sábado, 1 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24184: Os nossos seres, saberes e lazeres (566): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (96): Hoje, quero muito simplesmente dizer ao senhor Gulbenkian que lhe estou grato (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Março de 2023:

Queridos amigos,
Não sou capaz de conjeturar o que teria sido a minha vida sem os benefícios que auferi (e aufiro) da Fundação Calouste Gulbenkian. Recordo com alguma precisão a primeira visita que fiz ao Palácio do Marquês de Pombal em Oeiras, senti-me então desorientado com aquele ecletismo de antiguidade oriental, arte islâmica, preciosidades da Pérsia, aquela deslumbrante ourivesaria francesa, nunca vira as obras de René Lalique, o genial artífice do período da Arte Nova, até chegarmos a Burne-Jones, que prontamente me fascinou. O meu débito é interminável, é uma enorme fatura que mete música, bailado, exposições de topo de qualidade, as leituras naquela biblioteca passadas todas estas décadas é a casa de livros mais artisticamente arrojada que conheço, os ciclos de cinema e a doce recordação dos tempos adolescentes em que entrava nas bibliotecas itinerantes e as conversas entre miúdos sobre as nossas leituras. E andava ali pelos jardins quando me ocorreu que não era sem tempo que eu aqui saudasse quem tantas alegrias me proporcionou.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (96):
Hoje, quero muito simplesmente dizer ao senhor Gulbenkian que lhe estou grato (1)


Mário Beja Santos

Passeava displicentemente pelos Jardins da Gulbenkian, com a curiosidade nos trabalhos que se efetuam onde era o Centro de Arte Moderna, quando me ocorreu quanto impagável é a dívida que tenho com esta Fundação. Em adolescente, visitei uma parte do que é hoje o museu no Palácio do Marquês de Pombal em Oeiras, fiquei ofuscado com o ecletismo da coleção, o que levara um arquimilionário a juntar moedas, tapetes, peças escultóricas, ourivesaria e artes decorativas, pintura que se arrastava da Idade Média ao princípio do século XX, mobiliário, marfim, arte oriental? Ainda sem resposta satisfatória, juntava tostões para ir a alguns espetáculos do festival de música, foi assim que conheci artistas de eleição como Arthur Rubinstein, Henryk Szeryng, Maurice Béjart, frequentei a biblioteca no novo edifício, para já não falar nos livros que li graças à biblioteca itinerante, de saudosa memória… E depois a companhia de bailado, os recitais gratuitos, as inolvidáveis exposições, até chegar à majestosa museologia que acolhe a Coleção Gulbenkian, que visito com regularidade, às vezes única e exclusivamente para ver uma peça ou duas. Como pagar tal dívida de gratidão?
E foi assim que tomei a decisão de saudar quem tanto bem me tem feito, entrei de supetão no museu, dizendo para os meus botões, venho agradecer-lhe, senhor Gulbenkian mostrando aos meus amigos algumas dessas peças que para mim são “só o melhor” dentre o que adquiriu, o mesmo é dizer aquelas que mais me tocam, desde que as conheço, minhas amigas e conhecidas desde há mais de meio século. Entenda-se que é tudo uma questão de gosto, não há aqui qualquer classificação, se omitir tapeçaria oriental, mobiliário francês, pintura romântica, etc., a omissão não significa outra coisa que não são as minhas excelsas peças, o polo de atração, independentemente de acompanhar amigos estrangeiros e enaltecer a qualidade de tudo quanto se vê.

Começo as minhas escolhas no século IX a.C.

Baixo-relevo assírio proveniente do Palácio de Nimrud, construído por Assurnasirpal II, século IX a.C.
Taça com pássaros afrontados. Pérsia, final do século XIII-início do século XIV
Prato fundo com romãs, Turquia, Iznik
Bíblia arménica, Istambul, século XVII
Panejamento de seda, Japão
A Virgem e o Menino, Jean de Liège, século XIV
A Virgem e S. João, Alto Reno ou Suábia, século XVI
Descanso na Fuga para o Egipto, Cima da Conegliano, século XV.

