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quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27250: As nossas geografias emocionais (59): CIM Bolama, setembro de 1973, o meu CSM (Manuel Rosa, ex-fur mil, Chefia do Serviço de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74)



Guiné > Arquipélago Bolama - Bijagós > Bolama > CIM (Centro de Instrução Militar > CSM (Curso de Sargentos Milicianos) > c. 1973/74 > O  soldado-instruendo, e depois 1º cabo miliciano e depois fur mil, Chefia de Serviço de Intendência do QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (tal como o Carlos Filipe Gonçalv3es).

Fotos (e legenda) : © Manuel Amante da Rosa (2024. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.



1. Mensagem do Carlos Filipe Gonçalves (ex-fur mil, Chefia do Serviço de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74)

Data - segunda, 22/09/2025, 13:24

Olá, Luis, Bom dia:

Encontrei hoje por acaso no FB esta publicação do nosso camarada e amigo Manuel Rosa, sobre a sua passagem pelo Centro de Instrução em Bolama. É uma recordação com muitos pormenores. Será que já tinha sido publicado no blogue Tabanca Grande? A data é de 15 de Agosto de 2024. Eis o link:

https://www.facebook.com/search/top/?q=Manuel%20Rosa%20CISM%20Bolama

Segue abaixo a cópia que fiz do post, talvez tenha ineresse.

Forte abraço, vida e saúde para todos nós

Carlos Filipe Gonçalves

Jornalista Aposentado


2. Resposta do nosso editor LG, com data de terça, 23/09/20925, 22:24

Carlos, obrigado, é um achado... Vou publicar, penso que o Manuel não se zanga comigo. Conhecemo-nos pessoalmente há bastante anos (c. 2009). Ele teve a gentileza de ir à minha Escola (Nacional de Saúde Pública, no Lumiar, perto do estádio de Alvalade, do SCP) para me conhecer pessoalmente e partir mantenhas.

O Manuel Amante da Rosa (sic) trm c. 4 dezenas de  referências no nosso blogue. Também é amigo da Isabel Brigham Gomes, que foi minha aluna há largos anos, no curso de Mestrado em Saúde Pública. Mas não tenho sabido notícias dele. Julgo que vive agora no Mindelo (pelo que vejo na página do Facebook). Deve estar aposentado ou reformado...Pertencia ao Ministério dos Negócios Estrangeiros...

Viajei no Geba no "barco-turra" do pai... Dá-lhe notícias minhas/nossas. Dou-lhe conhecimento deste mail, espero que ele ainda use o mesmo endereço de email. Gostaria de poder retomar os nossos contactos. Nunca conheci Bolama, o meu CIM foi em Contuboel (em junho/julho de 1969, na formação da futura CCAÇ 12, uma companhia de fulas, depois colocada em Bambadinca). Mas muita malta do blogue passou por Bolama... Vou ver em que série vou publicar esta deliciosa crónica. Ele sempre escreveu muito bem.

Para ti, um chicoração fraterno. Luís

 
3.As nossas geografias emocionais (**) >   CIM Bolama, setembro de 1973, o meu CSM 



por Manuel Amante da Rosa (ex-fur mil, Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74, hoje embaixador reformado, Cabo Verde; nassceu em Bolama, filho de pais cabo-verdianos)

 Idos de Setembro de 1973, ainda um imberbe de 20 anos, voltava à ilha de Bolama para assentar praça no único e estafado Curso de Sargentos Milicianos (CSM), no Centro de Instrução Militar (CIM),  que se fazia na Guiné. 

Cmo era o único anual e em pleno território em guerra e confrontos armados, quase generalizada, havia exageros ou “heróis” de aquartelamentos. O CIM não fugia à regra.

Muito calcorreámos e rastejámos pela ilha! Em marchas e patrulhas, diurnas e noturnas, forçadas e esforçadas!! Até a pista de lodo de ir e vir ao Farol fizemos. Só quem andou pela guerra na Guiné sabe o que é ter pela frente lodo para atravessar. Afundamo-nos até à cintura. E a G-3 torna-se maldita. Imprestável. Amaldiçoada a cada avanço.

Num quartel de instrução militar que formava todos os militares de recrutamento local, mais de dois mil por ano, a comida era péssima, em pratos e caçarolas de alumínio e servida em dois turnos ou por vezes três. Asseio nulo. 

Até praga de sarna imputada aos numerosos cães do quartel houve pela unidade. Fui uma das vítimas. Micoses e furunculoses (fui notável vítima desta) eram consideradas normais e havia fórmulas (até número 7, dependendo do grau de infecção) e unguentos militares para tratamento de tudo. 

Mas os Fuzileiros eram melhores. O idoso Sargento Enfermeiro deles, que já tinha passado pela Índia e Timor, após prognóstico errado de dois jovens alferes médicos de que ou teria micose ou sarna, graças a uma feliz intervenção do Imediato da Escola de Fuzileiros, curou-me. Disse ser má circulação e alergia possível ao alumínio. 

Curou-me até hoje. Com autossangue. Ía à enfermaria dos Fuzileiros, tirava-me sangue do braço esquerdo, injetava logo na nádega direita e aplicava no braço uma injeção de immunodol (?), segundo penso. 

No dia seguinte voltava para o braço direito e a nádega esquerda. Quinze dias seguidos e tudo desapareceu. Até hoje!! 

Mas no CIM o nosso soldado maqueiro, que por vezes exalava, pela manhã, um hálito de vinho de caju ou outro, era um autêntico médico de ocasião. Sempre disponível!!

Qualquer infecção, mesmo bolhas arrebentadas no pé ou unhas encravadas e infetadas, tosse, dor no corpo, pangabarriga (diarreias), esquentamentos, sarna e/ou micose era tratado com um "cunto” (injecção de penicilina de um milhão de unidades, aplicada bem de manhãzinha antes do furriel ou médico chegarem bem mais tarde).

Abria o armário, regalava os olhos perante tantos “cuntos” à sua livre disposição e em tão pequeno frasco!! Retirava de um pequeno tacho de alumínio a ferver a seringa e a enorme agulha (ainda não havia seringas e agulhas descartáveis) com um olhar de sabedoria e sadismo que baste! 

Eu fechava os olhos e pedia a Deus para me proteger da agulha. De ficar manco. O maqueiro mandava arrear a calça militar e “pimba”. Espetava a agulha sem hesitação! 

Por vezes a “cuntomania” (um milhão de unidades de penicilina) durava uma semana seguida. Desisti porque a furunculose no meio das pernas não passava. Não havia controlo. Mas nunca me apercebi dessa apetência na Guiné pelas injecções (gudja).

Acontecia ter vómitos imediatos de estômago vazio e sentir o sabor estranho de remédio e sobrevinha fraqueza logo depois. Mas todos sobrevivemos. Fosse hoje!!!

Valeu-me muito fingir que almoçava no rancho (sujava o prato de alumínio porque aqueles “heróis de quartel”, alguns até de pingalins, sempre passavam para verificar)
e depois ir jantar no Palácio de Bolama, onde o Administrador do Concelho era o meu querido e saudoso tio. 

