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Na porta de armas, o pessoal civil por lá se aglomerava pós 25 de Abril
Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/ BCAÇ 6523 (1973/74) > O José Súde (à direita) com o furriel Santos, minas e armadilhas, no dia da nossa despedida do quartel
Fotos (e legendas): © José Saúde (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Abril em Nova Lamego
por José Saúde
1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
O 25 de Abril de 1974, dia em que se proclamou a Liberdade, permitiu o regresso dos camaradas, instalados em territórios africanos – Angola, Moçambique e Guiné - onde a guerrilha predominava, à Pátria mãe. Sentiu-se, então, que o fim do martírio de “miúdos” enviados para os palanques da guerra, havia terminado. Era um Abril a rejuvenescer à “sonância” de um cravo vermelho e a rapaziada, eufórica, a preparar-se para um retorno, a casa, antecipado.
Abril, e o seu cravo vermelho!
Abril, e o seu cravo vermelho!
Somos filhos de longas madrugadas que se imortalizaram no tempo, mas onde a esperança da liberdade residiu permanentemente em nós. Somos também filhos de pessoas humildes, “que comeram o pão que o diabo amassou”, mas que nos educou, o quanto lhes foi possível, uma vez que os tempos da obscuridão ter-lhe-ão coartado a ânsia de mandar os seus descendentes para estudos médios ou superiores, visto que as possibilidades financeiras do clã familiar eram demasiado escassas, ou ainda filhos de um regime totalitário, Estado Novo, onde o poder sobre o mais incauto cidadão impunha ordens absolutas aquando o pessoal reclamava, apenas, um compreensível dia de trabalho que, nesses idos, eram tão-só sazonais.
Os tempos eram outros! Tempos em que a liberdade, melhor, a falta dela em expressar sensibilidades pessoais tinham o condão de enviar os mais destemidos para “campos de férias”, mas onde as grades de uma prisão se apresentavam como inequívocas realidades. Pessoas sérias, honestas, uns “letrados” com então a 4ª classe, já era bom, outros analfabetos, mas cuja altivez dalguns passou pela prisão política. Seres humanos que se entregavam de alma e coração a uma profícua convicção que entendiam como justa e, sobretudo, para o bem do seu povo. Mas, do outro lado, lá estavam sempre atentos os fiéis agentes de um regime que não dava tréguas ao mais honesto plebeu.
Fomos crianças alegres, brincámos na rua, jogámos ao berlinde, à bola, algumas de trapos outras com bexigas de porco cujo enchimento era feito através do ar que vinha dos nossos pulmões, à pata, ao eixo, ao pau da lua, e de tantas outras brincadeiras que ainda hoje recordamos, crescemos a ouvir as barbaridades omnipotentes vindas de um Estado Novo, de agentes de uma PIDE que tudo ou quase tudo dominavam, conhecemos inegáveis sofrimentos de famílias marcados pelos constrangimentos das austeras estratégias de pessoas que envergavam fatos à príncipes de Gales com gravatas de seda pura, mas vimos um dia o desamarrar das âncoras do medo que nos prendiam a uma governação que fora substancialmente impiedosa.
Porém, o 25 de Abril de 1974, a glorificada Revolução dos Cravos, abriu-nos as portas para a Liberdade e, fundamentalmente, para o conhecer novos mundos e novas realidades.
Perfilho, com toda a legitimidade, que essas lealdades de outrora nos trouxeram novéis conhecimentos, novas vidas, novos universos que harmonizaram em indesmentíveis empatias sociais. Aliás, somos de uma geração que teve a oportunidade em conhecer as remodelações dos lugares, ou, em síntese, reestruturações humanas, créditos estes que paulatinamente se transformariam ao cimo desta imensa esfera chamada Terra.
Assistimos à guerra colonial da qual fomos mais um dos muitos milhares de camaradas que por lá andaram, no nosso caso em solo guineense, sendo que a peleja começou em Angola, 1961, estendendo-se a Moçambique e Guiné, terminando o conflito em terras de além-mar com a queda do poder até então instalado sob o camando dos Capitães de Abril.~
Nós, jovens militares, fomos enviados para o palco de uma guerra na qual os camaradas no momento em que se deparavam com os conteúdos reais da guerrilha, lançavam exclamações de raiva, de revoltas incontidas e de impropérios “berros” que os transportavam para um tabuleiro, que não sendo o de xadrez, mas um outro em que se esculpia a simples frase: “matar para não morrer”!
Sim, como sabeis camaradas, porque é inevitavelmente verídico, muitos companheiros perderam as vidas nas frentes de combate, outros nas "picadas", ou em emboscadas, outros no interior dos seus quartéis resultantes de ataques noturnos levados a cabo pelo IN, mas quando descansavam num sono, que não sendo profundo, o seu descansar permite-me, agora e sempre, parafrasear uma metáfora que se traduzia, naqueles tempos, num "descansar de armas". E tantos foram os camaradas mutilados e de muitos outros cuja patologia os remete para inesperadas circunstâncias de vidas de todo inesperadas.
Quando a revolução de Abril “rebentou” e se ouviu o som do clarinete a emanar a sonoridade do toque a reunir, este vosso camarada cumpria a missão militar na Guiné, precisamente em Nova Lamego, Gabu. Claro que todos rejubilámos com tamanha aventura. Seguiram-se momentos de intercambio com elementos do PAIGC, o conhecer de rostos com os quais antes havíamos combatido, trocaram-se “galhardetes” e eles, por fim, assenhorearam-se das nossas instalações.
