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domingo, 12 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26381: Recortes de imprensa (142): Lusodescendentes do Sri Lanka e o seu crioulo de base portuguesa (Diário de Notícas e Agência Lusa, 8 mai 2023 )



Jovens falantes de português no Sri Lanka, segundo o projecto "Preserving Sri Lanka Portuguese" 

 Foto DR/Facebook, https://www.facebook.com/preservingsrilankaportuguese1 (com a devida vénia)


Lusodescendentes do Sri Lanka com "interesse crescente" em salvar o crioulo

Diário de Notícias | Agência Lusa | 08 mai 2023 09:40  


É uma peça da Agência Lusa, reproduzida no portal www.dnoticias.pt, que merece a nossa atenção, de portugueses e lusófonos: a existência de uma pequena comunidade de lusodescendentes do Sri Lança (o antigo Ceilão) que teima em manter a sua identidade e inclusive  o crioulo de base portuguesa que está em sério risco de extinção. 

A estes esforços está associada a investigadora Patrícia Costa do Centro de Linguística da Unibversidade de Lisboa (CLUL) e que é entrevistada pela Agència Lusa.

Reproduzimos alguns excertos da peça, com a devida vénia (*):

(...) A investigadora Patrícia Costa lançou um projeto para divulgar o crioulo de base portuguesa do Sri Lanka nas redes sociais porque considera que há 'um interesse crescente' nas comunidades lusodescendentes em preservar a língua."

Em abril de 2023, um grupo de jovens começou a organizar aulas de crioulo português para jovens e crianças. 

(...) "O mesmo grupo tem também procurado dinamizar ações para promover a língua no Sri Lanka, onde 'a maior parte da população desconhece totalmente que existe esta comunidade de euro-asiáticos e desconhece que há uma língua totalmente diferente', referiu Costa." (...)

Destaque para um desses jovens, "Derrick Keil, lançou em fevereiro uma versão moderna de uma canção tradicional em crioulo português, 'Minha Amor',  após ter participado no programa de talentos 'The Voice Sri Lanka' (...)

 Patrícia Costa, ouvida pela Agência Lusa, diz que  é "um marco importante na história da comunidade, porque pela primeira vez temos uma música dirigida a audiências várias que tem o crioulo como língua" (...)

A "baila", hoje o género de música talvez mais popular no país, foi introduzidda no Sri Lanka justamente pela "comunidade de falantes do crioulo português",

Patrícia Costa e Vyvonne Joseph, "jovem falante da língua",  foram quem,  em 2020, kançaram o projeto Preserving Sri Lanka Portuguese (Preservar o Portuguès do Sri Lanka), nas redes sociais (Instagram e Facebook).

O objetivo da inciativa, segundo a investigadora  portuguesa do CLUL é4 de "dar a conhecer a audiências mais gerais, também fora do Sri Lanka,  a existência desta língua, porque mesmo em Portugal não há uma grande consciência de que estas comunidades crioulófonas existem".

Um segundo objetivo é auxiliar, com materiais didáticos simples, os membros da comunidade que querem aprender ou aperfeiçoar a língua.

(...) O crioulo português do Sri Lanka 'neste momento é uma língua definitivamente ameaçada. O número absoluto de falantes é bastante reduzido', por volta de 1.300, sendo que a maioria são 'pessoas mais velhas' (...). Para os jovens, 'aprender o crioulo português não tem o valor instrumental que as línguas oficiais do Sri Lanka, o cingalês e o tâmil, têm, no acesso à educação e ao emprego, referiu Costa" (...)

Além disso, disse a investigadora, é preciso superar alguns preconceitos e ideias feitas, no seio da própria comunidade: para alguns membros  seria uma língua obsoleta, e segundo outros   "aprender o crioulo português em casa pode prejudicar a aprendizagem de outras línguas na escola"...

Embora em risco de desaparecer, o crioulo português do Sri Lanka  pode ter futuro.

(...)  "A académica defendeu ainda que uma maior ligação com os países falantes de português 'seria muitíssimo vantajoso para as comunidades crioulófonas, que teriam uma espécie de reconhecimento oficial da sua existência, da sua importância e da sua herança.

"O crioulo português do Sri Lanka, antigo Ceilão, é uma herança da expansão marítima portuguesa no século XVI, quando nasceu como língua de contacto entre cingaleses e portugueses, os primeiros europeus a lá chegar.

"A colonização portuguesa da ilha não durou mais de 150 anos, mas, mais de meio século depois, este crioulo continua a ser falado no seio das comunidades burghers, tradicionalmente católicas." (...)


A palavra "burghers" ( "cidadãos", "citadinos", "burgieses", em holandês) é a designação comum, usada hoje  para todas as pessoas que tèm uma ascendência euro-asiática (n0omeadeamente  portugueses e holandeses),  no Sri Lanka.



Fonte: USA > CIA > The World Factbook (com a devida vénia...)

Mapa do Sri Lanka: principais cidades do país... Em três delas (assinalada a tracejado verde e vermelho) residem comunidades de lusodescendentes. Os portugueses e seus descendentes fixaram-se sobretudo na costa leste, em Trincomalee e em Batticalloa 

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)



(...) No Sri Lanka de hoje o crioulo limita-se à linguagem falada. A maioria dos falantes são os burghers da província oriental, em Baticaloa e Triquinimale. Atualmente o inglês tornou-se a língua comum, com o cingalês ensinado nas escolas como segunda língua. De influência portuguesa existem ainda os cafrinhas ou kaffir do Sri Lanka, uma comunidade de origem africana, na província do noroeste Putalão, originalmente trazidos por portugueses, neerlandeses e ingleses para trabalhar no Seri Lanca, e que mantêm assumidamente uma cultura e religião portuguesas.

No Censo de 1981 os burghers (holandeses e portugueses) contavam cerca de 40.000 (0,3% da população total do Sri lanka).

Muitos burghers emigraram para outros países. Existem ainda 100 famílias em Baticaloa e Triquinimale e 80 famílias Kaffir em Putalão que falam o crioulo português. Numerosos apelidos de origem portuguesa permanecem até hoje, como Perera, Pereira, Abreu, Salgado, Fonseca, Fernando, Rodrigo e Silva, que se tornaram parte da cultura do Seri Lanca.

A população burgher no mundo será de 100.000 aproximadamente, concentrada sobretudo no Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. (...)

(Fonte: Excerto de Wikipedia > Burghers Portugueses (com a devida vénia)...



Excerto de banda desenhada infantil "Portuguese in Sri Lanka: part two: their exploits" (em inglês). Texto. Hashana Bandara; ilustração: Saman Kalubowila. (Sumitha Publishers. s/d., s/l. 24 pp.) Fonte: Poth Pancha, Panadura, Sri Lanka: uma livraria "on line" para crianças com menos de 12 anos (Imagem reproduzida com a devida vénia...)


