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segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25026: Manuscrito(s) (Luís Graça) (243): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte Va: 'Pés quentes, cabeça fria, cu aberto, boa urina - Merda para a medicina' 1. A arte de bem conservar a saúde




Capa da primeira edição (Veneza, 1480) do livro "Regimen sanitatis cum expositione magistri Arnaldi de Villanova Cathellano noviter impressus". Venetiis: impressum per Bernardinum Venetum de Vitalibus, 1480. Fonte: Wikimedia Commons (com a devida vénia..) (Tr. port.: Regime de Saúde de Salerno, com a exposição do mestre Arnaldo de Vilanova, o Catalão, recém-impresso. Veneza: impresso por Bernardinum Venetum de Vitalibus)

1. Comecei publicar no blogue, desde meados de março passado, uma série de textos, da minha autoria, sobre as ensinamentos que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...

São textos com cerca de 25 anos, que constavam da minha antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).
Às vezes quando a doença e a morte me batem à porta, é que eu me lembro que dediquei uma boa parte da minha vida (quase quatro décadas) ao ensino e à investigação da arte e da ciência da proteção da doença e da promoção da saúde, o mesmo é dizer às "coisas" da saúde pública...

E dão-me saudades quando, sendo mais novo, escrevia sobre esses temas (e utilizava-os nas aulas com os futuros admninistradores hospitalares, médicos de saúde pública, médicos do trabalho, ou outros, mestres e doutores em saúde pública)...

Depois de sobrevivermos à dura prova que foi para todos os nossos leitores a pandemia de Covid-19, eis-nos agora a fazer o luto pela perda recente de pessoas que nos eram muito queridas. Daí a oportunidade da publicação deste textos que fui (re)buscar ao meu "baú", mas que não têm a ver, pelo menos diretamente, com a Guiné e a guerra que lá travámos... Ou têm mesmo ? Tudo depende das "leituras" e dos "leitores"...

Contando com a complacência (e sobretudo com a cumplicidade) dos nossos leitores, espero, ao menos, que a sua leitura possa ter algum proveito. É também uma forma de continuar a lidar com o meu sofrimento psíquico e o sofrimento psíquico das pessoas que me estão próximas.

Por outro lado, o nosso blogue já atingiu, na Internet, a "terceira idade": vai fazer 20 anos (!) em 23 de abril de 2024 (se lá chegar, se lá chegarmos). E tem que ser "alimentado" todos os dias, com pelo menos três postes... Estes textos também funcionam como uma espécie de "tapa-buracos"... LG



Luís Graça (2000)
Representações Sociais da Saúde, da Doença e dos Praticantes da Arte Médica.





1.1. "Mais que curar o mal, a arte (médica) deve prevenir" (Escola de Salerno)


Não se pense que o modelo salutogénico (ênfase nos factores multidimensionais que determinam positivamente a saúde, por oposição ao modelo patogénico, biomédico, organicista, orientado para a causa específica da doença) é uma construção intelectual dos nossos tempos. Na Europa Ocidental, o modelo salutogénico tem pelo menos 2500 anos e está igualmente presente nos provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa.

Em termos muito simples, o modelo salutogénico está na origem do conceito de protecção e promoção da saúde, enquanto o modelo patogénico está mais próximo do conceito de prevenção da doença e sobretudo de cura e tratamento da doença.

Aplicado ao local de trabalho, o paradigma salutogénico pode ser melhor entendido através da seguinte questão principal:

Como é que o indivíduo (e, por extensão, a família, o grupo, etc.) realiza as suas potencialidades de saúde e responde positivamente às exigências (físicas, biológicas, psicológicas e sociais) dum ambiente (laboral e extra-laboral) cada vez mais complexo e em constante mutação;

Para responder positivamente a essas exigências, o indivíduo tem de ter controlo sobre os factores (individuais, ambientais e societais) que determinam a sua saúde;

A promoção da saúde é uma intervenção conjunta e integrada sobre o indivíduo e o meio envolvente em que nasce, cresce, vive, respira, trabalha, consome e se relaciona;

Na abordagem mais tradicional e redutora da segurança e saúde no trabalho (em inglês, occupational safety and health) a questão que se punha (ou ainda põe) é como prevenir e, em última análise reparar, do ponto de vista médico e legal, os riscos profissionais.

A promoção da saúde é tradicionalmente um conceito baseado na evidência. No que respeita à protecção e manutenção da saúde, a filosofia de senso comum é céptica em relação ao papel da medicina ("O melhor médico é o que se procura e se não encontra"), se não mesmo sarcástica ("Se tens físico teu amigo, manda-o a casa do teu inimigo").

Ou por outras palavras: Tu és o melhor médico de ti mesmo... Mas nem por isso esta filosofia popular deixa de estar eivada das concepções dominantes da medicina arábico-galénica e da influência da teoria hipocrática dos quatros humores:
  • "A doença e a dor conhecem-se na cor";
  • "Contra os maus humores grandes suores";
  • "Fora de horas urinar é sinal de enfermar";
  • "Quem bem urina escusa medicina"; ou
  • "Mijar claro, dar figas ao médico"

Alguns preceitos simples são recomendados para conservar a saúde e, por conseguinte, dispensar os serviços do médico e do boticário, inevitavelmente associados a uma vida regrada (alimentação, etc.) e às condições de higiene pessoal e ambiental (habitação, etc.), de acordo com os ensinamentos do compêndio hipocrático e desse espantoso programa medieval de promoção de estilos de vida saudáveis que foi o Regime de Saúde da Escola de Salerno (em latim, Regimen Sanitatis Salernitanum).





A cidade de Salerno e o golfo de Salerno,
no sul da Itália


Salerno, perto de Pompeia e de Nápoles, na região da Campânia, Itália meridional, era conhecida pela sua escola médica, cuja origem remonta à Alta Idade Média (Séc. IX-X), antecedendo por isso o aparecimento da Universidade no Ocidente cristão (Séc. XIII).

Segundo a lenda, era um escola verdadeiramente ecuménica, tendo nascido do encontro de quatro homens, que representavam quatro culturas distintas (um romano, um grego, um judeu e um árabe, três dos quais seriam médicos).