Habitualmente era o último instruendo a entrar na porta de armas antes dela ser fechada às 11 da noite.

E dirigia-me para a nossa caserna onde eu próprio e todos os meus antepassados éramos insultados, vernaculamente e na língua de todas as etnias possíveis da Guiné!! Era a minha boa hora de me desobrigar de me sentir na tropa.

Os insultos eram de “koutina na má” para pior. Dependendo da rigidez dos insultos,  respondia com um “Kuk d’obú”! Ou cantava “Tindon, tindon, obú di lontra, bú rabatal”.(*)

Algo que fazia subir o tom e teor dos insultos na escura caserna. Fazia barulho, acordava alguns mais próximos para perguntar as horas ou me resfolgava ruidosamente. A pior coisa que podia ser feito numa caserna. É um ultraje para a cultura guineense o fazer. Levava de imediato muitos a cuspirem. Palavra!!

A maioria de nós éramos da mesma geração do liceu, tínhamos sido criados juntos e a camaradagem e solidariedade nas piores situações dentro ou fora do quartel era imediata.

Sabíamos que alguns ao fim de 3 anos não sairiam vivos ou ilesos da tropa. A guerra estava no seu auge. O equilíbrio existente até essa altura se desfazia e era percebido. A guerrilha era cada vez mais ativa. E as flagelações aos quartéis mais certeiras. As minas eram cada vez mais implantadas, nas estradas, picadas e trilhos de patrulhas. Faziam muitas vítimas. Mais até que os ataques aos quartéis e emboscadas. 

Havia entre nós a crença de que em patrulhas era melhor usar botas de lona. Porque as minas, se pisadas, somente levariam uma parte do pé. Se com botas de cabedal o sopro levaria todo o pé até onde terminava na canela. Nunca precisei dessa teoria.

Sabíamos também que muitos de nós teriam como destino as Companhias de Caçadores! De recrutamento local, enquadradas por oficiais e sargentos da “metrópole”. Umas espécies de unidades para carne de canhão. Nas piores zonas da “província” !

Lembro-me de ter entrado por duas vezes em vias de facto com dois colegas mais fortes, pelo meio dia, e à tardinha estarmos sentados um ao lado do outro em cavaqueira conversa.

Felizmente e graças a Deus o 25 de Abril pôs fim à guerra! Fomos desmobilizados.

Entramos logo a seguir em novos desafios. Fui ser professor. Mas fica para um outro momento com disposição para rememorar.


(Revisão / fixação de texto, título: LG)


________________


Notas do editor LG:


(*) Último poste da série > 24 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27249: As nossas geografias emocionais (58): A Pousada do Saltinho ou "Clube de Caça", com ar de abandono, em maio de 2025 (João Melo, ex-1º cabo op cripto, CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", Cumbijã, 1972/74)

(**) Com a ajuda do assistente de IA / ChatGPT, apurei o seguinte:

No crioulo da Guiné-Bissau, insultos como “koutina na má” (“a tua mãe é uma puta”) ou “Kuk d’obú” (“caga no teu pai”) eram das ofensas mais duras, por atacarem a honra familiar. Já cantos como “Tindon, tindon, obú di lontra, bú rabatal” (“Tin-don, tin-don, pai da lontra, tu és feio”) tinham um tom mais trocista, usados para desarmar tensões ou provocar a rir.

Enquadramento cultural do uso e significado destas expressões na Guiné em 1973:

(i) O valor dos insultos no crioulo

O crioulo da Guiné-Bissau tem um repertório riquíssimo de insultos, quase sempre ligados à família (especialmente à mãe e ao pai). Dizer “koutina na má” (a tua mãe é uma p*ta ) era dos piores insultos possíveis, porque atingia diretamente a honra familiar.

Da mesma forma, “Kuk d’obú” (caga no teu pai) é altamente ofensivo, já que desrespeita a figura paterna, pilar de respeito na cultura guineense.
 
(ii) Resposta com insulto ou com canto

Quando alguém insultava, havia duas opções: responder no mesmo tom (com outro insulto ainda mais duro) ou quebrar a agressão com humor ou música.

O canto “Tindon, tindon, obú di lontra, bú rabatal” tem um tom trocista. Não é um insulto tão pesado, mas funciona como uma gozação para desarmar a tensão. O ritmo “tindon, tindon” imita um refrão ou um toque de tambor, quase infantil.

Chamar alguém de “pai da lontra” ou “feio” é mais ridicularizar do que agredir seriamente.

(iii) Contexto em 1973


No tempo da guerra colonial, estas expressões circulavam entre soldados (portugueses e guineenses) e também entre crianças e jovens das tabancas. Eram usadas tanto em discussões sérias como em brincadeiras:  na oralidade guineense, até os insultos podem ter uma função lúdica, de provocação amistosa ou de reforço de laços.

Em resumo: os insultos duros marcavam rivalidade e conflito, mas os cantos e troças ajudavam a aliviar tensões e até a criar cumplicidade

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27086: Humor de caserna (209): um "fermero" que em Empada ganhou fama de curandeiro, milagreiro e... abortadeiro (Zé Teixeira, Matosinhos)



1. Para animar o nosso querido (mas fugaz) mês de agosto de 2025, o Zé Teixeira mandou-nos algumas das suas histórias picarescas e brejeiras.  Ficam bem na série "Humor de caserna" (*).

Recorde-se que o José Teixeira 

(i) é régulo da Tabanca de Matosinhos;

(ii) ex-1.º cabo aux enfermeiro, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70; 

(iii) é um histórico da Tabanca Grande, que integrou a partir de 14/12/2005; 

(iv) tem c. quatro centenas e meia de referências no blogue; 

(v) vive em São Mamede de Infesta, Matosinhos; 

(vi) é gerente bancário reformado; 

(viii) escritor, poeta, contista, além de escutista...


A brincar, a brincar, o Zé Teixeira, que conhecia bem a população a quem prestava cuidados de enfermagem, levanta aqui neste microconto (com o título original, "As vitaminas abortivas") algumas questões sensíveis como a promiscuidade sexual, a violência sobre as mulheres (no seio da família patriarcal), a saúde reprodutiva,  a interrupção da gravidez, o acesso aos cuidados de saúde etc.,  nas regiões de Quínara e de Tombali, em plena guerra colonial.



Humor de caserna (209) >  Um "fermero" que em Empada ganhou fama de curandeiro,  milagreiro e... abortadeiro!

por Zé Teixeira
 


Em Empada uma das coisas mais gostosas que a tropa gostava de fazer era ir até à Fonte Frondosa  apreciar as bajudas no banho... 

À falta de melhor e com um bocadinho de sorte aparecia uma ou outra que vestia apenas o fato que a mãe lhe tinha dado ao nascer. Para alguns camaradas virgens aquilo era sopa da boa.

A Fátma, mais uma das muitas Fátmas que conheci na Guiné, abeirou-se de mim:

 
 Fermero, parte quinino pra matá minino que na tem na bariga !

 − Como ?

− Minha tio brinca e faz minino na bariga di mim. Tem pacensa, parte quinino !

