Queridos amigos,
Aqui termina a contabilidade das minhas obras preferidas no Museu Gulbenkian. Durante anos procurei ler muito sobre a personalidade do colecionador, aliás houve uma bela exposição sobre o colecionador, exibiam-se mesmo os seus cadernos, os seus comentários sobre as obras, o seu afã em adquiri-las, como qualquer colecionador ele tinha paixões ao rubro e na sua casa apalaçada da avenida Iena, relativamente perto do Arco do Triunfo, ele tinha tudo exposto, seguramente que cirandava por aquelas salas e salões a contemplar todas as conquistas, fruto de apuradas escolhas, era muito exigente, interessava-lhe unicamente o melhor, dentro daquela pauta de critérios de que a arte que o empolgava já não incluía nem cubismos nem expressionismos e todas as correntes e movimentos que se seguiram, aliás está à entrada do museu uma peça modernista que marca a fronteira do seu gosto. Deu-me hoje para recordar o que aprendi com dois diretores e várias conservadoras que tiveram a amabilidade de me receber, confesso que demorei a entender-me com o gosto do colecionador, um arménio com um pé no gosto ocidental e outro nas suas raízes, extensíveis a Chinas e Japões, tudo se reflete na intensidade deste ecletismo que não deixa nenhum visitante indiferente com as escolhas do senhor Gulbenkian.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (97):
Hoje, quero muito simplesmente dizer ao senhor Gulbenkian que lhe estou grato (2)
Mário Beja Santos
Tive o privilégio de conhecer e conversar amiudadas vezes os dois primeiros diretores do museu, Maria Teresa Gomes Ferreira e João Castel-Branco Pereira. Na colaboração que levei de 28 anos no Jornal de Notícias criara uma secção que intitulei “Necessidades espetaculares”, aproveitava uma exposição e conversava com um dos diretores ou com conservadores, no caso de alguma das exposições estar associada a peças em reserva, foi o que aconteceu com as exposições do tapete Mogol, os belíssimos livros que Gulbenkian adquiria, sobretudo com encadernações Arte Nova, a mobília do artista Talma ou a recuperação de obras de arte depois das inundações terríveis que houve no palácio de Oeiras. Apreciei sempre a competência da primeira diretora, admirei a capacidade comunicativa de João Castel-Branco Pereira, impressionou-me a organização de catálogos temáticos que são seguramente obras de referência em diferentes domínios, caso das duas grandiosas exposições sobre naturezas-mortas europeias.
Habituado aos cantos daquele museu, passei a fazer raides, hoje vou limitar-me à coleção de moedas, ou às loiças Iznik, os vasos Seljúcidas ou aos impressionistas ou então cirandar na sala reservada às obras de Francesco Guardi. Fui afinando o gosto, termino agora com as peças do meu relicário, e não posso deixar de insistir que a dívida que tenho para com esta Fundação é impagável, não encontrei melhor homenagem à memória deste filantropo que exaltar esta ou aquela peça que me enche as medidas, uma gratidão pelo bem que este senhor fez, faz e fará aos meus compatriotas. E agora entro numa sala de museu, tudo só por causa de uma peça de ourivesaria, este núcleo ficou ainda mais atrativo depois da renovação, há quem aqui entre para se extasiar com o centro de mesa do grande ourives Germain, eu prefiro a minúcia e a delicadeza deste abafador, faz parte de uma coleção de ourivesaria do século XVIII adquirida por inteiro pelo multimilionário de origem arménia.
Abafador, núcleo de ourivesaria, peça do século XVIII
Naufrágio de um Cargueiro, Joseph Mallord Turner, c.1810
Durante anos, constava na legenda que era o naufrágio de um barco chamado Minotauro, agora diz que é naufrágio de um cargueiro, nada conheço de tão empolgante, o navio afunda-se, mostra-se um mastro destruído, gente apavorada na amurada, o mar está vazio e quem vai na jangada ou nos botes vai seguramente aterrorizada. O que me apaixona nesta tela é o equilíbrio das formas, o céu está medonho, as águas revoltas engolindo despojos, quem vai na jangada, bem ao lado de um mastro desfeito procura salvar um náufrago no meio da violência das ondas espumantes. E há a genialidade da cor, o calado da navio que se afunda parece madeira viva, à sua frente uma vela acastanhada e que se destaca e no centro da tela o borbulhar da intempérie e o equilíbrio daquele bote à direita em que as figuras minúsculas dos náufragos parecem a marinhar pelas velas amareladas. Obra-prima absoluta.
As Bênçãos, Rodin, c. 1900
Tive a dita de visitar em Paris o Museu Rodin, falando do século XIX, é o meu escultor preferido. Temos a escultura de um jovem adolescente no Museu Nacional de Arte Antiga e parece que os desenhos, ficámos profundamente enriquecidos com estas bênçãos, corpos em exercício balético, torcidos e retorcidos dentro de esta base de pedra donde as figuras emergem, atino no contraste entre as rugosidades da base escultórica e a pedra acetinada onde dançam as bênçãos, voluptuosas.
Barcos, Claude Monet, 1869
Mulher e Criança Dormindo num Barco, John Singer Sargent, 1887
Às vezes, nesta sala de pintura, ponho-me disfarçadamente a olhar para onde vai a atenção dos visitantes. Tenho constatado que esta mulher e criança dormindo num barco é visita de pouca duração, o que me surpreende, acho uma tela impressionante, logo as cores: o branco imaculado, o fundo vermelho, a envolvente das folhagens, a luz que se derrama pelo curso de água, as curtíssimas pinceladas para assinalar os pés de mãe e filho, pasmo como se consegue uma outra tonalidade para o chapéus da mãe e como o pintor nos transmite a sensação de repouso naquela lassidão dos corpos, ainda mais acrescentada pela atmosfera de tranquilidade dada por aquele azul das águas.
Natureza-Morta, Henri Fantin-Latour, 1866
Pulseira Mochos, França, c.1900 René Lalique
A coleção de obras de René Lalique é impressionante, este genial ourives está altamente representado neste museu, gosto praticamente de tudo, mas este mochinhos e o belo engaste das peças em ouro enchem-me as medidas.
O Espelho de Vénus, Burne-Jones, 1877
Estamos praticamente a sair do museu e desde a primeira hora que a Coleção Gulbenkian veio parar à avenida de Berna que Burne-Jones nos apresenta cumprimentos de despedida, pudesse a tela falar e diria “volte sempre”. Calouste Gulbenkian tinha o gosto requintado e não há nenhuma dificuldade em entender como se sentiu atraído por esta energia revivalista dos pré-rafaelitas, de que Burne-Jones foi o sumo pontífice.
O Pintor Brown e a Família, Giovanni Boldini, 1890
Tempos houve em que a despedida era feita por este maravilhoso quadro de Boldini, foi tirado das reservas por João Castel-Branco Pereira, uma nova gerência voltou a colocar Boldini nas tais reservas. Eu não me conformo, guardo saudades desse tempo em que via estas duas magníficas peças de Burne-Jones e Boldini a lembrar-me que este museu é um permanente espaço de encanto, um porto de regresso sem remissão, e espero que assim seja até ao fim dos meus dias.
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Nota do editor
Último poste da série de 1 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24184: Os nossos seres, saberes e lazeres (566): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (96): Hoje, quero muito simplesmente dizer ao senhor Gulbenkian que lhe estou grato (1) (Mário Beja Santos)
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