terça-feira, 16 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25394: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (26): um país de gente porreira - II (e última) parte

 Palácio Nacional de Mafra: uma visão romãntica, em litografia de 1853, da autoria de João MacPhail (que morreu em 1856). Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal: http://purl.pt/12043

Imagem do domínio público, Cortesia de Wikimedia Common


Contos com mural ao fundo >  II (e última) Parte

por Luís Graça (*)


6B. Não te assustaste com o 25 de Abril.
Bem, não foi bem assim.
Não estavas a contar, deves dizê-lo.
O Ravasco também não,
e era bem mais imformado do que tu.
Tu tinhas algo a perder e, se calhar, algo mais a ganhar.
Claro, foi um desgosto para a tua mãezinha.
Para mais, o seu filho mais velho (esse é que era o "morgado",
e que também era professor  como ela),
apareceu-lhe um dia, em casa.
De barbas, cabelo comprido e cravo ao peito.
E com uma "flausina", uma namorada, de calças, e sem sutiã...
A pobre da tua mãezinha ia morrendo, de apoplexia.


A verdade se diga: ninguém a chateou por ser do Movimento Nacional Feminino, que acabou logo, dali a uns dias, por decreto da Junta de Salvação Nacional, onde estava o Spínola com quem tu, aliás,  até simpatizavas um bocado. Os outros não te diziam nada, com exceção talvez do Costa Gomes, que fora teu comandante-chefe em Angola (nunca o voste), e que também era nortenho como tu. Flaviense.

E, de resto, a tua mãezinha  já não dava aulas, tinha funções meramente burocráticas, na área da administração escolar. Logo que teve condições, isto é,  reuniu os requisitos legais, pediu a aposentação. Ainda bastante nova.  Percebeu que o seu tempo (e quiçá o seu mundo) havia acabado. 

Infelizmente ainda não tinha netos para cuidar. Mas dedicou-se ao seu jardim. Tinha uma cultura de camélias. E abriu a capela  da família, do séc. XVIII,  ao povo da freguesia. Sempre ornada de flores, camélias... Achaste um gesto bonito. E, afinal, inteligente. Democrático.  A capela até então estava vedada ao povo da aldeia, ali nos arredores de Ponte de Lima. O que era mal visto. Até para fazer um velório ou outro, as pessoas às vezes pediam-lhe e ela recusava.

Tinha muito orgulho, a tua mãezinha,  na capela onde repousavam os restos mortais de alguns dos seus queridos antepassados. Contrariando as leis de saúde dos Cabrais, ainda lá foram inumados, até tarde, até quase aos fins do séc. XIX, alguns dos teus avoengos.  

Claro que já nenhum padre lá ia  dizer missa. Os padres também aprenderam com a história passada, e, para o clero, sobretudo o mais jovem, era bom ser democrata (ou pelo menos aparentá-lo). Como o teu amigo de Mafra, mas esse já era democrata antes do 25 de Abril. Quer dizer, era do "contra".

A chatice maior que a família teve, no pós-25 de Abril,  foi com os rendeiros. "Poucos mas ingratos e velhacos", como já dizia o teu pai.  Recusaram-se a pagar a renda em géneros. Ainda se usava, e vinha desde há séculos,  o sistema da parceria agrícola (pagamento a meias ou ao terço, conforme os produtos eram da terra ou do ar). 

O teu irmão deu um jeito, resolveu o conflito. Chagou a cabeça a toda a gente da família.  Disse que "não, senhora,  minha mãe, que aquilo era senhorial, semi-feudal, pré-capitalista, que daqui a uns tempos  já se estava no ano 2000, e ainda  se lavrava a terra com os bois em Ponte de Lima!"... 

O teu mano era o "comuna" da família. Naquele tempo até dava jeito ter um "comuna" na família. Depois veio a lei do arrendamento rural e tudo se normalizou. Mas não foi preciso esperar muito para as terras ficaram sem rendeiros, nem bois, nem podadores, cobertas de mato. E a tua mãezinha voltou a ter que comprar batatas e cebolas no mercado. Mal dela se tivesse que viver das rendas dos rendeiros. E em anos ruins perdoava-lhes as rendas, depois da morte do marido. Nisso, era afinal um coração bondoso, e guerreiro, da estirpe da Maria da Fonte (que ela admirava).

O teu pai, um amanuense,  também dera a volta ao texto. Extintos os organismos corporativos, foi "reconvertido",  a nível profissional.  Os grémios da lavoura deram origem a cooperativas agrícolas. E tudo ficou como dantes. Ou quase. Não perdeu os seus hábitos, muito menos a sua tertúlia dos copos e dos petiscos. " E nunca quis mais saber da política!", confidenciou-te ele um dia. Mas morrerá cedo, coitado,  passados uns anos. 