Aqui sinto-me obrigado a uma justificação detalhada. Cima da Conegliano não é propriamente um santo do meu culto, mas cada vez me ocorre a lembrança da visita espúria que fiz a Conegliano, sinto-me obrigado a contemplar este “Descanso na Fuga para o Egipto”. Numas férias que fiz na região do Véneto, constava o programa de passar dois dias nos Dolomitas. Para lá chegar a preço mais económico, toma-se o comboio em Veneza até Conegliano, depois um pequenino comboio até Ponti di Alpi, e daqui um autocarro até Mitsurina, ali estão os Dolomitas, gigantescos, a seduzir-nos para passeios pedestres. Acontece que em Conegliano senti um dos pés a tocar no asfalto, o sapato acabava de morrer, desfizera-se de podre, olhe súplice à volta, perguntei a alguém onde havia uma sapataria, lá entrei a mancar e comprei umas belas sandálias, que andar confortável me estava reservado! Só que à noite, antes de saltar para a cama, olhei atentamente para o meu precioso achado e verifiquei que uma das sandálias era vermelha e a outra amarelo-torrado, fiquei um tanto encabulado, mas assumi que a responsabilidade era tanto minha como do sapateiro, e não se reclama calçado usado, alguém me observou que até era uma originalidade. O que para o caso interessa é que nunca mais esqueci Conegliano, e também por uma outra razão, é recordação com alguma mágoa: visitei uma exposição sobre os exércitos que Mussolini mandou para a União Soviética, tiveram triste sorte, passeei os olhos por muitas fotografias de cemitérios gigantescos de caídos em combate. E para quem combateu, há sempre um sentimento de infortúnio, de compadecimento, por quem tombou, independentemente de se estar no sítio certo ou errado.
Figura de ancião, por Rembrandt, século XVII

Detenho-me sempre, não pela imponência da figura por este magistral claro-escuro, o que me prende a atenção são aquelas duas mãos de veias salientes, aquelas marcas da idade, aquela descrição de um pequeno anel ou mesmo aliança no dedo mindinho da mão esquerda, aquelas mãos que com naturalidade seguram o bordão, e então os olhos descem para o panejamento onde assume alguma luz junto dos joelhos, porque toda a iluminação vem de cima, desce do rosto para as mãos e nesses joelhos se detém, é o domínio genial que Rembrandt possuía para nos atrair ao ponto focal da sua obra.
São Martinho repartindo a capa com um mendigo, artista desconhecido, Vale do Loire, século XVI

Duas razões me levam recorrentemente a ficar especado diante deste S. Martinho, o controlo da luz, questão fundamental em museografia, aqui ficamos especados vendo o que essencialmente merece ser visto, da sua montada o cavaleiro corta um pedaço de manto e jamais saberei se este mendigo tem o rosto em sofrimento ou olha o santo em êxtase. E pasmo-me, então, no controlo do mestre da estatuária, a forma delicada que ele encontrou para nos mostrar a crina daquela montada.

Pois bem, ainda há outras preciosidades para vos mostrar, fruição que devo a quem amou o nosso país e nos deixou estes relicários.

(continua)

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Notas do editor:

Poste anterior de 25 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24169: Os nossos seres, saberes e lazeres (564): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (95): Da bela Tavira a uma exposição sobre a Ordem de Cristo em Castro Marim, com José Cutileiro em pano de fundo (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 31 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24181: Os nossos seres, saberes e lazeres (565): Diferenças entre o Estado de Direito e o Estado de Direito democrático (Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf)

4 comentários:

Antº Rosinha disse...

Devemos todos imensa gratidão ao senhor Gulbenkian e aos nossos antepassados que o receberam de braços abertos.

Valdemar Silva disse...

Antº. Rosinha, Portugal foi o único país da Europa que o autorizou a viver hospedado num Hotel e, assim, não pagar impostos, que já era seu hábito.
Dizem que as carrinhas da Gulbenkian com livros para emprestar às pessoas só paravam em terriolas sem luz elétrica, e assim obrigavam as pessoas a gastar petróleo para ler os livros.
Mas, fora brincadeiras, não fosse a Gulbenkian, Portugal ainda era mais atrasado do que era.

Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

Waldemar, não se brincava em serviço naquele tempo, como hoje com essa pouca vergonha dos vistos Gold de gente anónima.

Que nem se sabe verdadeiramente ao que virão.

Se será para aproveitarem o sol...ou a sombra.

Nós "semos" assim Valdemar, umas no cravo outras na ferradura!

Valdemar Silva disse...

Antº. Rosinha, ainda por cima para não incomodar a "situação", o seu advogado Dr. Azeredo Perdigão foi falar, directamente, com Salazar para tratar dos estatutos da Fundação.
Advogado que Salazar não gostava e tratava por Azeredo Vermelhão.

Valdemar Queiroz