajudas junto à capela"..

Foto (e legenda): © Jaime Machado (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]



1. Mensagem de hoje do nosso amigo e irmãozinho Cherno Baldé, que vive hoje em Bissau, respondendo pronta e amavelmente a um pedido do editor LG para completar a legenda da foto (*):

Caro amigo Luis Graça,

Antes de mais aproveito para felicitar o Jaime  Machado (ex-alferes), pelas imagens do tempo que passou (e bem) em Bambadinca (*), o que mostra o seu elevado nível de cultura, já naquela época, muito acima da média daquilo a que a tropa em geral nos tinha habituado.

E em jeito de resposta àquestão do Luís Graça (**), na minha opinião, acho que as imagens retratam um "grupo de idade" da etnia fula num dia de festa tradicional. Por força da islamização, as festas desta etnia são quase todas de natureza religiosa. [Em inglês, "age set",conceito socioantropológico; vd. Enciclopaedia Britannica]

A postura e o olhar algo envergonhados, a indumentária, os penteados e os enfeites na cabeça e no corpo, dizem isso mesmo.

Ainda seriam solteiras mas, nesta idade estariam todas comprometidas (com casamentos arranjados entre os pais) e aproveitam os últimos meses de liberdade antes do casamento.

A presença de elementos ou símbolos estranhos usados como adornos pode ser explicada por razões de urbanização e da crescente mistura/influência de outros hábitos e culturas em Bambadinca (centro urbano e importante elo de ligação ao resto do país) e arredores, devido à guerra e ao movimento das populações.

Um abraço amigo,

Cherno Baldé

PS - A expressao "islamizado/a"  não é  correcta, seria mais correcto dizer "islâmico/a",  pois já nasceram dentro de uma familia, meio e cultura islâmicas, mesmo que superficial. Islamizados seriam os seus bisavos que, de facto foram coagidos (de forma voluntária ou não) a uma conversão, muitas vezes forçaada, nos sec. XVIII/XIX.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15154: Notas de leitura (760): "O colonialismo português", Coleção Estudos Africanos, Edições Húmus Lda., 2013 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Outubro de 2014:

Queridos amigos,
Já falámos de chineses em Catió, temos agora judeus na Senegâmbia, terão sido influentes no comércio, fazendo articulação com que hoje chamamos os Países Baixos.
Há novos rumos da historiografia do colonialismo português em África, este livro é um excelente exemplo. Adoro a capa, a passagem do rio Corubal faz parte do documentário fotográfico da viagem à Guiné do Ministro das Colónias, em 1941, é uma imagem soberba, a madeira da jangada parece sido cortada ontem. Interrogo-me em que zona do Corubal, talvez perto do Saltinho, hipótese a não excluir.
Tenho que bater à porta do Instituto de Investigação Científica Tropical, talvez uma caixinha de surpresas.

Um abraço do
Mário


O judaísmo na construção da Guiné de Cabo Verde, século XVII

Beja Santos

O termo Senegâmbia tem aqui vindo a ser largamente referido e conotado com um espaço situado entre o atual Senegal e a Serra Leoa, em que se fez notar a presença portuguesa no trato comercial, designadamente no tráfico de escravos. Nos últimos anos, observa-se um desenvolvimento importante na história do colonialismo português em África, há investigadores que aprofundam essa presença na Senegâmbia, é o caso de Eduardo Costa Dias, José da Silva Horta e Peter Mark. Esses estudos revelam ligações estreitas entre Cacheu e Pecixe, mais a Sul com os espaços políticos Beafadas, também com Bissau, e os eixos Cacheu-Farim e Bissau-Geba. Mas todo este espaço político-mercantil era o da Grande Senegâmbia onde os investigadores deram pela presença de comerciantes judeus, sediados no atual Norte do Senegal, atuando no rio Gâmbia e com articulações com Cacheu.

