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terça-feira, 11 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25632: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte II: Heróis da montanha!


Timor Leste > s/l > 2016 > O Rui e o seu acordeão, levando às montanhas de Liquiçá a alegria, a esperança e a solidariedade das gentes da Malcata/Sabugal,  e de outros lados de Portugal, de Coimbra à Lourinhã. A foto não traz legenda, mas parece-nos o Rui com a família Sobral, em Dili, no bairro 
Ailok Laran.


Uma Escola em Timor

Rui Chamusco, nascido em Malcata, pessoa bem conhecida na nossa aldeia e em todo o concelho do Sabugal e outras terras, juntamente com Gaspar Sobral, este nascido em Timor, quis o destino que constituísse família com Glória, nascida em Malcata. "Uma Escola em Timor" levou-os até Boidau, em Timor Leste, com a missão de construir uma escola para as crianças dessa zona timorense.
De Timor, Rui Chamusco, através da internet, tem-nos enviado notícias a contar como está a desenvolver-se o projecto.
 
Do Jornal Cinco Quinas retirei estas palavras:

"A nossa obrigação como cidadãos do mundo é sermos úteis a quem e aonde precisarem de nós. O projeto 'Uma Escola em Timor' é uma iniciativa de amigos que pretendem contribuir para o progresso e o bem estar do povo de Boidau.

(...) "Enquanto entre nós, em Portugal, se fecham escolas, noutros países como Timor Leste há necessidade de se construírem e abrirem. A nossa obrigação como cidadãos do mundo é sermos úteis a quem e aonde precisarem de nós, fazer o que pudermos para melhorar o mundo. Instruir e educar é um dever de todos, dos estados e de cada um de nós. Poder participar num projeto de solidariedade é uma honra.

"O projeto de solidariedade 'Uma Escola em Timor'  é uma iniciativa de amigos que, motivados por uma grande afeição a Timor, pretendem contribuir para o progresso e o bem estar do povo de Boidau, através da construção e funcionamento dum complexo escolar que inclui duas salas de aula (pré escolar e escolar, 1º ciclo), uma cantina, uma biblioteca e uma capela. 

"Boidau é uma região do interior de Timor Leste que, à semelhança de outras aldeias do interior de qualquer parte do mundo, carece de estruturas e apoios para o seu desenvolvimento. Todas as ações humanitárias com este fim serão sempre uma mais valia no caminho do progresso. Este projeto pretende ser uma resposta a este apelo". (Fonte: http://www.cincoquinas.net/...)

Foto: © Rui Chamusco  (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Fundadores: Rui Chamusco,
Glória Sobral e Gaspar Sobral


1. Esta é a segunda viagem e estadia do Rui Chamusco (de 27 de janeiro a 14 de junho de 2018) (*), em Timor Leste, uma missão solidária que culminou com a inauguração da Escola de São Francisco de Assis (ESFA), em 19 de março de 2018, em Boebau, Manati, Liquiçá.


O Rui Chamusco, nosso grão- tabanqueiro nº 886, é professor de música, do ensino secundário, reformado (e homem de sete instrumentos), natural da Malcata, Sabugal, a viver na Lourinhã. 



Rui Chamusco e Gaspar Sobral (2017).
A família Sobral tem um antepassado
comum que foi lurai, régulo,
no tempo dos portugueses.
As insígnias do poder (incluindo a espada)
estão na posse do Gaspar,
que vive em Coimbra. A família Sobral andou 
vários anos pelas montanhas de Luiquiçá, tentando
escapar à tirania dos ocupantes indonésios
Foto: LG (2017).


Tem-se dedicado de alma e coração a um projeto de solidariedade no longínquo território de Timor-Leste (a 3 dias de viagem, por avião, a cerca de 15 km de distância em linha reta). 

É cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste, com sede em Coimbra. Juntamente com outros destacadas figuras, como o Gaspar Sobral (nascido em Timor) e a Glória Sobral (natural da Malpaca, Sabugal).

Através da família Sobral, um exemplo de "resistência e resiliência", e das crónicas do Rui, vemos seguramente melhor Timor-Leste, de ontem e de hoje: uma visão macro e micro. Enfim, um privilégio, para os nossos leitores.  E um obrigado ao nosso cronista, 
extensivo ao Gaspar, ao Eustáquio,
 à Aurora, à Adobe e outros protagonistas 
destas histórias luso-timorenses (LG).


II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte II: Os heróis da montanha


18.02.2018, domingo - Grande Abeka!...

José Alves Sobral, entre nós o Abeka, é o quarto dos irmãos Sobral. Pouco mais de trinta quilos, num corpo de pele e osso. Mas nem por isso deixa de ser um verdadeiro Sobral, sendo pai de oito filhos vivos e de dez netos. 

Como muitos outros tem a sua história de resistência cheia de interesse para ser contada. Em 1997 foi capturada à traição. Como ele fazia de correio (levava recados aos combatentes daresistência), houve algúem cujo nome ele bem lembra, que se infiltrou no seu mundo fingindo “comprar-lhe o serviço” e que de seguida o entregou para ser preso. Foi algemado e com um garruço na cabeça foi levado em carro de polécia indonésia porruas e lugares impossível de identificar. Sabia-se na altura que as autoridades indonésias carregavam pessoas em barcos para depois as fazer desaparecer no mar.

Também o Abeka foi embarcado, sempre de cabeça coberta, e segundo ele sempre a pensar que teria esse destino. Para seu bem, ele mais os outros tres prisioneiros tiveram sorte diferente, pois foram distribuídos por várias prisões. 

O Abeka foi levado para Baucau, onde esteve dez meses preso. Conta episódios de arrepiar quanto às condições de vida: alimentação sempre a mesma <supermi”, sem banhos, saída das celas de quatro em quatro dias para fazer as necessidades maiores. Para as menores serviam-se de garrafas. 

Sujeitos a interrogatórios sob pancada, conta o Abeka que quem o salvou das dores foi a oração à Senhora do Desterro que ele por sorte apanhou do chão, porque se tinha desprendido da bota de um dos guardas da prisão. Ainda hoje mostra o papelinho, que é guardado religiosamente na sua pequena carteira. 

Conta também que sujeito a murros no estômago nada lhe doía,como se o agressor batesse em plástico ou outra matéria amortecedora.

Finalmente foi trazido para mais perto da sua morada em Ailok Laran, até que um dia o deixaram junto à ponte aqui perto. Ele sempre com receio de que fosse para lhe darem um tiro e acabassem com ele, quando verificou com surpresa que eramesmo para regressar a casa, onde ninguém sabia do seu paradeiro já havia mais de dez meses.

Com certeza que ele já contou esta peripécia da sua vida várias vezes. Mas eu notei que os irmãos que o ouviam (Gaspar, Mário e Eustáquio) lhe prestavam toda a atenção, e com ele reviviam, a seu modo, a história das suas vidas.

19.02.2018, segunda feira - Preparando  a inauguração da escola

É urgente ir a Boebau para nos certificarmos do estado de construção da escola. Só no local nos daremos conta do que já está e do que faz falta para marcarmos o dia da inauguração. Vamos a ver se hoje conseguimos realizar o nosso desejo. Mas está a ser difícil. Os transportes são o problema principal. Não há disponibilidade de “motores” para fazer a viagem. O Eustáquio tem tudo tentado, através dos amigos, que devem ser para as ocasiões, mas que nem sempre é assim. 

Será que as nossas esperanças vão ser também hoje defraudadas? Há dias em que tudo corre bem, mas há outros que nem vale a pena tentar. Já são onze da manhã e ainda nãoconseguimos resolver o problema.

Entretanto aguardamos, com impaciência, melhores notícias. E mais uma vez nos damos conta de que nada somos, ainda que às vezes pensemos que somos os maiores. Como diz o salmo “ se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham osseus construtores”. Estamos nas suas mãos...


Quem espera sempre alcança


E eis que chega o dia e a hora. De repente, aparece o Bartolomeo com a motorizada.

Até os olhos se me arregalaram! Num ápice, preparei o essencial para irmos à montanha. Era mais ou menos meio dia quando as motas arrancaram de Ailok Laran.

Depois de alguns recados aviados em Dili, lá vamos nós, cabelo ao vento, a caminho da “terra prometida”. Pelas 14.30 estávamos em Liquiçá, em casa do Fernando que é irmão do Bô Zé,  nosso anfitrião em Boebau. Recebidos com toda a gentileza,podemos saborear os produtos da sua agricultura caseira: anona ata, bananas...tudo produtos de alta qualidade biológica. 