Tu próprio também acabaste por "apanhar o barco" (ou, como se dizia na Ericeira, "surfar a onda"). Deixaste crescer o cabelo e passaste a usar uma boina basca.  Preta. Descobriste o teu lado (adormecido) de anarquista. E, confessavas, soube-te bem respirar o ar da liberdade que tu, em boa verdade, não tinhas tido quando nasceste no seio de uma família limiana tradicional.  Apesar de toda a gente ter um rótulo, tu recusaste-te  a revelar as tuas opções político-ideológicas, quer dizer, o partido em que votavas nas primeiras eleições. 

O Ravasco, muito mais à esquerda do que tu (acha que eras do PPM, o partido popular nonárquico), quis meter-te no sindicalismo, mas tu disseste-lhe  logo que "não senhor, muito obrigado, há coisas para as quais um limiano  de sangue azul como eu não tem jeito nem feitio nem vocação". Fizeras a tropa, já chegara esse tempo em que andaras "arregimentado".

A princípio, depois do 25 de Abril,  o Ravasco era o terror do "adjunto" e do "grupo das meninas", lá  na repartição  de finanças de Mafra.  Tens que o reconhecer, foi um gajo decente,  não houve saneamentos nem correu sangue, que era uma situação que tu detestarias, no caso de as coisas terem descambado para aí... Talvez por ter feito uma guerra, o Ravasco mostrou-se aos teus olhos surpreendentemente maduro e responsável.  

 A tua consideração por ele subiu mais uns pontos. Mas secretamente deu-te gozo ver aquele grupinho de sacanas baixar a bolinha. De um dia para o outro, a sorte mudara. Não vale a pena um gajo cantar de galo e montar as galinhas,  esquecendo-se que quem faz pintos também faz galuchos e garnizés. Mas não tiveste tratamento recíproco. A ti, continuaram a desprezar-te como "filho de Ansião"...

Ainda foste, com ele, no teu carro, a Peniche, ver a saída dos presos políticos, em 27 de abril. Não tinhas lá ninguém teu conhecido. Mas também não concordavas com as prisões políticas nem com a  censura à imprensa nem com os pides ... Nunca se discutia política lá em casa, mesmo que os teus pais fossem simpatisantes do Estado Novo (pelo menos votavam na União Naconal e depois na ANP, a tal Acção Nacional Popular, sem convicção, por dever de  ofício. ) 

Levaste também no teu Mini o Ravasco ao 1º de Maio, em Lisboa... Viste ao longe o Mário Soares e o Álvaro Cunhal.  Não sendo republicano, ficaste com um certo respeito por eles. Pelo menos, foram homens que lutaram pela liberdade dos outros, dando o corpo ao manifesto.  Mas nunca tinhas visto tanta gente junta, gritando palavras de ordem, de punho erguido.  Sempre tiveste a fobia das multidões. E daí nunca teres ido a desafios de futebol (nem a touradas e, muito menos, a comícios!).

Percebeste cedo que "aquela não era a tua praia", preferias a Ericeira e a Foz do Lisandro... Foi mais para fazer companhia ao Ravasco, um gajo de quem a pouco a pouco começaste, sem saber bem porquê,  a gostar como amigo, ou até talvez como o irmão que te fazia falta, a algumas centenas de quilómetros de casa... 

Foi ele que começou a tratar-te por tu, a seguir ao 25 de Abril. A princípio, custou-te, repugnava-te até, mas lá te foste habituando,  a pouco e pouco. Na família sempre houvera a norma do tratamento por você.  O respeitinho sempre fora muito bonito entre os teus. Chamava-te agora "pequeno-burguês", com hífen, qualificativo que tu nunca sabias muito bem o que queria dizer. Interpelavas o safado do Ravasco: "É por gostar das coisas boas da vida ? De gajas ? Ou ter um velho Mini com jantes especiais?"... 

Nunca to esclareceu... Sempre o achaste, nesse aspeto,  um bocado moralista. Rígido, em certas coisas. 

Em Braga irás conhecer o verão quente de 1975. Mas desse tempo não gostarias de   falar. Ficaste desgostoso com as posições radicais que alguns amigos e conhecidos teus, de um lado e do outro, tomaram, na altura do PREC.  A começar por católicos que se sentavam na missa, ao teu lado. Aí, sim, temeste que a coisa pudesse degenerar em guerra civil. 