Em 2011, reuniram-se no Instituto de Investigação Científica Tropical investigadores portugueses e canadianos no seminário Novos Rumos na Historiografia dos PALOP, de que se publicou o livro "O colonialismo português", Coleção Estudos Africanos, Edições Húmus Lda., 2013.
Esta recensão prende-se com o trabalho apresentado por José da Silva Horta e Peter Mark, exatamente sobre o judaísmo na Guiné do Cabo Verde. Convirá que o leitor tenha em consideração o mapa que se publica, o Cabo Verde é a Sul do rio Senegal, mais ou menos em frente ao Arquipélago de Cabo Verde, pode ver-se a extensão da Grande Senegâmbia. Nos meios luso-africanos do tempo falava-se na Guiné de Cabo Verde. Começam os autores por referir que “Até muito recentemente o papel pioneiro desempenhado pela Guiné do Cabo Verde/Grande Senegâmbia na construção do Mundo Atlântico foi contornado e desvalorizado por contraste com o protagonismo nesse processo conferido a outros espaços africanos como o Golfo da Guiné e a África Central Ocidental”. E explicam a importância da região: “A vasta área da Grande Senegâmbia não só se abriu profundamente aos mercados ocidentais como respondeu plenamente aos desafios que essa abertura implicou, a qual não se ateve ao tráfico de escravos. Parte dessa resposta foi a conhecida integração de mediadores mercantis e culturais de origem sobretudo portuguesa e lusodescendente nos sistemas e modelos de relacionamento africanos pré-existentes”. O Arquipélago de Cabo Verde assumiu uma função crucial na construção dessa mediação, foi o dínamo desse trânsito cultural.

Grande Senegâmbia/Guiné do Cabo Verde do Noroeste Africano

Porém, no início do século XVII, deu-se um ponto de viragem, passaram a entrar na Guiné judeus. Até agora a historiografia falava sempre na identidade luso-africana associada ao cristianismo. Os historiadores apenas sabiam de maneira imprecisa que no século XVII, nesta Grande Senegâmbia apareceram judeus praticantes. Sucessivas investigações posteriores esclareceram a presença de judeus confessos na Guiné. E os autores explicam como se apurou este facto: “A investigação foi baseada, numa primeira fase, em documentação da Torre do Tombo, pertencente ao Cartório do Santo Ofício e numa segunda fase nos registos notariais e internos dos membros da comunidade de judeus portugueses, consultados em Amesterdão, que se revelaram, no essencial, preciosamente complementares às informações dos documentos arquivados pela Inquisição. Os documentos que recolhemos e trabalhámos permitiram-nos reconstituir a existência de comunidades de judeus no atual Norte do Senegal. Cerca de 1606-1608, estes judeus operavam na região, mantinham-se em comunicação com a comunidade de Amesterdão, a eles se juntaram cristãos novos vindos de Portugal (nomeadamente do Porto, de Cabeço de Vide no Alentejo e de Faro) eram reconhecidos como judeus, sem qualquer discriminação. Estes judeus luso-africanos visitaram ou passaram a residir nas Províncias Unidas (hoje Países Baixos), conjuntamente com mestiços ou mulatos".

Está demonstrada a presença destes judeus nas atividades comerciais com a proteção dos dignatários africanos, caso dos reis wolof e sereer. As autoridades eclesiásticas bem tentaram que estes reis prendessem os judeus e que eles fossem recambiados para Lisboa, sem sucesso. E adiantam os autores quanto à natureza do comércio praticado: “Verificámos que além do comércio de couros, marfim e cera, judeus e cristãos novos estavam também envolvidos no comércio de armas, proibido pela Santa Sé e pelas coroas católicas, nomeadamente comércio de armas brancas. A existência de um importante comércio de armas brancas nos finais do século XVI e século XVII, contribui para desconstruir o conceito de warfare cycles estribados numa mercadoria específica (cavalos) ou num tipo de arma (armas de fogo). Esta rede mercantil incluía destacados membros da comunidade dos judeus sefarditas de Amesterdão, nomeadamente da congregação Bet Jacob”. Os investigadores observam que este contingente de cristãos novos foi muito significativo entre a população dos lançados e outros portugueses residentes na Guiné. Eram judeus de identidade flexível, e dão o exemplo: “Em 1612, Jesu (ou Joshua) Israel, como era conhecido no Norte da Senegâmbia, metamorfoseava-se em Luís Fernandes Duarte quando tinha de se corresponder com um parceiro comercial africano, transmutando-se novamente em Joshua na correspondência interna às comunidades judaicas e aos parceiros cristãos-novos em que confiava”.