Não posso deixar de referir a atitude corajosado senhor Fernando: tem nove filhos aos quais fez sempre questão de proporcionar o ensino escolar. Um já está licenciado e trabalha em Baucau. Diz-nos ele que ainda está com vontade de arranjar outra mulher para ter mais filhos. Grande Homem!

Prontos para recomeçar a aventura, eis o primeiro contratempo: a mota em que eu viajava, precisamente a roda que me suportava, estava vazia. Foi mais uma hora de espera até que o problema se resolvesse. É tudo por Deus! Olha se o furo acontecesse num dos lugares mais críticos do caminho?

Pelas 16.00h lá vamos nós cheios de pica. Eis então que a chuva aparece.

Francamente penseio no pior. Será que conseguiremos chegar ao destino? Mas graças à perícia dos condutores Eustáquio (pai) e Amali ou Zinígio (filho) os obstáculos foram sempre superados, ainda que por vezes tivéssemos de descer das motas para contornar as situações. 

Molhados e cansados, chegamos finalmente ao local da escola. Até os olhos se nos arregalaram ao avistar o edifício! Não imaginam a emoção de, pela primeira vez, entrar nesta escola que é fruto de um projeto de solidariedade do qual todos nós fazemos parte. 

Esta escola não é minha, nem do Gaspar, nem da Glória, nem do João Crisóstomo. Esta escola é nossa, de todos nós que acreditamos e colaboramos na sua edificação. Esta escola é dos timorenses, das pessoas de Boebau/Manati. 

Ficamos impressionados como, em pouco tempo, a obrase ergueu, Demos um grande abraço ao Abílio que é o empreiteiro e ao João Moniz (Eustáquio) que é o nosso braço direito porque ele é tudo (chefe da obra, engenheiro, condutor, contabilista, repórter, etc, etc...) Eles tudo tem feito para que o nosso sonho se concretize.

À noite, em casa do Bô Zé, pusemos as conversas em dia, até que o cansaço e o sono nos permitiram. Amanhã será outro dia.


20.02.2018, terça feira  - A montanha dos heróis

Bem cedo se começa o dia. Então eu que pouco ou nada dormi, não sei se pela emoção se por estranhar a cama e o ambiente natural sonoro (insetos, galos, galinhas, cães, porcos e eu sei lá quantos mais seres vivos ). 

Quase de imediato fomos para a escola onde já estava a trabalhar o Abílio. Ideias e mais ideias para melhorar algumas coisas, preparação da inauguração, datas, entidades, e claro sem esquecer as crianças, que neste momento estão à nossa volta, e que são a razão de ser deste projeto solidário.

Tivemos ainda a oportunidade de nos deslocarmos na floresta, pelas veredas que nos levam ao túmulo onde estão sepultados os ascendentes (avós) do Gaspar. Como eu ia à frente feito herói, não deixava de ouvir o aviso do Gaspar: “ Rui, cuidado com a Samodo!”, uma cobra verde venenosa (há quem diga que é mortal) frequente e disfarçada na luxuriante vegetação por onde passamos. 

Fomos acompanhados por Bô Zé e um guerrilheiro desde 1975, que já no local da campa nos explicava os combates de que ali, a 20 metros de distância, foi protogonista. Sempre de catana na mão, explica que numa noite, das três às seis da manhã, limparam quase todo o batalhão indonésio. Só se safaram uns quarenta. 

Diz que ali, e desenhava no chão com o dedo indicador, era como se fosse o jogo do gato e do rato entre os resistentes e as tropas indonésias. Diz também que uma vez, o soldado Mauquinta foi lá cima à procura de alimentos e que, na volta, o comandante do seu grupo suspeitou que ele tivesse ido a levar informações aos indonésios. Quando o avistou disparou contra ele uma rajada de metralhadora da qual o Mauquinta se conseguiu livrar. O comandante pediu ao que estava a seu lado mais balas, que lhe forneceu então mais uma. Também desta Mauquinta se safou. Foi então que Mauquinta avançou para o comandante e com a catana lhe cortou a cabeça.

Este guerrilheiro, que também foi comandante, há semelhança de outros estão como que abandonados. Nada recebem do Estado, em contradição com aqueles que pouco ou nada fizeram pela independência do país. Dignamente afirma: 

“Eu resigno-me porque sei que lutei pela independência do meu país”. 

Este senhor tem muita coisa para nos contar, e prometeu que quando voltarmos ele e outros antigos guerrilheiros irão ter connosco para que nós saibamos mais pormenores.

Pois é! Estamos no local onde se travaram os grandes combates, muito perto da fronteira com Timor Oeste de domínio indonésio. A vista panorâmica é impressionante, e ouvir em primeira mão, relatos que apontam “ aqui...além...acolá...” deixam-nos sem palavras, com vontade de abraçar estes heróis. 

E assim o fizemos e as fotografias documentam.


De volta a Dili...

Feitas as despedidas, estamos de volta a Ailok Laran. O tempo ajudou, não apanhamos chuva pelo caminho, embora as subidas e os caminhos lamacentos nos metessem em cuidados. Paramos em Liquiçá para falar com o César Bruno que tam bém faz parte da comissão de instalação da esola. Na Cruz Vermelha de Liquiçá, local onde ele trabalha, resolvemos alguns problemas em relação à inauguração da escola. 

Depois seguimos para Tíbar a fim de dar um abraço aos irmão capuchinhos que aqui têm uma das suas fraternidades em Timor. Recebidos fraternalmente pelos irmão presentes, falamos de pessoas, locais, projetos, e claro está do grande abraço que trouxemos de Portugal, particularmente do Provincial dos Capuchinhos Frei

Fernando, que já tem dez ou onze anos de vida em Timor. Obrigado, manos!...

Chegamos a casa por volta das 18.00h, onde a alegria e a algazarra das crianças se fez logo ouvir: “Boa tardi, Ti Rui!...Confesso que nunca na minha vida tinha ouvidotanto a saudação “Boa tardi!..., pois a crianças que ao longo do caminho fomos encontrando de regresso das suas escolas foram tantas, que é impossível ficar indiferente. E eu a lembrar-me da frase que há tantos anos eu decorei “ Cada criança que nasce é sinal de que Deus ainda não está zangado com a humanidade”.


23.02.2018, sexta feira  - O anúncio esperado...

Está tomada a decisão: a escola construída em Boebau será inaugurada o dia 19 de Março, e terá o nome “Escola de São Francisco de Assis - Paz e Bem ”. 

O César Bruno ficou responsável por fazer os convites às entidades oficiais. Já assim foi na instalação da primeira pedra. O Laurindo, residente em Boebau e chefe da aldeia vai reunir e ensaiar as crianças. O Rui ensaiará as crianças de Ailok Laran. Vai ser uma grande festa com rituais e anções timorenses, com músicas e canções portuguesas, e quem sabe até algumas danças de Portugal. As crianças, em Ailok Laran, adoram cantar e dançar o malhão e o vira.

Possivelmente ainda hoje eu e o Eustáquio vamos a Dili encontrar um alfaiate que faça “as fardas” para os alunos, que a minha afilhada Adobe desenhou.

Estamos em pulgas, como soe dizer-se, com a preparação deste acontecimento, e queremos que seja marcante para a região e para as nossas vidas. Sabemos que uma inauguração não é o mais importante, mas é o primeiro passo. Depois virá o andarnormal de modo a podermos caminhar de cabeça erguida. 

Claro que muitos desafios nos esperam, sobretudo a garantia de funcionamento, mais concretamente de professores que nos permitam continuar. Temos confiança em Deus e nos homensque este problema se irá resolver. Para já, e devido a este ano escolar já estar em andamento, a escola irá funcionar experimentalmente (ano zero se quiserem) com uma sala de mais ou menos trinta alunos, nas valências de Tetum, Português e Música. Diz-nos o Laurindo que, se houver ensino da Música vai haver muitos alunos, porque deve ser a primeira escola onde se ensina música. Muita gente toca e canta em Timor, mas poucos sabem ler e interpretar uma pauta. 

Veremos o que podemos fazer. Mas se formos por aqui, talvez sejamos mesmo uma escola de referência.