− Quinino ká tem, vai na mudjer grandi, ele trata di ti.

− Nega mesmo, mudjer grandi ká na tem quinino. Tu tem quinino.

− Olha, vou pensar nisso, passa amanhã pela enfermaria.

− Tem de ser hodje. Parte quinino.

Seguiu-me até à enfermaria e eu, sem saber o que fazer para afastar a chata, que ainda por cima era daquelas poucas feias que por lá apareciam e de quem todos nós nos afastávamos.

Bem, para grandes males grandes remédios. Se estava grávida, nada como lhe dar uns comprimidos de vitaminas. Mal não faziam. Talvez o milagre se desse...

Quinze dias depois, lá fui eu até à fonte passar um pouco de tempo e treinar uns apalpos, nem sempre bem sucedidos, quando a Fátma aparece. 

− Estou tramado, aí vem a chata…

Qual quê !, ao ver-me, desata a correr para mim, toda contente.

− Fermero, minino na vai. “Coisa” (#) na tchega mesmo. Tu, bom pessoal.

Ganhei mais uma amiga e juntei à fama de curandeiro e milagreiro, mais uma: a de... abortadeiro!

Zé Teixeira

30 de julho de 2025

(#) Menstruação

sábado, 12 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27007: A Nossa Poemateca (10): Ovídio Martins (Mindelo, 1928 - Lisboa, 1999), um grande poeta cabo-verdiano bilingue


Ovídio Martins
(1928-1999)

1. Nos 50 anos da independência de Cabo Verde , temos de dar também a palavra aos poetas. Ovídio Martins (Mindelo, 1928 - Lisboa, 1999) é a nossa escolha para a série "A Nossa Poeemateca".

Ovídio Martins (1928-1999) é considerado um dos poetas cabo‑verdianos de referência do século XX.  Claro que há outros que teriam de figurar numa antologia da poesia de Cabo Verde. Citemos, por exemplo:

  • Baltasar Lopes da Silva  (pseudónimo Osvaldo Alcântara) (1907-1989): um dos fundadores da revista "Claridade", historicamente um marco na literatura cabo-verdiana ao procurar valorizar a identidade e a realidade das ilhas. Poeta, prosador, ensaísta, é uma referência maior da cultura cabo-verdiana do séc. XX: "Chiquinho" é um romance incontornável para quem se quiser iniciar na literatura cabo-verdiana.
  • Jorge Barbosa (1902-1971): também outro "Claridoso" (figura central do movimento "Claridade"),  a sua poesia faz-se da melancolia e do isolamento do arquipélago, mas também da esperança e da resiliência do povo cabo-verdiano.

  • Manuel Lopes (1907-2005): outro  cofundador da "Claridade",  explorou, em prosa e poesia, temas como a seca, a emigração e a vida rural em Cabo Verde.  Obras de ficção como "Os Flagelados do Vento Leste" e "Chuva Braba" são obras de referência do romance  cabo-verdiano, abordando a resiliência e o sofrimento dos ilhéus face às adversidades. Menos conhecida é talvez a sua obra poética:  "Poemas de Quem Ficou", "Crioulo e Outros Poemas" e "Falucho Ancorado"... Viveu grande da vida em Portugal, mas nunca cortando o cordão umbilical com a sua terra.

  • Corsino Fortes (1933-2015): já de outra geração, o autor de "Pão & Fonema" e "Árvore & Tambor", trouxe uma linguagem mais moderna e política para a poesia cabo-verdiana.
  • Arménio Vieira (n. 1941): Prémio Camões (2009), é o mais conhecido internacionalmente; voz muito original, também de outra  doutra geração,  explora questões mais  existenciais e metafísicas, afastando-se dos temas mais tradicionais e insulares da literatura cabo-verdiana, inaugurados com a "Claridade" (1936).

Com exceção de Jorge Barbosa e Arménio Vieira,  nascidos na Praia, os restantees são todos nados e criados na capital cultural de Cabo Verde, Mindelo, onde surgiu o movimento "Claridade" (a que Jorge Barbosa também está profundamente ligado). Desta revista literária, "Claridade", sairam nove números, entre 1936 e 1960.

E, en passant, não podemos esquecer o pai da morna, Eugénio Tavares (1867-1930), um dos primeiros a utilizar e valorizar o crioulo como língua literária. Nem o expedicionário em São Vicente, na II Guerra Mundial, o furriel miliciano, leiriense,  Manuel Ferreira (1917-1992),  que se irá tornar um grande apaixonado, estudioso, crítico e divulgador da literatura cabo-verdiana: tem 15 referências no nosso blogue;  mais tarde,  capitão SGE,  será também ficcionista, autor de "Hora di Bai" (romance) e de "Morabeza" (contos).

2. Mas voltando a Ovídio Martins... A sua poesia  é reconhecida pela força militante,  intervenção cívica, crítica ao colonialismo e  afirmação da  identidade cabo‑verdiana. Mas também pelo lirismo amoroso.  Foi um escritor bilingue (português e crioulo de São Vicente). Faz a transição entre a poesia militante e a afirmação da cabo-verdianidade. 

Sobre Ovídio Martins, importa referir algumas breves notas biográficas:
´
(i) nasceu em Mindelo, ilha de São Vicente,

(ii) fez o liceu Gil Eanes onde teve como o professor Baltazar Lopes;

(ii) frequentou o curso de Direito em Lisboa, entretanto interrompido por razões de saúde; na sequência do tratamento começou a sofrer de surdez:

(iii) empenhou-se na luta (política) pela independência, foi amigo de Amílcar Cabral, quatro anosais velho, e membro do PAIGC;

(iv) preso pela PIDE, exilou-se nos Países Baixos;

(v) voltou à sua terra, com o 25 de Abril, onde trabalhou no ministério da educação;

 (vi) morreu em Lisboa, em 1999, vítima de doença neurológia.

 
Principais obras:

  • Caminhada (Lisboa, 1962), primeira coletânea de poemas.
  • Tchutchinha (1962) – conto/novela, editada em Angola 
  • 100 Poemas – Gritarei, Berrarei, Matarei – Não vou para Pasárgada (1973) (reunindo poesia em ambas línguas, incluindo temas de resistência e exílio);
  • Independência (1983)(reflete o período pós‑independência)

Eis uma seleção nossa, de poemas da obra "Caminhada" (1963)

 
o único impossível 

Para Baltazar Lopes 

Mordaças 
A um Poeta? 

Loucura! 

E por que não 
Fechar na mão uma estrela 
O Universo num dedal? 
Era mais fácil
Engolir o mar
Extinguir o brilho aos astros 

Mordaças 
A um Poeta? 

Absurdo! 

E por que não 
Parar o vento
Travar todo o movimento?
Era mais fácil deslocar montanhas com uma flor 
Desviar cursos de água com um sorriso 

Mordaças 
A um Poeta? 

Não me façam rir!... 