Enfim o cristianismo desempenhou nesta Senegâmbia do século XVII um papel fundamental nas relações luso-africanas mas o dado novo foi a chegada destes judeus que a partir do Norte da Senegâmbia geraram uma nova identidade, casaram-se com mulheres africanas e converteram a descendência ao judaísmo. As investigações continuam. E os autores finalizam assim o seu artigo: “Se o mundo mercantil do século XVII funcionava através de redes locais, regionais, intracontinentais e transcontinentais, também os fenómenos da história social decorrentes desse mundo deveriam ser reinterpretados sem partir necessariamente de um centro europeu. Foi isso que procurámos fazer”.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15136: Notas de leitura (759): "A Educação na República Democrática da Guiné-Bissau, Análise Setorial", editado, em 1986, pela Fundação Calouste Gulbenkian (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15104: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (15): Afinal houve mesmo guerra?

 

1. Em mensagem do dia 5 de Setembro de 2015, o nosso camarada António José Pereira da Costa (Coronel de Art.ª Ref, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos o artigo que se segue para incluir na sua série "A Minha Guerra a Petróleo":



A Minha Guerra a Petróleo (15)

Afinal houve mesmo guerra?

Introdução

Com este texto pretende-se realizar uma abordagem, de um outro ponto de vista, aos acontecimentos que marcaram, porventura do modo mais decisivo, a vivência no nosso país, durante os anos de 1961 a 1974, vulgarmente designados por Guerra “do Ultramar”, “Colonial” ou “de África”.

Dadas as características que a “Guerra” veio a ter – essencialmente uma luta, através das FA portuguesas, entre uma parte da população e as autoridades – a maneira como os africanos nados e criados naqueles territórios se relacionaram com os europeus, chegados da potência colonizante, ao longo de todo o processo de colonização, será a grande determinante do sucedido. Efectivamente, um relacionamento tolerante e amistoso entre quem chegava e quem já estava teria, muito provavelmente, determinado uma interpenetração entre civilizações que, quinhentos anos após a descoberta, daria às sociedades das ex-colónias um fácies diferente daquele que vieram a ter. Não foi esta a regra em quase todas as partes do mundo. Por norma, quem chegava sabia ao que ia, tinha objectivos concretos a atingir e partia da hipótese de que a superioridade tecnológica e até ideológica de que dispunha lhe concedia larga vantagem e direitos.

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Linha Gerais da Evolução do Conflito

Prossigamos na análise, começando por realçar a desproporção entre os mais de quinhentos anos que durou a constituição do império (desde a chegada dos navegadores até à insurreição que terminou com a independência) e a escassez de documentos de toda a espécie, que permitiriam, para cada território, a elaboração da marcha histórica, mesmo que apenas na definição das grandes linhas legislativas e administrativas. Seria importantíssimo ter uma visão, mesmo vaga, acerca do modo como, ao longo dos tempos, se terá processado a vida diária em cada território. Por motivos óbvios não é possível obter esta informação por extrapolação relativamente ao modo de vida na metrópole, este sim relativamente bem conhecido. Podemos até, com bastante legitimidade, tomar a escassez de documentação como confirmação de que as possessões africanas viveram, pelo menos até aos anos vinte do século passado, num certo grau de abandono “descentralizado”. Aquele abandono seria determinado por três causas principais: as comunicações difíceis e lentas1 (que impediriam que a administração central fizesse sentir a sua acção e obrigavam a que o governo fosse localmente exercido de forma pouco controlada), o clima (sempre tido como insalubre e doentio, impróprio para a fixação dos brancos) e, durante vários séculos, uma falta de finalidade na posse dos territórios de além-mar. Com efeito, não se vislumbrou, durante séculos, nada mais útil a obter daquelas terras do que a mão-de-obra escrava, já que a maior parte dos produtos que lá se pudessem obter ou para lá se pudessem enviar não chegariam em condições de utilização.