Data da Inauguração da Escola



A escola, em 2018:
os últimos retoques...
Está decidido: será no dia 19 de Março. Os convites estão a ser elaborados, as músicas e canções estão a ser ensaiadas, as “fardas” já foram encomendadas. Hoje também tivemos de comprar cadeiras (mais de 50), porque o equipamento escolarangariado em Portugal com destino à nossa escola está retido nos contentores do barco Hoksolok, que infelizmente nunca mais arranca dos estaleiros de Figueira da Foz. Será que ninguém tem solução para este problema? Valha-nos Deus!...

Entretanto, esperamos com alguma ansiedade a chegada do nosso amigo                                                                                          e colega do projeto de solidariedade João Crisóstomo e do seu amigo Ralph Niemeyer, que participarão na inauguração da escola e noutros atos de referência da sociedade timorense. A data da inauguração foi decidida tendo em conta as suas presenças em território timorense.

No próximo dia 7 de Março eu e o Gaspar iremos ser recebidos na Embaixada de Portugal, onde esperamos dar a conhecer o nosso projeto e angariar alguns apoios, particularmente no destacamento de professores. Sabemos que vai ser muito difícilencontrar professores disponíveis para lecionar em Boebau, devido às dificuldades de transporte e outras. Mas a Deus nada é impossível. E acreditamos que apareçaalguém que pode e quer entregar-se a esta nobre missão de servir os maisnecessitados. Que Deus nos ajude!...


Ida ao Hospital Guido Valadares

Já não foi a primeira vez que aqui me desloquei, não para tratar da minha saúde mas da saúde dos outros. Hoje vim com o Eustáquio que, devido à falta de prevenção, aocortar uma barra de zinco com a reverbadora, ficou com duas ou três limalhas noolho direito. Foi observado e tratado. Felizmente está tudo bem.

Desta vez, à luz do dia, dei-me conta do que da outra vez durante a noite não me apercebi. Guido Valadares é o hospital público de Dili, onde tudo e todos vêm parar.

Enquanto esperava pelo Eustáquio, chegou um pequeno grupo de quatro pessoas, creio que uma senhora doente acompanhada de família e uma senhora, médica comcerteza, que falava espanhol (cubano) e que tentava que alguém traduzisse o quedizia à doente. “No pudes comer fritos!...) Felizmente passou uma enfermeira que lhe fez a tradução. Não intervi porque, embora perceba e me expresse com facilidade em espanhol (estudei em Espanha), o meu tétum ainda não me permitefazer-me entender. 

Mas este episódio fez-me pensar no que já me disseram: “Se não fizermos nada pela promoção da língua portuguesa, o espanhol vai passar-lhe à frente, porque há pessoas que, por necessidade de entenderem os médicoscubanos, desejam aprender o espanhol”.

Mais uma vez me dei conta da importância que o sorriso tem para esta gente. É compensador passares por uma multidão de pessoas e que, sem te conhecerem, esboçam sorrisos. Fazem-nos sentir bem...


24.022018, sábado - O concerto das cigarras...

Segundo consta, as cigarras levam a vida a cantar, que tem sido mais ou menos o meu lema, enquanto a formiga se mata a trabalhar. É assim em todo o mundo. Mashoje, ao ouvir cantar as cigarras do local, lembrei-me da viagem de regresso deBoebau, do percurso que por necessidade tive de fazer a pé. O barulho era ensurdecedor. Tanto que perguntei ao Eustáquio que ruído era aquele. Primeiro respondeu-me que eram as moto serras que ali perto trabalhavam. Depois, perante a minha incredulidade e fazendo-o ouvir os mesmos sons, decididamente me disse que eram as cigarras. 

Podem crer, num cenário inimaginável, com as Madre-Cacau (árvores com mais de 50 metros) e os caféeiros a servirem de tapete, assisti a um dos concertos mais potentes da minha vida, tal era o volume do som.

Até nisto convém estar atentos, para não perdermos estas oportunidades únicas.

Falando de música e de sons, hoje foi dia de ensaio das crianças de Ailok Laran, em preparação da cerimónia de inauguração da escola São Francisco de Assis em Boebau. Também por coincidência, eu mais o Amali fomos comprar duas guitarraspara a nova escola, e que nos servirão desde já para os ensaios. Pois é! Viajar no “motor”duas pessoas e duas guitarras não é nada fácil. Passar rés vés nas ruas desta cidade que tanta movimentação tem, com medo de partir a cabeça ou o braço das novas guitarras meteu-me em cuidados. 

Felizmente chegamos sem incidentes, e prontos para apresentar e cuidar destas lindas meninas...


25.02.2018, domingo  - Um encontro desejado

Há muito tempo que o D. Basílio do Nascimento, bispo de Baucau [ 1950- 2021, foto à esquerda, cortesia da Agência Ecclesia] , e eu, que fomos colegas de trabalho no princípio da década de 80 na equipa pastoral da Comunidade de Gentilly nos arredores de Paris (França) não nos encontrávamos para jantar e conversarcomo hoje fizemos. Depois de muitos emails e telefonemas lá conseguimos dar o abraço do reencontro e pôr a conversa em dia. Recordações, projetos, atualizaçõestudo isto nos ocupou algumas horas. Connosco esteve também o amigo Gaspar que, como sempre, falou muito e muito bem. Não seja ele timorense de primeira linha,com capacidades cerebrais e emocionais incomuns.

Claro que nos encontraremos mais vezes, porque há projetos comuns que a isso nos obrigam e porque, entre amigos, “os amigos são para as ocasiões”. Porque somossolidários, esperamos que a nossa ação se estenda também ao território  (zonas mais carenciadas ) da sua jurisdição pastoral. É com prazer que verificamos, através de conversas cruzadas que nos chegam, que o amigo D. Basílio é neste momento uma das pessoas mais acreditadas e respeitadas em Timor Leste. E é uma honra que, depois de tantos anos em que estivemos “longe da vista”, o Basílio,  como eu lhe chamo, ainda me tenha no grupo dos seus amigos. 

Espero que a nossa amizade se mantenha e fortifique, aproveitando a ocasião da minha permanência em Timor Leste e a possibilidade de mais encontros que aí virão. Obrigado, Basílio!


26.02.2018, segunda feira  - “Nobreza a quanto nos obrigas!...”

Vem isto a propósito da preparação do dia da inauguração da escola. O César Bruno, um dos elementos da comissão instaladora veio de Liquiçá até nós a fim deprepararmos o ato inaugural. Fiquei atónito com tanta minuciosidade. “Há queseguir o protocolo”; “Temos que convidar este e aquele”; “ Qual a hierarquia na utlização da palavra”; “Quem corta a fita”; etc,etc... Ou seja a complexidade em vez da simplicidade. Mas dizem eles que em Timor tem de ser assim, temos de respeitar e cumprir o protocolo. E quem sou para contestar este modo de ser? Bem me custa, mas terei de aceitar.

Vim assim a saber que a sequência da importância vai do mais pequeno ao maior. O mais importante é sempre o último a falar. “ Os primeiros serão os últimos e os últimos os primeiros”. E assim, por mais paradoxal que pareça, o representante da igreja católica falará em último. 

Eu sei a importância, a consideração e a veneração que a Igreja Católica tem em Timor. Mas, para quem teve formação franciscana, não cai nada bem esta atitude. O Tau, que é um símbolo franciscano (S. Francisco subscrevia os seus escritos com o Tau por ser a última letra do alfabeto grego,indicando assim que cada irmão se devia considerar como o mais humilde e o mais pequenino de todos) e é também símbolo da escola, faz-nos lembrar que ser o primeiro ou ser o último é uma questão insignificante para o desenrolar da cerimónia.

Desculpem estas minhas considerações que mais parecem revestidas de falsa humildade. São um desabafo... O importante é que a escola está construída, vai ser inaugurada no dia 19 e estará ao serviço das crianças e da comunidade de Boebau/Manati.


Niki, a criatura amaldiçoada

Pteropus vampyrus , "Niki" (em Timor).
Cortesia de Wikimedia Commons

Cada dia que passa em Ailok Laran, estando sentados na pequena esplanada da casa do Eustáquio, temos como horizonte um grande mangueira (árvore com mais de 5metros de altura). Desde há mais de uma semana que temos vindo a acompanhar a maturação de uma manga situada mesmo lá no cimo, e que agradavelmenta para o nosso paladar, já nos acenava como que a dizer “ daqui a pouco estou pronta para ser comida”. 