Na primeira imagem acima pode ler-se em inglês: "Os Portugueses que chegaram ao Sri Lanka acidentalmente, em 1505, empenharam-se em estabelecer o seu poder na região costeira norte da ilha, até por volta de 1580" (... o que não é exato: a presença portuguesa manteve-se até meados do séc. XVII, Colombom na costa oeste,  cairia nas mãos dos holandeses apenas em 1656, depois de uma heróica resistência, tendo sobrevivido apenas menos de uma centena de defensores...Os holandeses por sua vez serão substituídos pelos ingleses em finais do séc. XVIII, princípios do séc. XIX. O Sri Lanka tornou-se, mais ou ,menos pacificamente, independente da coroa britânica em 1948. 
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Nota do editor:

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26331: A Nossa Poemateca (4): Força de Crecheu, de Eugénio Tavares (1861 - 1930) (escolha de Luís Graça)


Cabo Verde > Ilha da Brava > 6 de novembro de 2012 > Estátua do grande poeta Eugénio Tavares (1867-1930)...

["Brava é uma ilha e concelho do Sotavento de Cabo Verde. A sua maior povoação é a vila de Nova Sintra. O único concelho da ilha tem cerca de sete mil habitantes. Com 67 km², Brava é a menor das ilhas habitadas de Cabo Verde, e tem uma densidade populacional de 101,49/km². A ilha tem uma escola, um liceu, uma igreja e uma praça, a Praça Eugénio Tavares". Fonte: Wikipédia]


Foto (e legenda): © João Graça (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Escolha do nosso editor Luís Graça, em homenagem ao país da morna e ao seu grande poeta (vd. no poste P20651 uma tradução para português de Portugal). É considerado também um protonacionalista, tendo sido obrigado a exilar-se, em 1900, nos EUA, donde regressa com a República (1910). Além de poeta, foi também um notável jornalista,  contista e até dramaturgo. Escreveu em português e em crioulo cabo-verdiano. Popularizou a morna e a poesia em crioulo (foi ele que lhe deu estatuto de língua literária).

Força de Crecheu

por Eugénio Tavares (1861-1930)



Ca tem nada na es bida
Mas grande que amor.
Se Deus ca tem medida,
Amor inda é maior...
Amor ainda é maior,
Maior que mar, que céu:

Mas, entre otos crecheu,
De meu inda é maior

Cretcheu más sabe,
É quel que é di meu.
Ele é que é chabe
Que abrim nha céu...
Crecheu mas sabe
É quel 
Qui q'rem
Se ja' n  perdel,
Morte ja bem

Ó força de crecheu,
Abri'n  nha asa em flor!
Dixa'n  alcança ceu
Pa'n bá oja Nós Senhor,
Pa'n bá pedil semente
De amor coma es de meu
Pa'n bem da todo gente
Pa todo bá conché ceu!

Eugénio Tavares


Fonte: Eugénio Tavares: poesia, contos, teatro. Recolha, org. e pref. Félix Monteiro; org. e introd. Isabel Lobo. Praia : Instituto Caboverdiano do Livro e doo Disco, 1996, pp. 111/112.
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Nota do editor:

Último poste da série > 30 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26328: A Nossa Poemateca (3): Adeus, irmão branco!, de Geraldo Bessa Victor (Luanda, 1917 - Lisboa, 1985) (escolha de Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74)

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26145: Fauna e flora (24): O "catchu-caldeirão", uma espécie de tecelão muito abundante na Guiné, faz os ninhos em colónas barulhentas, em geral em árvores de grande porte e em arbustos junbtio aos cursos de água






Fonte: Guia das aves comuns da Guiné Bissau / Miguel Lecoq... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Monte - Desenvolvimento Alentejo Central, ACE ; Guiné-Bissau : Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas da Guiné-Bissau, 2017, p. 61. 

Ilustração de © PF - Pedro Fernandes, ) (Com a devida vénia...)

Acrescente-se que este é um notável trabalho, financiada pela União Europeia e pelo Camões, Instituto da Cooperação e da Língua através do projecto Gestão Sustentável dos Recursos Florestais no Parque Natural dos Tarrafes do Rio Cacheu.




Guiné-Bissau > Região de Biombo > Quinhamel >Porto-cais > 10 de novembro de 2024 > Restaurante do ti Aníbal > "Música, e cantares dos donos do lugar, os 'catchus'. Que também já foram em outro tempos servidos à mesa"...



Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Já identificámos quem é a ave,  a espécie,  que o Patrício Ribeiro chama "catchu" (em crioulo) (*), e que faz estes ninhos, uma obra-prima de arquitetura, e tecelagem, ninhos esses que enfeitavan e continuam felizmente a enfeitar muitas árvores pela Guiné fora, em geral de grande porte. Viam-se às centenas no nosso tempo, ao fimd a tarde, em bandos ruidosos.

Catchu-caldeirão (crioulo)

Nome científico: Ploceus cucullatus

Outras designações: 

  • Cacho-caldeirão (português),
  • Unke (balanta),
  • Djatchiquidau (fula)

Descrição:

(i) comprimento: 17 cm (O da imagem acima é um macho reprodutor):

(ii) muito comum na maior parte dos habitats terrestres, incluindo tabancas e cidades;

(iii) esta espécie de tecelão é uma das aves mais abundantes do país, observando-se em bandos com dezenas ou centenas de indivíduos;

(iv) nidifica em colónias barulhentas que podem ter centenas de ninhos, geralmente em grandes árvores;

(v) as fêmeas (e os machos em plumagem não reprodutora) são castanho-esverdeadas e amareladas na barriga e no peito;

(vi) limenta-se de sementes (incluindo do arroz de pampam e de bolanha) e de insetos.

Fonte: Guia das Aves Comuns da Guiné (s/l, Monte - Desenvolvimento Alentejo Central, ACE e Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas da Guiné-Bissau, 2017), pág. 61.

Para saber mais: vd. Ebird > Cacho-caldeirão (collaris) / Ploceus cucullatus collaris (em português)

2, Diz o Valdemar Queiroz, em comentário ao poste P26140 (*)

Em crioulo da Guiné não há palavras começadas com a letra "C" e todas as vogais são ditas como vogais abertas.

Em crioulo katchu quer dizer passarinho e pasaru quer dizer pássaro.

Não sei se katchu quererá também dizer, primitivamente, um cacho de.... passarinhos.

Mas como exemplo não parece: katchu riba di ñ kasa = passarinho no telhado da minha casa.

Valdemar Queiroz


quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26093: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (38): Bafatá, terra natal de Amílcar Cabral (1924-1973)



Foto nº 1 > Guiné > Bafatá > 28 de outubro de 2024 > A casa onde terá nascido o Amílcar Cabraçl (1924 -. 1973), hoje convertida em museu. ;Mural numa das paredes com a efígie do líder histórico do PAIGC,filho de mãe guineense e pai cabpo-verdiano



Foto nº 2A > Guiné > Bafatá > 28 de outubro de 2024 > Casa-museu de Amílcar Cabral: uma citação famosa (em crioulo):


"Nô sta na luta pa prugresu di nô tera, nô ten ku fasi sakrifisu pa nô konsigui kumpu nô tera.

"Nô ten ku kaba ku tudu injustisa, ku tudu koitadesa i sufrimentu.

