segunda-feira, 3 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24189: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IIIB: Quando o pobre come frango, um dos dois está doente

Hieronymus Bosch 053 detail

Detail from "The Extraction of the Stone of Madness", a painting by Hieronymus Bosch depicting trepanation (c.1488–1516) / Uma representação da trepanação: pormenor de "A Extração da Pedra da Loucura", quadro de Jerónimo Boch (c. 1488-1516), com a representação da trepanação. Coleção do Museu do Prado. Public domain / domínio público, Wikimedia Commons


1. Estamos a publicar uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...

São textos que ele foi buscar ao seu "baú", à sua antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

O nosso editor, que está no Norte até à Páscoa por razões familiares, manda dizer que " espera, ao menos, que a leitura destes textos se revele de algum interesse e proveito. Comentários e sugestões serão bem vindos".





4. Hospital, Pobreza e Caridade 



4.4. "Quando o pobre come frango, um dos dois está doente"

O hospital cristão medieval começou por ser simultaneamente um locus religiosus do ponto de vista eclesiástico e uma pia causa do ponto de vista canónico, gozando por isso de um certo número de direitos e privilégios: isenção de taxas, direito a fazer os enterros (jus funerandi), direito de asilo, etc. (Rosen, 1963; Steudler, 1974; Graça, 1996).

Também na estrutura do financiamento do hospital medieval era patente a sua origem como pia causa e a natureza caritativa da sua missão:

  • De facto, as suas receitas provinham exclusivamente da caridade dos ricos e poderosos;
  • O seu património original resultava, muitas vezes, do remanescente de uma herança, doada em vida ou à hora da morte, por um cristão, leigo ou religioso, que se sentia em dívida para com Deus;
  • O essencial das receitas do hospital, quer em espécie quer em géneros, provinha do seu património fundiário (alugueres de prédios urbanos, foros e rendas de prédios rústicos, exploração agrícola directa, etc.);
  • Quanto aos custos de hospitalização, eram sobretudo representados pelas despesas com a alimentação (mais de 50%);
  • Os encargos com o pessoal não ultrapassavam os 15%, enquanto as despesas com os produtos farmacêuticos não iam além dos 3% (Steudler, 1974; Rochaix, 1996; Graça, 1996).

Alguns dados estatísticos sobre a assistência hospitalar de há 150 anos são altamente reveladores da permanência, durante séculos, de certas características estruturais do hospital cristão medieval. De acordo com o Relatório Wateville (1851, cit. por Rochaix, 1966), havia em França, em 1847, no final da Restauração:

  • 1270 estabelecimentos, dos quais 337 eram classificados como hospitais, 199 como hospícios e 734 como hospitais-hospícios;
  • O número de camas elevava-se a mais de 118 mil, sendo 14% reservadas aos militares e pouco mais de 4% aos doentes que tinham possibilidades de pagar os custos de hospitalização; a grande maioria das camas destinavam-se, pois, a doentes indigentes (34,3%) ou idosos (47,4%);
  • O número de entradas nos estabelecimentos hospitalares foi de 486 mil, numa população estimada em 36 milhões (em 1850, segundo Duby, 1995. 651), o que daria então 13.5 internamentos por cada mil habitantes;
  • Em contrapartida, a duração média de internamento hospitalar era alta, embora variando conforme o género e a idade: 48 dias para os homens; 64 para as mulheres; e 70 no caso das crianças.

Não obstante o furacão revolucionário que varreu a França entre 1789 e 1799, a estrutura orçamental do hospital não tinha mudado muito em 1847, quando comparada com a do final do Ancién Régime.

Do lado das despesas (Quadro XII, em anexo), a alimentação continuava a constituir a principal rubrica e o grosso da fatia dos custos de internamento (56%). O pão (43%), a carne (25%), o vinho e outras bebidas (25%) praticamente esgotavam esta rubrica.