Pois é! Hoje a olhar para ela demo-nos conta de que ela já não estva inteira. Uma criatura qualquer já a tinha provado. Foi então que o Eustáquio atalhou convencido: “Foi o Niki!...”

E eu sem saber quem era o Niki, pedi de imediato explicação. Então o Niki é o morcego, que em Timor é uma criatura maldita porque é a única que vira as costas (melhor, o rabo) a Deus, uma vez que dorme de cabeça para baixo.

E vamos lá entender todas estas crendices!... Mas que têm lógica, lá isso têm...

Nota de LG: Vd. Wikipedia > Pteropus vampyrus ou raposa voadora: A pteropus vampyrus ou raposa-voadora é uma espécie de morcego gigante do gênero Pteropus; é considerada o maior espécie de morcego: o  corpo pode ter  mais de 30 centímetros de comprimento;  é duma espécie frugívora, natural do sudeste asiático (incluindo Timor Leste); pesa mais de 2 kg e tem cerca de 2 metros de envergadura.


27.02.2018, terça feira  - “A melhor papaia do mundo...”

Há momentos em que tudo nos sabe bem. Gostar de papaia é coisa comum, até porque anunciam que faz bem a isto e àquilo, ao intestino (dizem por aqui que as sementes nem á para mastigar mas sim para engolir inteiras), ao estômago e não seiquantas coisas mais. É uma fruta muito abundante por aqui, e qual é o quintal que, na sua variedade botânica, não inclui umas quantas papaieiras? Tudo se consome nesta bendita planta: folhas, flores, fruta verde, fruta madura. Mas a mim o que maisme deleita é o seu fruto bem maduro. 

Hoje eu e o Gaspar (claro está os privilegiados dos presentes), num ápice devoramos uma papaia, com certeza bem perto de um quilo. Foi colhida agora mesmo e a sua apresentação enche-nos os olhos e aguça o palato. Tanta gula que até acho ser pecado. Mas pronto, já está nas nossas entranhas e nada mais há a fazer que agradecer a quem nos proporcionou tão agradável momento.

Mãe há só uma...

Logo cedo, o Gaspar recebeu uma chamada do Painô, eletricista da casa Ramos Horta, na Areia Branca, para lhe comunicar que a mãe do seu amigo (estudaram juntos) Ramos Horta tinha falecido, e que o seu corpo estava em velório em ....

O funeral serã no dia 27. Claro que a notícia correu já Timor, se não o mundo. E as conjunturas começam a aparecer: quem irá ao funeral; muitos grandes estrão lá; quem de nós quer ir; etc...etc... 

Eu que já por duas vezes estive com este importante senhor (Prémio Nobel da Paz, Presidente da República, ministro dos Negócios Estrangeiros e muitas coisas mais) manifestei-me de imediato: “ eu não vou “. Sei que mãe há só uma, mas por toda a consideração que eu tenho pelo Ramos Horta e pela mulher que é sua mãe, não me apetece ir para ver... ver navios talvez. Que Deus a tenha no seu descanso e que rogue por nós enquanto por aqui andarmos. R.I.P.


28.02.2018, quarta feira  - Expresso Boebau

Não. Não é autocarro, comboio ou avião. Hoje tivemos de alugar uma carreta para que nos leve alguns materiais necessários ao acabamento da escola. Ontem, eu e o Eustáquio andamos às compras, e hoje vão a caminho do seu destino. A pouco epouco a obra está erguida. Vamos esperar que até ao dia 19 do próximo mês tudo esteja pronto. Com certeza que mais viajens serão necessárias. Mas, qualquer que seja o meio de transporte para nós será sempre “expresso para Boebau”. Está tudo pronto, a carga está acondicionada e o motor já trabalha. É uma questão de arrancar, e boa viajem!...

Ramiro... Ramiro...

Ramiro é um jovem com 19 anos, natural de Ilurhau, uma aldeia na vertente montanhosa do outro lado da ribeira de Laoeli. Nada me levaria a escrever sobre ele se alguns acontecimentos a seu respeito não me despertassem a atenção.

 A saber, Ramiro é irmão do empreiteiro da escola construida em Boebau que trabalhou na obra até que um dia, na fase da cobertura do telhado, deslizou pelas chapas molhadas e veio estatelar-se cá em baixo. Ficou inanimado, sem poder mexer-se durante algumas horas, até que a ambulância vinda de Dili o foi buscar rumo ao hospital Guido Valente. 

Imaginem a nossa apreensão e preocupação quando fomos informados do acidente. A todo o momento esperávamos as informações do Eustáquio, e sempre a pensar no pior. Sei que o Gaspar, a Glória e eu pusemos a nossa confiança nas mãos de Deus e dos seus médicos, mas os momentos de afliçãoprevaleciam. 

Dia após dia, íamos sendo informados do resultado dos exames. E, para nossa tranquilidade, ao fim de uma semana internado, foi dada alta do hospital porque o Ramiro não apresentava qualquer lesão corporal. Graças a Deus! Passou mais alguns dias na casa do Eustáquio, mas a sua vontade era sempre de voltar a trabalhar na obra da escola. Ramiro vai ser pai dentro de dois meses. No entanto,talvez porque ainda é muito jovem, tem a inocência e a simplicidade de uma criança.

Estes dias apareceu por aqui e por cá ficou. Muito serviçal e alegre, mas também muito ingénuo nas suas crenças. Vou relatar algumas, e em particular as que me dizem respeito.

Anteontem à noite, estando ele, o Gaspar e o Eustáquio em conversa, o Eustáquio trouxe à baila o assunto da crença nos antepassados, que é assunto sagrado aqui emTimor. E então disse que eles estão sempre vendo o que faz cada um dos viventes.

Que castigam os que fazem o mal, e que aqueles que roubaram os sacos de cimento e o ferro na obra da escola irão receber o seu castigo. (Conversa psicológica do Eustáquio ou, quem sabe, também crença sua!?). 

Foi então que o Ramiro reagiu,todo atrapalhado, comentando: “Oh! Então qundo eu caí foi castigo...” E o Eustáquio perguntou: “Então tu também roubaste?” "Não!", retorquiu o Ramiro, "mas colaborei"... "Eu vi o roubo, e eles deram-me dinheiro para que não dissesse nada”. 

Em conclusão, ali se soube, informalmente, quem roubou o quê.

Também é crença, sobretudo entre os timorenses da montanha, de que o “malai”, o branco estrangeiro, de noite se transforma em serpente para voltar à sua terra, neste caso a Portugal. O rapaz olhava para mim e estudava a minha reação. Quando eu me ria,  ele desconfiava da conversa, mas quando eu me mantinha sério o Ramiro dizia: “Tenho medo”. Medo tenho eu que algum dia de tecem em mim a serpente e a tentem matar... 

Já durante a outra estadia, na montanha em Boebau, me relataram algo parecido. Como eu me ausentei por alguns minutos, falavam entre eles que tinha ido a ter com a serpente, e que se transformaria na mesma para depois ir até à ribeira, encontrar um tronco e embarcar até Portugal. Boatos e crendices que nos vão ocupando o tempo e divertindo.


01.03.2018, quinta feira  - Presença indonésia

“Não há males que não venham por bem”, ou então, “Deus escreve direito por linhas tortas”. Vem isto a propósito da forte influência indonésia que se faz sentir em Timor Leste. É a comunidade estrangeira mais numerosa, mas a sua presença não é só física. É sobretudo a nível da língua, do bahassa, que é a mais falada a seguir ao tetum. Nem o inglês, nem o português, nem o espanhol (cubano) lhe chegam aos pés. Basta frequentar casas comerciais, mercados, escolas e outros lugares mais comuns para nos darmos conta desta realidade. Tudo o mais poderá ser folclore. 

E, se é certo que os anos de ocupação indonésia deixaram marcas indeléveis pela negativa nas vidas e mentes destas gentes ( morreram mais de 200 mil pessoas num universo de 700 mil), também não podemos ignorar as coisas positivas que fizeram e ainda perduram, a saber: uma considerável rede escolar, vias de acesso razoáveis, particularmente caminhos rurais, que hoje estão deteriorados (veja-se o caminhopara Boebau), estabelecimentos comerciais com abundância, uma língua de comunicação, e outras coisas mais. 

Aqui fala-se bahassa em casa, na rua, no trabalho em todo o lado. A televisão que se vê são programas daos canais indonésios que atétêm boa cobertura.