"Nô ten garanti pa kada mininu ku na padidu na nô tera aôs ô amanha, tene certeza di kuma nin un mura ô paredi ka pudi tadjal"

(Amílcar Cabral)


Tradução do crioulo (LG / VQ): "Estamos a lutar pelo progresso da nossa terra. Temos que fazer sacrifício para conseguir desenvolver a nossa terra. Temos que acabar com todas as injustiças, a pobreza e o sofrimento. Temos de garantir que cada menino que nasce na nossa terra, hoje ou amanhã, possa ter a certeza de que nenhum um muro ou parede o vai deter". (Amílcar Cabral)


Foto nº 2 > Guiné > Bafatá > 28 de outubro de 2024 > Casa-museu de Amílcar Cabral > Mural


Foto nº 3 > Guiné > Bafatá > 28 de outubro de 2024 > Casa-Museu Amílcar Cabral > Parede exterior com mural... Fica junto à casa da nossa amiga Célia.



Foto mº 4 > Bafatá > 28 de outubro de 2024 > A rua que desce até a casa do Amílcar. Agora é uma valeta onde corre água das chuvas.


Guiné > Foto nº 5 > Bafatá > 28 de outubro de 2024 >Rua junto a casa onde podemos ver o Sporting... (à esquerda, a seguir)


Guiné > Foto nº 5A > Bafatá > 28 de outubro de 2024 > O edifício do Sporting (e antigo cinema), em segundo plano... Com o telhado já em ruína.


Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Mensagem do nosso amigo e camarada Patrício Ribeiro:


Data - segunda, 29 out 2024 00:36
Assunto . Viagem ao Leste no final da chuvas 2024.


Luís, publica se entenderes.

Estas outras fotos de Bafatá, foram tiradas hoje, segunda feira,  às 6.30h ainda com pouca luz...antes do meu regresso, mais logo,  a Bissau. (Do Gabu, já te mandei também algumas fotos.)

Estas de Bafatá são tiradas  junto  à casa da Célia (onde vive há 53 anos) e à  casa onde dizem que o Amílcar nasceu. É a última rua paralela ao rio.

É uma zona onde moram poucos europeus, luso-guineenses e libaneses. Uma zona da cidade sem vida. Onde existem algumas repartições publicas.

Ab, Patrício.

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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26086: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (37): Bafatá e a Célia Dinis, que merecia uma estátua e não uma medalha...

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25834: Notas de leitura (1717): Crioulo guineense, qual a tua origem? (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2023:

Queridos amigos,
Tanto quanto me lembro, a primeira vez que aqui falei sobre o crioulo foi a propósito do livro de Benjamim Pinto Bull "O Crioulo da Guiné-Bissau: Filosofia e Sabedoria". Muitos outros autores se têm debruçado sobre o crioulo. No termo do texto que hoje vos envio vem um interessante artigo de Luigi Scantamburlo sobre a grafia do crioulo e anexo os trabalhos de Jean-Louis Rougé, que trabalhou na Guiné-Bissau e nos países periféricos. É inesgotável a discussão sobre a origem do crioulo, o mérito deste livrinho é procurar a multiplicidade de aportes que chegam aos diferentes vocábulos, são meramente ilustrativos, já há dicionários de crioulo-português, prossegue a discussão se o crioulo devia ser classificado como língua oficial ao lado do português, compreende-se o amor próprio de quem o fala mas há que atender que é através do português que a Guiné-Bissau chega ao mundo global.

Um abraço do
Mário



Crioulo guineense, qual a tua origem?

Mário Beja Santos

Diversos autores da área da filologia, marcadamente da etnolinguística, têm procurado conhecer as raízes desta língua veicular. Um deles, é o reputado universitário Jean-Louis Rougé, com vastíssima obra sobre o estudo de algumas línguas da costa acidental africana, vale a pena darmos atenção a este Pequeno Dicionário Etimológico do Crioulo da Guiné-Bissau e Casamansa, INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, 1988. 

Logo no prefácio, o autor questiona as razões deste dicionário etimológico. Pretende-se fazer um equívoco muito divulgado de que o crioulo é um português mal falado. São indiscutíveis as relações que ligam o crioulo ao português, é elevadíssima a percentagem de palavras do crioulo que têm origem portuguesa, o que não obsta a originalidade da língua veicular. O propósito do autor neste dicionário etimológico é procurar seguir o encadeamento dos diferentes factos pelos quais as palavras tomam a sua forma e valor.

O crioulo nasceu na faixa litoral da Guiné, do Senegal à Serra Leoa, alguns grupos africanos tentavam aprender o português para fazer comércio ou também porque trabalhassem em estreita relação com os navegadores e os comerciantes. Instituiu-se, assim, um sistema que servia de comunicação entre portugueses e africanos, tanto a bordo como em terra, era seguramente a língua dos “lançados”, aqueles que se atreviam a entrar no mato profundo e a conviver com as populações nativas. 

Havia igualmente os “grumetes”, fixavam-se à volta das Praças, formavam uma sociedade na qual o sistema de comunicação tinha a base do português com uma enorme variedade de incorporações, era este crioulo que se falava nas praças (Geba, Cacheu, Ziguinchor, Bissau ou Farim). 

É impossível apresentar dados precisos sobre a constituição do crioulo, sabe-se que aquele que é falado em território da Guiné-Bissau também é usado na Baixa Casamansa, é língua comum. Com o aumento de falantes de crioulo graças à expansão de Bissau, ao seu uso, diríamos permanente em ambos os lados da guerra da Guiné, e naturalmente aceite no país independente e usado pelos representantes do PAIGC nas diferentes regiões, havia dialetos ou acentos, o crioulo de Bissau não era exatamente o de Ziguinchor ou Cacheu, em Bissau havia mesmo o costume de distinguir dois tipos de crioulo, o “Kriol fundu” (profundo) e o “Kriol lebi” (ligeiro ou suave).

De um ponto de vista etimológico, o vocabulário do crioulo divide-se em duas grandes categorias: a das palavras emprestadas a uma língua pré-existente (o português ou uma ou outra língua africana); e as palavras criadas pelo próprio crioulo. 

Os empréstimos não vieram exclusivamente dos portugueses. O português que serviu de fonte ao léxico do crioulo não é o português atual, era o que se falava nos séculos XV, XVI e XVII, isto sem prejuízo de que a intensidade da presença portuguesa durante a guerra colonial trouxe importantíssimas adições. Observa o autor que há certos termos do crioulo que têm por étimo termos portugueses que hoje na sua própria língua caíram em desuso ou evoluíram. Por exemplo, misti (querer) vem do antigo português é mister, que hoje praticamente não se usa; a palavra janta significa almoçar, perdeu o sentido que o seu étimo tinha na época, hoje usa-se em português para falar de jantar. 

Mas há outros inputs como a linguagem dos marinheiros, os termos trazidos das viagens dos portugueses em três continentes e também há que ter em conta o vocabulário da região católica. É o caso da palavra kriston que mais do que significar cristão refere-se a civilizado.

E depois há a incorporação das línguas africanas. As línguas africanas da região que nos interessa, a antiga Guiné, pertencem a dois grandes grupos linguísticos, ambos saídos da família Níger-Congo: as línguas oeste-atlânticas e as línguas Mandé. 

O conjunto oeste-atlântico compreende diversos grupos: as línguas do Norte (Wolof, que se pode aportuguesar em Jalofo, Serer, Peul, que se designa em português Fula); as línguas Bak (Djola, Manjaco, Mancanha, Papel, Balanta); mas também as línguas Tenda-Nun, onde podemos incluir os Cassangas, os Biafadas e os Nalus; e as línguas do Sul, onde encontramos o Mansoanque e o Baga. Com a exceção do Fula, estas línguas são faladas exclusivamente nos territórios do Senegal, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri e Serra Leoa. As línguas Mandé faladas na região são essencialmente o Mandiga, o Sosso e o Soninqué.

