segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23871: Notas de leitura (1531): Guevara versus Amílcar Cabral: Divergências estratégicas na guerrilha (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
O guevarismo e o seu foco insurrecional veio a revelar-se uma aplicação desastrosa da guerrilha na Américas do Sul e Central, era uma conceção desinserida de um processo histórico de alianças de classe e de forças ditas contestatárias que agiam taticamente, incapazes de pegar em armas - daí os falhanços na Colômbia, na Venezuela, no Uruguai, na Bolívia. Amílcar Cabral declarou um dia que encetara o processo revolucionário na Guiné só conhecendo uns rudimentos da maoismo, contudo, como está historicamente comprovado, instituiu uma teoria e uma prática revolucionárias ajustadas às aspirações de população que não se identificava com a potência colonial, cuja presença, aliás, era muito frágil. Cabral teve suficiente astúcia para nunca se confrontar com as teorias cubanas, Guevara e Fidel Castro admiravam-no e Cuba, como é de todos sabido, apoiou a luta armada na Guiné. Cabral também não se impressionou muito com o foco insurrecional, apostou na longa duração e numa possível boa simbiose entre a população e os guerrilheiros. Revelou-se um marxista flexível, embora intransigente na ditadura da direção política; jamais se pronunciou a favor de um futuro desenvolvimentista para a Guiné assente na ajuda humanitária, aspirava a uma agricultura próspera como matriz do desenvolvimento, queria que a Guiné não sobrevivesse à custa de dádivas, sem contestar que recebera apoio da cooperação. Foi um teórico que conduziu até às últimas consequências o processo de independência e estabeleceu balizas, sobretudo na fase inicial, desde o segundo semestre de 1962 até ao processo de consolidação de 1964, para os atos de terror e de intimidação, conhecia as etnias e as suas cumplicidades e nunca ignorou que o PAIGC não podia contar com os Fulas, conhecia muito bem as razões históricas da aliança entre os Fulas e os portugueses.

Um abraço do
Mário



Guevara versus Amílcar Cabral: Divergências estratégicas na guerrilha (2)

Mário Beja Santos

É do senso comum que a luta armada desencadeada pelo PAIGC obedecia a uma estratégia de guerrilha. É um dado curioso como se aborda amiúde este fenómeno nacionalista sempre no enquadramento de descolonização, passando-se, de um modo geral, ao lado dos pontos concordantes e discordantes do pensamento de Cabral com outras estratégias de guerrilha.

Gérard Chaliand, porventura o principal historiador francófono dos movimentos revolucionários à escala mundial, e que acompanhou Cabral no interior da Guiné em 1966, escrevendo depois uma obra no ano seguinte, para além de artigos, releva os fatores históricos das guerras populares na época contemporânea: a crescente intervenção dos camponeses na luta armada (como força combatente ou infraestrutura política clandestina ou local de abastecimento); o facto de a luta passar a dispor de uma vanguarda ideológica mobilizadora orientada pela coesão, disciplina e espírito de sacrifício. Não se pode contestar a importância do pós-II Guerra Mundial, que operou ruturas de equilíbrio entre as grandes potências e que fez despertar nacionalismos, muitos deles em estado latente. Há que ter em conta o gradual desaparecimento dos impérios europeus, as elites nacionalistas iam amadurecendo as vias mais adequadas para chegar ao poder e gerar novas pátrias. Havia populações amadurecidas para a insurreição e houve diferentes modos de encarar a guerrilha. Como se observou no texto anterior, Che Guevara, após a tomada do poder em Havana, não escondia a sua inquietação quanto à necessidade de fazer a disseminação revolucionária do continente. Outro pensador revolucionário, Frantz Fanon, talvez dominado pela guerrilha de cariz sanguinário que se desenvolveu na Argélia, era apologista do ferro e fogo, a qualquer preço.