Esta escola teve um papel importantíssimo na preservação e divulgação do legado greco-romano, no campo da medicina, nomeadamente devido ao papel do monge cartaginês e tradutor arabista Constantino, o Africano. Mas foi sobretudo o tratado de higiene que lhe perpetuou a fama de "cidade hipocrática" (Lafaille e Hiemstra, 1990; Nigro, 2003; Sournia, 1995)



Este documento, em verso, do Século XII ou XIII, terá sido um dos manuscritos mais amplamente divulgados na Europa durante a Idade Média; mais tarde impresso, em Lovaina, por volta de 1480, dele fizeram-se até 1850 cerca de 250 edições, não só em latim como na maior parte das línguas vernáculas europeias, estimando-se entre 120 e 250 mil o número de cópias que terão circulado (Lafaille e Hiemstra, 1990).

Segundo Nigro (2003), "la redazione multiforme con la quale il 'Regimen' si presenta, sia per la varietà numerica e la disposizione dei versi, che per le frequenti contraddizioni e ripetizioni, fa attualmente ritenere che l’opera sia frutto di una compilazione a più mani e di ripetute revisioni".

Por exemplo, o número de versos foi sucessivamente aumentando com as edições: 362 versos na primeira edição impressa (c. 1480), mais de 3500 nas últimas edições.

Mas durante muito tempo a autoria do regime de saúde de Salerno foi atribuída erradamente ao catalão Arnaldo da Villanova (c.1240-1313), que também é autor de um "regimen sanitatis", em prosa, dedicado a Fredereico de Aragão.

Voltando a citar Nigro (2003), o regime de saúde de Salerno é uma obra colectiva, anónima, "risultato della consuetudine popolare, raccolta e commentata nel secolo XIII dal medico e alchimista catalano Arnaldo da Villanova", e que se enquadra "nel filone letterario dei tacuìna e dei theatra sanitatis, opere a carattere enciclopedico, in cui accanto all’illustrazione degli elementi della natura, vi è quella degli alimenti, degli stati d’animo, delle stagioni, allo scopo di salvaguardare la salute mantenendo un perfetto equilibrio tra uomo e natura".

Ao longo dos séculos e das diferentes edições a obra foi sendo conhecida por diversos títulos (Nigro, 2003). Exemplificam-se alguns

  • "Regimen Sanitatis Salernitarum" (Colónia, [1480]);
  • "Schola Salernitana" (s/l, 1480);
  • "Regimen sanitatis, Das ist das Regiment der Gesundheit" (Froschauer, 1501)
  • "De conservanda bona valetudine" (Frankfurt, 1545)
  • "Medicina salernitana" (s/l, 1591)
  • "The Englishman's doctor, or the School of Salerne, or physicall observations for the preserving of the body of man in continuall health" (Londres, 1601)
  • "Le Reglement ou Regime de la Santé" (Douai, France, 1616);
  • "L'art de conserver sa santé, composé par l'école de Salerne" (Haia, 1743; Paris, 17);
  • "Flos medicinae Scholae Salerni" (Nápoles, 1859)
  • "La regola sanitaria della Scuola salernitana" (Milão, 1930)

Ao que parece, haveria uma edição portuguesa que desconhecemos (não consta da Biblioteca Nacional nem não sequer é referida pelos nossos historiógrafos médicos, tais como: Lemos, 1889; Mira, 1947; Correia, 1960; Pina, 1981; Ferreira, 1990).

Versos do Regimen Sanitatis Salernitanum apareciam com frequência nos Lunários Perpétuos dos Séculos XVII e XVIII, embora erradamente atribuídos a Avicena (segundo informação da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira que se baseia numa publicação de Luís de Pina, Um prático calendário...de higiene seiscentista, editada no Porto, em 1950, e a que ainda não tivemos acesso).

Em muitos dos provérbios que nos chegaram até aos nossos dias há uma filosofia sobre a arte de viver com saúde, por oposição à arte de curar, e que vai beber as suas raízes ao legado da medicina hipocrática e ao seu modelo salutogénico. Para a sua preservação e divulgação muito contribui sem dúvida o Regimen Sanitas Salernitanum (ver extracto, Caixa 1).

Face à impotência da medicina arábico-galénica para lidar com a alta morbimortalidade que atingia a população europeia nos finais da Idade Média, o livro de saúde de Salerno tem um propósito didáctico mas também programático: "Mais do que curar o mal, a arte [ a medicina ] deve prevenir".


Caixa 1 - Regime de Saúde Salernitano (Extractos de uma tradução versificada em francês no século XVIII)


Respira um ar sereno, brilhante de pureza,

Do qual nenhuma exalação turve a clareza;

Evita os odores infectos e vapores deletérios

Que sobem dos esgotos e empestam a atmosfera...

Queres dos teus prazeres prolongar o sucesso?

Do vício e da mesa evita o excesso...

Se o mal é insistente, cabe à arte reagir:

Mais que curar o mal, a arte deve prevenir.

O ar, o repouso e o sono, o prazer e a comida

Preservam a saúde do homem, saboreados com medida:

O abuso torna em veneno este bem inocente

Destruindo o corpo e turvando a mente



Fonte: Sournia (1995: 101) (tr. do fr., Jorge Domingues Nogueira)

Observações - Para mais detalhes ver o comentário crítico, sobre o texto (ou os vários textos) do Regimen Sanitatis Salernitanum, de Paola Nigra (2003) http://www.spolia.it/latino/2002/reg7.htm (15.03.03)




Na prática, há provérbios, na nossa língua, sobre tudo (ou quase tudo) o que constitui hoje as preocupações dos educadores e promotores de saúde (Quadro XV, em anexo). Por exemplo:

(1) A actividade física:

"Espírito são em corpo são";

"O corpo não deita raízes";

"Parar é morrer".

(2) Os autocuidados:

"Mijar claro - dar uma figa ao médico";

"O homem velho é médico de si";

"Pés quentes, cabeça fria, boa urina - merda para a medicina";

(3) O sono e o repouso:

"Deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer";

"O braço quer peito e a perna quer leito";

"Quatro horas dorme um santo, cinco o que não é santo, seis o estudante, sete o caminhante, oito o porco e nove o morto".