Claro que a independência de Timor Leste foi a melhor coisa que aconteceu aos timorenses, porque por ela lutaram e tantos deram a vida. Claro que o governo timorense ter decidido adoptar a língua portuguesa como segunda língua oficial é muito prestigioso para Portugal, para os portugueses mas temos que ser realistas.

Neste momento, entender e falar o portugês é um privilégio: embora conste no currículo do ministério da educação timorense, os esforços que se têm feito por parte dos governos e entidades responsáveis pouco se têm feito notar. 

Eu diria mais. Será necessário investir muito mais em prol desta segunda língua oficial, e de preferência do ministério de Educação de Portugal, se quisermos que a nossa língua seja utilizada pelos timorenses: sim, porque a prática de uma língua não se pode resumir à aprendizagem e utilização de umas quamtas palavras ensinadas por professores que têm diiculdades de se expressarem em português corrente. 

É urgente haver mais escolas de referência; é urgente promover e realizar estágios e intercâmbios linguísticos; é urgente que as pessoas compreendam e falem oprotuguês. É a segunda língua oficial!...

O paradoxo é que os timorenses têm uma incrível afeição pelos portugueses ( e não é só por causa do futebol), talvez fruto dos longos anos de presença (entenda-se colonização). E daqui a justificação para empreender ações neste território ou emterritório lusófono que garantam e reforcem o ensino e a aprendizagem do nosso idioma.


02.03.2018, sexta feira  - “Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos...”

Hoje, à noite, ouvia-se chorar fortemente em casa. Nada mais nada menos que a

Adobe minha afilhada, num pranto de suor e lágrimas, agarrada ao braço da sua irmã Eza, solicitando-lhe perdão. E como a Eza, que é mais velha, se recusava a perdoar-lhe uma pequena ofensa, porque respondeu à irmã de uma forma nãoconveniente e fora da regulação familiar. Literalmente a Adobe mais parecia a Maria Madalena lavando com o seu choro os pés de Cristo. Mas como o tempo tudo resolve, ao fim de uma dezena de minutos a Eza anuiu e concedeu-lhe o perdão.

Acabaram as lamentações e a Adobe já ria e fazia a sua vida normal junto de nós. Relato esta episódio para dar a conhecer o valor do perdão neste povo. Disseram-me que este espírito se incute nas crianças desde muito pequenas. A Adobe já sabia quenão devia responder à irmã e que, o seu choro incessante de devia a que ela pensava que, quando for grande pode-lhe acontecer o mesmo (quase em jeito de castigo) emrelação aos seus filhos. 

Já nas primeiras crónicas contei também um caso de perdão impressionante. Bartolomeo. Um senhor que vive aqui à nossa frente e que nestemomento até é o chefe da aldeia, foi agredido à catanada em diversas partes docorpo, com maior incidência na cabeça e nos braços, facto que e levou a estar emcoma ae a passar alguns meses no hospital. O agressor foi condenado a dois anos de prisão, mas o Bartolomeo, logo que lhe foi possível, foi à cadeia dar-lhe um abraço

de perdão. A justificação que ele nos dá para tal atitude é sempre a mesma: “Se Jesus perdoou a quem o matou e perdoa a todo a a gente porque é que eu não devo também perdoar?” Hoje são grandes amigos e até compadres.

Quem puder entender que entenda...


03.03.2018, sábado - Longe da vista,perto do coração


Hoje de manhã, durante um ato rotineiro - limpeza dos óculos - dou comigo a pensar, a 25 mil quilómetros de distância, no amigo Rui Coutinho, proprietário da Ótica Coutinho na Lourinhã de que sou cliente há muitos anos. 

Bastante antes do regresso a Timor,  passando por lá, e contando as aventuras da primeira estadia, pedi ao Rui que me desse algumas armações já sem venda comercial para serem trazidas e oferecer a estas gentes. Foi-me entregue um saco com umas quantas unidades doproduto solicitado, que religiosamente trouxe comigo. 

Já em Ailok Laran, não se imaginam a alegria desta gente em experimentar estas novas armações, algumas mesmo sem lentes. Todos viam muito bem com ou sem graduação e sem receita médica. O novo visual era confirmado num pequeno espelho que, sem esforçonenhum esforço, refletia a imagem narcisíaca de cada um.

Ora aqui está. Pequenas coisas que fazem a diferença. Mesmo que o ditado “longe da vista, perto do coração” seja verdade, eu direi que mesmo vendo mal, pordeficiência visual ou por distância quilométrica, um pequeno objeto poderá desfazero ditado e levar-nos a dizer “longe da vista, perto do coração”.

 “E Deus providenciará...”

Se há algum problema que nos preocupa neste momento, sobretudo a mim e ao Gaspar, relacionado com a escola é a constituição do corpo docente. E nem a nossa disponibilidade para exercer tal munus pelo menos durante os primeiros tempos nos deixa tranquilos. 

Assim, têm-se multiplicado esforços no sentido de contactar entidades e pessoas que nos possam valer. Sobretudo o Gaspar, que é um grande conhecedor desta sociedade timorense e que é conhecido de todo o mundo (eu sou testemunha do que afirmo), tem tudo tentado na resolução deste problema; cartas,emails, telefonemas, encontros..., alguns de difícil concretização. Por exemplo ocontacto com o Ministério da Educação Timorense que depois de muitas tentativas nunca responderam a nada.

Hoje de tarde, em jeito de amizade, fomos ao aeroporto de Dili esperar dois casais portugueses que vêm passar alguns dias em Timor. Não sabendo nem o número de voo nem a hora de chegada, aproximamo-nos da porta de chegada e aí esperávamos impacientemente que eles aparecessem. Foi então que me dei conta do regozijo do Gaspar ao abraçar uma senhora, duas a três vezes mais forte que ele.

Ambos contentes, perguntando “há quanto tempo a gente não se encontra?!”

Chegou a minha vez, e o Gaspar apresentou-ma à sua amiga, dizem que ainda de família, nada mais nada menos que a senhora Lurdes Bessa, vice ministra da Educação no governo de Timor. Claro que logo a seguir aos cumprimentos o Gaspar pô-la ao corrente do nosso projeto e tentou envolvê-la em ajudar-nos a resolver o problema que nos aflige. Facilitou-nos os contactos e pensamos que Deus a colocou no nosso caminho para nos ajudar. Pelo menos assim desejamos.

“E Deus providenciará”...


04.03.2018, domingo  - Chegada do amigo João Crisóstomo

A meio da tarde soou o meu telemóvel. Era o amigo João Crisóstomo dizendo: “Já estou em Timor. Acabo de chegar!” Fiquei perplexo e perguntei: “ mas então a tua chegada não estava marcada para amanhã?” Respondeu: “vindes a ter comigo que depois conto tudo”. Claro que a sua chegada era por nós esperada com ansiedade, pois o João é um elemento fundamental no projeto de solidariedade que temos em mãos. Ele dinamiza tudo e todos. E nem os anos que já tem lhe retiram essa capacidade de mobilização. 

Homem de causas, com êxitos internacionalmente reconhecidos, concretamente no apoio aos timorenses durante a luta pela independência, encontrou no nosso projeto de construção de uma escola em Boebau um exemplo e um começo da sua visão sobre o problema da educação em Timor Leste: criação de escolas nas zonas de montanha mais carenciadas. 

Por isso nos tem apoiado desde o primeiro momento; por isso integra a comissão de construção; por isso chegou hoje a Timor para, de entre outras coisas importantes que pretende fazer durante a sua estadia, estar presente na inauguração da escola que será no dia 19 de Março. 

O João é um fisicamente um homem pequeno mas com um enorme coração. Para além da nossa amizade e cumplicidade ele merece onosso respeito e gratidão. Por isso estamos aqui, de braços abertos para o receber e conviver, embora que, por troca de horários, não tivéssemos estado no aeroporto à sua chegada.

À noite, eu, o Gaspar e o Eustáquio fomos ter com o João e partilhamos abraços, conversas, programas, e até o jantar. Foram momentos que, só quem está longe do seu país, sabe e pode apreciar. Obrigado, João. E que todas as tuas expetativas tenham o desenvolvimento desejado...

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25617: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte I: "E as crianças, meu Deus, porque lhes dais tanta dor?!"