Ainda no capítulo da documentação, ou da falta dela, poderemos recolher elementos meramente indicativos numa publicação2: Livro das Plantas de todas as Fortalezas, cidades e Povoações da Índia Oriental, de António Bocarro, datável de 1634/35. Nele encontramos 48 plantas, entre Sofala (Moçambique) e Solor (Timor), que apontam claramente para uma tentativa de domínio do mar pela ocupação de posições com elevado valor táctico-estratégico e nunca com uma ocupação, em profundidade, dos territórios onde os portugueses desembarcaram. Desta forma de ocupação, ou melhor, desta disseminação chegaram aos nossos dias as três possessões do Estado da Índia – três vértices de um triângulo marítimo de dimensões muito consideráveis – a cidade de Macau e a meia-ilha Leste de Timor, o que atesta que se terá dado “um passo maior do que a perna permitia”. Outro tanto terá sucedido com a tentativa de ocupação da costa Leste da África do Norte que se saldou por uma impossibilidade e atingiu formas de um dramatismo doloroso, para além de um desperdício de meios de toda a espécie. É sabido que a partir da segunda metade do Séc. XIX a prioridade passou a ser a África, já que o Brasil tinha tido o destino habitual das colónias rebeldes naqueles tempos. Decorreu pouco mais de um ano entre a saída do D. João VI daquela colónia e o Grito do Ipiranga. A Coroa nem esboçou um gesto contra a independência declarada por um príncipe português…nem tinha forças para o fazer.

O ideário que durante os últimos cem anos tem vindo a ser apresentado pelas instâncias do poder e divulgado a quem frequentou os diferentes graus de ensino não ajuda a um conhecimento objectivo da realidade vivida nas fracções do império e do modo como se relacionaram com a administração central, em Lisboa. Tudo é apresentado como se os territórios em causa não tivessem passado e houvesse uma relação de posse (abstracta, mas insistentemente apregoada, diga-se) entre o próprio povo metropolitano e aqueles territórios. Dá assim a impressão de que a situação encontrada foi simples consequência da “dilatação da Fé e do Império” e dos “novos mundos ao mundo” que os portugueses andaram a dar…

Surpreendentemente, nos mesmos territórios onde a “Guerra” teve lugar, as historiografias monárquica e republicana registam um outro conflito insurreccional de características muito semelhantes, ao qual foi atribuída a designação de “Campanhas de África” ou “Campanhas de Pacificação”. Em linhas gerais podemos dizer que se tratou de um conflito intermitente, em alguns momentos fomentado e apoiado do exterior e repetidamente “encerrado”, ou dado oficialmente como tal, de um modo ao qual não podemos deixar de chamar, no mínimo, pouco claro. Esta situação levanta algumas questões e abre perspectivas de outros estudos. Na realidade, o uso do plural (Campanhas) comprova que houve várias (e nos três territórios) e, se foram “de Pacificação”, conviria determinar porque se realizaram, sendo certo que só é pacificado quem se subleva e só se revolta quem tem motivos (fortes) e condições (favoráveis) para tal. Teríamos, por consequência, umas “Primeiras Campanhas” e umas “Segundas Campanhas” distanciadas de um intervalo de tempo que, em alguns casos, nem sequer chegou a cinquenta anos. Dir-se-ia que, ao longo de pouco menos de um século, a agitação social naqueles territórios nunca deixou de estar presente, uma vez que o Poder teve repetidamente de sufocar focos de contestação (mais ou menos intensos) e tentar restabelecer a sua autoridade. Isto para não falarmos das sublevações que a historiografia "perdeu” e cuja pista, hoje, é difícil de seguir.

Concentremo-nos, agora, na análise genérica do modo como as populações das colónias se relacionaram com os europeus. Tudo começou com um contacto, por vezes choque, entre civilizações de diferentes níveis de evolução tecnológica e não só, no qual os europeus tentaram a exploração dos recursos locais – principalmente humanos – e os autóctones que, após um momento de surpresa, procuraram resistir-lhes.