Em segundo lugar, mas apenas com 14% do total, surgiam os encargos com o pessoal. Por categorias destacava-se o pessoal administrativo, seguramente mais bem pago que as religiosas que constituíam, só por si, quase metade dos efectivos. A fraca proporção dos ordenados dos médicos e cirurgiões (menos de 1.9% do total geral dos custos de hospitalização) sugere que o seu número e a sua importância, no contexto hospitalar de há 150 anos atrás, eram ainda muito reduzidos.

Ainda em relação aos custos de pessoal, há que ter em conta a persistência da tradição do pagamento em géneros, particularmente sob a forma de fornecimento gratuito de alimentação e alojamento ao pessoal. Por não terem uma expressão monetária, estes encargos não eram contabilizados, aparecendo diluídos noutras rubricas. 

O risco de viés estatístico é, pois, óbvio, pelo que em rigor teríamos que ter em conta uma percentagem mais elevada de custos salariais (directos e indirectos), talvez da ordem dos 20% a 25%, como sugere Rochaix, para o período correspondente ao final do Ancien Régime (1996. 43).

Em suma, os custos de hospitalização por doente não chegavam a 82 francos franceses, dos quais 46 respeitavam à alimentação (Quadro XIII ). Só em pão gastava-se, em média, 20 francos por doente. Com a aquisição e a lavagem de roupa, mais 6 francos, enquanto o aquecimento ficava em 5 francos e meio e a iluminação em 1 franco. Estes valores dão-nos uma pálida ideia do que seria o terrível desconforto dos doentes naquela época.

Compare-se, por fim, o custo médio, por doente, do serviço religioso (0,7 francos) com a medicação (3,1 francos) e os honorários do pessoal médico (1,7 francos). 

No essencial, e independentemente de eventuais variações no custo por doente conforme o tipo de estabelecimento, estatuto do doente e região, o hospital no final da primeira metade do Séc. XIX em muito pouco se distinguia ainda do hospital da Idade Média, continuando a privilegiar a sua função de acolhimento de doentes pobres (que representavam mais de 4/5 da sua clientela).

Quadro XIII - Custo da hospitalização em França, por doente e por rubrica de despesa (1847)  

Unidade: Franco Francês  
 

Fonte: Adapt. de Rochaix (1996)


A associação do hospital com a prisão e, portanto, a sua natureza de instituição concentraccionária e totalitária, tem as suas raízes na dolorosa experiência da população europeia mais miserável e socialmente excluída (Quadro X, em anexo):

  • "Mal por mal, antes na cadeia do que no hospital";
  • "Na cadeia, no jogo e na doença se conhecem os amigos".
  • "Na prisão e no hospital vês quem te quer bem e quem te quer mal"
  • "Quem quiser comer arroz sem sal vá para o hospital";
  • "Quem vive em palácios sem poder no hospital vai morrer".

Durante muito tempo, aquilo a que eufemisticamente se vai chamar no Séc. XIX a assistência pública, tem duas funções distintas:

  • Uma função médica e hospitalar (prestação de cuidados aos doentes pobres);
  • E uma função de controlo social de todas as formas de déviance e da exclusão (pestilência, loucura, pecado, deficiência, pobreza, marginalidade, criminalidade, vagabundagem, prostituição, orfandade, velhice, desemprego, mendicidade).
É o início da intervenção do Estado, conferindo ao hospital, a coberto da caridade, uma função claramente policial de controlo de grupos da população potencialmente perigosos. 

Nomeadamente em França, é criado, em 1656, por Luís XIV o  Hôpital Géneral,Hospital Geral, com o objectivo explícito de impedir, nas principais cidades, "a mendicidade e a vagabundagem como fontes de todas desordens" (Foucault, 1972. 75). Trata-se do grand renfermement, um "estranho poder que o rei estabelece entre a polícia e a justiça, nos limites da lei: a 3ª ordem da repressão" (61).

Á semelhança do Hôpital Géneral, os ingleses tinham criado as workhouses, no âmbito da famigerada Lei dos Pobres (promulgada em 19 de Dezembro de 1601, pela Rainha Isabel I). 