(4) O consumo de álcool e de tabaco:

"Bebe vinho mas não bebas o siso"

"Tabaco e aguardente transformam os sãos em doentes";

"Vinho, mulheres e tabaco põem o home fraco".

(5) A nutrição e a higiene dos alimentos:

"Carne de ontem, peixe de hoje, vinho do outro verão fazem o homem são"

"Come para viver, pois não vives para comer";

"Uvas, pão e melão é sustento de nutrição"

(6) O controlo do peso:

"O menino engorda para crescer e o velho para morrer";

"Pede o guloso para o desejoso";

"Tripa cheia nem foge nem peleja".

(7) As condições de vida e de habitação, a saúde ambiental:

"Águas paradas, cautela com elas";

"Deus te dê saúde e gozo e casa com quintal e poço";

"Onde não entra o sol entra o médico";

"Se a tua casa é húmida abre conta na botica";

"Toma caldo, vive em alto, anda quente - viverás longamente";

"Um ar purgado - morte no cabo".

(8) A gestão do stresse e das 'paixões da alma':

"A ferrugem gasta o ferro e o cuidado o coração";

"Quem se ralou já morreu";

"Quem tiver paixão tome tabaco", etc.
___________

Não cabe aqui a tarefa de analisar uma a uma as crenças terapêuticas que são veiculadas pelos provérbios populares:

Alguns são puros disparates (por ex., o "abafa-te, abifa-te e avinha-te", como remédio contra a gripe; ou outro parecido: "antes embebedar do que constitapar");

Outros, e nomeadamente no domínio da nutrição, reproduzem preconceitos, como os perigos da carne de porco, que têm a ver com a nossa matriz judaico-cristã (por ex., "porco fresco e vinho novo, cristão morto");

Pelo contrário, há provérbios que têm um conteúdo que se baseia no conhecimento empírico milenar dos povos mediterrânicos e que é hoje em dia suportado pela própria investigação farmacológica e biomédica: por ex., a importância do consumo moderado do vinho (tinto) na prevenção das doenças cardiovasculares ("Um copo de vinho por dia mantém o médico à distância"); ou as propriedades terapêuticas do azeite: "Azeite de oliva o mal cura".



Quadro XV— Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre a saúde e os estilos de vida



Objecto / Provérbio

Actividade física

"Andar, ventura até à sepultura"

"Espírito são em corpo são"

"Mais vale romper sapatos que lençóis"

"O corpo não deita raízes"

"Para baixo todos os santos ajudam, para cima é que as coisas mudam"

"Para ter saúde, pouca cama, pouco prato e muito sapato"

"Parar é morrer"

"Quem corre por gosto não cansa"

"Quem em novo dança bem, em velho algum jeito tem"


Água

"A quem Deus quer dar vida, a água da fonte é mezinha"

"A quem é de vida a água lhe é medicina"

"Água e vento são meio sustento"

"Água fervida alimenta a vida"

"Água fria sarna cria; água quente nem a são nem a doente"

"Água que não soa não é boa"

"Água quente saúde para o ventre"

"Águas paradas, cautela com elas"

"Ao doente forte a água é medicina"

"Mal de morte não tem jeito, e o que não é, se cura com água do pote" (d)

"Quando Deus quer, água fria é remédio"


Álcool  | Tabaco  | Vinho

"A cachaça tira juízo, mas dá coragem" (d)

"A mulher e o vinho tiram o homem do seu juízo"

"Abafa-te, abifa-te e avinha-te" (a)

"Afoga-se mais gente em vinho do que em água"

"Antes embebedar do que constipar"

"Baco, tabaco e Vénus reduzem o homem a cinzas" (b)

"Bebe vinho mas não bebas o siso"

"Beber vinho mata a fome"

"Cada bucha sua pinga"

"Carne de ontem, peixe de hoje, vinho do outro verão fazem o homem são"

"Do vinho e da mulher livre-se o homem se puder"

"Haja saúde e dinheiro para vinho"

"Isso é birra: quem toma tabaco espirra"

"Livra-te de mau vizinho e de excesso de vinho"

"Mais pessoas se afogam no copo do que no mar"

"Malandro não tem vícios, só fuma e bebe quando joga" (d)

"Na taberna enquanto bebes, na igreja enquanto rezas"

"Nada escapa aos homens senão o vinho que as mulheres bebem"

"Nem vinho sem Cristo nascer nem laranja sem Cristo morrer"

"O beijo é como o cigarro, não sustenta mas vicia" (d)

"O bom vinho arruina o bolso; o mau, o estômago"

"O cigarro adverte: O Governo é prejudicial à saúde" (d)

"O homem que vive na taberna acaba por morrer no hospital"

"O pródigo e o bebedor de vinho nunca têm casa nem moinho"

"O vinho faz mal aos homens quando são as mulheres que o bebem"

"Onde entra o vinho sai a razão"

"Quando a cachaça desce, as palavras sobem" (d)

"Quem tiver paixão tome tabaco"

"Tabaco e aguardente transformam os sãos em doentes"

"Tabaquear o caso"

"Três coisas enganam o homem: as mulheres, os copos pequenos e a chuva miúda"

"Três coisas mudam o homem: a mulher, o estudo e o vinho"

"Um copo de vinho por dia mantém o médico à distância"

"Vinho e medo descobrem o segredo"

"Vinho, mulheres e tabaco põem o home fraco"

"Vinho que baste, casa que farte, pão que sobre e seja eu pobre"

"Vinho sobre melancia faz pneumonia"

Alimentação | Frugalidade | Nutrição Saudável

"A fome é a melhor cozinheira"

"Anda quente, come pouco, bebe assaz e viverás"

"Aquilo que sabe bem ou é pecado ou faz mal"

"Barriga cheia, cara alegre"

"Boca que apetece, coração que deseja"

"Carne que baste, vinho que farte, pão que sobre"

"Come como são e bebe como doente"

"Come para viver, pois não vives para comer" (Séc. XVII)

"Come que a hora de comer é a da fome" (Séc. XVII)

"Das grandes ceias estão as covas cheias"

"De fome ninguém morreu, mas sim de muito que comeu"