Experimentem primeiro 
Deixar de respirar 
Ou rimar... mordaças 
Com Liberdade

desesperança

Cinco séculos depois
do
achamento de Cabo Verde


Sol ou mar
Chuva ou música
Sejas tu uma cadência
ou uma noite que se perdeu
Traz nos teus braços
a distância
que nos separa
do sonho impossível
Olhos cheios de secas
e de oceanos
Cheios de mornas
e de pouco milho
As promessas viraram cansaço
e já nem as luas acreditam
Sol ou mar
Chuva ou música
Para vós as glórias do achamento
Para nós os sonhos em ampulhetas



chuva em cabo verde


Choveu


Festa na terra
Festa nas Ilhas
Soluçam os violinos choram os violões
nos dedos rápidos dos tocadores
«Dança morena
dança mulata
menininha sabe como vocês não tem»
E elas sabinhas
dão co’as cadeiras
dão co’as cadeiras


Choveu


Festa na terra
Festa nas Ilhas
Já tem milho pa cachupa
Já tem milho pa cuscus
Nas ruas
nos terreiros
por toda banda
as mornas unem os pares nos bailes nacionais
Mornas e sambas
mornas e marchas
mornas mornadas


Choveu


Festa na terra
Festa nas Ilhas
que cantam e dançam e riem
e choram de contentamento
Soluçam os violinos choram os violões
nos dedos rápidos dos tocadores
«Dança morena
dança mulata
menininha sabe como vocês não tem»
E elas sabinhas
dão co’as cadeiras
dão co’as cadeiras
dão co’as cadeiras



nôs môrte


Quem ê q’morrê
qond quel navio
desaparecê
na mar de canal?


Nós tude morrê um c’zinha

Quem ê q’morrê
qond quel bôte
tcheu de pêscador
perdê na nôte?

Nós tude morrê um c’zinha

E quel carta de lute
quem ê q’morrê
qond tchgá noticia de Son T’mê

Nós tude morrê um c’zinha


A nossa morte

Quem é que morreu
quando aquele navio
desapareceu
no mar do canal?

Todos nós morremos um bocadinho...

Quem é que morreu
quando aquele bote,
cheio de pescadores,
se perdeu na noite?

Todos nós morremos um bocadinho...

E aquela carta de luto,
quem é que morreu
quando chegou a notícia de São Tomé?

Todos nós morremos um bocadinho...


 


cretcheu


Calá, ca bô tchôra más 
’n ta tróbe um morninha 
que ta dobe ’ligria e paz 
que ta pobe sorrise na boca 

Calá ca bô tchora más 
nha amor ê forte carditá 
nha violão ê más doce 
q’cónte de seréna ta pintiá 

Calá ca bô tchora más 
bô ê morna morna ê bô 
e s’m perdebe mi era capaz 
de perdê tine perdê nha vida.

Cretcheu

Cala-te, não chores mais,
vou-te fazer uma morninha
que te traga alegria e paz
e te põnha  um sorriso nos lábios.

Cala-te, não chores mais,
o meu amor é forte, acredita,
e o meu violão é mais doce
do que um conto de sereia consegue  pintar.

Cala-te, não chores mais
tu és morna, morna és tu
e, se eu te perder, 
eu seria  capaz de perder o tino 
e perder a minha vida.

 


um r’bêra pa mar 

Tem um r’bêra ta corrê pa mar... 
R’bêra sem ága 
má tcheu de dor e raiva 
de desuspêre e agonia 
El ta tcheu de sperança
 inganóde e de promessa inrolóde na fume 

Tem um r’bêra ta corrê pa mar
R’bêra sem ága 
ma’l tem sangue 

Sangue daquês que morrê na terra-longe 
na traboi scróve 

Sangue daquês q’caí de rotcha 
pa ca morrê de fôme 

Sangue d’irmon que matá irmon 
pa inganá és dstine de séca 
dstine qu’ês marróne 
má dstine  que nó ca qrê 

Tem um r’bêra ta corrê pa mar...



Uma ribeira para o mar

Há uma ribeira que corre para o mar...
Ribeira sem água,
mas cheia de dor e raiva,
de desespero e agonia.
Está cheia de esperança,
enganosa e de promessas enroladas em fumo.

Há uma ribeira que corre para o mar,
ribeira sem água,
mas que tem  sangue.

Sangue daqueles que morreram na terra-longe,
em trabalhos escravos.

Sangue daqueles que caíram dos penhascos
para não morrer de fome.
Sangue de irmão que matou irmão
para enganar esse destino da seca,
destino a quer estamos amarrados,
mas é um destino
que nós não queremos.

Há uma ribeira que corre para o mar...



morabeza 

’M tá gostá de bô ser 
um spêce de porte d’abrigue 
Qond tempôral b’tasse mim 
dum conte pa ote 
’m tá tem certéza 
na bô morabéza: 
dôs bróce quente pa quecême 
dôs oi monse pa serenóme 
e um boca doce pa calentóme


Morabeza


Gosto que tu sejas
o meu  porto de abrigo
Quando a tempestade me sacode
de um lado para o outro,
eu tenho a certeza
da tua morabeza:
dois braços quentes para me aquecer
dois olhos mansos para me acalmar
e uma boca doce para me acalentar



In:  "Caminhada". 1ª edição. Lisboa:  Casa dos Estudantes do Império. Colecção de Autores Ultramarinos,  1963 (disponível em https://www.uccla.pt/sites/default/files/caminhada.pdf )


(tradução para português europeu,   com recurso à IA, revisão, fixação de texto, pontuação, na coluna do lado direito: LG... E a generosa supervisão  do jornalist, radialista e escritor, e nosso camarada de Cabo Verde, Carlos Filipe Gonçalves)







Fonte: (1975), "Diário de Lisboa", nº 18807, Ano 55, Sábado, 5 de Julho de 1975, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_4405 (2025-7-12) (com a devida vénia...)


 

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26924: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Adenda I: Kalú de Nhô Roque e a sua "circunstância"



Capa do livro de Carlos Filipe Gonçalves (que teve a gentileza de nos mandar, a título pessoal, uma cópia em pdf deste seu livro; a edição de 2019 está esgotada).

Ficha técncia:

Título: Bá Da'l na Rádio – Memórias da Rádio Barlavento
Autor: Carlos Filipe Gonçalves
Editora : LPC – Livraria Pedro Cardoso – Bairro da Fazenda, Cidade da Praia, Cabo Verde.
Ano : 2019
Nº páginas : 252
ISBN : 978-989-8894-34-2


Sinopse: o titulo é em crioulo, significa literalmente: Vai dar isso na rádio. Ou seja, vai difundir isso na rádio. Trata-se uma frase jocosa que surgiu depois da invasão / assalto da Rádio Barlavento, na Ilha de S. Vicente, em Dezembro de 1974, em pleno período «revolucionário» após o 25 de Abril. É que o assalto ou «tomada da rádio» foi justificado por uma «soit disant» democratização/pluralismo de acesso, o que na verdade não se verificou porque todos os elementos contrários à «Unidade entre a Guiné e Cabo-Verde» foram presos poucos dias depois...

