quinta-feira, 18 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25405: De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (5.ª estadia, 2024): crónicas de Rui Chamusco (ASTIL) (excertos) - Parte II


Rui Chamusco,
Lourinhã, 2016

De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (5ª estadia, 2024): crónicas de Rui Chamusco (ASTIL) (excertos) - Parte II


Segunda crónica, enviada de Timor Leste, pelo Rui Chamusco, na sua 5ª estadia (fev/maio 2024). Fez nesse dia, 16 de março,  quatro semanas que ele está lá, não só para celebrar o 6º aniversário da Escola São Francisco de Assis (ESFA) como para resolver o magno problema da falta de professores, que lhe andam a prometer,  há muito, os ministérios da educação dos dois países, Portgal e Timor Leste... Ele deve regressar a casa por volta de meados de maio.

(...) 2 mar 2024  - Nem tudo é o que parece.

Rui Chamusco, professor de música.
Lourinhã (2012). Foto do autor
Hoje, por decisão minha, fomos a Tassitolo a casa dos pais da Nanda (Fernanda), mulher do
Zinon Sobral (a trabalhar na Inglaterra) e nora do Eustáquio, para conhecê-la pesoalmente e para a pudermos ajudar e animar pois bem precisa dessa ajuda. 

Mais ao menos à hora combinada lá vamos nós para Tassitolo (tassi=mar e tolo=três). Nem imaginam o que é preciso para chegar à casa da Nanda. Como ontem choveu a cântaros, não eram três mares, eram muitos mares. Ou seja, o percurso está cheio de grandes covas e buracos, em caminhos muito estreitos, onde só a grande perícia do condutor (sempre o Eustáquio) conseguiu levar a pikup (o "barco") a bom porto. Caminhos rodeados de folhas de cinco 
envelhecido, que até arrepia ter de 
passar por entre eles.                                                

E fizemos este trajeto quatro vezes, pois levamos a Nanda a almoçar connosco ao Timor Plaza.

E pensar que tantas e tantas vezes já passamos em Tassitolo, todo muito bonito para quem passa na marginal. Mas quem se pergunta o que está lá para dentro? Quanta barracas, quantas “chabolas” esconde todo aquele arboredo. “Quem vê caras não vê corações”. “As aparências iludem”.“Nem tudo o que reluz é ouro”.

E pensar que tanta gente vive nestas condições, e noutras ainda mais gravosas. Dói o coração não podermos fazer grande coisa para a resolução de tantas necessidades. Mas pergunto: Porquê uns têm tanto e outros tão pouco? Onde está a distribuição das riquezas? Porquê tanta opulência de alguns? 

"Aí Timor!.... Ouvem-se as vozes dos teus avós. Aí Timor! Se outros calam, cantemos nós”.

4 mr 2024  - A esperança é a última coisa a morrer

O desencontro de há dias com as irmãs Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias, mais concretamente com a irmã Flaviana, aconteceu hoje, às horas marcadas, em Fatumeta. O objetivo desta visita era saber qual o processo perante o ministério para requisitar professores para a ESFA, uma vez que estas irmãs também têm uma escola particular em Baucau. 

Surpresa das surpresas: também elas não têm professores para essa escola, porque o atual ministério da educação timorense este ano ainda não colocou os professores. Parece que não estamos sós nesta angústia pela falta de professores. Segundo explicou a irmã Flaviana, o ministério tem dado respostas desconcertantes, como por exemplo: “ a vossa escola não tem professores? Há escolas públicas que nem cadeiras e carteiras têm.” E assim nos arrumam de vez. (...)
 
7 mar 2024  - "Prá frente é que é o caminho, para trás mija a burra”

Cada dia com sua surpresa. Logo de manhã, ainda muito perto de casa, quando o Eustáquio e eu nos dirigíamos para Dili rumo a Baucau e Com, um facto insólito que nos pôs logo bem dispostos, à gargalhada. No caminho estreito onde quando se cruzam veículos algum deles tem de esperar, deparámo-nos com uma carrinha que não avançava nem recuava. 

Foi então que o condutor, o senhor Jaime, saiu do veículo e comentou para o Eustáquio: “eu não consigo fazer marcha atrás. Já aí vem o meu irmão para fazer a manobra”. E o irmão que chegou no seu “motor” (motorizada), sem cerimónias entra no veículo e, sem qualquer dificuldade recua e sai do caminho para que nós pudéssemos passar. (...)


Lourinhã > O Rui e o "mano" Gaspar Sobral.
Foto: LG (2017)

7 mar 2024 - Encontros e desencontros


Esta foi a terceira vez que, estando em Timor, fomos até à Escola Cafe de Baucau, a fim de visitarmos a educadora Palmira Baltazar, tojeira raiana do nosso concelho de Sabugal. E, como se diz, não há duas sem três. Desta vez acertamos na “mouche”. 