"Gordura é formosura"

"Gota é mal de rico; cura-se fechando o bico"

"Mais cura a dieta que a lanceta"

"Mais mata a gula que a espada"

"Menino bolsador - menino engordador"

"Moças, quem vos deu tão ruins dentes ? Água fria e castanhas quentes"

"Morra Marta, morra farta"

"Morre o peixe pela boca" ou "Pela boca morre o peixe"

"Na casa desta mulher come-se tudo o que ela der"

"Nem sempre galinha nem sempre sardinha"

"O menino engorda para crescer e o velho para morrer"

"Para longa vida regra e medida no beber e na comida"

"Pede o guloso para o desejoso"

"Por cima de comer nem um escrito ler"

"Quem caga e come não morre de fome"

"Quem não é para comer, não é para trabalhar"

"Se queres enfermar, ceia e vai-te deitar"

"Se és velho comilão encomenda o teu caixão"

"Ter mais olhos que barriga"

"Vinho que baste, casa que farte, pão que sobre e seja eu pobre"


Alimentos (Carne, Peixe, Fruta, etc.) | Higiene Alimentar


"A carne de um ano e o peixe de dez"

"A laranja de manhã é ouro, à tarde prata e à noite mata"

"Azeite de oliva todo o mal tira"

"Carne de ontem, peixe de hoje, vinho do outro verão fazem o homem são"

"Cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a doente"

"Comer verdura e deitar má ventura" (Séc. XVII)

"Comer pinhões antes de chover dá sezões"

"Depois de Maio a lampreia e o sável dai-o"

"Dia de São Silvestre (b), não comas bacalhau que é peste"

"Fiambre e fiado sabem bem e fazem mal"

"Laranja antes do Natal livra do catarral"

"Livre-te de fruta mal sazonada que é peste disfarçada"

"Milhafre em Janeiro escusa capão de poleiro"

"Não comas cru, nem andes com o pé nu"

"O coelho e a perdiz, uma mão na boca e outra no nariz"

"Pão durázio, caldo de uvas, salada de carne e deixa a medicina"

"Peixe não puxa carroça"

"Pela boca morre o peixe" (Séc. XVI)

"Pobre só come carne quando morde a língua" (d)

"Porco fresco e vinho novo, cristão morto"

"Quem come salgado, bebe dobrado"

"Raia em Maio, tumba à porta"

"Se queres o marido morto, dá-lhe couve em Agosto"

"Todas as indigestões são más e a da perdiz é péssima"

"Um copo de vinho por dia mantém o médico à distância"

"Uvas, pão e melão é sustento de nutrição"


Ambiente | Ar | Clima

"A vassoura limpa a casa mas é o sol que mata os micróbios"

"A velho muda-lhe o ar, vê-lo-ás acabar"

"Casa onde não entra o sol entra o médico"

"Come caldo, vive em alto, anda quente, viverás longamente" (Séc. XVII)

"Dia frio e dia quente fazem andar o homem doente"

"Livra-te dos ares, que eu te livrarei dos males"

"No quente é que se cura a gente"

"Respirar mau ar é beber a morte"

"Se queres viver são, anda quente, come pouco, vive em alto"

"Tarde fria, dia quente, põem um homem doente"

"Um ar purgado - morte no cabo"


Casa | Habitação


"Casa em que caibas, vinha quanto bebas, terra quanto vejas"

"Casa onde não entra o sol entra o médico"

"Casa sem luz, tumba de vivos"

"Deus te dê saúde e gozo e casa com quintal e poço"

"Dormir com a janela aberta - constipação quase certa"

"Na casa se vê quem tem maleitas"

"Onde entra o sol não entra o médico"

"Quem quiser medrar viva em pé de serra ou poto de mar"

"Se a tua casa é húmida abre conta na botica"


Corpo | Higiene | Peso | Excretos !| Retentos

"Gordura é formosura"

"Mijar claro - dar uma figa ao médico"

"O que a boca apetece o coração deseja"

"O rabo sempre cheira ao que larga"

"Pés quentes, cabeça fria, boa urina - merda para a medicina"

"Quando em casa engorda a moça, ao corpo o baço e ao rei a bolsa - mal vai a coisa"

"Quem ao ano andou e aos dois falou bom leite mamou"

"Quem bem urina escusa medicina"

"Quem grande peido dá do cu se atreve"

"Quem má boca tem má bostela faz"

"Quem se lava e não se enxuga toda a pele se lhe enruga"

"Quem sofre de coração não tome banho suão"

"São peidar faz bom jantar" (Medieval) (e)

"Se queres que o teu filho engorde e cresça, lava-lhe o corpo e rapa-lhe a cabeça"

"Se queres ter um corpo são, lava-te com água e sabão" ou "se queres ter um corpo são, lava-te com água de erva montão"

"Tripa cheia nem foge nem peleja"


Prevenção da doença | Promoção da saúde

"Bem prega Frei Tomás, faz o que ele diz não faças o que ele faz"

"Cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém"

"Coração alegre é melhor que botica"

"Mais vale a saúde que o dinheiro" ou "Mais vale saúde boa que pesada bolsa"

"Mais vale perder um minuto na vida do que a vida num minuto"

"Mais vale prevenir que remediar"

"Mais vale um pé no travão do que dois no caixão"

"Melhor é curar gafeira que casa inteira"

"Não há dinheiro que pague a saúde"

"Nem com cada mal ao médico, nem com cada dúvida ao letrado"

"O homem velho é médico de si"

"Para longa vida boa regra e boa medida"

"Para longa vida regra e medida no beber e na comida"

"Pés quentes, cabeça fria, coração bom, ventre desembaraçado e desprezar medicina"

"Pés quentes, cabeça fria, cu aberto, boa urina - merda para a medicina"

"Quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga"

"Quem bem vive, bem morre"

"Quem bem urina, escusa medicina"

"Só se sabe o que é a saúde quando se está doente"

"Tenhamos saúde e paz e teremos assaz"

"Usa cama de frade e mesa de pobre, terás saúde que farte e alegria que sobre"

"Vale mais prevenir do que remediar"

"Vale mais uma onça de cautela que uma arroba de botica"