O autor também recorda empréstimos do crioulo às línguas africanas, muitos destes termos devem-se aos viajantes portugueses, caso de Valentim Fernandes, André Álvares de Almada, André Donelha, muito especialmente os nomes de vegetais. Obviamente que foram aparecendo termos à medida que o crioulo se constituía como língua autónoma e preenchia as faltas do sistema de comunicação provenientes da língua portuguesa. O autor espraia-se nestes empréstimos e as respetivas mudanças fonéticas. 

Segue-se uma apreciação sobre a transformação gramatical e a semântica destas incorporações e depois tem lugar o pequeno dicionário de que aqui se dão alguns exemplos: 

  • abakati (do português abacate), 
  • abridor (é o novo nome para aquele que abre, vem da palavra portuguesa abridor),
  • ansalmas (nome antigo do português para almas; 
  • bagabaga (o mesmo que térmita) em Bambara diz-se baga, em Mandiga baabaa; Donelha, a propósito das formigas da Serra Leoa diz-se explicitamente: “há outras que chamam bagabagas”; 
  • bana (vem do português abanar; 
  • baraka, associada a barraca do fanado vem do português barraca; 
  • bentu (vem do português vento); 
  • cigada (vem do português chegada);
  •  temos os números, como por exemplo, des ku kwatru (catorze), des ku nobi (dezanove), des ku oytu (dezoite), des ku seyis (dezasseis), desanobi (dezanove); 
  • dimistrador (proveniente do português administrador); 
  • dwensa (vem do português doença); 
  • es (vem do português este); 
  • falesi (vem do português falecer);
  •  feredu (vem do português ferreiro); 
  • futseru (vem do português feiticeiro); 
  • gagisa (vem do português gaguejar); 
  • ingratesa (ingratidão); 
  • jambatutu (nome de um pequeno pombo, termo curiosamente apropriado por várias línguas, caso do Mandiga mas também pelo crioulo; 
  • kaberdianu (vem do português cabo-verdiano).

Resta dizer que Jean-Louis Rougé, professor emérito em Orleãs, conclui este seu interessantíssimo trabalho pondo em anexo um projeto de ortografia e separação das palavras em crioulo, mostra-nos as letras fundamentais, caso do k, w e y, as letras de apoio que podem ser necessários para empréstimos recentes do português, as vogais nasais e as consoantes pré-nasais, como se processa a escrita e a leitura do crioulo, etc.

Penso que, no mínimo, este trabalho do cientista da filologia nos traz recordações da língua veicular sobre a qual, seguramente, ouvíamos, percebíamos este ou aquele termo, mas no essencial algo nos encantava, havia ali um português antigo que alguns, vindo de remotas aldeias, gostavam de escutar.

Jean-Louis Rougé
Uma aula em crioulo, parece que a senhora professora está a atender uma chamada
Uma imagem de Bolama na proximidade do seu porto
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Nota do editor

Último post da série de 9 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25824: Notas de leitura (1716): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1870) (15) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25652: Humor de caserna (67): O Spínola teria-se-ia desmanchado a rir, se fosse vivo, e tivesse lido esta história do cabo Abel, contada aqui, em versão condensada, pelo nosso Alberto Branquinho

 
1. Ó Alberto Branquinho, o Spínola deveria ter gostado de ler esta história... Não sei se ele tinha sentido de humor e se chegou a aprender o crioulo tão bem como tu. O seu biógrafo é omisso sobre isso. Mas ter-se-ia desmanchado a rir, como eu me desmanchei,  ao ouvir a resposta da moça que ia para escola, ao cabo Abel, que, armado em dono da guerra, lhe queria barrar o caminho no cerco ao seu bairro... Mais: teria ficado imensamente satisteito e até orgulhoso com a "lata" da bajuda, vendo na sua atitude e comportamento o triunfo da sua política "Por uma Guiné Melhor"... Não achas ?!

[ Para quem não sabe, o Alberto Branquinho (n. 1944, Vila Foz Coa), advogado e escritor, a viver em Lisboa desde 1970, foi alf mil, CART 1689 / BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69). "Por Portugal, um por todos, todos por um", era a divisa do seu batalhão. Chegaram a Bissau a 1 de maio de 1967 e regressaram a casa em 2 de março de 1969. Portanto, ainda "trabalharam" com o Spínola nove meses... Tem 140 referências no nosso blogue, é autor das notáveis séries "Contraponto" e "Não venho falar de mim... nem do meu umbigo". ]


Noss’ cabo Abel bai na Bissau

por Alberto Branquinho


O cabo Abel nunca tinha estado em Bissau.

O batalhão a que pertencia chegou a Bissau no paquete que os transportava desde Lisboa, mas a sua companhia saiu do paquete sem pisar terra, passou, diretamente, para batelões rebocados e, assim, foram rio acima,deixando, ainda, a bordo as restantes companhias do batalhão. (…)

Nunca tinha saído de junto da companhia, nos vários aquartelamentos por onde tinha peregrinado. Nem sequer uns dias de férias em Bissau. Tinha-se afeiçoado ao periquito que tinha preso à barra da cama. (…)

Agora, passados vinte e três meses, em Bissau,à espera de embarcar para a Metrópole, também já com a cara verde-amarela azeitona que o impressionara nos velhinhos no dia da chegada, passeava o seu espanto pelo espaço urbano de Bissau. Pela primeira vez!  

Era um rio de vida que corria pelas ruas – tropa bem fardada, polícia militar, polícia naval, civis, muitos civis e, principalmente, mulheres, muitas mulheres! Todas bonitas. E, até, muitas mulheres brancas, que já não via há muito tempo. (…)

Em Bissau a companhia recebia, por vezes, instruções para fazer cerco aos bairros negros de Bissau. O bairro era cercado pelas quatro horas da manhã, com ordem para não deixarem sair ninguém. Completo o cerco, grupos de militares inspecionavam casa a casa, pedindo os documentos.

(...) Era já manhã. O pessoal que fazia o cerco sentava-se no chão, com a G-3 entalada entre os joelhos ou em cima das coxas, em atitude descontraída, que, em nada, se assemelhava às situações de tensão que, em circunstâncias idênticas, tinham sido vividas, em emboscadas ou cercos no interior da Guiné,

De entre as casas, caminhando por uma vereda que passava ao pé do grupo de militares em que estava o cabo Abel, surgiu uma rapariga negra, que vestia uma bata impecavelmente branca,trazendo consigo os livros escolares, agarrados contra o peito. O cabo Abel levantou-se e,  com a G-3 a tiracolo, segurou o cigarro com a mão esquerda e com a direita barrou-lhe o caminho:

Bajuda, bô cá pude passa!

A moça, que teria catorze ou quinze anos, parou por um momento, encarou o cabo Abel nos olhos e perguntou-lhe:


− Porque você não fala comigo português direito ?

E, contornando-o, continuou o seu caminho para Bissau. O cabo, apalermado, ficou com o braço levantado, a vê-la passar. 