Em 1974, portanto numa fase já muito amadurecida do quadro das independências em África e na Ásia, Régis Debray passou a escrito a sua análise sobre as lutas armadas da América Latina, fixou-se em grandes atores como Fidel Castro, Che Guevara e Salvador Allende, procedeu a um balanço crítico desses fenómenos revolucionários ou subversivos que ocorreram na Venezuela, em Cuba, na Bolívia ou no Chile. Nunca escondendo a sua admiração pelo guevarismo, preocupou-se em refletir sobre as razões que conduziam a uma revolução nacional vitoriosa, nunca esquecendo a China, o Vietname e Cuba. Dissecando as classes médias da América do Sul e Central, foi-lhes encontrando mais intenção do que determinação pela luta armada, com a agravante que os partidos comunistas, no período estalinista, eram única e exclusivamente incentivados a trabalhar para que se formassem governos de unidade nacional. É nesse contexto que Debray enuncia metodicamente as razões para o triunfo cubano, não desvaloriza a vanguarda constituída por elementos da classe média, mas que souberam doutrinar os agrupamentos da guerrilha e a boa comunicação que estabeleceram com os grupos camponeses.

Medindo cuidadosamente a estratégia desencadeada em Cuba, recorda que num quadro de desigualdade inicial nas relações de forças entre o exército regular e a guerrilha, havendo que incorporar progressivamente a população na luta, é fundamental preparar os militantes para um combate longo, para o tempo que for preciso, saber definir a retaguarda, atender rigorosamente à natureza do terreno, e no caso de Cuba perceber que era uma ilha, de onde não se punha qualquer eventualidade de atravessar fronteiras. Daí a importância do estabelecimento de bases, sem o caráter de fixação, de programar ações num contexto de descontinuidade operacional, nunca descurar a questões ideológica, adotando uma teoria de organização e estabelecer as regras de uma democracia revolucionária.

Não é para aqui chamada a narrativa do processo histórico que levou este movimento revolucionário cubano até à definição do Partido Comunista. O pano de fundo é tentar perceber o que distinguiu Amílcar Cabral dos outros teóricos. E não será pura casualidade que Gérard Chaliand na sua obra monumental Estratégias da Guerrilha, Payot, 1994, distinguir a intervenção de Cabral na Conferência Intercontinental de Havana, em 1966, como o contributo mais original, senão o único contributo original daquelas décadas sobre a estratégia revolucionária dos movimentos de libertação, e sobretudo o papel da pequena burguesia. Perante uma assembleia que aos poucos ficou boquiaberta, Cabral começou por dizer que a maneira mais eficaz de criticar o imperialismo é pelas armas, desde que a motivação ideológica se insira perfeitamente num povo que aceita fazer a causa libertadora de ter que pegar em armas para expulsar a potência colonial. Numa linguagem frontal, Cabral referiu nessa intervenção que passou à história com o título da arma da teoria de que um revolucionário deve saber lutar contra as suas próprias fraquezas, e uma delas poderá ser a falta total de ideologia de um movimento de libertação nacional. E por isso propõe-se contribuir para o debate sobre os fundamentos que os objetivos da libertação nacional em relação à estrutura social. Questiona o conceito de luta de classes e não esconde os equívocos que ele comporta, esquecendo povos que por razões históricas não evoluíram para quadros de industrialização. Não se pode iludir o papel da pequena burguesia, ela é fulcral tanto na situação colonial como pós-colonial. Há segmentos da pequena burguesia que aderem ao chamamento revolucionário enquanto outros se mantêm aliados, talvez com a ilusão de que estão a defender a sua situação social, ao colonialismo. E faz comentários proféticos, observando que a situação neocolonial, que exige a liquidação da pseudoburguesia autóctone para que se realize a libertação nacional, dá também à pequena burguesia a oportunidade de um desempenho decisivo na luta pela liquidação do domínio estrangeiro. Enfatiza o papel desta pequena burguesia na situação neocolonial, ou ela possui consciência revolucionária e a capacidade de interpretar fielmente as aspirações das massas nas sucessivas fases da luta, identificando-se cada vez mais com elas, ou aceita o aburguesamento. E diz abertamente que a pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de se suicidar como classe ou então trair a revolução, tornando-se cúmplice de um qualquer processo neocolonialista, cada vez mais distante das profundas aspirações populares.