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segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23871: Notas de leitura (1531): Guevara versus Amílcar Cabral: Divergências estratégicas na guerrilha (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
O guevarismo e o seu foco insurrecional veio a revelar-se uma aplicação desastrosa da guerrilha na Américas do Sul e Central, era uma conceção desinserida de um processo histórico de alianças de classe e de forças ditas contestatárias que agiam taticamente, incapazes de pegar em armas - daí os falhanços na Colômbia, na Venezuela, no Uruguai, na Bolívia. Amílcar Cabral declarou um dia que encetara o processo revolucionário na Guiné só conhecendo uns rudimentos da maoismo, contudo, como está historicamente comprovado, instituiu uma teoria e uma prática revolucionárias ajustadas às aspirações de população que não se identificava com a potência colonial, cuja presença, aliás, era muito frágil. Cabral teve suficiente astúcia para nunca se confrontar com as teorias cubanas, Guevara e Fidel Castro admiravam-no e Cuba, como é de todos sabido, apoiou a luta armada na Guiné. Cabral também não se impressionou muito com o foco insurrecional, apostou na longa duração e numa possível boa simbiose entre a população e os guerrilheiros. Revelou-se um marxista flexível, embora intransigente na ditadura da direção política; jamais se pronunciou a favor de um futuro desenvolvimentista para a Guiné assente na ajuda humanitária, aspirava a uma agricultura próspera como matriz do desenvolvimento, queria que a Guiné não sobrevivesse à custa de dádivas, sem contestar que recebera apoio da cooperação. Foi um teórico que conduziu até às últimas consequências o processo de independência e estabeleceu balizas, sobretudo na fase inicial, desde o segundo semestre de 1962 até ao processo de consolidação de 1964, para os atos de terror e de intimidação, conhecia as etnias e as suas cumplicidades e nunca ignorou que o PAIGC não podia contar com os Fulas, conhecia muito bem as razões históricas da aliança entre os Fulas e os portugueses.

Um abraço do
Mário



Guevara versus Amílcar Cabral: Divergências estratégicas na guerrilha (2)

Mário Beja Santos

É do senso comum que a luta armada desencadeada pelo PAIGC obedecia a uma estratégia de guerrilha. É um dado curioso como se aborda amiúde este fenómeno nacionalista sempre no enquadramento de descolonização, passando-se, de um modo geral, ao lado dos pontos concordantes e discordantes do pensamento de Cabral com outras estratégias de guerrilha.

Gérard Chaliand, porventura o principal historiador francófono dos movimentos revolucionários à escala mundial, e que acompanhou Cabral no interior da Guiné em 1966, escrevendo depois uma obra no ano seguinte, para além de artigos, releva os fatores históricos das guerras populares na época contemporânea: a crescente intervenção dos camponeses na luta armada (como força combatente ou infraestrutura política clandestina ou local de abastecimento); o facto de a luta passar a dispor de uma vanguarda ideológica mobilizadora orientada pela coesão, disciplina e espírito de sacrifício. Não se pode contestar a importância do pós-II Guerra Mundial, que operou ruturas de equilíbrio entre as grandes potências e que fez despertar nacionalismos, muitos deles em estado latente. Há que ter em conta o gradual desaparecimento dos impérios europeus, as elites nacionalistas iam amadurecendo as vias mais adequadas para chegar ao poder e gerar novas pátrias. Havia populações amadurecidas para a insurreição e houve diferentes modos de encarar a guerrilha. Como se observou no texto anterior, Che Guevara, após a tomada do poder em Havana, não escondia a sua inquietação quanto à necessidade de fazer a disseminação revolucionária do continente. Outro pensador revolucionário, Frantz Fanon, talvez dominado pela guerrilha de cariz sanguinário que se desenvolveu na Argélia, era apologista do ferro e fogo, a qualquer preço.

Em 1974, portanto numa fase já muito amadurecida do quadro das independências em África e na Ásia, Régis Debray passou a escrito a sua análise sobre as lutas armadas da América Latina, fixou-se em grandes atores como Fidel Castro, Che Guevara e Salvador Allende, procedeu a um balanço crítico desses fenómenos revolucionários ou subversivos que ocorreram na Venezuela, em Cuba, na Bolívia ou no Chile. Nunca escondendo a sua admiração pelo guevarismo, preocupou-se em refletir sobre as razões que conduziam a uma revolução nacional vitoriosa, nunca esquecendo a China, o Vietname e Cuba. Dissecando as classes médias da América do Sul e Central, foi-lhes encontrando mais intenção do que determinação pela luta armada, com a agravante que os partidos comunistas, no período estalinista, eram única e exclusivamente incentivados a trabalhar para que se formassem governos de unidade nacional. É nesse contexto que Debray enuncia metodicamente as razões para o triunfo cubano, não desvaloriza a vanguarda constituída por elementos da classe média, mas que souberam doutrinar os agrupamentos da guerrilha e a boa comunicação que estabeleceram com os grupos camponeses.

Medindo cuidadosamente a estratégia desencadeada em Cuba, recorda que num quadro de desigualdade inicial nas relações de forças entre o exército regular e a guerrilha, havendo que incorporar progressivamente a população na luta, é fundamental preparar os militantes para um combate longo, para o tempo que for preciso, saber definir a retaguarda, atender rigorosamente à natureza do terreno, e no caso de Cuba perceber que era uma ilha, de onde não se punha qualquer eventualidade de atravessar fronteiras. Daí a importância do estabelecimento de bases, sem o caráter de fixação, de programar ações num contexto de descontinuidade operacional, nunca descurar a questões ideológica, adotando uma teoria de organização e estabelecer as regras de uma democracia revolucionária.

Não é para aqui chamada a narrativa do processo histórico que levou este movimento revolucionário cubano até à definição do Partido Comunista. O pano de fundo é tentar perceber o que distinguiu Amílcar Cabral dos outros teóricos. E não será pura casualidade que Gérard Chaliand na sua obra monumental Estratégias da Guerrilha, Payot, 1994, distinguir a intervenção de Cabral na Conferência Intercontinental de Havana, em 1966, como o contributo mais original, senão o único contributo original daquelas décadas sobre a estratégia revolucionária dos movimentos de libertação, e sobretudo o papel da pequena burguesia. Perante uma assembleia que aos poucos ficou boquiaberta, Cabral começou por dizer que a maneira mais eficaz de criticar o imperialismo é pelas armas, desde que a motivação ideológica se insira perfeitamente num povo que aceita fazer a causa libertadora de ter que pegar em armas para expulsar a potência colonial. Numa linguagem frontal, Cabral referiu nessa intervenção que passou à história com o título da arma da teoria de que um revolucionário deve saber lutar contra as suas próprias fraquezas, e uma delas poderá ser a falta total de ideologia de um movimento de libertação nacional. E por isso propõe-se contribuir para o debate sobre os fundamentos que os objetivos da libertação nacional em relação à estrutura social. Questiona o conceito de luta de classes e não esconde os equívocos que ele comporta, esquecendo povos que por razões históricas não evoluíram para quadros de industrialização. Não se pode iludir o papel da pequena burguesia, ela é fulcral tanto na situação colonial como pós-colonial. Há segmentos da pequena burguesia que aderem ao chamamento revolucionário enquanto outros se mantêm aliados, talvez com a ilusão de que estão a defender a sua situação social, ao colonialismo. E faz comentários proféticos, observando que a situação neocolonial, que exige a liquidação da pseudoburguesia autóctone para que se realize a libertação nacional, dá também à pequena burguesia a oportunidade de um desempenho decisivo na luta pela liquidação do domínio estrangeiro. Enfatiza o papel desta pequena burguesia na situação neocolonial, ou ela possui consciência revolucionária e a capacidade de interpretar fielmente as aspirações das massas nas sucessivas fases da luta, identificando-se cada vez mais com elas, ou aceita o aburguesamento. E diz abertamente que a pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de se suicidar como classe ou então trair a revolução, tornando-se cúmplice de um qualquer processo neocolonialista, cada vez mais distante das profundas aspirações populares.

Cabral, como veremos no próximo e último texto, deliberou, a partir de 1959, que o PAIGC entrava num processo de clandestinidade, com subversão interna conducente à preparação de quadros militares, com uma direção no exterior apta a dar formação, a acolher os novos quadros militares e a consciencializá-los para a natureza da luta armada que se avizinhava, a obter apoios internacionais, e gradualmente instalar a subversão em zonas do território extremamente ásperas para a mobilidade das tropas regulares. O que veio a acontecer, como Gérard Chaliand comprovou no terreno, em 1966.