A Palmira depressa se deu conta da nossa presença que, desde a janela observávamos a sua aplicação ao trabalho árduo numa sala de aula cheia de crianças do pré-escolar. A reação foi surpreendente por ser uma visita inesperada, mas que nos trouxe muita alegria pois, finalmente, nos pudemos encontrar tão longe da nossa terra natal. E durante algumas horas (hora de almoçar) conseguimos pôr a conversa em dia, assim como partilhar ideias e informações sobre os projetos de solidariedade da Astil. Foi muito bom. Obrigado, Palmira e colega que nos acompanharam durante a nossa curta estadia em Baucau.

Depois, fiz questão de passarmos pela casa da diocese a fim de visitar a estátua que ergueram ao amigo e colega de trabalho na comunidade portuguesa de Gentilly (arredores de Paris), Dom Basílio do Nascimento (já falecido), que durante muitos anos foi figura preeminente da igreja católica de Timor-Leste.

7, 8 mar 2024 - Até Com, em direção ao oriente...

Como agradecimento à professora Angelina que teve a coragem e a amabilidade de se deslocar à Escola São Francisco de Assis, em Boebau/Manati, programamos esta pequena viagem por Timor a fim de lhe darmos a conhecer esta parte oriental da ilha; Manatuto, Baucau, Laha, Lautem. 

Em Com assentamos o arraial. Numa pensão que já conhecíamos fizemos a nossa morada, Ainda que as condições meteorológicas não fossem as melhores, deu perfeitamente para relaxar, gozar um pouco das águas mornas deste mar e saborear sobretudo o bom peixe desta baía. 

A presença portuguesa dos tempos coloniais ainda se faz notar na fortaleza em ruínas que existe na outra ponta da baía, e dos nomes e apelidos portugueses que aqui, como em qualquer outra parte de Timor, as pessoas ostentam. E foi assim que mal procurei pelo senhor Ângelo Silva (para lhe dar um abraço do amigo comum Henrique Semedo), depressa me indicaram a casa onde morava. Foi mais um momento agradável, e uma satisfação enorme de poder ser útil. (...)

11 mar 2024 - A caminho de Liquiçá


Para hoje a nossa tarefa é esta: ir a Liquiçá apresentar a Maria (pré-escolar) e a Titânia (5º ano) provinda da Escola São Francisco de Assis. O processo de matrícula e transferência já tinha sido tratado com a professora Tereza Costa, coordenadora da Escola Cafe de Liquiçá, e por isso foi mais uma questão formal que tivemos de fazer. 

Graças à amabilidade e competência da coordenadora tudo foi mais fácil. Amanhã as duas alunas começam a frequência deste ano escolar, e esperamos que com sucesso. Obrigado, professora Tereza. Obrigado, colegas professores, que exerceis com zelo a vossa nobre profissão.

Aproveitamos também a estadia em Liquiçá para passar pelo Município, para ver como estavam as coisas em relação ao acordo de colaboração com o município de Sabugal (Portugal). Já há mais de 15 dias que eu fui portador de material informativo sobre o concelho de Sabugal, que foi entregue formalmente ao assessor do senhor presidente do município, com a promessa de marcar uma reunião entre ambos a fim de lhe dar informações sobre o teor desse acordo de colaboração. 

Em conversa com o senhor Renato Serrão, um dos elementos que integrou a equipa que visitou o Sabugal e assinou o dito acordo, e que integra a nova equipa que atualmente preside ao município, fiquei a saber que que não sabia de nada, mas que iria averiguar a situação para depois me comunicar. E assim vai a vida por aqui. Ficamos pasmados com esta gente. Parece que estamos sempre a recomeçar, pois o que foi feito pelos outros, mesmo que seja bom, não é comunicado e, pior ainda, não é aceite. (...)


12 mar 2024 - Acontece... e com frequência


Foto:  Rui Chamusco
(2018)
A presença dos indonésios nestas terras do sol nascente foi e continua a ser muito forte. Durante os anos de ocupação, muitos negócios, casa comerciais, escolas, famílias se estabeleceram em território timorense. Mas a sua maior presença foi e é através de falantes do bahassa, língua oficial da Indonésia. 

Tudo fizeram para o conseguir, e conseguiram-no. Fala-se bahassa em todo o lado, desde as crianças aos mais velhos. O tétum e o português são as línguas oficiais, mas desiludam-se os que pensem que são as línguas mais faladas. 

Apesar dos muitos esforços dos governos de Portugal e de Timor Leste, o bahassa está muito bem implantado. Ouve-se bahassa na rádio, vêm-se programas na televisão, fala-se bahassa na rua. Ainda hoje, quando saímos do aeroporto Nicolau Lobato, ao fazermos o pagamento do estacionamento aconteceu. O Eustáquio entregou o talão respetivo e perguntou em tétum: Hira? Em português: Quanto é? A resposta do funcionário em serviço foi pronta: “Satu dólar” que em bahassa quer dizer 1 dólar.

E digam lá se não temos nada a aprender no domínio do ensino da língua portuguesa!...