A civilização que chegava, não só era mais evoluída tecnologicamente, mas também, detentora de uma religião que pretenderia expandir e de concepções do mundo e modelos filosóficos, com os quais os das civilizações locais pareciam não poder competir. Acresce que a religião praticada pelos europeus era tida pelos próprios como única e perfeita e à qual, por consequência, todos deveriam converter-se. Tudo indicava, portanto, que as civilizações ditas inferiores seriam rapidamente “subjugadas” e assimilariam as novas regras que regiam as civilizações ditas superiores, cujos delegados acabavam de chegar. Conhecemos genericamente a composição das expedições que sucessivamente partiam de Lisboa, com destino às colónias, e tal é suficiente para confirmarmos que estes delegados ou agentes não seriam os mais representativos da civilização que chegava e os mais aptos para fomentar um bom contacto com a civilização residente.

Contudo, as civilizações africanas não o podendo fazer pela força das armas, concentraram a resistência em três grandes áreas: a língua, a religião e os costumes, em última análise, os três principais pilares definidores de qualquer civilização.

A língua portuguesa que penetrou facilmente no Brasil, devido à fuga e extermínio dos índios e ao grande número de “imigrantes” oriundos de Portugal, nunca foi nem medianamente aceite pelos habitantes das outras regiões que se tentavam colonizar, na África ou na Ásia. Embora hoje o português seja considerado a língua oficial de todas as ex-colónias, há nelas largas áreas onde a população não o fala, mantendo as suas línguas tradicionais. A atestá-lo podemos citar dois exemplos. Ainda hoje o português dificilmente rivaliza com o tétum em Timor e, na Guiné, as populações rurais e muitas citadinas falam os seus dialectos ancestrais, alguns sem expressão escrita ou, como no caso dos fulas e mandingas, exprimem-se num dialecto do árabe. O crioulo sobrepõe-se ao português, sempre que a diferença entre dialectos impede uma comunicação satisfatória. Cabe aqui referir que já à data da independência era assim, apesar dos esforços de alfabetização levados a cabo pelas autoridades, o que confirma, em absoluto, a recusa das populações autóctones em empregar a língua portuguesa.

No fundo, estamos perante algo semelhante à adopção das fronteiras da Conferência de Berlim, durante a implantação das independências africanas. Neste caso, foi a língua que serviu para marcar uma diferença em relação aos povos circundantes. Com efeito, se a definição das fronteiras retalhou etnias e regiões naturais, com os resultados que se conhecem e que dificilmente serão colmatados, a médio prazo, a adopção da língua da potência descolonizante procurou consolidar a separação entre países recém-independentes e dotá-los de um idioma que lhes pudesse dar visibilidade e facilitasse o relacionamento internacional. Não havia, por isso, outra solução que permitisse dar um passo na aglutinação do país e projectá-lo na cena internacional.

A religião foi outra área em que as populações das colónias resistiram à penetração dos europeus. Em alguns casos, como na Índia, em Moçambique ou na Guiné sabemos que o cristianismo teve de competir com religiões muito evoluídas e em expansão ou já fortemente implantadas. Estão neste caso o budismo, o induísmo e o islamismo, mas outras formas de religião ancestrais, porventura menos evoluídas do ponto de vista filosófico e doutrinário, também não desapareceram, ficando o cristianismo, nas suas principais variantes, difundido de um modo muito modesto para quem se propunha converter populações em massa, numa gigantesca tarefa apostólica. Há a referir, todavia, que só Portugal assumiu esta tarefa e, mesmo assim veio a descartá-la algum tempo depois.

É difícil dizer se as religiões já implantadas é que não permitiram a difusão do cristianismo, por estarem mais adequadas às necessidades espirituais e hábitos de vida das populações que as abraçaram, ou se foi o abraçar daquelas religiões que determinou a estrutura social que os portugueses encontraram, mas não restam dúvidas de que as conversões ao cristianismo poderiam ter sido muito mais numerosas.

No caso das religiões animistas, aparentemente frágeis de um ponto de vista a que podemos chamar doutrinário, filosófico ou teológico, verificou-se uma situação de encobrimento das práticas por parte das populações e uma fuga à emulação com a doutrina e filosofia das religiões praticadas pelos europeus. No fundo, não tiveram sequer necessidade de simular práticas religiosas que não eram as suas, pois, a dado momento a expansão das religiões europeias deixou de ser uma prioridade para os colonizadores (Séc. XVIII e seguintes). O número de igrejas abandonadas e em ruina acentuada é hoje prova de que a religião que os portugueses trouxeram não vingou num terreno onde outras já existiam.