(continua)

Amílcar Cabral, Maria Helena Rodrigues e a sua filha Ana Luísa Cabral, 1964
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Nota do editor

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Último poste da série de 9 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23859: Notas de leitura (1530): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (7) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23848: Notas de leitura (1528): Guevara versus Amílcar Cabral: Divergências estratégicas na guerrilha (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
O assunto não é de sua menos importância, as estratégias de guerrilha, ao tempo em que foram desencadeadas pelos nacionalistas das colónias portuguesas, tinham como referência o Vietname, a Argélia, Cuba; havia o contexto ideológico, podemos falar nos fatores históricos destas lutas pela independência, o papel dos camponeses e agricultores sem terra, a organização da vanguarda ideológica mobilizadora e o imperativo da sua coesão, a ligação do guerrilheiro às populações. Quem conduzia essas lutas armadas tinha consciência de que o fim da II Guerra Mundial trouxera a rutura de equilíbrios, que houvera guerrilha na própria Europa, caso da Jugoslávia e da Albânia, e os impérios coloniais europeus estavam em desagregação. Havia que saber conduzir a guerra revolucionária, Guevara tornou-se uma referência, tal como Frantz Fanon. Acontece que Amílcar Cabral tinha uma tipologia sobre a condução da luta, a organização da guerrilha e as finalidades da luta de libertação um tanto distintas do que Guevara e Fanon propuseram. É a contextualização dessas concordâncias e divergências que aqui se ponderam para se avaliar como o pensamento revolucionário de Cabral se ajustou à realidade da luta que conduziu.

Um abraço do
Mário



Guevara versus Amílcar Cabral: Divergências estratégicas na guerrilha (1)

Mário Beja Santos

Para se situar o conceito de guerrilha preconizado por Guevara, e mais adiante pô-lo em confronto com a estratégia de Amílcar Cabral aplicada à Guiné, e tentar medir a distância que separou os modos de aplicação preconizados pelos dois revolucionários, é indispensável procurar enquadrar as condições de lugar em que ocorreu a revolução cubana e um pouco mais adiante se forjou a luta armada na Guiné colonial. O território cubano parecia adverso à guerrilha, o tempo era-lhe favorável, mudara a relação de forças à escala mundial no então designado “campo socialista”. Quando os EUA bloquearam Cuba, subtraindo-lhe energia, matérias-primas, peças de substituição para os tratores, trigo e sabão, a URSS estava em condições, mesmo que estivesse posto numa linha vermelha da chamada coexistência pacífica, de apoiar Cuba. Como escreveu Régis Debray, um acérrimo defensor da doutrina guevarista, e que a impulsionou com o conceito de foco, vivia-se um período fasto para o socialismo. A doutrina estalinista fora posta no sótão, não era imperioso a defesa do “socialismo num só país”, análise que bloqueara a generalidade dos partidos comunistas das Américas do Sul e Central. Nikita Kruschev abraçou as causas do Terceiro Mundo, estamos num período de afundamento dos sistemas coloniais, é o tempo de vitórias na Indochina e na Argélia, há ainda repercussões das conferências de Bandung e de Belgrado, o Sputnik e Gagarin eram vedetas – foi assim o período entre 1956 e 1962, a cisão entre a China e a URSS ainda não provocou mossas monumentais, o socialismo parece estar na ofensiva no mundo ocidental; Kennedy e o desastre da Baía dos Porcos não estavam esquecidos, este quadro idílico só se alterará com a crise dos mísseis, que custará a prazo o afastamento de Kruschev, mas a linha dita de apoio ao movimento revolucionário, a partir de Moscovo, a que se juntava o apoio do apoio incondicional de Pequim ao fim do colonialismo na Ásia e na África manter-se-á.

Guevara deixou um apreciável número de escritos, logo as recordações da guerra revolucionária, tinha a sua própria interpretação do que tinha sido a guerrilha em Cuba, desde o falhanço de Moncada, analisa toda a progressão da guerrilha de 1957 até à entrada em Havana em janeiro de 1959. E tece comentários que podem ser úteis para as concordâncias e divergências com a atuação de Amílcar Cabral. Ele cola a palavra guerrilheiro à luta cubana, a palavra guerrilheiro era símbolo de um desejo de liberdade, e apreciava a revolução cubana pela sua ação libertadora, propulsora da reforma agrária. O exército de guerrilha, exército popular por excelência, era constituído por indivíduos virtuosos, disciplinados, ágeis, física e mentalmente. O guerrilheiro deve procurar esgotar o inimigo, desmotivá-lo, fazê-lo perder a tranquilidade. Para que a tática resulte, o conhecimento do terreno deve ser perfeito, ter um conhecimento rigoroso da aproximação e da retirada, do esquema ofensivo e defensivo do inimigo. O guerrilheiro é um reformador social, pega nas armas contra a opressão, reclama uma pátria e a mudança de regime social e económico, é um intérprete das aspirações da grande massa camponesa.

Guevara pronuncia-se igualmente sobre o método guerrilheiro, lembra a diversidade de aplicações na Ásia, na África e nas Américas, discreteia se o método da guerrilha é a única fórmula para a tomada do poder em toda a América e põe uma questão muito dura se a revolução cubana poderá sobreviver se o movimento revolucionário não se expandir pelas Américas. Na esteira de outras correntes revolucionárias, refere a necessidade da classe operária, observa que a América vivia num estado de equilíbrio instável entre a ditadura das oligarquias e a pressão popular. Tanto ele como Régis Debray não esconderão a sua profunda desilusão com o comportamento seguidor do estalinismo da generalidade dos partidos comunistas das Américas. Vaticina uma luta longa e sangrenta no continente americano, haverá numerosas frentes, custará muitas vidas. Está plenamente convicto da vitória, as burguesias nacionais estavam mancomunadas com o imperialismo. Em dado passo, Guevara dá o parecer que o crescimento do mercado comum europeu iria acarretar o desenvolvimento de contradições fundamentais, acentuar mesmo a eclosão da luta americana, e refere que há já indícios seguros na Venezuela, Guatemala, Colômbia, Peru e Equador. Curiosamente, não fala na Bolívia, em cuja guerrilha se inseriu, em 1965, e onde foi assassinado, dois anos depois.

Guevara sentia-se na obrigação de procurar sistematizar a experiência cubana e o processo revolucionário cubano, definindo o cânon do guerrilheiro e a estratégia de guerrilha. Em tudo quanto escrevia deixava claro que a revolução cubana era o simples prelúdio da onda revolucionária que iria varrer todo o continente latino-americano. Dava como certo e seguro que as forças seculares podiam ganhar uma guerra de guerrilhas contra um exército institucional; que nem sempre se podem esperar todas as condições para a revolução, poderá ser imperativo criar um foco insurrecional e o terreno da luta armada deve ser fundamentalmente o campo. Nunca perde de vista a crítica à inoperância dos partidos comunistas e depois detalha o princípio, o desenvolvimento e o fim da guerra de guerrilhas: “No início há um grupo mais ou menos armado, mais ou menos homogéneo, que se dedica quase exclusivamente a esconder-se nos lugares mais agrestes, mantendo raros contatos com os camponeses, esse núcleo de guerrilheiros pode viver isolado, embrenhado na mata, mas a luta não pode avançar sem o apoio dos camponeses, daí o papel determinante do trabalho político”. E enfatiza de novo o guerrilheiro como um reformador social. Nos seus escritos, Guevara não ignora a existência de contradições na massa dos agricultores e camponeses, a propriedade da terra, a existência de oligarcas possuidores de grandes propriedades, o que gera aproximações interclassistas e interdependências que podem fazer hesitar a massa de agricultores e camponeses em aderir à guerrilha.

Também os seus escritos fazem uma clara apologia ao internacionalismo, e observa que o imperialismo é um sistema mundial, a última etapa do capitalismo, por isso é preciso derrotá-lo numa grande confrontação mundial. Todos os estudiosos do guevarismo não iludem que Che tinha plena consciência que a revolução cubana não poderia permanecer isolada. O seu confronto com os partidos comunistas latino-americanos foi extremamente duro. Ainda preponderava a sombra de Estaline que dava como seguro que os países latino-americanos pelo seu atraso precisavam de modelos de governação de unidade nacional, Guevara achava-os cristalizados, totalmente incapazes de detonar focos insurrecionais, por estrita obediência a um princípio estalinista que já estava no caixote do lixo da História. Guevara também não iludia o princípio marxista do proletariado, respondendo que o camponês era o verdadeiro agente revolucionário, o que contrariava o que Marx dissera, que o camponês constituía uma “massa de produtores não envolvidos diretamente na luta entre capital e trabalho”. Guevara reconhecia as diferenças existentes sobretudo naqueles países com grandes centros urbanos, como era o caso do Brasil, da Argentina, Chile e Uruguai. Mas Guevara não aceitava a necessidade de haver guerras de guerrilha diferenciadas, postulava que a influência ideológica dos centros urbanos inibe a luta guerrilheira e incentiva as lutas de massas organizadas pacificamente, isto para regressar à ideia de que se devia contar com uma guerrilha de camponeses.