"Vida de porco, curta e gorda"

"Vive o pastor com a sua rudeza e morre o físico que a física reza"


Sono | Vigília

"De longos sonos e grandes ceias estão as sepulturas cheias"

"Deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer"

"Levanta-te às seis, almoça-te às dez, jantarás às seis, deita-te às dez: viverás dez vezes dez"

"O braço quer peito e a perna quer leito"

"Quatro horas dorme um santo, cinco o que não é santo, seis o estudante, sete o caminhante, oito o porco e nove o morto"

"Se não és de bronze deita-te às onze"

"Se queres enfermar, ceia e vai-te deitar"

"Se queres enfermar, lava a cabeça e vai-te deitar"

"Usa cama de frade e mesa de pobre - terás saúde que farte e alegria que sobre"


Paixões da alma | Gestão do stress

"A boa vida não quer pressa"

"A ferrugem gasta o ferro e o cuidado o coração"

"A quem dorme descansado dorme-lhe o cuidado"

"A razão é fruta do tempo, as paixões são de todo o momento"

"Boca, que queres; coração, que desejas?"

"Desejo e satisfação raro de acordo estão"

"Homem apaixonado não quer ser aconselhado"

"Não corre mais o que caminha, mas sim o que mais imagina"

"O ventre sacia-se, os olhos não"

"Quem canta seu mal espanta"

"Quem come a correr do estômago vem a sofrer"

"Quem mais tem mais quer"

"Quem se mete em atalhos mete-se em trabalhos"

"Quem se ralou já morreu"

"Quem tem cu tem medo"

"Quem tem saúde e liberdade é rico e não o sabe"

"Quem tiver paixão tome tabaco"

"Quem vai muito depressa pode quebrar a cabeça"


Trabalho | Capital ! Trabalho & Saúde

Capital

"Aonde oiro fala, tudo se cala"

"Deus ajuda a quem trabalha, que é o capital que menos falha"

"Tempo é dinheiro"

"Um tem a bolsa, outro o oiro, e assim vai andando o mundo"

Trabalho

"A martelada do mestre vale por mil das dos operários"

"Bendita a ferramenta que pesa mas alimenta"

"Dá ofício ao vilão, conhecê-lo-ão"

"Há mais aprendizes que mestres"

"Janeiro, gear; Fevereiro, chover; Março, encanar; Abril, espigar; Maio, engrandecer; Junho, aceifar; Julho, debulhar; Agosto, engravelar; Setembro, vindimar; Outubro, revolver; Novembro, semear; Dezembro, nasceu Deus para nos salvar"

"Madruga e verás, trabalha e terás"

"Mais vale bom administrador do que bom trabalhador"

"Mais vale um bom mandador que um bom trabalhador"

"Mão de mestre não suja ferramenta"

"Mãos de oficial, envoltas em sandal"

"Mineiro, nem a prazo nem a dinheiro"

"Na casa deste home quem não trabalha não come"

"O boi pega no arado mas não por seu grado"

"O Verão colhe e o Inverno come"

"Oficial tem ofício e al"

"Para gozar eu; para trabalhar um irmão que Deus me deu"

"Para homem dado ao trabalho não há dia grande"

"Para o trabalho se chama uma, duas ou três vezes; para comer uma só"

"Quando o mestre canta boa vai a obra"

"Quanto mais patrão mais cabrão"

"Quem ao moinho vai enfarinhado sai"

"Quem não poupa a lenha, não poupa nada que tenha"

"Quem não tem ofício não tem benefício"

"Quem não trabuca não manduca" (do latim: Qui non laborat, non manducet )

"Quem poupa seu mouro poupa seu ouro"

"Quem sabe de luta luta e quem não sabe labuta"

"Saber muitas artes é ter pouco dinheiro"

"Semeia e cria, viverás com alegria"

"Sete ofícios, catorze desgraças"

"Só trabalha quem não sabe fazer mais nada"

"Trabalhar a seco"

"Trabalhar de jornal"

"Trabalhar é bom pró preto"

"Trabalhar para aquecer"

"Trabalhar para aquecer, é melhor morrer de frio"

"Trabalhar para o boneco (para o bispo)"

"Trabalho de menino é pouco, quem não o aproveita é louco"

"Trabalho se fez para burro e português" (f)

Trabalho & Saúde

"A tarefa que agrada é depressa acabada"

"É preciso ser doido para trabalhar aqui"

"Não há trabalho sem trabalhos"

"O trabalho dá saúde"

"O trabalho não mata ninguém"

"Se o trabalho dá saúde que trabalhem os doentes" (g)

"Tendo saúde e comendo bem, o trabalho não mata ninguém"

"Trabalha como se vivesses sempre; ama como se fosses morrer amanhã"

"Trabalhar como um animal (um cão, um boi, um touro, um burro, um leão, um cavalo, etc.)

"Trabalhar como um escravo (um mouro, um negro, um preto)"

"Trabalhar que nem um boi"

"Trabalhar que nem um galego"

"Trabalhar que nem um mouro"

"Trabalhar que nem uma puta"

"Trabalhar que nem um touro"

"Trabalhar sem comer é cegar sem ver"

"Trabalho com gosto alegria no rosto"

"Trabalho é meio de vida e não de morte"

"Trabalho é caminhar a cavalo, que a pé é morte"

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(a) Receita tradicional para combater a gripe; (b) Rifão italiano (Amaral, 1994); (c) 31 de Dezembro

(d) Ditado brasileiro: Vellasco (1996) (e) Mattoso (1987) (f) Brasil

(g) Ou como dizem os franceses: "Si le travail c'est la santé, à quoi sert alors la médecine du travail ?" (Se o travbalho dá saúde, para que serve afinal a medicina do trabalho?)