Por fim, uma terceira área de resistência que se manifestou na recusa em abandonar muitas práticas e hábitos, alguns bem antigos, para adoptar os correspondentes europeus. É certo que os europeus procuraram não divulgar muitas das suas práticas e técnicas, o que lhes permitia manter a sua superioridade tecnológica e o correspondente domínio sobre as populações locais mas, no que respeita aos usos e costumes, estas preferiram sempre as práticas antigas às dos europeus. Obviamente que houve casos em que as práticas e os hábitos trazidos pelos colonizadores foram aceites pelos autóctones, como sucedeu nas relativas à saúde, mas é ainda hoje, perfeitamente perceptível a semelhança entre muitas aldeias do interior das ex-colónias portuguesas e a reconstituição proposta pela ciência para as aldeias do neolítico. É paradigmático o sucedido hoje na Guiné onde há claras dificuldades, por parte das populações e autoridades, especialmente rurais, em utilizar edifícios administrativos, infra-estruturas logísticas, viárias e portuárias, deixadas pelos portugueses, para não falar do abandono completo de algumas localidades que, no passado, tiveram importância considerável.

Desta longa resistência, a que poderemos chamar passiva, resulta que deveremos aceitar que o chamado “passado comum” que, por vezes, se evoca para justificar a necessidade de se estabelecer uma ligação sólida entre os novos países e a potência descolonizante, foi algo que não foi, de todo, amistoso e, se bem virmos, é elemento aglutinador de qualidade duvidosa. Em última análise, estamos a “varrer para baixo do capacho” uma série de motivos e razões de queixa que até se podem perdoar, mas que não se esquecem. Há mesmo, ao longo de toda a colonização, episódios e situações que envergonham uns povos e revoltam os outros. A História não se esquece, ignora-se ou relembra-se, sempre que se julgar necessário ou oportuno. As tensões foram-se avolumando lentamente e a atestá-lo temos a revolta de uma parte da população das colónias contra as autoridades de direito (segundo uns) ou de facto (segundo outros). A História mostra que a projecção de força contra colónias rebeldes não é boa solução, mesmo que tal possa ser feito com grande violência e riqueza de meios, e terminou, por vezes a curto prazo, sempre com a derrota da potência colonizante. E tanto assim é, que houve países que preferiram conceder a independência às suas colónias, logo que nestas se perfilou pelo menos uma força política que a exigisse, renunciando totalmente ao uso da força contra essa ou essas forças. Tal foi caso da Espanha e da Bélgica.

A solução adoptada por Portugal foi única e há quem diga que nenhum outro país fez melhor ou, pelo menos resistiu tanto tempo, considerando os meios disponíveis ou aplicados e as condições políticas nacionais (principalmente) e internacionais. As autoridades portuguesas procuraram, durante 13 anos, sufocar uma revolta que coroava um descontentamento velho e só poderiam queixar-se de si próprias. Os apoios materiais que conseguiam obter não foram suficientes e revelaram-se dispendiosos e, ao fim de algum tempo, o próprio potencial humano, especialmente oriundo da metrópole, começou a revelar-se insuficiente para o esforço exigido.

Não foi por falta de aviso que a revolta surgiu “surpreendendo” as autoridades. Vários teóricos, mais ou menos próximos do regime político em vigor, a tinham previsto – Henrique Galvão e Hermes Araújo de Oliveira, entre outros – e tinham ficado mal vistos, como mensageiros da desgraça. As suas opiniões foram sufocadas, mas o pior é que não tenham sido tidas em conta. Mas, mesmo assim, a marcha dos acontecimentos políticos em África no final dos anos 50 não poderia augurar nada de tranquilizador para quem fosse inteligente, apesar de defensor das teses ditas colonialistas e imperialistas.