12 mr 2024  - Será que é desta?...

A professora Angelina muita preocupada com a resolução da grande necessidade da Escola São Francisco de Assis, a saber: colocação de professores que garantam a sustentabilidade da ESFA, conseguiu um encontro importante que nos poderá trazer alguma esperança. Marcou um encontro para dia 12, no qual ela já não esteve presente porque já regressou a Portugal, no Hotel Timor, com o senhor Dr. Joaquim Cunha, nada mais nada menos que o Assessor Internacional no Ministério da Administração Interna de Timor-Leste. 

À hora marcada, lá estávamos nós (eu e o Eustáquio) para o encontro agendado. Depois de nos conhecermos mutuamente, criou-se logo um clima de diálogo muito ameno porque, para além de tudo, ambos estudamos desde crianças no Porto, com lugares-comuns a recordar. 

Apesar da importância do cargo que exerce, o Dr. Joaquim (Joaquim como ele me disse para chamar) é uma pessoa muito simples e muito afável. Quis saber do projeto de solidariedade da Astil, e em particular da Escola São Francisco de Assis. Até prometeu que, quando possível, lhe faria uma visita.

Ainda mais, vai fazer todos os possíveis para que sejamos recebidos pela ministra da educação do governo de Timor-Leste a Dra. Dulce Soares. Será com certeza uma porta aberta para concretizarmos o pedido que temos em mãos. Oxalá a senhora ministra tome a decisão favorável à proposta que lhe iremos apresentar. Que São Francisco de Assis e todos os santos nos valham e nos acudam...

13 mar 2024 - Chuva! Chuva e mais chuva!...


Hoje parece não deixar de chover, umas vezes chuviscos outras vezes mais forte e com algum vento. O sol ainda não apareceu. Será a despedida do inverno? Isto está a complicar-se para o nosso lado, uma vez que temos marcada a celebração do 6º aniversário da ESFA para o dia 16, e ainda a mais na montanha. 

Agora chove bem, e ouve-se um ruído ensurdecedor da água a bater nos telhados de zinco que todas as casas daqui têm. Vou pedir ó São Pedro que feche as torneiras do céu para estes próximos dias. Caso contrário, vale mais adiar a festa. Não sei não!... A ver vamos.

14 mar 2024  - Cancelamento da festa do 6º aniversário de ESFA

A notícia veio logo cedo, e caíu que nem um bomba: o temporal que assolou as montanhas de Boebau, Hatumassi e outras fez estragos incalculáveis, derrubando árvores, levando telhados, arrastando terras e enxurradas que bloquearam o caminho de acesso. Nem as angunas passam. Não há luz porque alguns postes de eletricidade ficaram sem fios com o tombo das árvores, não há comunicações. 

Perante este cenário destrutivo, não nos resta mais que tomar a decisão de cancelar a festa do aniversário prevista para o dia 16, uma vez que não há condições para tal. As escolas também têm estado fechadas. Também no telhado do edifício da ESFA há estragos. (...)


O "malae mutin los" (branco muito branco), 
"bô" Rui


15 mar 2024  - Em cada esquina um amigo


Estava eu e o Eustáquio no átrio da sua casa examinando árvores e arbustos, quando surge uma criança, talvez que já tenha dois anos e meio, trajando a roupa com que saímos do ventre da nossa mãe, e gritava:Malae!... Malae!... 

Como a criança já conhecia o Eustáquio, foi-se aproximando, aproximando até que lhe ouvimos o seguinte comentário: “ Malae mutin los!” ou seja “o malae (que neste caso sou eu) é muito branco!” 

Pudera, já katuas (velhote) como sou, com cabelo branco, pele branca e de camisola branca, como não ser muito branco? Bem-dito e bem observado por este menino engraçado. Mas não quis mais conversa comigo, talvez tivesse medo, e depressa se pirou dali. (...)

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, edição de fotos, negritos e italicos: LG)
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Timor Leste > Posição relativa de Boebau e da Escola de São Francisco de Assis, nas montanhas de Liquiçá. Liquiçá é a sede do munícipio, com cerca de 20 mil habitantes. Recorde-se que em Abril de 1999, na sequência da campanha de terror que antecedeu o referendo sobre a independência, mais de 200 pessoas foram mortas na igreja católica de Liquiçá, quando membros da milícia Besi Merah Putih, apoiados por soldados e polícias indonésias, atacaram a igreja. De Dili a Boebau, em plena montanha, são cerca de 50 km (e de Liquição 20 km) que em viatura podem demorar a percorrer 4 ou 5 horas, niomeadamenet  na época da monção (chuvs)...

Infografia: página do Facebook da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste (com a devdia vénia...)

Para os leitores que se queiram associar a este projeto, aqui fica a conta solidária da Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste (ASTIL) (Página do Facebook)

IBAN: PT50 0035 0702 000297617308 4

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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25398: De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (5.ª estadia, 2024): crónicas de Rui Chamusco (ASTIL) (excertos) - Parte I

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