(Bibliografia a apresentar no final da série)

(Continua)

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Notas do editor:

Último poste da série > 12 de agosto de 2023 > Guiné 61/74 - P24550: Manuscrito(s) (Luís Graça) (226): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IVB: Enfermagem, Misoginia e Sexismo

Ver postes anteriores:

20 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24328: Manuscrito(s) (Luís Graça) (225): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IVA: Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras

4 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24281: Manuscrito(s) (Luís Graça) (223): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte III C: Contestação da Iatrogénese, da Medicina Defensiva e do Encarniçamento Terapêutico

3 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24189: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IIIB: Quando o pobre come frango, um dos dois está doente

28 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24173: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIIA: Hospital, o triunfo da hospitalidade e da caridade... mas "o peixe e o hóspede ao fim de três dias fedem"

23 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24164: Manuscrito(s) (Luís Graça) (218): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIB: "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia"

20 de março de 2023 Guiné 61/74 - P24155: Manuscrito(s) (Luís Graça) (217): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIA: 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro"

17 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24148: Manuscrito(s) (Luís Graça) (216): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte I: "Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dá tudo"

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19428: A Galeria dos Meus Heróis (19): A Nucha ou a difícil arte do envelhecimento (Parte II) (Luís Graça)




Luís Graça, CCAÇ 12, Guiné, Contuboel, jumho de 1969


A Galeria dos Meus Heróis > A Nucha ou a difícil arte do envelhecimento-II Parte

por Luís Graça



(Continuação)(*)



7. (...) E exemplificou,o meu amigo psiquiatra:

− Com mais ou menos dor, os casais separam-se ou divorciam-se... Nalguns casos, mais raros, é o homem que "parte à aventura", mudando de casa ou até de cidade. Mas, para isso, é preciso ter liberdade económica. Neste caso a mulher ainda hoje está mais limitada do que o homem. No futuro, vão-se inverter os papéis...

− Mas não é o caso da minha amiga Nucha que saiu da casa do companheiro e, segundo parece, para não mais voltar.

− O que eu entendo, só se ela fosse masoquista... Mas, como médico e psiquiatra, já vi tudo ou quase tudo na vida... Como sabes, a capacidade de amar, odiar e perdoar é quase infinita, entre os seres humanos. A "fidelidade canina", entre nós, pode ser ainda maior do que nos cães... "O volta, querido, estás perdoado!", não é, infelizmente, uma figura de retórica do passado.

− Eu também não ponho as mãos no fogo por ninguém... Mas, repara, neste caso de que te falei por alto, são pessoas da chamada classe média ou classe média alta... São pessoas ditas cultas, adultas, viajadas, livres, que frequentam a Casa da Música e o Museu de Serralves, no Porto (ou a Fundação Gulbenkian e o CCB, se vivessem em Lisboa)...

− Mas não são muito diferentes dos mesmos, homens e mulheres, que tu vais encontrar, nos cruzeiros de verão, "low cost", quais "lobos e lobas solitários", à procura compulsiva do seu macho, da sua fêmea...

− Felizmente que − acrescentei eu − as pessoas têm hoje mais mobilidade e liberdade, do que no passado... Pelo menos, em teoria... E nem precisam de fazer cruzeiros para se encontrarem e encetarem novas relações... Tens as redes sociais, as festas, a "night"...

− E os idosos ? O banco de jardim, a universidade sénior, os centros de dia...

− Ah!, e a sala de espera dos nossos centros de saúde... Mas esses são os pobres e os remediados...


Continuando o seu raciocínio, disse-me o psiquiatra:

− Repara que, noutros casos, a maior parte dos casais idosos, reformados, da chamada classe média, não chegam a separar-se, ou melhor, cada um dorme na sua cama, em cantos diferentes da casa, um na parte nascente, outro na parte poente, um na cama de casal, outro no quarto que outrora foi dos filhos... Enfim,conforme a disposição e o tamanho das casas...  Ou, então, quando a casa é suficientemente grande, constrói-se um imaginário "muro de Berlim"... Não se falam, evitam cruzar-se, passam mais tempo na cama, pagam as contas a meias, enfim, encontram um "modus vivendi", algo trágico-cómico. Claro que estas situações são transitórias e ilusórias... Correm o risco de acabar, mais tarde ou mais cedo, em depressão, doença, violência,e até suicídio...


Lembrei também, ao meu amigo,  alguns casos, do meu conhecimento, do mundo académico que podem ter alguma relação ou analogia com o caso de que estávamos a falar, e que ilustram a dificuldade que os seres têm em lidar com a idade, o envelhecimento,a reforma, a "morte social"... É o mito do Elixir da Juventude ou da Fénix Renascida...


Ele não deixou de sorrir quando eu lhe falei das chamadas "crises da andropausa dos senhores professores catedráticos"...

− Sabes, tão bem como eu, de casos de professores universitários que perdem a cabeça com alunas, 20 ou 30 anos mais novas, com quem têm "paixões escaldantes", efémeras umas, e outras que até dão em casamento ou uniões de facto... Miúdas novas, da idade dos filhos ou até dos netos... Paixões que os colegas de departamento procuram "abafar" a todo o custo para evitar estardalhaço...

− Quem diz alunas, diz alunos − corrigiu o psiquiatra.


− Ah!, sim, em matéria de homofobia, a Universidade está hoje muito melhor do que no nosso tempo...E há casos de ssédio sexual, como em todo o lado...Mas não generalizes...

− Mas voltando às paixões serôdias, não te esqueças que no passado era de bom tom, sobretudo entre as classes altas, os homens casarem com mulheres mais novas  ou até muito mais novas...


8. Mas já que estamos a falar de sociedades patriarcais e falocráticas (, embora os papéis entre os homens e as mulheres estejam hoje a mudar, a um ritmo talvez mais assustador para os machos...), ocorreu-me a pergunta que já antes havia formulado a mim mesmo:

− Afinal, quem era o homem de que tanto se falava, no círculo dos amigos e conhecidos da Nucha, o "mau da fita", a "besta quadrada", o "energúmeno", para usar alguns dos epítetos mais suaves do léxico da nossa "Poetisa", sempre politicamente incorreta e com gosto (perverso) para as tiradas panfletárias e provocatórias...

Bom, vim a conhecê-lo mais tarde,não no Porto,mas em Lisboa,por ocasião do lançamento do álbum fotográfico de um amigo comum, fotojornalista, que mo apresentou:

− O eng. Vaz C...