A posição política dos países limítrofes manifestou-se num apoio variado e, por vezes, muito intenso aos partidos revoltosos, sem que, contudo, o governo português, alguma vez, tivesse usado esse apoio como casus belli para os atacar, no terreno. O apoio militante surgiu mesmo de países, como a Suécia, que não praticando um apoio bélico foi dos primeiros países a reconhecer a independência da Guiné, embora os seus interesses diplomáticos e económicos andassem bem longe daquela área. Mesmo a reacção a nível diplomático foi pouco mais do que tímida, talvez porque o governo soubesse bem o ridículo a que se prestaria se tentasse uma atitude mais drástica. O resultado da invasão da Índia e as condições em que se processou deveriam ter constituído um outro sinal premonitório do que se iria passar. Mas não foi assim e o governo optou por desprezar a situação concrecta em que daí em diante teria de actuar. Porém, se a repressão resolvia o problema a nível interno, na cena internacional a situação só piorava.

O guerrilheiro é um cidadão armado, lutando contra um poder constituído. Reivindica para si a designação de resistente, mas não escapa à de terrorista no conceito das autoridades a que se opõe. No caso de Portugal, os guerrilheiros receberam outras designações, por vezes eufemísticas, como tresloucados, ou com a vaga conotação política de “agentes do comunismo internacional”. Numa manobra propagandística que veio a revelar-se contraproducente, o governo começou a usar o vocábulo “guerra” para designar as operações anti-guerrilha que tinham lugar nos três territórios onde a guerrilha tinha efectivas condições para progredir. Esta definição inexacta acabou por criar dificuldades – externas e internas – à política praticada. No exterior, o governo considerava a situação como um problema interno não sendo tolerados reparos ou censuras de qualquer espécie e vindos de quem viessem, enquanto no interior, o fenómeno era apresentado como uma guerra que era necessário ganhar, por múltiplos e variados motivos que, com o tempo, começaram a carecer de significado. Alguns foram hilariantes como a necessidade de realizar a guerra para dar tempo à política para actuar.

De qualquer modo os guerrilheiros não deixavam de ser portugueses – maus portugueses – que deveriam merecer punição severa, como seria óbvio. Contudo, sempre que eram capturados não eram julgados, mesmo que tivessem importantes funções na guerrilha. Tal sucedeu apenas num caso e com um estrangeiro, o capitão cubano Peralta. Carecerá de explicação que se tivesse dado aos guerrilheiros, cidadãos portugueses, embora prevaricadores, um vago estatuto de prisioneiro de guerra e a um estrangeiro que era seu apoiante o de um violador da lei nacional.
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Notas:
1 - Como simples exemplo da dificuldade de comunicações com a Índia, no caso vertente, veja-se o tempo que decorreu entre a ordem de Filipe III (datada de finais de 1632) e a dedicatória de António Bocarro (17 de Fevereiro de 1635) exarada no Livro das Plantas de todas as Fortalezas, cidades e Povoações da Índia Oriental, produzida sob sua direcção, com plantas de Pedro Barreto de Resende. In. estudo sobre a referida obra realizado por Isabel Cid (pág. 13). Basicamente, este conjunto de documentos seria um relatório determinado pela instância máxima da governação. Poderemos imaginar a dificuldade, ou mesmo a impossibilidade de produção de outros documentos de controlo a níveis mais baixos.
2 - Cita-se apenas uma publicação o Livro das Plantas de todas as Fortalezas, cidades e Povoações da Índia Oriental, de António Bocarro, datável de 1634/35 Ed. da INCM, ISBN-972-27-0444-3, Nov. de 1992, analisada e comentada por Isabel Cid, a qual deveria ser apresentada à consideração Real, mas outras há como o Lyvro de Plantaforma das Fortalezas da India, da Biblioteca da Fortaleza de S. Julião da Barra, atribuível a Manuel Godinho Herédia (ou Erédia).