Teve início então uma avalanche de «comunicados revolucionários» depois das reuniões do comités do PAIGC, que eram enviados à rádio! Surgiu então esta frase jocosa, a criticar esta situação… Começou deste modo o «regime de Partido Único»…

Carlos Filipe Gonçalves, que começou a trabalhar na Rádio Barlavento aos 16 anos, conta as recordações dele, de colegas e amigos que lá trabalharam, descreve o contexto social da época e traça o percurso histórico que culmina no assalto e encerramento daquela rádio e do Grémio Recreativo Mindelo em 1974: um acerto de contas numa luta de classes latente desde inícios do século XX que terminou com a nacionalização dos órgãos de comunicação social e um monopólio/situação dominante do Estado que vigora até ao presente. (*)


I. O Carlos Filipe Gonçalves, nosso antigo camarada na Guiné (foi fur mil amanuense,  CefInt/QG/CTIG, Bissau, 1973/74), é uma figura pública no seu país, Cabo Verde (ver aqui entrada na Wikipedia). 

Fez questão de partilhar connosco, em 9 (+5) postes, as suas recordações desse tempo (**). Por dever e direito de memória, que assiste a qualquer um de nós, antigos combatentes. 

Temos trocado com ele algumas mensagens, e ele tem gentilmente respondido a perguntas nossas ou comentários dos nossos leitores. 

Os excertos que aqui publicámos fazem parte de um livro que ele tem em mãos, mas, para efeitos de publicação no nosso blogue, ele omitiu as notas de rodapé  e outras informações mais detalhadas. Daí fazer sentido publicar uma "adenda" à sua série, "Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74)".


II. Mensagem de Carlos Filipe Gonçalves, com data de 10 de junho último:


Olá caro amigo e camarada:

Antes de mais, desejos de vida e saúde.

Sobre a tua pergunta, o conteúdo dos pontos 1 e 2 é público; são dados conhecidos de biografias dessas pessoas.

O ponto 3 é a minha resposta a alguns comentários que foram feitos, nos meus postes. Logo é público.  

Sobre o teu comentário, em que dizes que passaste a conhecer melhor as minhas origens e ligações - afinal o mundo é pequeno!... Devo chamar a tua atenção, no meu texto já publicado (Despedida e Partida para a Guiné, poste P26819, de 20 de maio de 2025), faço uma referência à minha tia Orlanda Amarílis (1924-2014), que foi se despedir de mim no cais da Alcântara. 

Aliás, durante o tempo que estive em Portugal desde Dezembro de 1971 a Fevereiro de 1972 passava os fins de semana em casa da Orlanda Amarílis e do meu tio Manuel Ferreira, em Linda a Velha.

Outro dado, que devo indicar é que Manuel Ferreira  conheceu e namorou a Orlanda na mesma casa de família onde eu cresci, em Mindelo, onde vivia o meu avô, Roque da Silva Gonçalves, pai de António Aurélio Gonçalves, o escritor, um dos fundadores com Baltazar da revista Claridade em 1936. 

Ora, o meu avô Roque faleceu e o filho, António de Nhô Roque, acabou a ser conhecido apenas, por Nhô Roque! Bem, eu como fui educado pelo meu tio António de Nhô Roque, acabei também por passar a ser chamado de Kalú de Nhô Roque. 

Devo explicar, em Cabo Verde, tradicionalmente, as pessoas, são referidas pela evocação da ascendência dos familiares mais próximos ou diretos, ou seja, pai, avô ou bisavô: António de Nhô Roque, é, pois, António, filho de Nhô Roque... 

Continuando, Manuel Ferreira acabou por se integrar na elite literária de Mindelo, através das relações que desenvolveu com a nossa família. O meu tio António é primo da Orlanda, é parente próxima do poeta José Lopes, a quem ela e minha mãe chamavam tio José Lopes. 

O pai da Orlanda Amarílis, que é Armando Napoleão Fernandes (meu avô),  é o autor do primeiro Dicionário Crioulo Português, já pronto em meados dos anos de 1940.

 Manuel Ferreira casou-se com a Orlanda, em casa do genro, em Santa Catarina (Vila da Assomada),  Ilha de Santiago; foi uma festa que contou o tradicional Batuque que antecede as bodas. Como estás, a ver o Manuel Ferreira teve contactos profundos com Cabo Verde e com a elite literária, daquele tempo....

Agora, referencias num poste e comentário, sobre o Grémio Recreativo Mindelo, alguém escreveu sobre Rafael Torres e outros a tocarem naquele clube... pois, é, esse conjunto era do meu pai, Arnaldo Gonçalves (Naldinho) pianista, muito conhecido. 

No meu canal You Tube poderás escutar Naldinho Morna Perseguida FINAL uma faixa do conjunto Centauros; na foto pode-se ver, Rafael Torres, o primeiro à direita, a seguir, Ângelo Lima, afamado guitarrista, foi um membro ativo do partido UDC (União Democrática de Cabo Verde), foi preso dezembro de 1974, enviado para o Tarrafal, juntamente umas dezenas dos chamados «contrarrevolucionários», seriam soltos na véspera da Independência. 

O meu pai não foi preso, foi para Portugal em março de 1975, como era casado com uma grega, foi para Atenas, onde faleceu em fevereiro de 1991.

O livro sobre a Rádio Barlavento, está esgotado, mas, vou te enviar uma cópia em PDF, para teu consumo privado, agradecia que não fosse divulgada, devido aos direitos editoriais e de autor.



Fonte: (1963-1973), "Júlio de Carvalho, Tchifon, Cláudio Duarte e Valdemar Lopes", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43496 (2025-5-31) (Coim a devida vénia...)


III. Mensagem  anterior, com data de 2 de junho, do Kalú de Nhô Roque:


1. Sobre a foto, eis as pessoas nela constantes (vd. poste P26871) (**): 

  • Eduardo Silva Santos ("Tchifon"). Mindelo, S. Vicente 1942 – 22 de Janeiro de 1997. Depois de uma comissão na tropa em Moçambique, integrou o PAIGC; 
  • Claúdio Duarte, vive desde 1975 na Praia, foi estudante em Louvain na Bélgica (não tenho a data de nascimento, mas se conseguir envio; 
  • Valdemar Lopes da Silva ("Val de Nhô Balta"),  músico, violão – Mindelo, S. Vicente, 1943 – 2000. Filho do célebre escrito Baltazar Lopes da Silva. Organizou o grupo musical que gravou o disco de música revolucionária, em 1973 intitulado “Música Cabo Verdiana Proteso e Luta” que marca uma época depois do 25 de Abril. 

Nota – enviarei por outro email a biografia do Valdemar Lopes da Silva que consta do meu livro, “Kab Verd Band Música & Tradições” ed. do autor Carlos Filipe Gonçalves, em 2023; é um dicionário da música de Cabo Verde, com mais de 3 mil entradas/verbetes 700 páginas.


2. JJ não consta da foto – Dados, resumidos: João José Lopes da Silva, mais conhecido por JJ, Ilha do Fogo, 26 de Dezembro de 1947 – Praia, Janeiro de 2015. Abandonou em 1969 o curso de engenharia na Universidade de Coimbra para integrar o PAIGC.