 O seu estatuto tinha sido definido por Carlos II em 1670 e no Séc. XIX eram conhecidas como as Bastilhas de Chadwick (!), numa alusão à conhecida fortaleza-prisão de Paris, por um lado, e ao papel (controverso) do arquitecto do moderno sanitarismo, E. Chadwick (1800-1890): A primeira de todas remontava ao ano de 1697 (Bristol).

Segundo o historiador polaco B. Geremek (no seu livro sugestivamente intitulado "A piedade e a forca: História da miséria e da caridade na Europa", 1995), "aquilo que se propunha o Hospital Geral, com a sua política de enclausuramento e de trabalho obrigatório, era pois a afirmação do ethos do trabalho: assegurar a todo o custo - pelo terror, pela ameaça e pela violência - o respeito geral de tal princípio. O espectáculo da repressão que a assistência social dos Tempos Modernos integra nos seus métodos de intervenção desempenha uma função ideológica precisa" (Geremek, 1995. 261).

A clientela hospitalar seria, pois, constituída por toda a espécie de excluídos sociais, nomeadamente no Ancien Régime, vivendo amontoados, em total promiscuidade, em estabelecimentos que primavam pela mais completa e absoluta ausência de condições de higiene e de segurança. 

Além disso, os incêndios, as inundações ou outras catástrofes eram frequentes: por ex., o nosso Hospital de Todos os Santos sofreu nada menos do que três grandes incêndios, entre 1504 e 1755 (Graça, 1994).


4.5. "Ao doido e ao toiro dá-lhe o curro"


Além de um locus religiosus e de uma pia causa, o hospital até ao fim ao Ancien Régime continuara a ser um locus infectus, um lugar de infecção e de propagação de doenças. O universo hospitalar era concentracionário e a mortalidade elevada, tanto entre a população internada como entre o pessoal.

Não havia, por outro lado, nenhuma distinção entre o doente mental e o criminoso, sendo o louco tratado como um animal durante toda a Idade Média até praticamente ao Séc. XIX.: 

"Ao doido e ao toiro dá-lhe o curro", diz o provérbio, já que "quem de doidice adoece tarde ou nunca guaresce" (Quadro X) (*).

A fundação da psiquiatria data de 1798 com a distinção que o francês Ph. Pinel (1745-1826) fará entre loucos e criminosos, na sequência do ideário da Revolução Francesa. O mesmo Pinel iria também dirigir a primeira escola psiquiátrica em França (Sournia, 1995. 228).

É na primeira metade do Séc. XIX que surge o manicómio, o precursor do moderno hospital psiquiátrico (entre nós, a criação do manicómio de Rilhafolhes data de 1848). 

Discípulo de Pinel, J. Esquirol (1772-1840) será o inspirador, em 1838, da lei francesa, considerada exemplar para a época, "que institui a protecção jurídica dos alienados, até aí submetidos com demasiada frequência a internamentos excessivos e a tratamentos desumanos" (Sournia, 1995. 277).

Também entre nós, com o triunfo das ideias liberais, surgem as primeiras denúncias da condição infra-humana em que viviam os doentes mentais ("doidos, lunáticos, alienados", como eram então rotulados).

De entre os médicos que se debruçam e se preocupam com esse problema, destaca-se o nome de Clemente Bizarro (1805-1860) que, em 1836, em sessão da Sociedade das Ciências Médicas, chama a atenção para "os insalubres, os pavorosos, e os acanhados recintos onde confusamente estão misturados e em contacto mais de duzentos alienados de manias tão opostas e que por isso exigem cuidados tão diversos" (cit. por Mira, 1947. 420).

Bizarro referia-se mais concretamente à Enfermaria de S. João de Deus do Hospital de S. José onde se amontavam sobretudo doentes do sexo feminino:

 "Doidas nuas e desgrenhadas, entregues a todos os seus desvarios, gritando e gesticulando, encerradas às vezes num cubículo escuro e infecto onde mal podem obter um feixe de palha em que possam revolver-se; um local de todo apertadíssimo, com escassa luz, imprópria ventilação, e nele jazendo perto de 150 infelizes alienados com o diminuto número de três empregadas, que tantas são as destinadas ao seus serviço" (citado por Costa, 1986).