Fonte: Excertos de Alberto Branquinho  - Cambança final: Guiné, guerra colonial:  contos. Vírgula, Lisboa, 2013, pp. 141/43

(Título, excertos,  revisão / fixação de texto, parênteses curvos, para efeitos de publicação deste poste, na série "Humor de caserna": LG)  (Com a devida vénia ao autor e à editora...)

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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25636: Humor de caserna (66): Fidju di bó... ou a língua afiada das mulheres guineenses

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25426: Timor-Leste, passado e presente (2): Exorcizando fantasmas da história: reparações... ou reconciliações ?... Apostemos, isso, sim, no ensino e promoção do tétum e do português



Mendes, Manuel Patrício, e Laranjeira, Manuel Mendes (1935). Dicionário Tétum-Português. Macau: N.T. Fernandes & Filhos. (Disponível em formato digital na BNP - Biblioteca Nacional de Portugal.)


1. Não foi por acaso que os indonésios do ditador Suharto proibiram, após a invasão e a ocupação de Timor-Leste, em 7 de dezembro de 1975, seguida de genocídio até 1998, tentaram banir as línguas portuguesa e tétum, fortemente ligadas à identidade do povo de Timor Lorosa'e. Vinte e dois anos após a independência da República Democrática de Timor-Leste, tanto o português como o tétum estão longe de ser faladas por toda a gente...


O tétum é a língua nacional e cooficial de Timor-Leste, a par do português. Não é uma língua crioula (como o cabo-verdiano, por exemplo), é uma língua austronésia com muitas palavras derivadas do português e do malaio. Em 1981, a Igreja católica adotou, corajosamente, o tétum-praça, língua franca,  como língua da liturgia, em detrimento da língua indonésia. E esse facto foi relevante para o reforço da identidade cultural e nacional dos timorenses e da sua determinação para se tornarem livres e independentes.

Nós, portugueses, temos a obrigação histórica de dar o máximo apoio ao ensino e à promoção das duas línguas oficiais de Timor-Leste. E, por outro lado, temos de estar gratos aos missionários católicos que se interessaram, desde cedo, pelo ensino e divulgação das duas línguas, na época colonial.

Recordamos hoje o trabalho de dois missionários católicos, Mendes, Manuel Patrício, e Laranjeira, Manuel Mendes, "Dicionário Tétum-Português". Macau: N.T. Fernandes & Filhos, 1935.


2. Excerto do prólogo:

(...) "Em 1915, sendo eu missionário de Suro, numa das visitas do Superior, o Rev. Pe. João Lopes, àquela missão, mostrei-lhe uns apontamentos que eu tinha feito sobre o tétum.

Neles tinha catalogado e disposto alfabeticamente todas as palavras que encontrara nos livros em tétum publicados até então, e várias outras que aprendera diretamente dos indígenas. Eram um pouco menos de mil.

Acompanhava o Superior o Rev. Pe. Manuel Mendes Laranjeira, que, na sua missão de Alas, começara também a organizar um dicionário tétum-portuguès, cuja necessidade todos nós, os que dirigíamos escolas em Timor, de há muito reconhecíamos.

Por alvitre do Rev. Superior, resolvemos—o Pe. Laranjeira e eu—concluir cada um os trabalhos que começara e revê-los depois juntos, perante uma comissão de naturais das regiões onde o tétum se fala, fundindo-os numa obra só, que assim ficaria mais completa.

Foi esta a origem do presente dicionário que só hoje, uns vinte anos depois, pôde ver a luz da publicidade.

Logo que demos os trabalhos por concluídos, reunimo-nos na Missão Central de Soibada perante uma comissão formada por naturais de Dili, Viqueque, Luca, Lacluta, Barique, Samoro, Bubusspço e Alas, e demos começo à revisão que foi bem mais longa e laboriosa do que supúnhamos.

Durante mais de dois meses ali estivemos, trabalhando umas dez horas por dia, todos entregues à fatigante tarefa de corrigir palavras e significações; antes que julgássemos capaz de apresentar ao público este trabalho, onde se encontram estudadas umas oito mil palavras.

Este dicionário destina-se sobretudo às escolas de Timor, onde o ensino é ministrado em português, aos missionários e aos portugueses que trabalham naquela colónia, onde o saber tétum é uma necessidade. Mas os estudiosos dos costumes e modo de vida indígena encontrarão nele grande cópia de conhecimentos; pois a explicação do sentido de muitas palavras seria impossível sem a explicação dos costumes com que se relacionam.

Ninguém se admire dos frequentes circunlóquios e significações que parecerão à primeira vista difusas demais.

A indole do tétum é tão diferente da do português que, na maioria dos casos, tais divagações são indispensáveis para dar uma ideia do termo.

Àqueles que julgam que só é 'bom tétum' o que eles conhecem ou o que se fala nas regiões onde habitam, lembro-lhes que esta língua varia muito de região para região e que não há bases nenhumas que nos autorizem a considerar mais pura e legítima uma palavra usada num sítio do que a sua correspondente usada noutro onde também se fale tétum". (...)


3. Não sabemos se este é o primeiro dicionário de Tétum-Português, obra de missionários católicos e não de linguistas, o que também dá uma ideia das dificuldades que a administração portuguesa deste pequeno e longínquo território sempre teve de enfrentar (bem como das suas debilidades, a começar pela falta de escolas e de professores).

Sobre a "situação linguística" de Timor -Leste leia-se esta artigo, embora já muito datado (2007):

'Português, tétum ou tetuguês
A política da língua em Timor-Leste
Por Paulo Moura  7 mai. 2007  8K'

in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/idioma/portugues-tetum-ou-tetugues/1178 [consultado em 27-04-2024]

4. A título de mera curiosidade, selecionamos  algumas das palavras do tétum que, segundo Mendes e Laranjeira (1935), foram "importadas" do português... Hoje há muito mais vocábulos de origem portuguesa, ligados à(s) ciência(s),  à tecnologia, à política, à economia, à sociologia, etc.: basta ver o sítio do Governo de Timor-Leste (em tétum, português e inglês)... A começar pela saudação: Benvindu ba portal online Governu Timor-Leste ni-nian! 


Excertos do dicionário de tétum-português (Mendes e Laranjeira, 1935): de D a O


dindún, s. Corrupção da palavra portuguesa jejum.

dor, Partícula que se pospõe a alguns verbos indicando o hábito de praticar uma acção; ex. halimar dor, brincalhão; futu manu dor, jogador de galo, etc. Do sufixo português dor; (t. h.) arrastar; empurrar.
 
Dúan, s. pr. Corrupção do nome português João.

kintál, kintár, s. Quintal, pequena horta; do português.

lanpían, lànpo, lanbían, lànbo, s. Candeeiro, lanterna, lampião; do português.

lélan, lelàn, v. Confiscar, pôr em leilão; s. leilão; do português,

lénçu, s. Lenço; do português.

leterós, s. Cabas leterós, fio de seda, retrós; do português.

letráto, s. Retrato, fotografia; do português.

libur, libru, s. Livro; do português.

licénça, s. Licença, permissão, autorização; do portuguès.
 
limar, s. Lima, grosa; v. limar, desgastar com lima; do
português.

limaránça, s. Lembrança, presente ; do português.

lina, s. Linha; do português.

loirado, adj. Doirado, cor de oiro; do português.

lútu, s. Luto, o m. q. dóon; do português.

máca, v. Mancar, cansar, fraquejar (sobretudo falando de cavalos); do português.
 
macarau, s. Macarrão; nuu macaráu, côco de amêndoa solta e enxuta; do português.
 