 Li os comentários no Blog. Como já esperava, surgem questões sempre relacionadas com a ausência dos rodapés que explicam pormenores no texto, neste caso, as biografias do JJ e Tchifon. 

Por outro lado, por se tratar de extractos, muitas descrições, ficam desenquadradas de contextos anteriormente descritos. Note-se, este meu livro, não é simplesmente uma descrição do que eu vi ou do meio em que vivi em Bissau. No livro, descrevo as impressões de um cabo-verdiano (que sou eu) no ambiente social em Bissau, os problemas vários que enfrentei, etc. 

Por isso, vou te enviar, não para publicação, mas para tua informação, o capítulo 4 (completo) do livro, que que te dará uma outra visão. 

Nos capítulos anteriores sobretudo durante a viagem de Lisboa a Bissau, em «flash back» conto toda uma história da pressão da Pide em Mindelo, de como isso afectava os jovens, depois, como eu, faço tudo em Tavira, para eu e outros colegas, nos «safarmos» e passar aos serviços auxiliares…. 

Surpresa, foi numa consulta no Hopistal Militar em Évora que encontro, um oficial que tinha uma filha casada com um cabo-verdiano e tinha sido minha professora… não vou contar mais… Bem, acredita acabei até por voltar a Mindelo, antes do final da recruta…. Etc. e tal…

A segunda parte do livro, que pode parecer apenas do interesse de guineenses e cabo-verdianos…, conta como vivi e vi o início de uma «repressão» violenta que foram vítimas, antigos militares e pessoal civil guineense… assisti à purga de Março de 1975…. Apresento biografias e dados sobre os cabo-verdianos envolvidos nessas prisões, felizmente, não foram fuzilados…


3. Como, sou o sobrinho e fui educado por António Aurélio Gonçalves, o escritor mentor do movimento Claridade juntamente com Baltazar Lopes da Silva, fui bem acolhido em Bissau depois da vinda do PAIGC,


III. Mensagem de 9 de junho:


Respondi à tua msg, sobre esse assunto, não foi enviado, por isso utilizo agora este meu outro email:

Acabo de receber o teu link, já vi a foto do meu post que publiquei há uns anos. Olha trata-se do Grémio Recreativo Mindelo, era um clube que reunia as pessoas da sociedade mindelense; era a proprietária da Rádio Barlavento. Olha, escrevi um livro sobre a Rádio Barlavento e o Grémio. O meu pai foi um dos fundadores e o último director dessa rádio, aconteceu com ele a «tomada da rádio» pelo PAIGC, eu me encontrava em Bissau, foi em 9 de Dezembro de 1975...

No livro desmistifico a propaganda que foi feita sobre o Grémio e os seus associados, conto a História da Rádio Barlavento. O meu pai acabou exilado em Atenas, Grécia, só nos, vimos 15 anos depois, os meus irmãos, só, nos vimos em 2007 e 2009 respectivamente. Estás a ver a tragédia que foi isso tudo… O título do livro: «Bá D’al na rádio Memórias da Rádio Barlavento, ed. Livraria Pedro Cardoso, 2019.

Quanto ao Zeca Macedo, é um amigo meu desde a infância, a família é do Fogo, são parentes próximos da família do escritor Dr. Teixeira de Sousa. Estivemos juntos na Guiné, era fuzileiro, telefonou-me há dias, mas a chamada caiu, voltei a ligar não respondeu.

Olha, aconteceu, com este teu email, o mesmo que aconteceu com o último que te enviei: só cá chegou metade do teu texto… Parece que há algo com o meu gmail. Já Chamei o meu neto para vir ver. Por isso, eis o meu Hotmail, para caso de dúvidas (...).

Vou passar a utilizar este na nossa correspondência. Olha, não tive tempo, na semana passada para reescrever a mensagem que foi pela «metade», porque estava preparando uma palestra sobre a «música revolucionária/de intervenção» no âmbito dos 50 anos da Independência. Por outro lado, tenho estado com o problema da doença de uma das minhas filhas (...)

Aquele abraço.


IV. Comentário do editor LG:

Afinal, a História com H grande e a história com h pequeno (entre)cruzam-se e, no meio, lá estamos nós, indivíduos e famílias, apanhados desprevenidos...Nos períodos revolucionários (e contrarrevolucionários), ou quando o poder "cai na rua" (ou nas mãos de minoria pretensamente "iluminadas"), tudo pode acontecer...

Seguramente essa foi uma tragédia familiar que tiveste de viver em silêncio, durante os 15 anos que durou o regime de partido único. Não deve ter sido fácil para o teu pai viver no exílio, num país onde, apesar de tudo, também tinha, como nós, reconquistado a democracia. Só agora fico a saber que a tua mã era a escritora Ivone Ramos, a mana da Amarília (temos diversas referências no blogue ao Manuel Ferreira, 3 anos mais velho do que o meu, Luís Henriques, estiveram os dois no MIndelo, durante a II Guerra Mundial,. o meu entre julho de 1941 e setembro de 1943).

Obrigado pela confiança e amizade que demonstraste ao partilhar este teu "segredo"...Já agora, como foi a receção do teu livro ? Vou ver se o encontro por aqui, mas não deve ser fácil...

Há uns anos ofereci o teu "Kap Verd Band" ao meu filho que já tocou em diversas ilhas da tua (é psiquiatra e músico) (já não sei se era a edição antiga, 1998: pensando bem, talvez tenha sido o "Cabo Verde, 30 anos de música 1975 - 2005" in "Cabo Verde 30 Anos de Cultura. Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2005)


(...) Mantenhas. Um forte abraço, Luis
____________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20658: Agenda cultural (741): "Bá D'al na Rádio: memórias da Rádio Barlavento", livro do nosso camarada Carlos Filipe Gonçalves, ex-fur mil amanuense, QG/CTIG, Bissau, 1973/74, membro da Tabanca Grande, nº 790, mindelense, jornalista e radialista, a viver na Praia, Santiago, Cabo Verde

(**) Vd. poste de 13 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26917: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - X (e última) Parte : a guerra de nervos nos últimos seis meses

Vd. postes anteriores da série:

8 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26899: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) Parte VIII: quando cheguei a São Vicente, de férias, em outubro de 1973, fiquei encabulado, não sabiaaticamemte nada sobre a proclamação unilateral da independência pelo PAIGC

4 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26880: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte VII: Os "turras" têm agora um míssil que abate aviões e helicópteros


27 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26853: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte V: aqui sinto-me em casa, encontro tias, primos, vizinhos, colegas de escola e do liceu...

25 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26843: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte IV: Na Repartição de Autos Víveres, tenho de assinar o ponto todos os dias, trabalha-se das 8h00 às 12h30, e das 15h00 às 18h30, sábado e domingo de manhã... "Estamos em guerra, até em Bissau", dizem-me!...