A tua mãe, que sabia muito da História de Portugal,  falava-te dos horrores que haviam sido as guerras liberais, fratricidas. Na tua família parece que houve tanto "malhados" ou "jacobinos", partidários do Dom Pedro, como "corcundas", seguidores do Dom Miguel, estes talvez em maior número. E só se juntaram na "Patuleia", em 1847,  os "realistas" e os "setembristas" ou "progressistas", da Junta do Porto. Daí tu não te admirares de o teu mano ser "comuna do 26 de Abril". Houve muitos vira-casacas. Acontece em todas as mudanças de regime. E em todas as famílias. A tua, afinal, era como as outras.

Mais tarde voltaste a Ponte de Lima onde o teu mui amado tio-avô, materno, solteiro,  e que não tinha herdeiros diretos, te deixou em doação uma quinta. Uma pequena quinta, maneirinha, boa de se fazer. Tu eras o seu sobrinho-neto querido. Por causa da política, cortara relações com o teu mano, professor primário, esse, sim, o "senhor morgado", que ficou com as fracas terras da família, estoirando-as em pouco tempo...

Reformaste-te da função pública, no bom tempo. Fizeste uma formação em vitivinicultura. Descobriste os encantos da vida no campo.  E, para surpresa do Ravasco, não te casaste nem fizeste filhos (que tu soubesses), nem sequer escreveste um livro, mas plantaste árvores  e vinhas. E disso podes orgulhar-te.


7A. Uns tempos antes do 25 de Abril, ainda em Mafra,
o Bacelar havia-te apresentado ao padre, seu amigo,
de que espantosamente já não recordas o nome.
Simpatizaste, de imediato, com ele.
E depressa encontraste nele um homem
capaz de ouvir (e sobretudo de saber ouvir)
o relato dos teus “fantasmas” da guerra de África.



No fundo, ele acabou por ser o “confessor”, mais do que o simples confidente ou ouvinte passivo, de que tu estavas a precisar, ali, desterrado e amargurado. Na realidade, e até então, nunca falaras da guerra a ninguém, não tinhas sequer amigos íntimos com quem pudesse partilhar as tuas confusas e doridas memórias, da infância, do seminário, da guerra... A não ser, afinal, com o Bacelar.

Ao fim da tarde, antes do jantar, a meio da semana, tinhas por hábito juntarem-se, tu, o Bacelar e às vezes o padre, na tal "tasca dos jaquinzinhos" (na realidade era já um misto de tasca e  bar a virar para  modernaço)...  Tomavam a bica ou uma cerveja, davam dois dedos de conversa, comentavam as notícias dos jornais. Era uma espécie de tertúlia. Às vezes juntava-se à mesa um ou outro jovem estudante,  conhecido do grupo, ou das relações do padre. E noutras meses aparte, um ou outro cadete.

Talvez já em março de 1974, não sabes se antes ou depois do 16 de março, a revolta das Caldas, que  alvoraçou a malta do "reviralho" (incluindo o Bacelar que lá estivera uns anos antes como 1º cabo miliciano), a conversa foi parar, sem tu  dares conta, à Guiné e à guerra. Sabes que te perdeste e me abstraiste do que se passava à tua volta. Não te apercebeste sequer de quem estava na mesa do lado. 

O padre, mais velho do que tu uns anos, gostava de te ouvir e raramente te interrompia com um pedido para esclarecer este ou aquele ponto, e muito menos para manifestar a sua concordância ou discordância. Revelava, isso, sim, uma grande empatia, o que veio reforçar a confiança que ele te inspirava, logo desde o início. Em suma, sabia ouvir, o que era, quanto a ti, uma qualidade essencial num confessor. Os que tu tiveras, até perder a fé, eram mais inquisidores do que confessores….

Ficaste também com a ideia de que ele estava minimamente familiarizado com o meio castrense. Não te admiravas, estava  habituado  a lidar com a tropa numa terra como aquela. Talvez até ele tivesse sido capelão militar, antes de vir para aqui, conjeturavas tu.  Ou talvez ainda quisesse vir a sê-lo, a guerra do ultramar estava para dar e durar, pensava muito boa gente.  Estava, de resto, em idade para isso, para ser capelão. Teria cinco anos a mais do que tu, já a roçar os 30. Nunca lhe perguntaste a idade, por delicadeza. Vieste depois a saber que alguns dos seus paroquianos eram militares da EPI ou seus familiares.

Se bem recordas hoje, a quase meio século de distância, o teor da conversa (na realidade, um longo monólogo) girava à volta dos "prisioneiros" que a tropa fazia na Guiné. Ali não havia prisioneiros de guerra, garantias tu, ou se os havia não eram tratados como tal. Portugal não estava, técnica e legalmente, em guerra com nenhum país soberano, pelo que não podia haver prisioneiros de guerra. Mas tu nunca tinhas lido a Convenção de Genebra. Os guerrilheiros ou simpatisantes  do PAIGC quando aprisionados, no decurso da actividade operacional das nossas tropas, eram tratados como simples presos de delito comum. Ou seja, eram "turras". 