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Conclusões

Apesar de as operações anti-guerrilha que se desenrolaram, entre 1961 e 1974, na Guiné, em Angola e em Moçambique, terem atingido graus de violência muito elevados, não poderemos falar de uma guerra no sentido habitual ou clássico do termo. Tratava-se de uma guerra subversiva o que, por definição, pressupõe a existência dos dois beligerantes seguintes: as autoridades constituídas e uma parte da população. Nesta situação, esta é uma parte relativamente pouco significativa – em número, que não em actividade – do total da população. Não havendo memória de um levantamento total da população de um território contra um invasor ou ocupante, teremos de considerar a existência de uma parte da população – mais ou menos considerável – que colabora com as autoridades, enquanto a maior parte, espera para ver, assumindo numa atitude passiva, visando a defesa do seu padrão habitual de vida. Normalmente sofre muito com violência, mas não deixa rasto histórico muito acentuado. A posse ideológica da população é, portanto, o grande objectivo a atingir, sendo que, estabelecida a contestação, a reversão da situação é uma tarefa lenta a decorrer durante uma ou duas gerações. No caso de Portugal – e talvez, no dos outros seis países que ocuparam a África – nunca poderemos falar de uma aceitação por parte das populações autóctones dos hábitos, religiões e língua dos colonizadores. Estes assumiram uma atitude de sobranceria que atingiu a violência e a escravatura, visando a imposição dos seus valores. A resposta foi a recusa e a resistência passiva que se manteve até aos nossos dias. Esta resistência determinou uma agitação subterrânea que nunca foi extirpada e que se manifestou sempre que as condições o permitiram. Sempre que a repressão se tornou insuportável a revolta estalou, habitualmente afogada em sangue, o que não resolveu o problema, se não o agudizou. Desta política de “tapar o Sol com a peneira”, fingindo que não se passava nada e amaldiçoando os mensageiros das más notícias, resultou uma mistura explosiva que, logo que as condições (especialmente internacionais) o permitiram, determinou o detonar de um fenómeno sociológico em que o racismo – essencialmente uma questão cultural – não deixou de estar subjacente.

A resposta das autoridades sediadas na metrópole manifestou-se através da projecção de força contra as populações rebeldes, materializada pelas forças armadas à custa do potencial humano da metrópole, numa primeira e longa fase. Depois, talvez porque começou a ser perceptível um desenlace desfavorável, procuraram as autoridades realizar a “africanização” da guerra. Esta reacção já é, em si mesma, a confissão pública derrota. Com efeito, se a sintonia entre o sentir das populações, genericamente consideradas, e as autoridades fosse um facto incontroverso, a população apoiante destas teria, desde logo, ajudado a esmagar a contestação. Trata-se, como se sabe, da manobra comum ao ocupante, invasor ou dominador de um território, quando confirma que não consegue prosseguir nos seus intentos. Este novo patamar da guerra subversiva tem frequentemente custos elevados para as populações de um dado território após a saída do exército ocupante. Os EUA puseram esta manobra repetidamente em prática, por vezes de forma muito dramática e com os resultados perversos que são conhecidos. De qualquer modo é a população que volta a estar em jogo o que continua a remeter para o campo da sociologia.

Ainda no caso português, a contradição insanável criada pelo facto de as autoridades terem duas leituras para o que estava a acontecer, consoante falassem ou agissem no exterior ou no interior, cria uma situação insustentável, em ambos os campos. Se, no primeiro, o isolamento e o abandono, sem hostilidade clara, pela generalidade das nações, como a situação internacional aconselhava, não constituía problema de maior para o governo, o mesmo não se podia dizer da grande contradição que se avolumava na população metropolitana. É provável que as populações da Angola e Moçambique nunca tivessem vislumbrado o fim do fenómeno. Na essência, poderemos considerar que eram dois territórios de grandes dimensões, sendo que em ambos, ele decorria apenas em cerca de metade da área. Que fariam aquelas populações se alguma vez tivessem equacionado o modo como a “guerra” poderia acabar? E contudo, não faltavam exemplos por toda a África……

Em resumo, poderemos afirmar que a Guerra “do Ultramar”, “Colonial” ou “de África”, foi essencialmente um fenómeno sociológico. Decorreu do modo como a colonização foi feita e do choque, em diversos planos, de duas civilizações e atingiu graus de violência e contra-violência elevados que conduziram a um desfecho senão previsível, pelo menos altamente provável desde o início e, se se lutava pela posse benévola da população e não pela posse do terreno é a sociologia que terá de fazer a última interpretação deste fenómeno.

TZ
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14794: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (14): Este Feminismo... é "muinta" feio!