Macau, s. pr. Macau; adj. de Macau, estrangeiro, que não é natural ou originário de Timor; sin. malae.

mácic, conj. Ainda que, apesar de, por mais que; o m. q. mdski; do português.
 
máis, conj. Mas, porém; do português.

maki, makin, vs. Máquina; máquina de coser; do português.

mala, s. Ró ahi-mala, mala, navio de correio; do português.

maláe, s. Estrangeiro, pessoa que não pertence à raça parda ou malaia; malae mutin, branco, europeu, português; malae sina, chinês; malae metan, africano, holandês; adj. estrangeiro, importado, que não é nativo; cf. timur.

malíçan, malícen, maliçan, s. Maldição, anátema; do português.

mangaçán, s. (Dili) Mangação, troça; v. troçar, escarnecer; do português.

marac, s. Marca, sinal (nos cavalos etc.); do português.
 
más, mais, conj. Mas, porém; do português.

meias, s. Meias, peúgas ; qualquer tecido de malha; jaru meias, camisola de malha; do português.

méla, v. (Dili) Adoçar (com mel ou açúcar): do português.
 
ménos, v. Ser menos, valer menos, escassear, diminuir, começar a faltar ou rarear; oçan menos ona, o dinheiro começa a faltar; do português.

mésa, s. Mesa, banca; do português.

mestre, s. Professor, mestre; antiga dignidade entre os indígenas; do português.
 
missa, s. Missa, o santo sacrifício instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo; do português.

módu, adj. Bonito, belo, bom; s. o m. q. modun.

môdun, s. Maneiras, modos, acções, costumes; ema modun di'ac, pessoa de bons modos ou pessoa de bons costumes; do
português.

mór, v. (Banque Samoro) Morar, habitar; sin. tur; do português.

morador, s. Soldado indígena de 2ª linha em Timor.

mulátu, adj. Fuuc mulatu, cabelo crespo ou, ondeado, carapinha; do português.
 
multa, v. Multar; s. multa; do português.

muníçan ou muniçán  s. Chumbo de caça (em grãos); do português.

mútin, mútic, adj. Branco, alvo; ulu-mutin, variedade de pombo de cabeça branca; malae mutin, português, europeu.
 
nacbára, v. Parar, amainar (a chuva etc.); do português parar.
 
Natal, s. Natal, dia ou festa do Natal (a 25 de Dezembro);
do português.
 
nauái, s. Navalha de barba; do português.
 
néen, adv. neg. Nem; néen ida, nem um, nenhum; do português.

nóbas, s. Nova, novidade, noticia; do português.
 
nôna (ai), s. Anona (árvore e fruto); do português.
 
númur, númir, s. Número; do português.
 
obedece, v. Obedecer; do português; sin. halo tuir.
 
obras, s. Obras (trabalhos de ourivesaria fina); do português.

obriga, v. Obrigar, coagir, forçar; do português.

obrigaçán, s. Obrigação, dever; do português.

obrigádu, adj. Obrigado, reconhecido, grato: do português.

ócul, ócur, s. Óculo, binóculo, luneta; do português,

oficial, oficiar, s. Oficial, chefe indígena nomeado oficial de 2ª. linha; do português.

ôudi, v. Odiar; o m. q. ódi, do português.

Observ. t.h. = variante do tétum falado na parte holandesa (ou neerlandesa)...

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG) (Atenção: não somos linguistas nem estamos a seguir a ortografia oficial do tétum)

(Continua)
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sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24653: Notas de leitura (1616): "Guiné-Bissau: Um Caso de Democratização Difícil (1998-2008)", por Álvaro Nóbrega; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015 (2) (Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Publicada em finais de 2015, este trabalho de Álvaro Nóbrega facilita-nos, pela abrangência do estudo, a tomar o pulso à realidade política e social da Guiné-Bissau através da sua complexidade sociocultural, como emergiram as elites, como houve um processo etiológico durante a chamada luta de libertação que acabou por desaparecer dando lugar a formas por vezes amalgamadas de gente de diferentes partidos, até com formação superior, com valores tradicionais, vive-se a perene tensão entre os políticos e os militares, estes às vezes também se juntam para fazerem negócios que dão pelo nome de exportação de madeiras exóticas, tráfico de armas ou narcotráfico. Álvaro Nóbrega compulsa com rigor estes elementos do Estado, disseca a orgânica das elites e expõe os diferentes aspetos que têm vindo a contribuir para dificultar a construção de uma democracia na Guiné-Bissau. É um livro de referência, facilita o debate para entender e procurar superar as disfuncionalidades de um Estado a quem chamam de frágil ou falhado.

Um abraço do
Mário



Uma soberba investigação sobre uma Guiné-Bissau que viveu a guerra civil, dilacerante (2)

Mário Beja Santos

Álvaro Nóbrega, Doutor em Ciências Sociais e professor universitário, é autor de uma obra de referência "A Luta pelo Poder na Guiné-Bissau" (2003), e na sequência desse primoroso trabalho produziu Guiné-Bissau: "Um caso de democratização difícil (1998-2008)", Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015. Este ensaio, de leitura obrigatória, desvela o itinerário ziguezagueante das instituições democráticas e pluralistas na Guiné-Bissau; o investigador reflete a fundo sobre as condições do nascimento do Estado, após uma prolongada luta armada de libertação nacional, elenca sobre as fragilidades, os erros, a vertigem dos cargos, o nepotismo, a tentação tribal, a Nação firme, mas o Estado volátil; enfim, importa esclarecer se faz vencimento aludirmos a um Estado frágil ou falhado ou supor que haverá outros itinerários, que seguramente requerem imensa coragem, a trilhar para consolidar a democracia e o respeito pelas instituições.

Já se passou em revista o nascimento do Estado independente, subsequente a um período de luta, e revelaram-se equívocos e falhas em todo o processo da transição entre um Estado monopartidário para uma democracia pluralista. Agora Álvaro Nóbrega procura saber quem é a elite política da Guiné-Bissau, quem se pauta por princípios da modernidade e quem mantém valores tradicionais. E ajustadamente lembra-nos que o último estudo sério data do período colonial, intitulou-se Mudança sociocultural na Guiné Portuguesa, e foi o seu autor José Manuel de Braga Dias, 1974. Recorda os autores que estudaram o processo histórico da formação das elites, como os princípios por que se regia Cabral foram rapidamente pervertidos e voltaram a ganhar peso a ligação ao chão, a ligação patrilinear ao clã, a utilização de linguagem ofensiva para quem tem família fora da Guiné, invetivando-se a origem sírio-libanesa, cabo-verdiana ou são-tomense.