Sob tortura, davam informações relevantes sobre o dispositivo militar do PAIGC no setor ou região, bases ou “barracas” (acampamentos temporários), população, nome dos comandantes e dos comissários políticos, bigrupos, armamento, trilhos, depósitos de armamento, lojas do povo, locais de cambança, etc. Eram um "livro aberto"... E, claro, eram forçados a servir de guias para levarem a tropa até ao “objetivo”. 

Sempre fora assim, ainda antes do teu tempo,  e tu, como todos os outros graduados, quer do quadro, quer milicianos,  fechavam os olhos ou assobiavam para o lado. “Siga a marinha!", dizia o capitão. Nunca torturaste ninguém. Mas alguém tinha que fazer o trabalho sujo. Afinal, à guerra não era para meninos de coro.

Estavas a contar-lhes, ao padre e ao Bacelar (a tua atenta audiência),  as peripécias de uma operação em que tu comandavas a tua companhia, já com o teu capitão de baixa no hospital militar de Bissau. Havia outras forças envolvidas, e nomeadamente um pelotão de caçadores nativos e um pelotão de milícias que faziam parte do teu destacamento. 

A milícia seguia à frente a abrir caminho e  com o prisioneiro a servir de guia. Éram dois destacamentos, A e B, a avançar, numa manobra de envolvimento, “em tenaz”, para o “objetivo”, uma “barraca”, um acampamento onde estaria um bigrupo, ou menos (talvez cerca de 40 homens), situado a montante de um rio e na orla de uma mata espessa, de tipo floresta-galeria, ao longo da margem de um rio. Estavam bem armados, incluindo morteiro 81.

O prisioneiro era balanta, não falando uma única palavra de português. Era muito  jovem e bem constituído. O alferes de 2ª linha, que comandava o pelotão de milícias, mantinha com ele um difícil diálogo em crioulo. Tu seguias no seu encalce, dez metros atrás, com o teu guarda-costas, e o homem da bazuca. Percebest que o prisioneiro há mais de uma hora fazia tudo para despistar a tropa ou denunciar a sua presença, à medida que se aproximavam do objetivo.

Às tantas, foram detetados (o que era normal) por uma sentinela avançada, no alto de um bissilão,  que deu o sinal de alarme… O teu guarda-costas abateu-o, com um tiro certeiro, mas acabaram  por ser flagelados por fogo de armas pesadas.  De imediato, foram  vítimas de um brutal ataque de abelhas. 

Na confusão que logo ali se instalou, o prisioneiro ensaiou uma tentativa de fuga, mesmo algemado e preso a uma corda. O  milícia, que o conduzia foi suficientemente lesto para o impedir de se internar na mata, acabando por o alvejar no último segundo, já no fim de um dos  trilhos que levavam à “barraca”, e que ele devia conhecer, de olhos fechados.

Pelo PCV (Posto de Comando Volante), a avioneta onde estava o major de operações, receberam  ordens para abortar o assalto, uma vez gorado o efeito surpresa e o aparente desnorte das nossas tropas, dispersas pelo ataque de abelhas e a “morteirada” do inimigo. 

Reagruparam-se  na orla de uma bolanha, com o ferido a sangrar, enquanto os T-6 entraram em ação despejando bombas sobre o “objetivo”. E regressaram sob proteção do helicanhão.  

Foi nessa altura que o comandante da milícia, espumando de raiva, saltou sobre as costas do prisioneiro, como um verdadeiro felino, e rasgou-lhe a coluna vertebral de alto a baixo, com a sua faca de mato bem afiada. O prisioneiro caiu redondo no chão mas não teve morte fulminante. Ainda viste alguém, da milícia,  dar-lhe um tiro de misericórdia na nuca e cortar-lhe as orelhas, prática que, de resto, não era invulgar em circunstâncias com estas… Dizia-se que era um ritual guerreiro dos fulas, mas o Spínola deixou de achar graça, quando lhe meteram na cabeça que a guerra também se ganhava pelo charme, a "psico", o respeito pelo inimigo, blá-blá, blá-blá...


Ficaste sem pinga de sangue, nunca tinhas presenciado uma cena de guerra daquelas, nem nos filmes do faroeste onde era pressuposto os índios e os os cobóis tirarem o escalpe aos mortos. E não tiveste sequer tempo nem reflexos para impedir uma barbaridade daquelas. 