Como é evidente, Guevara cometeu inúmeros erros de apreciação da realidade socioeconómica e cultural dos países latino-americanos, esteve no Congo a procurar estimular focos insurrecionais, foi um fracasso total, encontrou-se em Conacri com Amílcar Cabral, não há documentação de Cabral sobre tudo o que se passou nesse encontro, mas que teve resultados promissores. Primeiro, Guevara considerou Cabral o único dirigente revolucionário com consistência e linha organizativa bem delineada. Cabral pediu apoio a Cuba e recebeu. Em 1966, em janeiro, na cidade de Havana, Amílcar Cabral exporá as linhas norteadoras do movimento revolucionário que dirige, incomodará muita gente quanto ao conceito de luta de classes e ao significado do proletariado. Fidel Castro admirou a ousadia da exposição de Cabral. Passeiam-se por Cuba, garante-lhe mais apoio. Será em Cuba que se irão formar os cabo-verdianos que era suposto promoverem a luta armada no arquipélago. Tal não aconteceu, mas esse grupo cabo-verdiano irá ser determinante em território guineense.

(continua)

Che Guevara no Congo
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23840: Notas de leitura (1527): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte VI: 25 de Abril ? 25 de Novembro ? E descolonização ? Acho que consigo compreender tudo no caso português. Isto parece uma gabarolice, mas não é. A mim, não há nenhum acontecimento que me cause perplexidade" (VPV)

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23039: Usados & Achados: pensamentos para aumentar a nossa resiliência em mais um "annus horribilis" (12): Murcus (aquele que cortava o dedo polegar para se isentar do serviço militar) poderá estar na origem da palavra morcão


Capa do livro de Teófilo Braga (Ponta Delgada, 1843- Lisboa, 1924), "O Povo Português nos seus Costumes, Crença e Tradiçºoes", Vol I (Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1994, Colecção "Portugal de Perto", 10) ( a edição original é de 1885) (Obra esgotada)


1. Já tínhamos (e ainda temos) a pandemia provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2. Vai fazer dois anos, no princípio de março, que apareceram os primeiros casos em Portugal... Provocou até há data 3,25 milhões de casos (infecções) e mais de 21 mil mortos, apesar de tudo dez vezes menos que a pandemia da "pneumónica" que matou 2% da população portuguesa em 1918/19. (Éramos então 6 milhões.)

Quase 8,9 milhões de portugueses receberam até agora a vacinção primária completa... No mundo morreram já cerca de 6 mlhões de pessoas e o número de casos aproxima-se dos 435 milhões... A Covid-19, doença respiratória cujos primeiros casos apareceram no final de 2019 na cidade chinesa de Wuhan, ainda estará longe de se tornar endémica (localizada)....

Já tínhamos a pandemia, faltava-nos agora a maldita guerra na velha Europa... e o pesadelo do terror nuclear. Portanto, o ano de 2022 vai continuar a ser um "annus horribilis"... E daí mantermos em aberto esta série dos "Usados & Achados" (*)...

2. Há dias, ao relermos o Teófilo Braga (Ponta Delgada, 1843-Lisboa, 1924), "O Povo Português nos seus Costumes, Crença e Tradições", Vol I (Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1994, Colecção "Portugal de Perto", 10) (a edição original é de 1885), demos com um apontamento interessante sobre guerra e guerrilha, no capítulo II (Rudimentos da actividade espontânea), que inclui ainda temas como a caça, a pesca, bm como as hostiliades nacionais, locais e individuais...

Aqui vai, expurgada das referências bibliográficas, sempre pesadas, uma primeira parte do texto, sobre a "guerra defensiva" (pp. 84/85). Não fica mal em segunda feira de Carnaval, sempre de má memória para mim e os meus camaradas da CCAÇ  12.

(...) A guerra defensiva. – Um capitão do nosso exército, falando do recrutamento num jornal, confessou que a ninguém repugnava tanto o serviço militar como aos Portugueses. De facto, para não ser soldado o aldeão ainda corta os dedos da mão com o machado, para não poder puxar o gatilho da espingarda; este costume acha-se entre os Gauleses, que davam o nome de Murcus àquele que cortava o dedo polegar para se isentar do serviço militar. (...)

No Minho temos ouvido a palavra Murcão empregada como injúria à pessoa desajeitada; de facto, o murcus não podia sustentar a besta. 

Com este carácter os povos antigos da Lusitânia recorriam à guerra como defesa, dando-lhe a forma de emboscadas; a nacionalidade portuguesa, acabado o período das guerras defensivas da sua independência, acentuou-se na História pela actividade das grandes navegações.

Nenhum povo se soube defender com mais bravura do que o português, repelindo a ocupação espanhola e a invasão francesa. Diz Estrabão: «Os Lusitanos, segundo contam, são excelentes para armar emboscadas e descobrir pistas; são ágeis, rápidos, dextros. Armam-se de punhal ou grande faca; alguns servem-se de lanças com pontas de bronze ...» Eram assim os chuços na época da invasão francesa. A guerra defensiva apresenta uma forma peculiar.

A forma das batalhas por meio de guerrilhas, que tanto tem distinguido o povo espanhol e português nas lutas pela sua independência, é um costume das primitivas tribos germânicas. César nos seus Comentários diz destas escaramuças: «Género de combate no qual os Germanos alcançaram uma grande habilidade.» (...)

Por outro lado, o costume das almenaras, ou fogos de aviso, já se encontrava também nos costumes da milícia romana; diz César, nos seus Comentários: «Do nosso lado, tendo-se dado o alarme por grandes fogueiras, que era o sinal prescrito e acostumado". (...)

Por estes dois factos se conhecem os caracteres do romano-gótico nos costumes peninsulares. Mas nos usos consuetudinários, o fogo é sinal de paz, tal como se acha no provérbio jurídico Fogo e logo; também nos monumentos egípcios, nas esculturas das batalhas, o fogo é o sinal da fortaleza sitiada quando pede paz; é portanto o mais antigo, e de origem turaniana." (...) (Teófilo Braga, op cit., pp. 84/85).


3. Chamou-me a atenção a palavra Murcão. Que não vem grafada nos dicionários como tal, mas sim como Morcão, de resto muito utilizada no Norte (, a começar por Candoz...). Fomos ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, e encontrámos esta consulta, que reproduzimos para os nossos leitores, com a devida vénia:

Pergunta: 

Sei que a palavra ‘murcus’, em latim, significa «palerma» ou «estúpido» (Santo Agostinho usa o termo na Cidade de Deus, no quarto livro, capítulo 16). Já li aqui no Ciberdúvidas que a única etimologia registada do regionalismo morcão, com o significado de indivíduo estúpido ou mandrião, é "morcón", do castelhano, referente a «morcela». No entanto, parece-me uma coincidência demasiado grande para ser ignorada. Seria possível contactar algum etimologista que verificasse esta conjectura?

Manuel Anastácio  Professor do ensino básico  Guimarães, 

Resposta:

Morcão parece, de facto, assentar directamente no espanhol “morcón”, baseado num latim mǔrcōne. Isto não é impedido, na realidade, por existir em latim murcus, no sentido de «cobarde» e de «preguiçoso», cuja terminação em -cus ocorre em certos adjectivos que marcam defeitos físicos. Os dois vocábulos latinos parecem, sim, intimamente relacionados.

F. V. Peixoto da Fonseca  31 mar. 2006

in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/a-origem-da-palavra-morcao/17410 [consultado em 27-02-2022]
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 14 de fevereiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22999: Usados & Achados: pensamentos para aumentar a nossa resiliência em mais um "annus horribilis" (11): em dia de namorados, relembrando uma peça do falar alentejano que é uma obra-prima de marotice e de saudável bom humor... (Manuel Gonçalves, ex-alf mil manut, CCS/ BCAÇ 3852, Aldeia Formosa, 1971/73)