quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Guiné 63/74 – P23878: (Ex)citações (419): Natal em clima de guerra na Guiné (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 


  Natal em clima de guerra na Guiné

Camaradas,

Evoquemos, em primeiro lugar, a história, sim a história guerreira, onde se cruzam os mais diversificados feitos lusitanos, embora o façamos sinteticamente e, em simultâneo, com conotações quiçá bem diferentes. Neste contexto, socorremo-nos de emblemáticas e esporádicas conjunturas que nos transportaram para vitórias lusitanas porventura originais.

A bibliografia histórica que nos é conhecida, diz-nos, em particular, que Viriato, cuja data de nascimento e local não fora determinado, terá sido, segundo o historiador grego de nome Diodoro da Sicília, chefe de uma tribo lusitana que habitava ao lado do oceano entre os anos de 147 e 139 a.C., vencendo diversos exércitos romanos, sendo o seu território de ação, como ficou narrado, a zona da atual cidade de Viseu.

Depois, lá surgiram outros factos guerreiros que terão levado o nome de Portugal aos píncaros de inabaláveis sucessos, designadamente os descobrimentos, ou, antes, a história da conquista de Portugal, aos mouros, por D. Afonso Henriques. Refira-se, ainda, com incidência na equidade suprema, que no tempo dos descobrimentos ouve um ancião que duvidou desse tão faustoso sucesso, ficando ele designado como o “Velho do Restelo”, tal como assegura Luís de Camões entre as estrofes 94 e 104 do seu canto IV da obra Os Lusíadas: “ Mas um velho, de aspecto venerando, Que ficava nas praias, entre a gente, Postos em nós os olhos, meneando, Três vezes a cabeça, descontente, A voz pesada um pouco alevantando, Que nós no mar ouvimos claramente, C'um saber só de experiências feito, Tais palavras tirou do experto peito”.

É óbvio que perante todas as ondas de tamanhos eventos deste “massacrado” povo, surja o nosso hino nacional que diz, a determinada altura o seguinte: “Entre as brumas da memória, Ó Pátria, sente-se a voz, Dos teus egrégios avós, Que há-de guiar-te à vitória”.

Camaradas, se assumirmos que no conflito guineense a vitória passou pela circunstância de regressarmos sãos e salvos a casa, outros, porém, por lá perderam a vida ou retornaram ao seu chão estropiados, sendo fundamental que honremos, pois, a razão de por cá continuarmos a “fazer peso à terra”.

Mas, é nesta Quadra Natalícia que me reencontro com a saudade e recordo aquele Natal de 1973, em Nova Lamego.

Natal de 1973: rescaldo de uma noite quente e de luar

A consoada

A noite da consoada de 1973, quente e de luar, deixou-me imensas recordações. Lá longe, num outro ambiente completamente antagónico, a família juntava-se à volta de uma lareira e cumpria a tradição. Era a noite do Menino. Em Nova Lamego a festa era outra. A malta não se deliciava com as filhoses da avó, não comia o ensopado do galo à meia-noite, não sujava os lábios com os finos e doces chocolates, e nem tão-pouco contemplava as prendas deixados no sapatinho pelo Menino Jesus a um canto da chaminé, enfim, uma série de tradições que se protelavam nessas épocas no tempo.

Na região de Gabu o Natal desse ano, já longínquo, foi inteiramente adverso àquele que marcou a minha juventude. Recordo que os momentos de festa nos palcos de guerra deixavam antever, e sempre, preocupações acrescidas.


O repasto recomendava-se

Fazendo jus ao calor que se fazia sentir por aquelas bandas de África, resolvi alegrar a malta com momentos de atração teatral, recordando, com ênfase, o momento vivido. Ah, naquele instante já me sentia atraído pelas gotas de whisky que baldavam o meu corpo e me atacavam as pernas.

O Natal sempre se apresentou, para mim, como um momento nostálgico que curto com um místico de eterna saudade e de sentimentos múltiplos que muito me ajudaram a entender a filosofia da vida. Recordo os velhos tempos da minha aldeia. As noites infinitas, e chuvosas, de natais passadas a apanhar o calor do lume de lenha e feito no chão.

Diz o poeta que “Natal é sempre quando o homem quiser”. É verdade. Partilho por inteiro esta tamanha convicção. Na Guiné, aliás, como em qualquer outra parte do Mundo Cristão, vive-se o Natal de acordo com o ambiente em que fomos criados. A tradição propaga-se de geração para geração.






Eu, a dar as Boas Festas aos camaradas da messe que preparavam as nossas refeições

A noite de 24 para 25 de dezembro em Nova Lamego esteve ao rubro. Alguém (eu, particularmente) acicatou a malta e toca a lembrar a rapaziada que o tempo, aclamado de divino, proporcionava momentos de laser. De relaxe puro. Procurei a indumentária que julguei apropriada, escrevi dizeres equacionados com a época vivida e toca a alegrar os camaradas de armas. Escusado será dizer que a noite foi regada com uma mistura de álcool que me levou para a cama completamente toldado. Mas a noite da Consoada foi passada com euforia. Uma achega: uma Ballantines velha – 12 anos - custava naquela época qualquer coisa como 40/50 escudos, se a memória não me falha. O seu beber era divinal. Aliás, a destilação do precioso líquido era feita em pleno coração da Escócia.


Messe de sargentos em dia de Natal e com almoço reforçado. Em pé o então 2º sargento Martins, o homem que geria a messe

No dia 25, de Natal, o 2º Sargento da nossa messe, de nome Martins, um alentejano de Elvas, brindou-nos com um almoço reforçado, a malta agradeceu e divertiu-se à brava. Momentos imperdíveis que jamais esqueceremos e passados em pleno palco de guerra.

Um abraço, camaradas

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

30 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23749: (Ex)citações (418): O termo "Brassa" como os Balantas se auto-denominam, na verdade, trata-se da denominação histórica de uma grande área geográfica que correspondia à província mandinga de Braço, B'raço ou Brassu (Cherno Baldé)

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