O mais grave é que, por cobardia ou para não arranjar chatices, omitiste esta cena no relatório que ajudaste a fazer com o comandante do outro destacamento, que era capitão.  Oficialmente, o prisioneiro-guia fora morto quando intentava fugir… E o alferes de 2ª linha  era um grande operacional, muito bem visto (e protegido) pelo comando do batalhão do setor. Falava-se já na sua próxima gradução em tenente, indo ao encontro da política de Spínola de "africanizar" cada vez mais a guerra. 

Estavas tu a acabar o relato deste triste episódio da tua guerra, quando da mesa ao lado salta um jovem que se dirige ao padre e diz com veemência:

 É tudo mentira, senhor padre!... Uma infâmia, uma calúnia!... Isso nunca poderia ter acontecido na nossa querida Guiné e muito menos por homens que envergam e honram a nossa farda. O senhor meu pai, oficial superior em Bissau [disse o nome, o posto , a unidade, etc.] , está lá, neste momento, rezo por ele todas s noites e  sei que ele nunca pactuaria com práticas indignas de um exército que defende a nossa pátria e os valores da nossa civilização cristã e ocidental!...

O padre, reconhecendo de imediato o jovem (ou talvez ainda adolescente)  e temendo pela tua integridade física, arrastou-o com força para um canto da sala e fez tudo para o acalmar… Não contaste os minutos, tu próprio estavas perplexo e chocado com toda aquela violência verbal, intempestiva e  gratuita… 

Passaram-se talvez uns bons vinte minutos,  foi longa (e áspera) a conversa do padre com o jovem… De copo de água na mão, o jovem parecia, no entanto,  estar a acatar a autoridade do padre, que o tentava acalmar… Por fim, lá saiu da sala, em passo estugado, mas não sem antes te voltar a fulminar com o olhar. Por certo que ficaste marcado, pensaste tu com os teus botões. Ficaste com a ideia de que, a partir daquele momento, tinhas ganho mais um inimigo naquela maldita terra.

O padre regressou à mesa, limpando o suor da testa, aliviando a pressão do cabeção no pescoço, ao mesmo tempo que pedia desculpa e tentava ensaiar uma explicação para aquele assomo de violência juvenil:


 É um paroquiano meu, excelente rapaz mas muito impulsivo. Conheço-o há uns boms anos. É filho de uma ilustre família de militares... Mas podemos considerá-lo “órfão de pai”, cresceu com o pai em África. Tem uma enorme admiração pela figura paterna e prepara-se para ingressar na Academia Militar, daqui a dois anos...

O Bacelar saiu contigo, mudo e calado. Mas incomado, tanto ou mais do que tu e o padre. Nunca mais os três falaram do  assunto.


8A. Epílogo


Infelizmente, o  Bacelar já não está cá, entre os vivos, para se poder continuar a manter esta espécie de monólogo a dois... 

 Como o tempo passou, meu Deus!

O Bacelar morreu num estúpido acidente de trator agrícola, há uns anos atrás, trinta e muitos anos depois de 1974. Numa vinha, nova, em socalco, que ele plantara e amanhara com uma paixão e um carinho que te comoveram, até às lágrimas, quando lá foste participar numa vindima, talvez por volta de 1997, se não erras, altura em que ele fez 50 anos. Tinha uma bela vinha com castas loureiro e alvarinho. "Era a menina bonita dos seus olhos"... Não tinha filhos, ficara solteiro...

“Contra todas as probabilidades”, como dizia ele, os dois ficaram  amigos para o resto da vida. E, no entanto, só conviveram em Mafra, menos de dois anos, separando-se já no final do verão de 1974, talvez em outubro.  Conseguiram a tão almejada transferência, tu para a Repartição Central do Imposto Complementar, em Lisboa, na Rua Braamcamp, e ele, para mais perto de casa, na cidade dos arcebispos e, mais tarde, para a sua terra.

Acabaste por tirar o curso de direito, em Lisboa, graças ao teu estatuto de trabalhador-estudante e beneficiando igualmente das regalias de antigo combatente. Cinco ou seis anos depois, no início dos anos 80, concorreste a um lugar de técnico superior de 2ª classe no Ministério do Trabalho e Segurança Social. Foste para uma área de que gostavas, e tinha a ver com as condições de trabalho, incluindo a higiene e segurança e matérias afins. Ajudaste  a elaborar diversos materiais de divulgação e sensibilização, fichas técnicas, brochuras, cartazes, etc. Interessaste-te, em especial, por sectores de elevada sinistralidade como as minas e pedreiras, a construção e obras pública, a agricultura e pescas, a metalomecânica.

Era um trabalho de algum modo pioneiro em Portugal, acabaste mais tarde por ir parar, com as sucessivas reestruturações do Ministério, sito na Praça de Londres, a um instituto que antecedeu a atual ACT – Autoridade para as Condições de Trabalho.