22 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26829: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte III: Desembarque e colocação em Bissau, na CEFINT, 1ª Rep QG/CTIG, em Santa Luzia

20 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26819: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte II: De Lisboa a Bissau, no T/T Uíge

19 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26815: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte I: Em Lisboa, à espera do embarque, aproveitando a farra para esquecer


Vd. também a série complementar:

3 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26760: No 25 de Abril eu estava em... (40): Bissau, em comissão de serviço na Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG (Carlos Filipe Gonçalves, ex-fur mil amanuense, natural do Mindelo, vive hoje na Praia, Cabo Verde) - Parte V

30 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26744: No 25 de Abril eu estava em... (39): Bissau, em comissão de serviço na Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG (Carlos Filipe Gonçalves, ex-fur mil amanuense, natural do Mindelo, vive hoje na Praia, Cabo Verde) - Parte IV

29 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26739: No 25 de Abril eu estava em... (38): Bissau, em comissão de serviço na Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG (Carlos Filipe Gonçalves, ex-fur mil amanuense, natural do Mindelo, vive hoje na Praia, Cabo Verde) - Parte III

28 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26738: No 25 de Abril eu estava em... (37): Bissau, em comissão de serviço na Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG (Carlos Filipe Gonçalves, ex-fur mil amanuense, natural do Mindelo, vive hoje na Praia, Cabo Verde) - Parte II

27 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26736: No 25 de Abril eu estava em... (36): Bissau, em comissão de serviço na Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG (Carlos Filipe Gonçalves, ex-fur mil amanuense, vive hoje no Mindelo) - Parte I


terça-feira, 27 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26853: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte V: aqui sinto-me em casa, encontro tias, primos, vizinhos, colegas de escola e do liceu...

 

Foto nº 1 _ Paragem no autocarro dos "Transportes Urbanos Militares" na Amura


Foto nº 2 > Restaurante Pelicano



Foto nº 3 > Ronda (Café e Pensão)


(Cortesia do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)


O Carlos Filipe Gonçalves, Kalu Nhô Roque (como consta na sua página no facebook):

 (i) nasceu em 1950, no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde; 

(ii) foi fur mil amanuense, QG/CTIG, Bissau, 1973/74; 

(iii) ficou em Bissau até 1975; 

(iv) radialista, jornalista, historiógrafo da música da sua terra, escritor, vive na Praia; 

(v) membro da nossa Tabanca Grande desde 14 de maio de 2019, nº 790;

 (vi) tem 23 referências no nosso blogue.(*)


Mais extractos de "Recordações de um Furriel Miliciano, Guiné 1973/74". Fotos relacionadas com o Texto: Paragem do autocarro na Amura (nº1). Restaurantes Pelicano Nº 2) e Ronda (nº 3).

Voltamos a chamar atenção para a ausência de notas de rodapé, essenciais para situar o leitor com informação adicional. Isso é devido à não aceitação pela formatação no Facebook.


Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) (*)


Parte V: em Bissau, sinto-me em casa, encontro tias, primos, vizinhos, colegas de escola e do liceu...


Logo depois da minha chegada a Bissau nas primeiras semanas fui.... à  descoberta de Bissau, tenho encontros imprevistos...
.
O recém-chegado de Lisboa à Guiné sofre um choque térmico, que provoca suores, estamos sempre melados! No final de um dia de trabalho anseia-se por mais um banho; no meu caso, já vou no terceiro depois dos de manhã cedo e do meio-dia! E haverá mais um, antes de dormir. 

Perfumado e bem vestido «à civil», passo pela messe para o jantar, depois é rumar a Bissau, para uma bica num café qualquer, conversar, distender…

Na rotina que se vai instalar, jantar fora tem muitas opções de restaurantes: perto do QG na estrada de S. Luzia está o “Santos” com bons vinhos, bifes e mariscada… O camarão e ostra são baratíssimos! 

Há,  em Bissau, restaurantes afamados como “Solar do 10” ou “Pelicano” com uma esplanada frente ao porto de Pidjiguiti, beneficia do ar fresco que vem do rio Geba. Aliás, opções não faltam! O convívio no restaurante permite a fuga do ambiente do quartel e dos pratos «beras» que constituem o menu do jantar: normalmente peixe frito com arroz, de tempos a tempos, pastéis de bacalhau, que a malta chama ironicamente «pastéis de batalhau» por conter mais batata que bacalhau. 

É bom dizer, na situação de “comissão de serviço” em que as pessoas são enviadas obrigatoriamente para as PU (províncias ultramarinas) há uma permanente contestação e resistência a tudo e mais alguma coisa. Mandam-se bocas por tudo e por nada, o pensamento está centrado em passar os dias, chegar ao fim da comissão e o regresso a casa.

Apanhar o autocarro dos “Transportes Urbanos Militares” para Bissau, logo depois do jantar, passou a ser um hábito de todos os dias. O autocarro vai sempre cheio, muitas vezes temos que esperar pela volta, para se encontrar um lugar na próxima viagem. Há várias paragens… Eu, e quase toda a malta, descemos na Amura, um imponente forte, velho de séculos onde está instalado o Comando Chefe. Trata-se de um ponto central, há um pequeno largo e comércio à volta.

 Quando se desce do autocarro, depara-se logo em frente com uma loja de roupas e artigos de luxo, em cuja montra, marca presença um imponente poster, publicidade de relógios «Citizen» no qual se vê o musculado Charles Bronson, um actor de cinema, muito afamado na época. Esta zona é o «down town», conhecida entre os locais, por “Bissau Velho”, onde há muitas lojas e um comércio florescente.

Aqui se encontram o afamado Café Bento, uma esplanada ladeando a avenida principal, e o restaurante Pelicano em frente ao Geba. Estão todos cheios de gente e muito movimento. Se não encontrávamos um lugar ali perto no Bento, eu os meus camaradas militares, deambulávamos pela cidade, às vezes, passávamos pelo Café Ronda a meio da longa avenida principal; subindo mais, um pouco, chegávamos ao Café Império, ali ao lado na praça do mesmo nome. Em frente via-se o Palácio do Governador, no meio da praça está um monumento, um obelisco, se não me engano, evoca o dia da raça, ou será os descobrimentos?

Associação Comercial,
Industrial e Agrícola de Bissau
.

Fonte: Cortesia do Blogue  Luís Graça &
Camaradas da Guiné
Naqueles primeiros dias da minha chegada, estávamos sentados no Café Império, quando ouvimos música e vimos uma movimentação de pessoas num prédio imponente em frente. Fomos ver! Descobrimos que havia uma festa. Era no prédio da Associação Comercial que contava com luxuosas instalações. 

Atrevidamente entramos, subimos, ao primeiro andar, deparamos com um grande salão que está todo enfeitado com balões e serpentinas… há poucas pessoas a dançar, nem nos ligam. Descubro então que se trata de um baile de Carnaval! É que a minha chegada a Bissau, naquele início do mês de Março, coincidiu com o Carnaval e eu nem sabia! 

Naquele ano, a Terça Feira Gorda caiu no dia 6 de março (de 1973). Nesta festa, toca-se música de gira-discos/aparelhagem, ouço Luís Morais e Bana, ambos cabo-verdianos, música angolana… 

Esta festa de Carnaval neste edifício, relembra-me logo o “Grémio”,  um clube social na minha longínqua cidade do Mindelo. Relembro Cabo Verde…, mas, sinto-me em casa, em Bissau!