Não vou dizer que ficámos amigos, seria uma fanfarronice da minha parte, afinal não costumo fazer amigos logo ao primeiro aperto de mão... E sobretudo seria uma "traição" ,uma quebra de solidariedade para com a minha amiga Nucha que eu conheço há mais de vinte anos, e que é uma boa e leal amiga do Norte.

Mais tivemos depois, mais tarde, uma conversa franca, "de homem para homem" (como gostam de dizer os machos). Ele fez questão de apresentar a sua versão dos factos, tanto mais que se sentia "injustiçado pelo tribunal, e crucificado na praça pública"... O tribunal condenara-o a uns tantos meses de prisão, com pena suspensa. Teve que pagar ainda uma indemnização, por danos patrimoniais e morais, à Nucha ( que ele sabia, de resto,  ser minha amiga de longa data.)

Não sei porquê, devo-lhe ter inspirado confiança. Por outro lado, eu tinha a vantagem de não ser do Porto e de não viver no Porto, e muito menos na Foz.


9. O eng Vaz C... (continuo a omitir o apelido por razões óbvias) é um engenheiro químico. Fez toda a vida no Porto mas tem as suas raízes no Alto Minho.

− Corrijo: fui engenheiro químico, já não sou. É uma parte do meu passado que ainda hoje me é doloroso evocar... Mas não posso riscá-la do meu currículo, seria fazer batota comigo e com os outros que me conhecem... Afinal, sou filho e neto de engenheiros... O meu avô, esse, era engenheiro militar.

Tratavamo-nos por você, como convinha, para manter a "devida distância.... E eu, por minha vez, também evitava interrompê-lo e fazer-lhe perguntas eventualmente embaraçosas...

Poucos o conheciam na vida da Nucha. Ela, de resto, nunca o havia apresentado à Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade (**), nem muito menos aos seus colegas professores da escola secundária onde ela dava aulas de biologia (aliás, fez lá toda a sua carreira e desenvolveu projetos na área da promoção da saúde escolar; foi daí, de resto, que nos conhecemos.)

Também eram raros os amigos comuns. O Vaz C... não me explicou como é que a Nucha aparecera na vida dele, há cerca de uma década atrás. Mas é capaz de ter sido numa viagem do Pinto Lopes, a quem já chamam,no Porto, a "agência do amor" ou "agência cor de rosa"...

Nem ele nem ela faziam grande vida social. Eram pessoas discretas, cada um com a sua casa, como convinha. A dele, na Foz, a dela na rua da Alegria. Era um "casal atípico". Viviam juntos há cerca de oito anos, com completa "separação de bens", a começar pelas contas bancárias... Até o IRS faziam em separado. Ela como "solteira" (nunca se tinha casado), e ele como "divorciado", pai de 2 filhos e avô de 3 netos... Filhos e netos que ela nunca quis conhecer.

"Viver juntos" não era, para ambos, uma expressão totalmente correta. A Nucha ficava muitas vezes na casa do Vaz C... Por comodidade, por preguiça, por inércia, por ser mais espaçosa e confortável, enfim, e sobretudo, por estar junto ao mar... Mas ela não gostava do vocábulo "namorados".

− Éramos amigos que às vezes dormíamos na mesma cama − confidenciou-me ela.

Ele, às vezes, apresentava-a como "namorada", nomeadamente aos vizinhos e conhecidos. Todas as despesas de manutenção da casa (e não eram pequenas, a começar pelo condomínio) eram suportadas por ele. A Nucha contribuía "apenas com parte da alimentação". Ns despesas do dia a dia, ela gostava das "contas à moda do Porto". Os pequenos luxos, como restaurantes caros, uma vez por outro, em "dias de festa", era ele que fazia questão de pagar. De resto, ele era também "um razoável cozinheiro, um bom, garfo e um melhor copo", segundo o autoelogia que ele próprio fez, na conversa que teve comigo. A Nucha confirmou-me que "ele bebia bem, e às vezes demais". Tinha uma excelente garrafeira, de fazer inveja aos amigos e vizinhos.

Não era um desses "novos ricos da Foz", nem sequer se considerava "rico", vivia com relativo desafogo, graças ao "pé de meia" que juntara no tempo das vacas gordas, e ao longo de uma vida de trabalho. A casa na Foz ("um casarão"...) já vinha de família. O pai fora um dos pioneiros da construção das barragens no Douro. Era também engenheiro (e empresário).

− Investi na bolsa, ganhei dinheiro, soube aplicá-lo, poupei-o... Fui formiguinha, hoje posso dar-me ao luxo de ser cigarra...A Nucha só conheceu a cigarra, não a formiga...


10. Foi ele próprio que me deu alguns detalhes do seu "currículo". Tinha sido, durante mais de três décadas, um "alto quadro" de um conhecido grupo empresarial do Norte,ligado à indústria transformadora. Tivera uma "fulgurante e brilhante carreira", até à morte do fundador do grupo. (Nas fábricas do grupo, antes do 25 de Abril, o fundador era tratado por toda a gente, desde os operários às chefias, como o "Senhor engenheiro", só mais tarde é que passou a ser o "Velho" ou o "Patrão Velho".)


− Fui eu que sugeri (e preparei o dossiê de) a internacionalização do grupo e é por isso que alguns não me perdoam, a começar pelos herdeiros. Deviam-me estar gratos, se o grupo não se abre, os filhos e os netos estariam hoje na miséria, a empresa familiar que eu conhecia não teria sobrevivido aos choques políticos, económicos e tecnológicos dos últimos 30 ou 40 anos... (Hoje a empresa está sólida e tem à frente uma equipa de gestores altamente profissional, segundo apurei.)

E prosseguiu o meu interlocutor:

− Tudo corria aparentemente bem até ao dia em que lhe foi diagnosticado (ao fundador e líder do grupo,) um cancro, fatal, no cérebro. Ainda foi operado nos EUA, mas em vão. Com um prognóstico tão reservado, entrámos todos em parafuso. Ele era muito centralizador e gostava sempre de ter a última palavra, à boa maneira antiga do "eu quero, posso e mando". Este período poderia ter sido fatal para o futuro do grupo mas eu fui-lhe sempre leal e dedicado até à sua morte. De resto, não tinha funções executivas.