Do sindicalismo das contribuições e impostos, já não tinhas saudades nenhumas. Ainda ajudaras a criar e a alimentar um boletim, "A Forja", que era tirado a "stencil". Aquilo acabou por descambar num sindicalismo corporativo, populista,  que é o que há hoje em Portugal, ainda com alguma força reivindicativa, dos professores aos magistrados, dos estivadores aos condutores de longo curso, maquinistas de comboios, pilotos da TAP, polícias e quejandos... São essas corporações, algo mafiosas (como os gajos da estiva),  que podem parar um país... Podem usar a bomba atómica, é certo, que é a greve e  a paralização de sectores-chave da economia, mas também têm que saber muito bem calcular e prevenir os seus efeitos de "boomerang"...

Com o tempo de tropa, e os 36 anos de função pública,  reformaste-te. E passste a  dedicar-te aos cães e aos netos. Tinhas um pequeno monte, não longe da terra onde foste parido, na freguesia de São João dos Caldeireiros, lá no cu de Judas, no "país profundo", com diziam os gajos politicamente corretos, e que tu não sabias o que queria dizer... Devia ser a forma eufemística ou cínica de chamar-lhe a periferia das periferias, onde só havia coutadas,  de meia dúzia de granjolas, e onde já chegara o pré-Saara, o deserto...que nos há de cobrir a todos.

Tens pena, hoje,  de nunca ter feito o estágio de advocacia, de modo a teres podido exercer a profissão a tempo inteiro. Entraste para a função pública, tramaste-te, não quiseste trocar o certo pelo incerto, tu que chamavas "pequeno-burguês" ao pobre diabo do Bacelar.  Mas, pelo que vês hoje, a profissão de advogado já não é o que era. São os grandes escritórios que fazem a lei... E o idealismo de outrora desvaneceu-se. Como tudo, de quando eu eras jovem e ainda sonhavas com um mundo totalmente diferente daquele em que nasceras, tu que eras filho de mineiro e neto de ganhão. 

Só esperas que não te dê tão cedo o badagaio. Querias morrer lúcido, em paz contigo e, se possível, com os outros, o que se calhar é pedir demais. Vais ter que negociar com o teu gestor de conta do além.

Não, não casaste com a rapariga de Beja, que estava à tua espera. Fartou-se de esperar e fez ela muito bem. Um dia encontrou na rua, ao virar da esquina, o primeiro namorado, do tempo de escola, e lá juntaram os trapinhos. Nada como a primeira grande paixão,  sempre ouviste dizer.  Só esperas que ela tenha sido mais feliz do que tu foste.

Já do Bacelar não sabias tantos pormenores do resto da  sua história de vida. Andou atrelado a uma francesa, no verão de 1974. Chegou a levá-la à sua terra, para escândalo da mãezinha. 

Aliás, andaram atrelados, os dois. Ela tinha uma amiga ou irmã,já não não te lembras bem. Despacharam os “copains”, que vinham com elas, e que foram atrás das portuguesinhas de Lisboa. Vieram, num “dois cavalos”, ver a “révolution des oeillets”, a revolução dos cravos, ao vivo e a cores. Portugal, país liliputiano,  que não cabia na geografia do mundo, passou a ser, nesse tempo,  uma espécie de jardim zoológico da Europa. Chegaram cá fotógrafos famosos, tiraram umas chapas e depois esqueceram Portugal e os portugueses por mais umas boas dezenas de anos.

O Bacelar, esse,  acabou por dar um salto até aos Alpes Franceses, já em setembro de 1974, na “rentrée”. As raparigas eram da região de Grenoble. Foi uma espécie de “summer school”, completa, mas sem direito a certificado em papel timbrado, com o “Capital” do Karl Marx, o “Kama Sutra”, os maços de cigarros “Gitanes”, e a garrafa de vinho do Porto Ferreirinha, enrolados nos lençóis encardidos. 

As tipas, finalistas de liceu, eram muito mais politizadas e "sabidas"  do que ambos. O Bacelar era obrigado a recitar o “livrinho vermelho”, a bíblia do maoísmo, antes de ir para a cama com a sua “copine”. A que te calhou na rifa era mais dada à poesia e à música de contestação, o Brel, Moustaki, o Leo Ferré… Nada de Dassin ou Bécaud, que eram pirosos, mas os únicos que o Bacelar e tu conheciam … 

Enfim, melhoraste substancialmente o teu francês de praia nesse tardio verão de 1974. Mas não acompanhaste o Bacelar nas aventuras em França, país de resto que tu já conhecias, do trabalho duro, de sol a sol nas vinhas de Bordéus… Trabalho de escravo branco, diga-se de passagem.