Em 1837, Bizarro pedia a criação de um hospício orientado especificamente para o acolhimento e tratamento de doentes mentais, o que veio a acontecer, dez anos mais tarde: de facto, graças ao legado de um benemérito, é criada em 14 de Novembro de 1848, o primeiro estabelecimento para alienados.


Alguns anos depois, o manicómio de Rilhafolhes alberga já mais de meio milhar de doentes; mais tarde, será seu director o médico Miguel Bombarda (1851-1910), o qual além de ampliar e modernizar o estebelecimento, lutou vigorosamente contra os métodos repressivos então ainda em uso (o "babeiro de cola", a "coleira", o "berço-prisão", o "colete de forças", etc.);

Em 1948, passou a chamar-se Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda.

Em 1883, entra em funcionamento o Hospital de Conde de Ferreira, pertencente à Misericórdia do Porto, e que foi construído com o remanescente da herança de J.F. Ferreira (1782-1866). Este último, depois de enriquecer no Brasil e em África, iria tornar-se um dos grandes filantropos do reinado de D. Maria II.

O Hosputal Conde de Ferreira, para o qual transitaram os doentes mentais, até então encerrados como animais nos porões do Hospital de Santo António, igualmente sob administração da Misericórdia do Porto, irá tornar-se a escola dos grandes "alienistas" do nosso Séc. XIX: A. M. Sena, Urbano Peixoto, Magalhães de Lemos e Júlio de Matos, entre outros (Mira, 1947).

É a época do desenvolvimento da neurologia e psiquiatria (ou melhor, da neuropsiquiatria), o qual decorre, em grande parte, dos progressos realizados em disciplinas fundamentais como a anatomia, a fisiologia e a patologia. As funções do cérebro e do sistema nervoso e o seu papel na saúde/doença começam a ser largamente objecto de investigação por homens como os franceses G. Duchenne (1806-1875), J. M. Charcot (1825-1893), J. Déjerine (1849-1917) e sua mulher, P. Marie (1853-1940) (uma das primeiras mulheres médicas), J. Babinsky (1857-1922), e o inglês J. H.Jackson (1835-1911) (Rosen, 1990; Sournia, 1995).

A fundação da neuropsiquiatria é atribuída ao francês J. M. Charcot, com a publicação em 1873 do seu Curso sobre as doenças do sistema nervoso. Posteriormente, o alemão E. Kraeppelin (1856-1926) vai classificar as doenças mentais.

Voltando à França e ao fim do Ancien Régime, não admira a grande desconfiança (se não mesmo a suspeição e o repúdio) com que a instituição hospitalar será tratada no período revolucionário, já que ela é sinónimo da caridade mais abjecta. Como dirá Barère, no relatório feito em nome do Comité de Salut Publique:

"Quanto mais esmolas, mais hospitais. Tal é o objectivo para o qual a Convenção deve caminhar sem cessar, porque estas duas palavras devem ser riscadas do vocabulário republicano " (cit. por Rochaix, 1995. 59).

Em contrapartida, em Portugal será o Estado Novo, em pleno Séc. XX, a recuperar a ideologia do acto misericordioso e a sobrepor a caridade individual à solidariedade social (Caixa 1, em anexo).






Caixa 1 - A Caridade

Perto da minha casa, mora, sòzinho um velho doente, que todo o dia treme e pouco fala.

Como não tem família, são os vizinhos   que o trazem ao colo e o sentam à porta  nos dias de sol.

Chora sem lhe fazerem mal e sem dizer porquê.

Gosto muito deste pobrezinho. Quando lhe levo alguma coisa que o consola, vou tão depressa que nem sinto os pés a tocar o chão.

Ando sempre contente nos dias em que posso visitá-lo e dar-lhe esmola. Não há alegria como a de fazer bem.

Nosso Senhor ensinou que a maior de todas as virtudes é a caridade.

Fonte: O Livro de Leitura da 3ª Classe. ((Lisboa)): Ministério da Educação Nacional, s/d, p. 62


(Bibliografia a apresentar no final da série)

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