Convém acrescentar que o Vaz C... já antes se tinha começado a incompatibilizar com o filho mais velho do patrão, quando regressou à fábrica, vindo da América ou da Inglaterra, com um "Master", um "MBA", debaixo do braço, preparando-se para assumir, com toda a naturalidade deste mundo, o lugar que um dia, pela ordem natural das coisas, o pai lhe deveria deixar... Na realidade, não seria assim tão pacífica a sucessão...


E confessou-me, o Vaz C...,  o que sentiu com a morte do "Velho":

− No dia seguinte, senti que aquela casa também já não era a minha...

A correlação de forças mudou com a modificação da estrutura acionista: entraram para o Conselho de Administração os representantes dos herdeiros e dos novos acionistas, nacionais e estrangeiros.

O eng Vaz C..., assessor para a área do desenvolvimento estratégico, braço direito e protegido do "Patrão Velho", deixou de ser convocado para as reuniões do Conselho de Administração onde tinha lugar "praticamente vitalício", com funções consultivas. 

Sobretudo os herdeiros não gostavam dele, chamavam-lhe o "Rasputine", acusando-o de ter uma influência demasiado grande (e sobretudo nem sempre benéfica) sobre o "Velho".

− Substituiram o timoneiro (que morreu) e afastaram o seu "leal conselheiro"... A história repete-se...

Os novos patrões não o despediram logo, até por razões legais e por respeito a uma cláusula testamentária do "Velho"... Por "piedade" (sic), deixaram-no só, num gabinete vazio, com uma secretária, uma cadeira e um PC... Alguém lhe sugeriu que escrevesse a "história" da empresa e as suas memórias de trinta anos de colaboração com o "Patrão Velho"...

− Recusei-me, disse-lhes que não era historiador, era engenheiro...


O seu conhecimento e relacionamento com o fundador do grupo já vinha de longa data, ainda antes do 25 de Abril, quando, jovem engenheiro químico (e um dos melhores alunos do curso) fizera um estágio prolongado numa das fábricas da empresa, na Maia.

O "Velho" também vinha da "química" (ou da "alquimia", como ele costumava de dizer, para brincar com os colegas), mas era de outra geração... Apreciava, no jovem Vaz C..., além da "competência técnica", a "visão estratégica" em relação ao futuro do setor e dos negócios, a par da "arte de negociar e de resolver problemas".

− Sem falsa modéstia, eu fui um dos obreiros da "via real" do sucesso daquela empresa (e, por tabela, do grupo que veio depois a criar-se). Sobrevivemos aos desvairados anos 70, à crise do petróleo de 1973, ao 25 de Abril, às greves, saneamentos e ocupações selvagens, às nacionalizações, ao PREC, à intervenção do FMI,etc. Mas, depois, vieram os "trinta gloriosos", de princípios de 80 até à primeira década do séc. XXI"...

Não foram trinta, emendou ele:

− Se não foram trinta, foram vinte e tal anos a trabalhar bem, sem horários, às vezes sem férias, a criar riqueza, postos de trabalho, a distribuir dividendos, a abrir novas fábricas...

Por outro lado, conhecia o pai e o avô do Vaz C..., também eles engenheiros. Católico, com "sensibilidade social", o "Velho" não perdeu a oportunidade de o contratar para a sua equipa de gestores, numa época em que, nas empresas, ainda se valorizava mais a "tarimba" do que os "canudos". Por outro o conhecimento pessoal e as famosas "cartas de recomendação" também eram como o código postal, invenção muito mais recente: eram meio caminho andado para se arranjar um bom emprego numa boa empresa... 

Mais do que simples colaborador, o eng Vaz C... tornou-se um amigo e até um confidente do "Velho".

Resumindo:

− Eu era um "colarinho dourado" bem pago, comecei a ser vítima de "bullying", como se diz agora. Arrumaram-me para um canto, como um trapo velho... A maior humilhação da minha vida... Devia ter lutado mais, mas faltaram-me as forças... O braço de ferro acabou por quebrar pelo elo mais fraco da cadeia. Estive de baixa psiquiátrica durante três anos, e depois a Segurança Social mandou-me para o esquema da invalidez... Hoje estou reformado, isto é, arrumado. A única coisa que me aconteceu nestes últimos dez anos foi ter conhecido a Nucha. Infelizmente acabo de a perder, há um ano atrás, pela coisa mais estúpida que fiz na minha vida, que foi bater numa mulher.

Fez-se um silêncio prolongado, embaraçoso, o meu interlocutor ia sendo traído pela emoção, recompõs-se, puxou de um lenço, assoou-se e prosseguiu:

− Há coisas que fazemos que não têm volta: a rajada de G3 que se dispara à queima-roupa contra um pobre diabo que tenta iludir a vigilância dos seus captores, mesmo de mãos algemadas; a pedra que se lança no pátio da escola, e que vai partir a cabeça de um inocente; a gadanha da morte que varre a autoestrada e que ceifa a vida daqueles que te deram o ser; enfim, uma mão, pesada, que se abate sobre a cara da mãe dos teus filhos...

Depreendi, ou deduzi eu,  que eram fantasmas do seu passado: a guerra colonial, o acidente mortal com os seus pais, o divórcio litigioso do seu primeiro (e único) casamento...


11. Estava à espera que ele me contasse o que se passara exatamente "naquela malfadada noite" em que a Nucha regressara de Lisboa, de um congresso internacional... Mas ele, de repente, entrou num mutismo extremamente embaraçoso para mim... Respeitei o seu silêncio, levantei-me, despedi-me e nunca mais o voltei a encontrar.

Só mais tarde é que consegui saber pormenores, através da Nucha,  sobre o que se havia passado nessa noite fatídica, para ambos, que marcou o fim de uma relação.

(Continua)
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Notas do editor:

(**) Vd. postes de:

1 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19352: A Galeria dos Meus Heróis (16): Os caminheiros do parque da cidade - Parte I (Luís Graça)

1 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19353: A Galeria dos Meus Heróis (17): Os caminheiros do parque da cidade - II (e última) parte (Luís Graça): com os meus votos para o novo ano que aí vem, o 2019. Porque a saúde, afinal, não serve para mais nada... a não para sermos livres e felizes! (Luís Graça)