Como escreve:
“O Movimento Reajustador de 1980 espoletou uma reação popular e hostil aos mestiços, levando a que muita gente da praça, crioula portanto, fosse à procura da sua genealogia de referências étnicas que porventura já estavam algo esquecidas e as recuperasse. Outras optaram contrariados pelo exílio, dando início a um movimento migratória crioulo ou não-crioulo para o exterior. A crioulidade é expansiva e integra indivíduos sem quaisquer ligações biológicas europeias, cabo-verdianas, levantinas e até goesas. Tornaram-se eles próprios gente da praça, sendo vistos como brancos (por se considerar terem adotado os seus costumes) quando visitam as aldeias dos seus pais e avós. A este grupo pertencem, também, alguns islamizados que, pela educação de matriz portuguesa, alcançaram cargos administrativos importantes ainda no período colonial”.

O peso crioulo vai até aos bairros periféricos e aqui a elite moderna interseta-se com as tradicionais. Mas há um momento determinante que mudou a abrangência e a forma das elites: a chegada de novos grupos por via eleitoral. O conflito político-militar iniciado em 7 de junho de 1998 trouxe exacerbamento étnico, começou a falar-se do aparelho de Estado dominado pelos Balantas, do seu conflito permanente com os Mandingas, ganharam influência as elites religiosas, com as mudanças constantes de governos cresceu o apetite pela distribuição de lugares governamentais, lutas internas dentro dos próprios núcleos da elite governante, os interesses grupais, a avidez pela ascensão ao mando e controlo da ajuda internacional ou de fazer parte de um qualquer projeto prometedor de exportações ou até ligação ao negócio de armas ou droga, foi ganhando projeção. O autor não deixa de chamar a atenção para a presença feminina em atividades que ajudam a complementar o rendimento familiar e não deixa de ser curioso analisar os quadros que ele apresenta de distribuição dos deputados por profissão e partido, tendo também em conta a ligação ao funcionalismo público, o nível de escolaridade, onde estudaram, a pertença étnica.

Outra matéria que Nóbrega equaciona é a legitimidade histórica tradicional, isto é, as práticas políticas modernas precisam de se legitimar, em muitos casos, no primado das tradições, e dá exemplos que têm a ver com a retoma do fanado.

O peso político dos militares ganha expressão com o conflito político-militar iniciado em 1998, até aí Nino Vieira tinha mão de ferro sobre a conduta militar, sabia pagar lealdades e distribuir mordomias, isto para sublinhar que não havia uma separação efetiva entre a política e as armas.

A figura da Junta Militar espevitou violências, ressentimentos, descontentamentos, ajustes de contas, rivalidades, servir-se da tropa para conduzir negócios mais do que duvidosos: o abate ilegal de madeiras exóticas, o tráfico de armas, o narcotráfico. Estas Forças Armadas representam um pesado encargo que impediu, impede e impedirá qualquer saúde orçamental. Atenda-se ao que o autor escreve num livro publicado em 2015:
“É um exército de 1869 oficiais (42%), 1218 sargentos (27%) e 1371 soldados. Esta é a razão pela qual o Chefe da Missão Europeia de Apoio à Reforma das Forças Armadas da Guiné-Bissau, entretanto suspensa, declarou que a pirâmide invertida deveria ser normalizada, reduzindo o número anormal de oficiais e suboficiais fazendo aumentar o número de soldados. O problema é de natureza patrimonial. Como os salários são melhores em postos mais altos, há muita pressão dos homens para serem promovidos. A fim de os manter satisfeitos, de assegurar a sua lealdade e incumprimento das obrigações de parentesco, os chefes militares, que não estão condicionados ao controlo civil, são facilmente tentados a dar promoções. Soma-se a este problema a situação não resolvida pelos combatentes da Liberdade da Pátria”.

Todas as iniciativas para reduzir o número de efetivos não têm sucesso, cada vez que há um conflito reintegram-se militares desmobilizados juntamente com novas laivas de combatentes, a resistência dos militares à desmobilização tem a ver com uma vida civil que pouco lhes oferece, sentem que perdem estatuto social e rendimento. E igualmente o autor lembra que contrariamente à maioria dos funcionários públicos cujos salários são pagos com meses e meses de atraso, os salários militares são uma questão mais delicada.

Outro aspeto que se pode considerar relevante para as dificuldades da construção democrática na Guiné-Bissau tem a ver com o papel político das Forças Armadas, aí estão os golpes de Estado para o evidenciar. E o autor desdobra-se em exemplos: em 1999, Ansumane Mané vetou a candidatura de Saturnino da Costa para presidente do PAIGC, proibindo-o de participar no congresso; em 2004 o general Veríssimo Seabra vetou Aristides Gomes para Ministro da Defesa ou dos Negócios Estrangeiros; em 2007, Tagma Na Wai vetou a nomeação de Baciro Dabó para conselheiro presidencial, depois de ter pressionado para a sua exoneração de Ministro da Administração Interna.

São tudo menos pacíficas as relações entre políticos e militares. Atenda-se ao que escreve Nóbrega:
“O respeito pelo guerreiro, o sistema de recompensas e punições, as promoções e as depurações ajudaram a conter os descontentes, até ao dia 7 de junho de 1998. Os amadores, como diria Sori Djaló, passaram a profissionais e o poder político passou a estar refém de umas Forças Armadas que se autonomizaram. O sistema baseia-se na desconfiança e a nomeação de chefias militares próximas, bem como a incorporação de mancebos pertencentes à etnia governante, esta procura minimizar riscos, mas não os eliminam, daí a importância dos serviços de segurança, que vigiam militares e civis, e do sistema de defesa paralelo assente em forças paramilitares com capacidade de combate”. Tudo somado, temos um poder fraco que não controla o poder militar, dele é refém, o único poder temido é o externo. “Os militares estão conscientes de que há algures um limite que, se ultrapassado, pode acarretar a punição da comunidade internacional. É esse o único limite que temem”.

Vejamos agora o presidencialismo e a personalização do poder.


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24641: Notas de leitura (1615): "Guiné-Bissau: Um Caso de Democratização Difícil (1998-2008)", por Álvaro Nóbrega; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015 (1) (Beja Santos)

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24533: Notas de leitura (1603): "Análise de Alguns Tipos de Resistência", por Amílcar Cabral; edição conjunta de Monde Diplomatique e Outro Modo Cooperativa Cultural, 2020 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Julho de 2021:

Queridos amigos,

O especial interesse desta edição é de incluir uma versão revista da tradução original do crioulo para o português e comentários de investigadores de craveira. O contexto da preparação deste seminário de quadros, que aconteceu em Conacri de 19 a 24 de novembro de 1969, é muito bem apresentado por Carlos Cardoso e Raúl Mendes Fernandes, o PAIGC vivia enormes tensões e a política de Spínola cavara divisões profundas nesses quadros, ao relevar que o desenvolvimento que se pretendia na Guiné era para os guinéus, num pleno respeito pelas tradições e pela melhoria das condições de vida. Foi uma ação psicológica que deu frutos e face à qual Cabral encontrou o seu golpe de asa para mobilizar duas gerações de quadros. Leem-se estas intervenções e é indubitável o vigor do seu génio, estamos perante o construtor de um país.