Naturalmente que pelo meio de tanto alvoroço, a população, sempre expectante, não dava tréguas aos camaradas que assumiam o serviço da porta de armas. Reuniam-se em grupo e vá de reclamar quiçá benesses. Os seus semblantes indicavam acumuladas incertezas.
Compreendia-se. A nossa missão chegara ao fim. Brevemente voltaríamos a casa. Ficava o nosso repto: “até sempre, Nova Lamego”!
E eis-me, finalmente, no dia 4 de setembro de 1974 com o camarada Santos à porta das nossas instalações de malas feitas e prontos para o embarque num avião Noratlas que nos conduziria ao aeroporto de Bissalanca, seguindo-se uma viagem para o quartel do Cumeré, local onde permanecemos até ao regresso a Lisboa, Figo Maduro.
Momentos inesquecíveis que levarei comigo para a eternidade, tendo em linha de conta aquele Abril, e o seu cravo vermelho!
Abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
19 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25410: Os 50 anos do 25 de Abril (9): "Factum": c. 170 das melhores fotografias do Eduardo Gageiro, no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, até ao próximo dia 5 de maio
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
19 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25410: Os 50 anos do 25 de Abril (9): "Factum": c. 170 das melhores fotografias do Eduardo Gageiro, no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, até ao próximo dia 5 de maio
6 comentários:
Zé, só vocês, "últimos soldados do império", que estavam na Guiné no 25 de Abril de 1974, podem escrever textos como este teu, que o Magalhães Ribeiro acabou de editar esta noite... O meu "até sempre, Bambadinca!", em meados de março de 1971, não teve nada a ver com o teu "até sempre, Nova Lamego!". em setembro de 1974...
Três anos de diferença era muito tempo, em Portugal, na Guiné, no Mundo... Muita água passou no Geba, no Corubal, no Cacheu, no Tejo, no Douro,no Guadiana... E o teu "estado de espírito" tinha que ser de alegria e de esperança... O meu, não, tive que fazer a "ressaca da guerra" entre 1971 e 1974... e "esquecer a Guiné".
Obrigado, Zé, pelo teu depoimento vibrante sobre esses momentos únicos que vocês viveram entre abril e setembro de 1974. Vocês fizeram a guerra e a paz. Eu ainda fiz sobretudo a guerra... Nenhum de nós (nem os "rangers" de Lamego!) estávamos preparados para pôr a palavra "fim" no filme da guerra...
Texto muito emotivo, Zé Saúde.
Já não conheci essa porta de armas do novo Quartel de Nova Lamego.
Com certeza que foram momentos de grande alegria, do regresso e á peluda, já com as hostilidades acalmadas, com a entrega do Quartel ao PAIGC.
Então, para um alegre regresso a casa já com o fim da guerra ali à vista, o que é que fazia "ainda" aquela G3 encostada e pronta a ser usada?
Abraço a saúde da boa
Valdemar Queiroz
Camarada Valdemar, sempre atento aos pormenores, mas gosto das tuas particulares observações, aliás, entendo-as como oportunas, claro que a G3, que fazia parte do nosso espólio militar, foi entregue no Cumeré, local onde foi feita a sua receção. É óbvio que o material de guerra teve o seu devido encadeamento. Seria fastidioso comentar, agora, todo o seu processo. Por conseguinte, descansa que aquela G3 que transportávamos, e que se encontra junto à viatura que nos levaria à pista para sermos então transportados de avião para Bissalanca, teve, naturalmente, a razão do seu "encostar" na retaguarda do Unimog. Penso que te esclareci. Os teus tempos foram outros, os nossos passaram pelo de cruzar a guerra com a paz.
Abraço, amigo.
Zé Saúde
Zé Saúde, já estou a perceber.
E deves compreender o reparo. Então acabaram os tiros e todos preparados para a peluda e ainda a G3 mesmo à mão para quê?.
Coitada da G3, teve de fazer companhia até ao fim daquela vivência atribulada.
Saúde da boa
Valdemar Queiroz
A G3 não passou à peluda e deve ter sido mobilizada para outras frentes de batalha, já que o bicho homem é um guerreão pleno, infelizmente.
Imagino Zé Saúde a alegria que vocês sentiram quando se aperceberam que o 25 de Abril iria permitir acabar com as hostilidades.
Eu já estava em Portugal e recordo a emoção que me invadiu ao descobrir que os jovens deste nosso adorado país iam deixar de ser lançados no matadouro.
Obrigado pelo texto e abraço fraterno.
Eduardo Estrela
A G3 não passou à peluda e deve ter sido mobilizada para outras frentes de batalha, já que o bicho homem é um guerreão pleno, infelizmente.
Imagino Zé Saúde a alegria que vocês sentiram quando se aperceberam que o 25 de Abril iria permitir acabar com as hostilidades.
Eu já estava em Portugal e recordo a emoção que me invadiu ao descobrir que os jovens deste nosso adorado país iam deixar de ser lançados no matadouro.
Obrigado pelo texto e abraço fraterno.
Eduardo Estrela
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