O argumento era o do costume, e fez-te recuar até à Guiné: 

− Bacelar, alguém tem de ter a cabeça fresca e  ir trabalhar… 

Na realidade, tu sentias-te mal por andarem os dois  com miúdas muito mais novas. Caiste na realidade. Aquilo não tinha nada a ver contigo. E lá foram os três no Mini! O "dom Juan" do Bacelar e as catraias... Não sabes como o Bacelar conseguiu a proeza, de ir e vir… num Mini já com muitos milhares de quilómetros no contador…

O “açoriano”, o chefe, levantou-lhe um processo disciplinar por faltas injustificadas. Nesse tempo ainda havia livro de ponto. Intercedeste pelo teu “amigo improvável”, usando (e talvez abusando de) as tuas funções, 
na altura, de delegado sindical, "eleito democraticamente", em lista única, de braço no ar (e com três ou quatro votos contra, como seria de esperar). E sobretudo fartaste-me de esgalhar para compensar o trabalho em falta do Bacelar. 

O tio-avô dele, já reformadíssimo, arranjou-lhe um atestado médico. E, com a “boa vontade de todos”, o caso foi abafado e a “ficha” do Bacelar voltou a ficar limpinha… 

O Portugal do pós-25 de Abril era  um país de gente porreira… Perguntas-te hoje por que razão é que o fizeste, por um tipo que afinal tinha poucas afinidades contigo… 

És capaz de responder que foi simplesmente por amizade (e quiçá por camaradagem), que veio na sequência da situação de “companheiros de infortúnio”,  quando colocados como "mangas da alpaca" na repartição de finanças de Mafra… Afinal, a política, a religião, a ideologia... não eram tudo na vida, foi a conclusão a que tu chegaste, da tua vivência desses tempos.

Nesse final de verão de 1974, ou já princícpio de outono,  descobriste de repente que, ao despedirem-se,  tinhas ganho um amigo, na realidade o primeiro amigo do peito que ganhavas em vida… Despediram-se com um valente  "quebra-costelas"  e uma indisfarçável lágrima ao canto do olho... Prometeram visitar-se um ao outro,  em próxima oportunidade. O que só viria a acontecer em 1977, três anos depois, por ocasião do seu (e dele) 30º aniversário natalício. Ele veio até Lisboa, dessa vez.

Entretanto, em 1974, depois do 25 de Abril, o  "grupinho do adjunto e das meninas" andava de crista murcha, mas não escondia a sua hostilidade crescente para com o “sindicalista”, que eras tu. O Bacelar apanhava por tabela, apenas por ser teu amigo...  

Disseram-te depois que, a partir do verão de 1975, voltaram a sentir-se de novo em casa, com a baiuca por sua conta. A paz voltou a reinar no convento, se bem que as alegres noitadas de da última sexta feira de cada mês já não se voltaram a repetir, tal como as "ceias de Natal do fisco"… A "madama" sumiu-se, os empresários tinham mais com que se preocupar...

Com o início da informatização das contribuições e impostos e da modernização administrativa, incluindo uma nova gestão de recursos  humanos, começou a imperar uma certa moralidade, rigor e transparência... 

Entretanto o “açoriano” fora promovido e regressara à sua ilha natal.   O jovem candidato  à Academia Militar  não sabes se chegou a concorrer e  a entrar, já com a "guerra de África" arrumada.  E do padre, teu amigo e do Bacelar,  também não nunca mais soubeste nada. E a história deste país, já quase com 900 anos,  lá seguiu o seu curso a caminho do novo milénio.

Em Mafra, não deixaste amigos, infelizmente, mas queres aqui reconhecer que era terra de boa gente, e sobretudo trabalhadora. Embora tu nunca te tenhas reconciliado com a "Máfrica", mas isso é outra história.

O mais triste de tudo  foi  a perda, afinal, de um grande amigo, morto estupidamente debaixo de um tractor que ele comprara, em segunda mão  e, por ironia, não obedecia às normas nacionais e europeias de segurança, faltando-lhe por exemplo as estruturas de segurança (nomeadamemte, o arco de segurança, rebatível)...

E tu que, da única vez que lá foste, à sua casa nos arredores de Ponte de Lima, a chamar-lhe a atenção: "Oh!, Bacelar, olha que um dia destes ainda cais de um socalco e ficas debaixo do trator!"... 

Meu dito, meu feito!... Tal como ao do teu pai, não foste ao seu funeral... Só soubeste da triste notícia uns largos tempos depois. Por um mero acaso. Quando passaste por Ponte de Lima e lembraste-te de perguntar a alguém por ele.