Um abraço do
Mário



Quando um líder revolucionário, posto à prova, lembrou a verdade da luta do PAIGC

Mário Beja Santos

Esta edição revista e comentada de uma obra basilar para entender o pensamento e ação de Amílcar Cabral, edição conjunta de Monde Diplomatique e Outro Modo Cooperativa Cultural, "Análise de Alguns Tipos de Resistência", 2020, aparece muito bem contextualizada por dois investigadores que procedem a uma leitura analítica sobre tudo o que Cabral disse no Seminário de Quadros de novembro de 1969, em Conacri, dirigindo-se a um conjunto bastante expressivo de participantes, são eles Carlos Cardoso e Raúl Mendes Fernandes. Vale talvez a pena, por isso mesmo, sintetizar as suas observações.

Era um período de graves tensões internas dentro do PAIGC, a direção política e o seu líder encontravam-se numa situação de grande fragilidade, Cabral era contestado, havia o diferendo entre cabo-verdianos e guineenses, rumores e intrigas, o inevitável cansaço dos combatentes devido à longa duração da guerra. E as inovações introduzidas pelo novo governador, António Spínola: campanha de guerra psicológica devastadora, arvorando a causa do desenvolvimento sempre em prol dos guinéus; a africanização da guerra formando uma tropa de elite, os Comandos, seriam o embrião das Forças Armadas da Guiné independente; a propaganda para uma Guiné autónoma, em que as etnias seriam ouvidas regularmente no Congresso do Povo, tudo numa estreita aliança com o chefado tradicional e sobrepondo-se a qualquer tensão religiosa, as peregrinações a Meca ganham insistência. Tudo era difundido e ouvido tanto em Conacri como no mato.

Para rebater quaisquer dúvidas sobre a natureza da luta do PAIGC, Cabral organiza um conjunto de exposições visando a consciencialização dos militantes do PAIGC, dentro de uma lógica que os participantes se iriam transformar em multiplicadores. Como observam estes dois investigadores, a escolha dos participantes procurava uma combinação de duas gerações. 

“Amílcar Cabral tinha uma conceção de luta de longa duração. Esta conceção contrariava as expetativas dos chefes de guerra que ambicionavam uma guerra de curta duração. O Seminário de Quadros foi, por todas as razões apontadas, um fórum estratégico crucial e as intervenções sobre a forma de resistência podem ser consideradas o seu núcleo central”

O que se apresenta nesta edição é uma tradução para português de um conjunto de palestras em crioulo proferidas entre 19 e 24 de novembro.

Ressalta, antes de mais, a assombrosa comunicação pedagógica, com conceitos apresentados de forma simples e sempre com exemplos, nunca descurando a complexidade da explicação. A ideia de transformação histórica longa ligada à luta prolongada tinha a ver com a estratégia de longo prazo, Cabral não tinha ilusões que era imperioso haver tempo para a transformação social, ele próprio ao longo de toda a sua narrativa aponta sem ambiguidades múltiplos erros no seio dos militantes do PAIGC, é severo com quem rouba, com quem maltrata, com o quadro das superstições, por exemplo. 

“Cabral chamava a atenção dos seus camaradas para a necessidade de ter sempre em mente a situação da luta em cada momento. Era, por assim dizer, o bê-á-bá da conduta do militante, tal como ele o concebia”

E daí a perspetiva de “pensar para agir e agir para poder pensar melhor”, uma consigna positiva para estimular o trabalho político, a luta contra o analfabetismo, a intervenção sem medo nos debates, o respeito pela dignidade da mulher e temos depois o corolário lógico de que a resistência é política, é armada, é económica, é cultural, faz apologia a pensar pelas próprias cabeças, a privilegiar a independência de pensamento e as redes de participação. E concluem: 

“Ele continua a fornecer instrumentos úteis para a compreensão de problemas de diferente natureza (política, económica e cultural) enfrentados hoje pelas periferias ou semiperiferias, fios de esperança indispensáveis aos muitos desafios que o atual processo de globalização propõe para as sociedades".

Em torno do conceito de resistência, Cabral vai constituir um poliedro, lança advertências que continuam prementes, muito provavelmente descuradas pelas elites atuais: 

(,,,) “Não podemos aceitar na nossa terra os abusos e os privilégios de grupos ou grupinhos, se de facto queremos libertar o nosso povo. Não vãos libertar o nosso povo só dos colonialistas, mas de tudo quanto o prejudique no caminho do progresso. Temos de eliminar a ignorância, a falta de saúde, e toda a espécie de medo, gradualmente. A maior pressão que existe sobre um povo é o medo. Medo de passar fome, de não ter trabalho, de doenças, de pancada, de ser deportado para S. Tomé, ser preso injustamente. Mas ainda mais, medo de curandeiros, dos que deitam sortes, da conversa dos mouros, do irã, do mato escuro, dos raios, dos relâmpagos. Um povo que tem medo é um povo escravo”

Define a resistência política, há que acabar com todos os abusos, mas também isolar o inimigo.

Afirma-se contra a brutalidade e os horrores da guerra gratuitos: 

“No começo da nossa luta, houve camaradas que nos sugeriram cometer certas atrocidades, mas recusámos. Na nossa luta não há dessas coisas que se passaram noutras terras em África, como matar mulheres e crianças brancas só porque são brancas. Queremos fazer uma resistência política para servir o nosso povo, não queremos que o nosso povo seja sanguinário”

Dirá ao longo de todas as suas intervenções verdades muito incómodas, faz permanentemente apelo aos processos de autossubsistência, fazer-se o reconhecimento daqueles que trabalham a terra e simultaneamente combatem, exige um pleno respeito pela forma como se trata a ajuda internacional, desde a gasolina aos medicamentos, quando necessário ele próprio faz autocrítica, um exemplo: 

“Um erro grave que cometemos na nossa terra foi não cobrar imposto a ninguém depois de a sua área ser libertada. Isso foi um erro. Nós devíamos ser capazes de, depois de libertar uma área como Cubucaré, estabelecer imediatamente o imposto que o povo devia pagar. O imposto, não sendo em dinheiro, podia ser em produtos, para o nosso povo não perder o hábito de pagar impostos e não pensar que, quando tomarmos a nossa terra, não vai haver impostos. Não há terra nenhuma que possa avançar sem pagar impostos”.

É um permanente apelo à mobilização, recorre a fórmulas de orgulho cultural, adianta que a luta que se trava é ela própria o sedimento de uma cultura nova, lembra aos militantes que essa cultura deve desenvolver-se numa base científica, sem crendices. Apela à pontualidade, à discussão, exalta a língua portuguesa. E espraia-se sobre a resistência armada, não poupa as tentações do neocolonialismo e o ponto mais elevado desta pedagogia é estar sempre a apontar para o futuro, demorasse a luta o tempo que fosse necessário, que todos advertissem as populações e multiplicassem a esperança que se estava a construir a História do nosso tempo, havia que manter acesa a esperança de que amanhã se irá viver no progresso.

Repete-se que é um documento basilar para entender o pensamento e a liderança de Cabral e como observam neste livro os seus comentadores é bem patente a pertinência atual da sua narrativa tal como ele expôs em Conacri, em tempos particularmente turvados.

De leitura obrigatória para quem queira entender o que foi o sonho daquele PAIGC que morreu com o seu líder carismático.

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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24523: Notas de leitura (1602): "Aldeia Mágica", por Alexandre Faria; Poética Edições, 2019, ilustrações de Ricardo Braz (Mário Beja Santos)