Cabral, como veremos no próximo e último texto, deliberou, a partir de 1959, que o PAIGC entrava num processo de clandestinidade, com subversão interna conducente à preparação de quadros militares, com uma direção no exterior apta a dar formação, a acolher os novos quadros militares e a consciencializá-los para a natureza da luta armada que se avizinhava, a obter apoios internacionais, e gradualmente instalar a subversão em zonas do território extremamente ásperas para a mobilidade das tropas regulares. O que veio a acontecer, como Gérard Chaliand comprovou no terreno, em 1966.

(continua)

Amílcar Cabral, Maria Helena Rodrigues e a sua filha Ana Luísa Cabral, 1964
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Nota do editor

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Último poste da série de 9 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23859: Notas de leitura (1530): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (7) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

antonio graça de abreu disse...

antonio graça de abreu disse...

Estive onze dias em Cuba, em 2018, viajei por metade da ilha. Um povo pobre, nobre mas entristecido. Uma ditadura mole. Com Fidel e Guevara quase tudo falhou. Eu sei, antes, com Fulgêncio Baptista o país também era uma desgraça. Quais Franz Fanon, quais teorias foquistas de Guevara? Custaram-lhe, estupidamente a própria vida, na Bolívia.
Estive no Perú, em 2020, com ex-combatententes do Sendero Luminoso, que também alinharam com as teorias e práticas de Fanon e Guevara. 70.000 mortos, quase nenhuma conquista.
A nossa História faz-se com factos, com a realidade, não com utopias e revolucionarismos que jamais funcionaram. Teorias de que Amilcar Cabral era porta-bandeira. Com os resultados que conhecemos na Guiné-Bissau e em toda a África. Os seus camaradas de luta mataram-no, não foi a PIDE, embora pudesse ter sido. Tudo falhou, em que país africano é que as teorias de Cabral foram aplicadas? Em nenhum.
Agora, em Novembro, acabei de passar uma semana na África do Sul, Durban e Cidade do Cabo. Que viva Nelson Mandela e o seu exemplo, esse sim, um grande senhor.
Vamos ler a História com base nos factos reais e não com os Fanons, Regis Debrays e outros, hoje completamente ultrapassados pelo correr da História.

Abraço,

António Graça de Abreu

Antº Rosinha disse...

Antonio Graça de Abreu, temos que reconhecer que Amílcar Cabral, foi de todos os "Estudantes do Império" aquele que melhor soube chamar a atenção do mundo que Portugal tinha umas colónias que tinham direito à vida.

E soube pôr ao seu serviço desde Cuba até ao Vaticano e o terceiro mundo inteiro contra Portugal.

Nem os cabo verdeanos acreditavam nele, embora todos ficassem embasbacados com tanta capacidade e com tanta fama mundial.

Pelo menos os cabo verdeanos que viviam em Angola, que conheci muitos, desde Chefes de Posto, funcionários públicos até chefes hierárquicos tive, talvez em Angola onde residia a maior diáspora caboverdeana, tinham a maior admiração por ele, mas não compreendiam nem acreditavam nas suas ideias, antes pelo contrário, a maioria procediam ostensivamente como se "Angola fosse Nossa".

AGA, temos que inclusive de dar um certo benefício da dúvida a Amílcar, que se nós "Tugas" e ele não tivéssemos sido tão teimosos, aquela pequena colónia da Guiné, não tivesse o mesmo destino que o Estado Português da India e como Timor quase também ia embarcando.

Cumprimentos

Houve um outro "Estudante do Império", este angolano que também tinha a escola toda, e levou a dele avante, embora como segunda figura, foi Lúcio Lara, mas este morreu de velho.

Fazia de conselheiro da primeira figura, que morreu de novo como Amílcar, foi Agostinho Neto.