© Luís Graça (2021). Revisto em 15 de abril de 2024.


Nota do autor: Neste conto, os nomes (de pessoas e lugares) são fictícios, mas os factos são verdadeiros. Acontece que este país é demasiado pequeno.

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Nota do editor:

(*) Poste anterior da série > 15 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25391: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (25): Um país de gente porreira - Parte I

2 comentários:

Eduardo Estrela disse...

Belo texto!
Cinquenta anos de vida, de luta, de amizades cimentadas ao compasso dos bons e dos maus momentos.
Muitos de nós revemo-nos pela certa, nalgumas passagens deste " conto com mural ao fundo ".
Obrigado Luís pela partilha.
Abraço fraterno
Eduardo Estrela

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Eduardo, obrigado pelo teu comentário... É também o retrato de um certo Portugal onde nascemos, crescemos, nos fizemos homens, cidadãos, amantes da justiça e da liberdade, etc.
Na primeira parte, há uma referência aos "filhos de Ansião" (terra do dr. Vitor Duarte Faveiro, que foi diretor-geral das contribuições e impostos durante mais de duas décadas, até 1975). Espero que os filhos da terra não se melindrem... Usava-se a expressão "filhos de Ansião", justa ou injustamente... LG
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Veja-ae a um excerto de um blogue que fala de Ansião desse tempo e da ilustre figura do grande fiscalista:

(...) O Dr. Vítor Duarte Faveiro
Homem ilustre nascido em Ansião, filho de carteiro, pertenceu ao governo do Estado Novo no desempenho do cargo de Diretor das Contribuições e Impostos mais de duas décadas. Dele se falou ser o “mentor na criação do número do contribuinte” ainda trabalhou após o 25 de abril.

Pessoa influente no governo chamou à sua terra e ao concelho o progresso , a ele se devem uma série de iniciativas: os Externatos de Ansião e do Avelar; novas fiações Avelar; da vinda da CUF do Barreiro para Ansião; ajudas aos Bombeiros com entrega de ambulâncias e carros para combate a incêndios e, …

Homem viúvo conheceu em Coimbra a D. Clarisse, linda senhora com raízes na Lousã, com quem se veio a casar, dela o povo sabe que é difícil atestar quem gostava mais da terra, se ele ou se ela, embora haja pessoas que digam que no fim de vida já não seria tanto assim… Sorte tiveram as criadas de sua casa que depressa ganharam alforria como contínuas nas repartições de Finanças na capital, e muitos outros que ao pai dele acorriam no pedido de emprego, em Ansião e por Lisboa a todos empregou. Tanta gente este bom homem e esposa ajudaram, uma grande maioria se esqueceu deles nos seus funerais (?)!

Estas faltas de lembrança não deveriam acontecer em gente que tanto vi dar para a nossa terra . Melhor esteve a autarquia que em tempo útil o premiou em vida com a atribuição do seu nome numa avenida nova com lápide de granito negro com letras em dourado que assisti a ser descerrada, lamentavelmente muitas décadas depois as removeram e substituíram por umas baixas sem graça nenhuma...

Dele também recordo a sua presença assídua nos cortejos das Festas do Povo no palanque presidencial sempre com a esposa, na mesma atitude na festa do S. Pedro de portas meias com a sua casa ao género apalaçada pela graça dos arcos que me faziam sonhar com um claustro conventual virada a sul com vista privilegiada para a vila e o Nabão.

Em 1972 dois dias após o falecimento do meu pai o recebemos em minha casa com a D. Clarisse de tez de consternação pelo trágico acontecimento, vinham consagrar condolências. Na sala de visitas a dado momento a conversa muda e “sem papas na língua” mostrou-se interessado na compra da nossa propriedade da Lameira que extrema com a sua, a minha mãe pesarosa depressa pensou que não seria boa ideia, sinónimo de problemas financeiros e da má-língua se começasse cedo a deserdar-se para no contraditório o ditado “se o arrependimento matasse, tinha morrido ali” afinal mais tarde as três reconhecemos o erro em não ter aceite a oferta , ao tempo a transação teria proporcionado supostamente a aquisição de dois apartamentos em Coimbra , descuido o nosso não pensar ao tempo em investimento! " (...)

Nunca o Dr. Faveiro nos ajudou em nada, também porque nada a ele foi pedido! (...)

Fonte: https://quintaisisa.blogspot.com/2013/04/ansiao-de-aquem-e-alem-ponte-da-cal-e.html

Blogue Coysas e Loysas sobre Ansião > terça-feira, 23 de abril de 2013
Ansião de Aquém e Além Ponte da Cal e as suas gentes