Nos dias seguintes, faço a habitual ronda por Bissau ao fim do dia. Ainda não se completou uma semana desde a minha chegada, quando ao sair do autocarro, ouço uma voz a chamar: "Kalú! Kalú!"... Volto e dou de caras com o Espim, um amigo que conheço de Cabo Verde. Abraços, risadas, uma agradável surpresa. Ele pergunta logo: “Por aqui? Quando chegaste?” Respondo: “Estou cá na tropa, cheguei semana passada!” Ele explica logo: “Estou cá, desde há cerca de dois meses! Passei num concurso e vim trabalhar no BNU. Somos quatro, todos de Cabo Verde!” 

Abandonei logo os meus camaradas militares, acompanho o Espim, sentamo-nos logo ali em frente na pequena esplanada “Zé da Amura”. Espim é meu velho colega dos tempos do liceu em S. Vicente, tem esta alcunha «espinho» porque é muito alto e magro. Fez logo questão de me mostrar que já consegue dizer umas coisas no crioulo da Guiné, mas logo retomamos a conversa no nosso crioulo de S. Vicente. 

Ele leva-me depois ali ao lado, à casa de pessoas conhecidas com quem ele já se familiarizou, sou apresentado, há muita conversa, descubro então mais dois colegas dos tempos do liceu, um deles, militar (Adriano Almeida) já em final da comissão, também trabalha no quartel-general, o outro (Manuel Rosa), filho de cabo-verdianos nascido na Guiné, mas esteve a estudar em Mindelo, fora meu colega no liceu, está prestes a ser incorporado, deverá ir para o Centro de Instrução Militar em Bolama.

 Abraços, evocações de velhas recordações, muita conversa… não resisto em dizer ao leitor mais uma vez: sinto-me em casa!

A partir de então, a cada dia que passa, vou conhecendo mais gente de Cabo-Verde e encontro familiares: duas tias, um primo da minha mãe e seus filhos, etc. etc. Natural, pois, há ligações familiares antigas com a Guiné, a minha mãe contava que a avó paterna dela, era da Guiné… até encontro laços familiares no quartel! 

Certo dia, sou abordado pelo comandante do BINT (Batalhão de Intendência) que susto! Afinal era só para perguntar: "O nosso furriel de onde é?" Respondo: "de S. Vicente de Cabo Verde".  E aí, o nosso major me diz que fez uma comissão em S. Vicente (em Cabo Verde), é casado com uma cabo-verdiana e dá-me pormenores… Vi logo que a esposa era a filha de um familiar meu, do ramo dos Lopes da Silva! Dou-lhe o nome e o nosso major, fica espantado! Eu conhecia muito bem o pai da esposa , que era compadre do meu padrasto! Mas, hierarquia «oblige» o tratamento continuou, o da praxe: ele lá, eu cá, continência, bom dia/boa tarde, meu major!

Venho depois a saber, muitas repartições e serviços da administração pública de Bissau, têm cabo-verdianos, no BNU são quase todos cabo-verdianos! Verifico mais tarde, há muitos cabo-verdianos, instalados desde muitos e muitos anos na Guiné! Passo a ser convidado para festas, almoços com familiares, pouco a pouco vou-me inserindo na sociedade guineense.

 Começo então a tomar contacto com a organização social na Guiné. Como em Cabo Verde, em Bissau fala-se o crioulo nas conversas familiares e informais, o português é uma língua formal, de relações oficiais e de respeito. E há as línguas das etnias, há programas na rádio em crioulo e nessas línguas depois das 7 da noite ; não entendo nada do que dizem. As etnias residem e agrupam-se por bairros…. Entre os da mesma etnia, fala-se na sua língua, com outros fala-se em crioulo. Com o tempo irei aprender a distinguir vagamente as sonoridades de algumas línguas… 

Teresa Schwarz [escritora, viúva do peota e cantor José Carlos Schwarz], que viveu desde os inícios dos anos 1970 em Bissau tem a mesma percepção, explica: 

“A pequena burguesia (de Bissau) era constituída por famílias originárias de Cabo Verde e de Portugal. Os guineenses vivendo na «praça» eram poucos. Esses últimos vinham (à cidade), trabalhavam e retornavam à tarde às periferias (tabancas que rodeiam Bissau). Os lazeres eram piqueniques, festas, bailes onde a música cabo-verdiana primava.”

Pelos cabo-verdianos na tropa no mato, recebo notícias do que por lá se passa.

Nos próximos meses, vou encontrar mais cabo-verdianos, são militares que estão no mato, mas que volta e meia estão de folga em Bissau, ou então a caminho de férias em Cabo Verde. É então, o momento de convívio, comezainas de camarões, ostras… e beber umas cervejadas para espantar o calor. Locais de convívio não faltam em Bissau. Nas conversas, alguns falam da situação no mato, outros nem por isso. 

O CT é um velho amigo desde a escola primária, era meu vizinho em S. Vicente, estava colocado em Galomaro. Ele conta-me que os ataques dos «turras» eram quase sempre à hora do almoço ou do jantar e comentou: “Não imaginas como isso nos afecta psicologicamente! Quando soam os primeiros tiros de canhão sem recuo ou mísseis, vamos todos para o abrigo. Muitas vezes ficamos sem almoçar ou jantar!” 

Diz-me depois a rir: “Olha, eles até descobriram o meu nome!” Perguntei: "Quem?" Ele responde: “Os turras! Olha, há dias, atacaram à hora do almoço e depois foram-se embora! Quando voltávamos do abrigo, vimos um papel pregado no arame farpado que circunda o quartel. No papel, estava escrito: o meu nome e a frase «Cathorr de dôs pé»! Tradução: cão de duas patas! (uma alusão ao colaboracionismo com a tropa). 

Claro que os colegas portugueses não entenderam nada, pois não sabem a minha alcunha e a frase estava em crioulo!” Já o JL nunca conta nada, fala pouco. Quando nos encontramos, gosta é de pedir uma garrafinha pequena de whisky, daquelas para meter nos bolsos, que têm à volta de 250 ml… Derrama o conteúdo num copo cheio de gelo e vai bebendo calado…

 Outro, amigo militar que estava no mato, era o JC, também um velho amigo de infância e do liceu em S. Vicente. Ele era das “operações especiais”, logo estava sempre à pega. Lamentava-se das operações difíceis no Cantanhez, Cacine e outros locais no Sul… Dizia, aquilo era o «Catanhezname»! Uma referência ao Vietname. Mas, ele era sempre muito vago, não descia aos pormenores e eu não insistia. 

O ZC era fuzileiro, outro velho amigo de infância e dos tempos do liceu. Quando vinha a Bissau, era aquela confraternização, mas ele também era parco nas informações, apenas dizia: “Eh pá! Na última missão foi porrada e mais porrada! Felizmente estou vivo!” Certa vez percebi vagamente que teria sido uma operação no Norte… em Guidage como veremos mais à frente.

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(Revisão / fixação de texto, parènetses retos, links, título, negritos: LG)
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Nota do editor: