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quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25839: Verão 2024: Olá, nós por cá todos bem (3): O bom padre Escudeiro (1917-1994) e a lição que aprendeu um dia, em Alcanena e na Lourinhã: "Nunca se sabe o que se passa no coração dos poetas nem muito menos na cabeça dos censores"...


Lourinhã > Igreja de Samta Maria do Castelo  (Séc. XIV). Gravura de autor desconhecido.n Fonte; Jornal "Alvorada", quinzenário regionalista, Lourinhã, 13 de setembro de 1964.



Poema à Igreja do Castelo

por Luís Graça

Em tuas pedras
Habitam os deuses assimetricamente
Ressuscitam os cavaleiros andantes
Que em ti prolongaram o Eterno.

Tuas naves albergam vagos sibilos
Símbolos escondidos
Pássaros noturnos
E recortam a harmoniosa dimensão do espaço
Em que as palavras se quebram
De encontro ao silêncio das colunas.

Adornaste os teus capitéis
Com as algas do mar
Extraíste das conchas as pérolas
Para o rendilhado das tuas rosáceas
E fabricaste
Com as linhas paralelas dos limos
A tua própria austeridade.

E do alto da tua torre
Como do mastro de um navio
Contemplas a imagem perturbante dos moinhos
E persegues as gaivotas
Até onde o mar tem fronteiras de neblina.

Luís Graça (1964)


Publicado originalmente no jornal Jornal "Alvorada", quinzenário regionalista, Lourinhã, 13 de setembro de 1964.



Lourinhã > Igreja de Santa Maria do Castelo (Séc. XIV) > Vista interior. Fotógrafo: Mário Novais, 1899-1967. Orientador científico: Mário Tavares Chicó, 1905-1966. Data aproximada da produção da fotografia original: 1954.[CFT015.236.ic].



1. Um poema meu, publicado aos 17 anos... (naquela idade em que todos julgamos ser poetas de génio). Dedicado à igreja que é o ex-libris da minha terra. E onde fui batisado em 1947. Pelo padre Tobias. 

Publicado no jornal "Alvorada". Há 60 anos. Foi aqui, no jornal "Alvorada", que comecei a publicar os meus primeiros poemas. A escrever as ,minahs primeiras peças jornalísticas (notícias, reportagens...). 

Foi aqui que tive a minha primeira atividade remunerada como jornalista, embora sem carteira profissional. Foi, aliás, esta a profissão que dei para a tropa, quando aos 20 anos fui à inspeção militar, em 1967. Também dava explicações a alunos do ensino secundário (português, francês, geografia, história...).

Comecei por estar ligado, à criação de uma secção, ou de uma página, a que chamámos "Alvorada Juvenil", com outros jovens da terra, estudantes (e outros,  já a  trabalhar), com destaque para os meus amigos e colegas de escola primária, os saudosos  Álvaro Andrade de Carvalho, mais tarde psiquiatra (Lourinhã, 1948 - Lisboa, 2017) e o Rui Tovar de Carvalho (Lourinhã, 1948-Lisboa, 2014), que haveria, depois, de fazer carreira no jornalismo desportivo. (O Álvaro faria hoje an0s, 76, se fosse vivo.)

Criámos a seguir um secção dedicada ao "correio dos soldados do ultramar", e mais uma outra onde demos voz aos nossos emigrantes (maioritariamennte em França e na Alermanha, ams também no "Novo Mundo", Brasil, EUA, Canadá).

No "Alvorada Juvenil", abrimos um inquérito aos jovens lourinhanenses e alimentámos o "cantinho dos poetas"... 

Havia da nossa parte alguma irreverência, inquietação e inconformismo, próprias da idade e das circunstâncias da época. Acabei por exercer as funções de redator-coordenador deste jornal, quinzenário regionalista, que ainda hoje se publica. E que era propriedade do Patriarcado de Lisboa. Com0o muit0s outros...

Foi fundado ao em 1960, pelo padre António Pereira Escudeiro (Tomar, 1917-Lisboa, 1994), um homem a quem a Lourinhã muito deve e que fez uma aposta forte na formação das elites locais, ou seja, na educação, para além do apostolado e do mister sacerdotal. Equipou o concelho com diversas igrejas novas, construídas de raiz: Seixal, Atalaia, Ribamar, Toxofal...

Foi o fundador e o primeiro diretor do Externato Dom Lourenço, que a partir de 1958 permitiu aos jovens do concelho da Lourinhã prosseguir os seus estudos depois do ensino obrigatório (que era apenas de 4 anos no meu tempo).

Até então e desde 1953, havia um colégio particular,  Dom Luís de Ataíde (fundado em 1953 pelo dr. Piçarra, que era do concelho vizinho do Bombarral). Funcionava num vivenda.  Umas escassas dezenas de rapazes e raparigas da Lourinhã puderam então estudar até ao 5º ano.  O 7º ano só nas capitais de distrito (Leiria, a norte, Lisboa, a sul).

O padre António Escudeiro fora igualmente fundador do jornal "Redes e Moinhos" (1954-1960) (donde fui encontrar, por exemplo, vário sonetos da Luiza Neto Jorge, 1939-1989, que em jovem vinha passar o verão à Praia da Areia Branca.)

Antes de vir para a Lourinhã como pároco, em 1953,  o padre Escudeiro estivera em Alcanena, terra ribatejana da indústria dos curtumes, onde fundara o jornal quinzenário "O Alviela". Será  entretanto suspenso pela censura por ousar publicar um artigo sob o título "A fome em Alcanena" (onde se criticava a banca pelos juros usurários que, no pós-guerra,  levavam à falência das empresas locais, ao desemprego e à fome)...

Estava-se em plena campanha eleitoral do general Norton de Matos. "O Alviela" retomaria a publicação depois de, mediante requerimento, ser expressamente autorizado a versar também "assuntos sociais" (sic).

Mas a verdade é que o padre Escudeiro ficou com ficha na PIDE.

À frente do "Alvorada", como redator-coordenador, durante mais de très anos (de 1964 a 1966), "fiz-me esquecido" e deixei de mandar o jornal à censura... A entrada de jovens fora uma pedrada do charco da pasmaceira e do conformismo em que se vivia nesta terra do oeste estremenho. A última do concelho do distrito de Lisboa. Tinha então 3 médficos, e um pequeno hospital da misericórida. Sem enfermagem, sem bloco operatório, sem banco de sangue. Mas onde se fazia já alguma cirurgia ambulatória... pro médicos que vinham de Lisboa ou Coimbra.

Estava-se em plena guerra do ultramar / guerra colonial mas já na fase de fim de ciclo da história..."Cadáver adiado", o regime do Estado Novo ainda estrebuchava e metia medo a muitos. Não admirava que o diretor do jornal tenha recebido um intimidatório ofício da direcção geral de censura a perguntar por que é que se permitia o luxo de ultrapassar a lei...

Metade do ofício, que era apenas de duas linhas, correspondia a uma assinatura em letra garrafal, símbolo máximo da arrogância  de quem se sentia dono e senhor deste país... A assinatura, ilegível, seguia-se à fórmula, obrigatória, no tempo do Estado Novo (1926-1974), "A bem da Nação, com que terminavam todos os ofícios (e todas as demais comunicações escritas, internas, incluindo discursos, requerimentos, petições, etc.)

O pobre do "senhor vigário" (como a gente o tratava), lá teve que arranjar uma desculpa esfarrapada aos senhores coronéis da censura e, a mim, puxou-me as orelhas... Doravante, tínhamos que mandar os artigos em duplicado para a tipografia, sita em Torres Novas, que por sua vez mandava uma cópia para a censura... E no entanto nunca nenhum de nós escreveu o que que fosse que pudesse pôr em causa a sagrada tríade "Deus, Pátria e Família"!...

Eu acho que os censores embirraram sobretudo com os nossos jovens poetas. Não entendiam nada da poesia moderna e receavam à brava que os jovens lourinhanenses e outros, que colaboravam connosco, escrevessem também nas "entrelinhas", mandassem em código, entre si, perigosas, subversivas e dissolventes mensagens...

Nunca se sabe o que se passa no coração dos poetas nem muito menos na cabeça dos censores...

__________________

Nota do editor:

sábado, 20 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25763: (De) Caras (303): O ex-alf mil art, José Álvaro Carvalho, o "Carvalhinho", novo membro da Tabanca Grande, em Catió, em 1964, com um grupo de oficiais na receção à delegação do Movimento Nacional Feminino (João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617/BAÇ 619, 1964/66, cmdt ref TAP)

 




Guiné > Região de Tombali > Catió > 1964 > BCAÇ 619 (1964/66) > Um grupo de oficiais fotografados com a delegação do MFN (Movimento Naconal Feminino), de visita à região de Tombali (Bedanda Cufar, Catió)

Foto (e legenda): © João Sacôto (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do João Sacôto, ex-alf mil, CCÇ 617 / BCÇ 619 (Catió, 1964/66; cmdt da TAP reformado), com data de 14/7/2024, e posteriormente, 19/7/2024:



Caro Luís, boa tarde. Eu e o artilheiro José Álvaro Carvalho (ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65), o 'Carvalhinho', vivemos de 64 a 65 em Catió. Ele era um ótimo fadista e fazia lembrar o velho fadista 'Marceneiro'. Falei agora com outro alferes da minha CCAÇ 617 em Catió, o Gonçalves, que também se lembra e com saudade das horas passadas a ouvir o inesquecível 'Carvalhinho'. 

Um forte braço para todos, em particular para o C.

PS1 - Envio duas fotografias tiradas em Catió em 1964 ou 1965: (i) O José Carvalho é o 5º a contar da esquerda, eu sou o 2º. (ii) O José Carvalho é o 1º, do lado esquerdo; eu sou o 4º, contar da direita... Em momento de descontração na messe de oficiais em Catió.(*)

PS2 - Outra fotografia com o José Alvaro Carvalho em Catió 1964 na receção ao Movimento Nacional Feminino; o "Carvalhinho" é o primeiro a contar da esquerda.

2. Comentáro do editor LG:

Obrigado, João. Dizes que a última foto que mandaste é de 1964,  por ocasião de uma  visita do MNF a Catió.  Em princípio, seria uma delegação local do MNF, senhoras de Bissau. A Cecília Supico Pinto e a Renata Cunha e Costa, seu braço direito, foi só em fevereiro de 1996 é que vieram, pela primeira vez,  à Guiné. A "Cilinha" voltaria ao CTIG em 1969, 1973 e 1974 (**)

Todavia, em Bissau, em 1964,  já devia haver uma representação do MNF,  incluindo possivelmente  as esposas de alguns militares de alta patente.

A tua foto, infelizmente, tem fraca resolução.  Se for do 1º trimestre de 1964,   é de estranhar  esta visita, em plena "batalha do Como" (Op Tridente,  jan - mar 1964). Mas tu poderás esclarecer, melhor do que ninguém.

Mais importante para já é termos esta foto de grupo contigo,  o "Carvalhinho"  e outros camaradas que não conseguimos identificar.(***)
____________

Notas do editor:


(**) Vd. poste de:




(***) Último poste da sére > 18 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25756: De(Caras) (302): João Crisóstomo e António Rodrigues, dois antigos mordomos portugueses em Nova Iorque, que vêm, em 2004, a Cabanas de Viriato, dar início à história da recuperação da Casa do Passal, hoje museu Aristides de Sousa Mendes

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23837: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XI: Uma equipa inteira do Grupo de Comandos "Fantasmas", destroçada em 28/11/1964, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé - Contabane



Guiné > Brá >  Grupo de Comandos "Fantasmas" > 1964 > Desta equipa do Gr Cmds “Fantasmas” só não morreu. junto do Rio Gobige, na estrada de Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964; o segundo da esquerda. Da esquerda para a direita, o 1º cabo Ferreira, o soldado Carreira, o furriel mil. Artur Pires e os soldados Artur e Godinho.

Foto (e legenda): © João S. Parreira (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


 
Guiné > Bissau > Cemitério de Bissau, talhão militar. (onde foram inumados alguns dos comandos do Grupo Fantasmas, mortos em Gobige, em 28/11/1964) , como o Manuel Couto Narciso,  soldado condutor auto comando, natural de Santa Catarina / Caldas da Rainha, ou o Ramiro de Jesus Silva, 1º cabo condutor auto comando, natural de Valongo (Colmeias) / Leiria.

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Guiné > Região de Gabu  > Madina do Boé > Imagem aérea de Madina do Boé. Na mata ao fundo fizemos o acampamento. 

Imagem: Cortesia do blogue  Luís Graça e Camaradas da Guiné com a seguinte indicação: “Presumo que a sua autoria seja de Jorge Monteiro (ex-capitão miliciano da CCAÇ 1416, Madina do Boé, 1965/67) ou de Manuel Domingues, ex-alf mil da CCS/BCAÇ 1856, Nova Lamego, 1965/66.”



Guiné > Carta geral da província > 1961 > Escala 1/500 mil > Posição relativa de Madina do Boé e estrada para Gobige e Contabane., na fronteira sul com a República da Guiné.

Infografia: Blogue Luís Grça & Camaradas da Guiné (2022)

 
1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do nosso camarada, já falecido, Amadu Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), membro da nossa Tabanca Grande desde 2010.

A fonte continua a ser o ser o seu  livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. 

A edição, da Associação de Comandos, com o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está infelizmente há muito esgotada. E não é previsível  que haja, em breve, uma segunda edição, revista e melhorada. Entretantio, muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.


Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria >
IV Encontro Nacional do nosso blogue >
20 de Junho de 2009... O VB e o Amadu.
Foto: LG (2010)
O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965,
 e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / 
set 1966) fez, duarnte largos meses, com enorme paciência, 
generosidade, rigor e saber, as funções de "copydesk" (editor literário) do livro do Amadu Djaló, ajudando a reescrever o livro, 
a partir dos seus rascunhos.

Recorde-se, aqui o último poste 
desta série (*): demos um salto no tempo, de 1964 para 1970, para  acompanhar  as suas memórias da Op Mar Verde (Conacri, 22 de novembro de 1970). Um ano e tal antes, ele tinha sido selecionado 
para integrar a 1ª Companhia de Comandos Africanos (em formação), comandada pelo cap graduado 'comando' João Bacar Jaló, seu amigo de Catió, e com a supervisão do major Leal de Almeida.  
 
Hoje voltanos ao Gr Comandos "Fantasmas", da Companhia de Comandos do CTIG. O grupo, comandado pelo alf mil comando Maurício Saraiva, parte para Madina do Boé em novembro de 1964. Irá perder 9 dos seus homens..




Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.




 
Amargas recordações de Madina do Boé:  a tragédia de 28/11/1964, junto ao pontão do rio Gobige 
(pp. 94/105)

por Amadu Djaló (*)



Estávamos em Novembro de 1964. O alferes Saraiva soube,  no QG, que o PAIGC já tinha chegado à zona de Madina do Boé, no sudeste. Que tinham vindo com muitos carros carregados de material até à linha de fronteira, até uma tabanca chamada Boloi Ela, que fica no território da República da Guiné-Conakry, a pouca distância da fronteira com a Guiné Portuguesa.

O alferes ofereceu o grupo para ir para lá, enquanto não houvesse reforços para destacar para aquela zona [1].

Assim, fui a minha casa preparar a roupa interior para levar. Eu não queria despedir-me da minha mãe durante o dia, porque era dia 13 de lunar 
[2]e nós evitamos viagens nos dias 3, 13 e 23 de lunar e também na última 4ª feira de lunar. A partir do dia 21 de lunar temos que evitar as 4ªs feiras, esse espaço de tempo até à lua nova. Nos restantes dias só não devemos sair para viagens nos dias 3, 13 e 23, já que a maioria das separações, nestes dias, seriam para nunca mais, quanto mais ir para a guerra.

Quando o cabo Braima  [Seidi]. me falou da saída, não me senti muito bem. Mas se fosse de noite não fazia mal, podia sair.

Quando cheguei a Brá, encontrei os colegas europeus à nossa espera. Fui a correr pegar na arma e no equipamento e seguimos para o aeroporto, onde estavam cinco avionetas à nossa espera.

Chegámos a Madina entre as 16 e as 17 horas. Estavam todos os homens a fazer a pista para as avionetas poderem aterrar e, como o local e a clareira eram de lapas de pedra e cascalho,  não custou muito fazerem a pista num dia só. Tambor a tocar, os rapazes e homens de meia-idade trabalharam com vontade e, às 16 horas, quando chegámos, não tivemos nenhuma dificuldade em aterrar as cinco avionetas. Depois, também acompanhados com os toques dos tambores, deslocámo-nos para a entrada do aquartelamento.

Depois do alferes Saraiva explicar ao alferes [3], comandante do pelotão de Madina do Boé, sobre a nossa missão, tratámos de arranjar lugar para nós. Não ficámos dentro do “quartel”, fizemos um acampamento numa mata perto, com seis barracas, uma para cada equipa e outra para armazenar os nossos mantimentos.

A ideia era cozinhar dia sim, dia não. Um dia ração quente, outro dia ração fria. E tínhamos programado sair para o mato, também dia sim, dia não.

A população ajudou-nos a fazer as barracas, à entrada de Madina, para quem vem de Dandum. Quando era dia de descanso, dormíamos nas barracas fora do quartel e das tabancas.

Durante a semana, nas saídas que fizemos,  não vimos nem ouvimos nada. O alferes já não tinha confiança nas informações da população local. Num dia à noite, disse-me:

–  Amadu, quero ir contigo e com um guia para a tabanca de Hore Moure, na República da Guiné-Conakry.

 O que é que disse? Está bem, vamos quando quiser!

 Amanhã, Amadu. Não vamos fardados, tomamos emprestadas duas camisas grandes, vestimos como homens grandes Fulas e não vamos com as nossas armas, só levamos granadas ofensivas, duas ou três cada um.

O alferes perguntou-me em quem eu tinha confiança ali. Era a primeira vez que vinha a Madina, mas, quanto a mim, era melhor levar o chefe da tabanca. Tinha mais responsabilidades que os outros.

No outro dia, por volta das 17 horas, seguimos em duas viaturas na direcção de uma tabanca abandonada, Guileje [4] do Boé, e apeámo-nos antes de chegarmos ao local. Depois seguimos a pé até á tabanca e ficámos emboscados até às 23h00 no caminho que vem de Hore Moure.

Nessa altura o alferes comunicou a missão ao grupo. Que os três, ele, eu e Mode Hure[5], íamos fazer uma visita a uma tabanca da República da Guiné, enquanto o grupo se deveria manter emboscado naquela zona, mais ou menos a 500 metros do monte da fronteira.

Que só levávamos granadas e que se tivéssemos contacto com o PAIGC, lançávamo-las e retirávamo-nos na direcção da fronteira e o chefe da tabanca devia fugir sem se preocupar connosco. Para o grupo que ficava emboscado, o alferes disse que se aparecesse algum vulto, que atirassem, porque não seríamos nós. E, se ouvissem rebentamentos das granadas, não contassem com a nossa presença. A comandar o grupo ficou o furriel Artur.

A tabanca para onde íamos,  ficava acima do monte, no nosso idioma Hore Moure, mais ou menos a 2 kms da fronteira, dentro do território da Guiné-Conakry.

Depois de tudo esclarecido iniciámos a marcha em direcção ao sul, com destino ao nosso objectivo. Cerca de 500 metros andados chegámos ao monte de pedra [marco] de fronteira    e, agora daqui para a frente estávamos na República da Guiné-Conakry, disse-nos o chefe da tabanca.

Até aí, Mode Hure seguia à frente, eu ia a seguir e o alferes atrás. A partir dessa altura, o alferes passou à minha frente e disse-nos que se nos apanhassem deveríamos dizer que éramos árabes. Eu disse para mim, sim senhor, meu alferes, sou um árabe que não sabe falar árabe.

A tabanca estava ali à nossa frente. Deixámos o chefe ali e eu e o alferes entrámos. Vimos uma arrecadação de mantimentos, afastada das casas de habitação por causa dos incêndios. Lá dentro, com a lanterna de mão, subimos as escadas, feitas de paus e cana de bambu. Empurrei a porta, não tinha nada, estava vazia. Saímos da arrecadação, com muito cuidado, aproximámo-nos de uma casa, entrei e também não estava lá ninguém. 

Revistámos mais de dez casas, não vimos pessoas [6], só vestígios, maços de cigarro “Nô Pintcha”,  vazios, caixas de fósforos também vazias e muitos restos de cigarros. Não havia nada a fazer, só ir embora dali, sussurrou o alferes. E eu respondi, vou levar esta maca que estava na varanda. Dobrei-a e trouxe-a para eles saberem que tínhamos lá estado.

[ Imagemà esquerda: Marca de cigarros, de fabrico soviético, que eram distribuídos aos guerrilheiros do PAIGC, durante a guerra colonial / luta de libertação. "Nô pintcha", em crioulo, quer dizer Avante!... ]

Foto (e legenda): © Magalhães Ribeiro  (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Regressámos no mesmo caminho em que viemos até que já perto do local da emboscada, o alferes chamou pelo furriel Artur e mandou levantar a emboscada.

Seguimos para uma pequena tabanca, perto do local onde o grupo tinha estado emboscado. O alferes deu três tiros para o ar. Quando lá chegámos,  tinham fugido todos. O lume ainda estava a arder nas casas e, como estava frio, aquecemo-nos. Eram para aí 3 horas, mais coisa menos coisa. O chefe dessa tabanca apareceu, começámos a falar em futa-fula. Dissemos-lhe quem éramos, chamou a população, conversámos com eles e prometemos-lhes segurança.

Ao fim da primeira semana da nossa presença em Madina do Boé, tínhamos recebido uma informação de que um rapaz tinha sido preso pelo PAIGC, no local onde o nosso grupo tinha estado emboscado, Guilege do Boé. O rapaz vinha de Jarga Dongo e ia para Gobige, quando foi preso no cruzamento de estradas que vem de Madina de Boé, paralela à fronteira, até Contabane e Aldeia Formosa e passa por Gobige.

Vivia em Gobige com a irmã e o cunhado. Quando o pessoal do PAIGC lhe perguntou quem era, de onde vinha e para onde se dirigia, ele disse que vivia com a irmã e o cunhado, Jarga Bora, que, viemos a saber depois, era um colaborador clandestino do PAIGC.

Quando soubemos desta história enviámos um recado ao rapaz para ele vir falar connosco, e que viesse acompanhado pelo cunhado Jarga Bora. Passados vários dias, nem vieram nem tinham dito nada.

Contactámos o chefe da tabanca e dissemos-lhe que precisávamos de alguém que fosse a Gobige, dizer ao Jarga Bora que ainda estávamos à espera da resposta. E, que se não viesse, íamos nós lá. O chefe arranjou-nos um rapaz e quando chegámos à estrada vimos três homens de bicicleta. Como já nos conheciam, pararam e cumprimentámo-nos. Disseram que iam para Gobige. Então, já não precisávamos do rapaz, agradecemos-lhe e mandámo-lo regressar à tabanca. E aos homens que encontrámos na estrada pedimos-lhes que dessem o nosso recado ao Jarga Bora. Passados poucos minutos, chegaram as nossas viaturas e regressámos a Madina.

O dia e a noite estavam destinados ao nosso descanso, mas o alferes estava preocupado com a população de Dandum, que estava sem segurança na linha da fronteira, e disse-nos que seguíamos para lá ainda nesse dia e que regressávamos no dia seguinte.

Fomos então para Dandum e regressámos a Madina na manhã do dia seguinte [7]. Era dia de ração quente. Logo pela manhã, eu e o cabo Braima fomos a Dandum comprar quatro cabritos para o grupo, regressámos à nossa cozinha e quando começámos a tratar deles chegou o Mode Hure, o chefe da tabanca de Madina do Boé, acompanhado de Jarga Bora e do tal rapaz que tinha sido aprisionado pelo PAIGC. 

Quando o Alferes Saraiva chegou, vindo da loja do senhor Campos [8], informei-o do que o Jarga Bora me tinha acabado de contar. Que tinha encontrado uma caixa pequena que estava dentro de um buraco cavado na estrada onde passava roda de carro. O alferes disse logo, é mina, vamos lá levantar.

 Tu, Amadú, não vais, ficas a cozinhar.

Fiquei com uma equipa, os restantes foram todos. Passada uma hora, mais ou menos, vieram com a mina, todos a cantar. O alferes levantou 500 escudos, pagou a Jarga Bora e aproveitou para lhe pedir toda a colaboração.

No fim do almoço fui com o alferes no Unimog pequeno, para Dandum a casa do meu primo, Iaia Djaló, que vivia na tabanca e era o homem mais rico de toda a zona. Estivemos com ele até às 17h00, voltámos para Madina e quando estávamos a chegar, o Mode Hure, acompanhado de Jarga Bora, de Gobige, fez sinal para pararmos. Disse-nos o que o Jarga Bora nos queria pedir que o levassem a Gobige, porque tinha medo de regressar a pé. E o alferes, como ele nos tinha avisado da mina, disse a Mode Hure que ia pedir um carro maior no quartel, para levar escolta. Ficou assente que, em vez desta noite, partiríamos no dia seguinte de manhã, porque já não descansávamos há três noites.

Então, nessa manhã [9], o alferes disse ao furriel Artur que íamos dar um passeio a Gobige e que perguntasse ao pessoal quem queria ir, porque não valia a pena ir o grupo todo.nPreparámos duas viaturas. O alferes mandou o Jarga Bora e a mulher subirem para um Unimog 404 e depois distribuiu os nossos quinze homens pelas duas viaturas, quatro na viatura da frente, um Unimog 411, e onze na outra.

Saímos alegremente, vi o furriel Artur a cantar e fomos até Gobige. Quando chegámos, o homem ofereceu-nos um cesto grande cheio de laranjas. Depois de muita conversa, a certa altura, o alferes disse:

 Bem, vamos embora.

Mas o Jarga estava muito falador, não se calava. Só por volta das 13 horas arrancámos de regresso. A primeira viatura, a mais pequena, levava cinco homens e a segunda doze, contando com os condutores.

Duzentos ou trezentos metros andados ouvi um rebentamento [10] atrás de nós,
o alferes gritou “mina” e, quando saltei vi a viatura ainda no ar, colegas a cair, o depósito da gasolina a rebentar, a gasolina a sair, a arder para cima deles.

Entrámos no fogo também e arrastámos os companheiros. Não podíamos fazer muito mais.

 Amadú, toma conta disso    disse o alferes.

Enquanto ele e o condutor arrancavam no outro Unimog a toda a velocidade para Madina, a cerca de 30 e tal kms, pedir auxílio, eu, o António Kássimo e o Aquino [11], três soldados, ficámos ali a fazer o que podíamos. Passados uns minutos, o Carreira [12] despertou onde tinha caído e passámos a ser quatro, dois negros e dois brancos, a tomar conta da situação.

Jarga Bora e a população da tabanca observavam a cena. Jarga aproximou-se, perguntou-me pelo alferes e eu perguntei-lhe se ele tinha vindo ali para dar informações ao PAIGC. Foi-se embora, desapareceu com a população atrás.

Continuámos a tratar dos nossos feridos. Quatro soldados com dez companheiros deitados, dois dos quais carbonizados, o furriel Artur[13] e o cabo Ramiro [14].

O alferes tinha-me dito que se demorasse muito, devíamos recolher as armas e esconder-nos com elas no mato. Para quem vem de Gobige e vai para Madina do Boé, o capim e a montanha ficam à esquerda, do outro lado era uma mata cerrada.

Nem meia hora depois do rebentamento, o Kássimo ouviu alguém chamar pelo alferes. Entrámos no capim alto, cobria-nos, e depois de procurar encontrei o Ferreira sentado. Tinha sido projectado a mais de 10 metros. Eu não vi nada de ferimentos e perguntei-lhe o que tinha.

–  Amadu, os meus pés!

Olhei, eram esqueletos. Do joelho ao tornozelo ficou sem carne, só osso branco e do tornozelo para os pés, nada, tinha desaparecido tudo. O Aquino e o Carreira ajudaram-me a levá-lo para a beira dos outros camaradas moribundos e dos dois mortos carbonizados que, na altura, tínhamos. À nossa guarda estavam, nessa altura, dois mortos e sete feridos, todos muito graves. Continuámos a acudi-los no local. Um local de grande risco, uma autêntica terra de ninguém, horas à espera da escolta de socorro que vinha de trinta e tal kms. Estávamos sem rádio e em Madina só ficariam a saber do acontecido quando lá chegasse o alferes.

Estivemos sempre à espera que o PAIGC nos atacasse. Para mim, isso não aconteceu porque o Jarga Bora tinha muitas famílias a proteger e, se nos atacassem, com certeza as NT destruiriam a tabanca e os mantimentos para todas as famílias. Penso que foi ele, o Jarga, que pediu para não nos atacarem.

O terreno também não nos era favorável. Nós estávamos na berma da estrada, perto do local da mina. À nossa direita era uma mata cerrada, nem se via o sol, um atirador podia aproximar-se à queima-roupa sem dificuldade e eliminar-nos a todos. À nossa esquerda estava com capim muito alto, maior que a altura de um homem.

O Ferreira perguntou quando é que vinha o helicóptero. Pedi-lhe para ter calma que o alferes tinha ido tratar disso, que podia chegar a qualquer momento. Todos os feridos tinham queimaduras grandes, menos o Ferreira e nós não podíamos tirá-los do local. Até à chegada da coluna de socorro, já estava escuro, passava das 19h30, tinham morrido mais dois companheiros, o cabo Ferreira [15] e o soldado Godinho [16].

Quando o médico [17] mandou dar água a todos, o condutor morreu, mal acabou de beber. O cabo Braima Seidi, quando iniciámos a viagem de regresso, também morreu. Entrámos em Madina do Boé com quatro feridos graves [18] e oito [19] mortos, sete europeus e um guineense.

O alferes disse-me que falasse com o régulo e lhe pedisse cinco homens para me ajudarem a tomar conta do acampamento e do nosso material. Que de manhã tirávamos as nossas coisas. Passei lá a noite com esses homens. Quando, na manhã seguinte, regressei a Madina, os mortos e os feridos já tinham sido evacuados. Alguns foram para o Gabú e dali no Dakota para Bissau.

Ficámos três praças e o alferes. Uma Dornier 
 [DO-27]  foi-nos buscar e trouxe-nos para Bissau.

Nunca esquecerei o passeio a Gobige, como lhe chamou o alferes. Para nós, muçulmanos, evitamos ir de viagem nos dias 3, 13, 23 e na última quarta-feira de lunar, quanto mais ir para a guerra! São dias negros e aquela viagem realizou-se no dia treze de lunar.

Dois dias [20] depois realizou-se a cerimónia do funeral, na Sé de Bissau. Aos corpos dos Comandos, ainda se juntaram mais dois, de um furriel e de um milícia, que tinham morrido num ataque a Guilege.(***)

Não me posso esquecer do ambiente que pairou no enterro, a tristeza dos amigos e companheiros e o ar de satisfação que se via em alguns presentes na cerimónia.

A seguir descansámos uma semana.

(Continua)

___________

Notas do autor e do editor literário:

[1] Nota do editor: o Comandante do CTIG Brigadeiro Sá Carneiro tinha determinado o imediato destacamento “para Madina do Boé, em reforço do BCaç 506”, de um pelotão da CCaç 727, tendo aquele pelotão ficado instalado em Madina do Boé a partir de 18 de novembro de 1964, sob o comando do alferes miliciano António Angelino Teixeira Xavier.

[2] Diz-se 1º ou 2º dia de lunar, conforme se trata do 1º ou do 2º dia da lua, após o novilúnio. As noites não contam, só os dias.

[3] Nota do editor: alferes miliciano infantaria António Figueiredo Pinto que pertenceu à 3ª Companhia de Caçadores, em Nova Lamego, e aos BCaç 506 e 512 e BCav 705, todos sediados em Bafatá. (**)

[4] Guileje de Madina do Boé.

[5] Mode é senhor. Para nós, Futa-Fulas, quando um homem é respeitado, a partir de 20 anos de idade, ninguém o chama sem dizer Mode.

[6] Casas que estavam habitadas durante o dia. À noite, como o local era desprotegido, o PAIGC abandonava a tabanca. Esta informação foi-nos prestada, mais tarde, por um rapaz.

[7] Nota do editor: 27 de  novembro de 1964.

[8] Europeu casado com uma negra africana e que tinha uma loja onde comerciava tudo o que podia.

[9] Nota do editor: sábado, 28 de novembro de 1964.

[10] Junto a uma passagem de cascalho sobre o rio Gobige.

[11] Nota do editor: soldado António Aquino de Sousa

[12] Nota do editor: soldado António de Jesus Carreira

[13] Nota do editor: furriel miliciano Artur Pereira Pires

[14] Nota do editor: 1º cabo Ramiro de Jesus Silva

[15] Nota do editor: 1º cabo António Joaquim Vieira Ferreira.

[16] Nota do editor: soldado João Ramos Godinho.

[17] Nota do editor: Dr. Luiz Goes.  (****)

[18] Nota do editor: destes, o soldado comando Artur Mateus Martins, foi evacuado em 30 de novembro de 1964 do HM 241, Bissau, para Lisboa, HMP, onde veio a morrer em 8 de dezembro de 1964.

[19] Soldados José da Rocha Moreira, Manuel Coito Narciso, furriel mil. Artur Pereira Pires, 1ºs cabos Ramiro de Jesus Silva, António Joaquim Vieira Ferreira e Braima Seidi e soldados João Ramos Godinho, todos dos “Comandos” e o soldado condutor Eugénio Campos Ferreira, pertencente á CCS / BCaç599, que se voluntariou para levar a viatura.

[20] Nota do editor: o funeral realizou-se em 30 de novembro de 1964, na presença do Governador, tendo o cortejo fúnebre, com os féretros transportados individualmente em camiões Mercedes, saído da capela militar de Santa Luzia para o cemitério da cidade, onde ficaram sepultados.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG]

____________

Notas do editor:

(**) Vd. postes de:

4 de fevereiro de  2007 > Guiné 63/74 - P1493: Estórias de Madina do Boé (António Pinto) (2): Eu e o Furriel Comando João Parreira

20 de Dezembro de 2006> Guiné 63/74 - P1384: Com o Alferes Comando Saraiva e com o médico e cantor Luiz Goes em Madina do Boé (António de Figueiredo Pinto)

(***)  O grupo de Comandos Fantasmas perderam 9 homens na região de Madina do Boé, antes de serem extintos: 8 homens em 28 de novembro de 1964 (junto do Rio Gobije, na estrada Madina do Boé para Contabane, a oeste); 1 homem em 8 de dezembro de 1965:

António Joaquim Vieira Pereira, 1º cabo corneteiro comando, natural de Santa Leocádia / Baião, inumado no cemitério de Santa Leocádia, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;


Artur Pereira Pires (foto à direita), furriel miliciano comando, natural de S. Sebastião da Pedreira / Lisboa, inumado no cemitério da Ajuda em Lisboa, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;

Braima Seidi, 1º cabo comando,  natural de Buba / Fulacunda, inumado no Cemitério de Bissau – Guiné, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;


Eugénio Campos Ferreira (foto à esquerda), soldado condutor auto comando, natural de Vila Frescaínha (São Pedro) / Barcelos, e inumado no cemitério de Vila Frescaínha, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;


João Ramos Godinho (foto à direita), soldado condutor auto comando, natural de Valverde / Coruche, e inumado no cemitério de Coruche, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;

José da Rocha Moreira, soldado condutor auto comando, natural de Arcozelo / Vila Nova de Gaia, inumado no cemitério de Arcozelo, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;

Manuel Couto Narciso, soldado condutor auto comando, natural de Santa Catarina / Caldas da Rainha, inumado no cemitério de Bissau – Guiné, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;

Ramiro de Jesus Silva, 1º cabo condutor auto comando, natural de Valongo (Colmeias) / Leiria, inumado no cemitério de Bissau – Guiné, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;


Artur Mateus Martins (foto à direita), soldado cozinheiro comando, natural de Olhão, inumado no cemitério do Alto de S. João - Lisboa, faleceu, no Hospital Militar Principal (Lisboa), em 8 de dezembro de 1964, vítima de ferimentos recebidos em combate em 28 de novembro de 1964, no contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane.


(****) Vd. poste de 19 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10406: Evocando a trágica emboscada com mina, de 28 de novembro de 1964, em Madina do Boé, que vitimou 7 camaradas da equipa de comandos Os Fantasmas, alguns dos quais morreram nas mãos do alf mil médico Luiz Goes (1933-2012) e do alf mil António Pinto

Vd. também poste de 20 de dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1384: Com o Alferes Comando Saraiva e com o médico e cantor Luiz Goes em Madina do Boé (António de Figueiredo Pinto)

sábado, 12 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23777: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte VII: Em Farim, com o BCAV 490, do ten-cor Fernando Cavaleiro, até meados de 1964... Abatises e emboscadas no itinerário Farim-Jumbembem-Cuntima


 Guiné > Região do Oio > Cuntima > c. 1969/71 >  Edifício onde funcionou o comando e o posto de socorros, no tempo da CCav 489 /BCav 490 (1964/1965). 



 Guiné > Região do Oio > 
Cuntima > c- 1969/71 > A “avenida do Senegal”.



 Guiné > Região do Oio > Jumbembem > c- 1969/71 >  Aspecto da tabanca



 Guiné > Região do Oio > Cuntima > c- 1969/71 > Farim > Edifício do comando do Batalhão de Cavalaria 490

Fotos gentilmente cedidas pro Carlos Silva (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879 (Jumbembem, 1969/71). Publicadas no livro a preto e branco.


Dispositivo do BCav 490: Farim (CCAV 487), Jumbembem (CCAV 488( e Cuntima (CCAV 489)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).

 


1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu Djaló, que a morte infelizmente já nos levou em 2015, antes de completar os 75 anos. 

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. E muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.


O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk" do livro do Amadu Djaló. Temos vindo a introduzir pequenas correcções toponímicas ao texto  impresso, a ter em conta numa eventual (se bem que pouco provável) 2ª  edição. 

Recorde-se, aqui o último poste:  o sold cond auto Amadú Djaló (1940-2015) está em Farim, colocado na 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), no segundo semestre de 1963.

O excerto que hoje publcamos é referente a esse período em Farim (onde esteve cerca de um ano; em meados de 1964, pediu transferência para a CCS / QG, em Bissau).  Mantemos a ortografia original.  Chame-se  atenção para  os seguintes factos : (i) o Amadu, ainda soldado condutor autorrodas,  sofre as primeiras emboscadas e vê com humanidade o primeiro morto do PAIGC: (ii) ainda está  equipado com a velha Mauser...
  


Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense,  Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



Com a 1ª CCAÇ, em  Farim,  em 1963/64

(pp. 71-80)

por Amadu Bailo Djaló


(i) Com o BCav 490, do ten-cor Fernando Cavaleiro,  em Farim


    Ieró Codi, Régulo da tabanca de Lambam, na fronteira com o Senegal, ao verificar que o PAIGC se estava a implantar em toda aquela zona fez uma petição ao administrador solicitando a sua intervenção no sentido de abandonar a tabanca com as suas gentes e haveres. 

O administrador dirigiu-se ao comandante do BCav 490  [1], o tenente-coronel Fernando Cavaleiro, a quem colocou o pedido do Régulo Ieró Codé. O tenente-coronel determinou o cumprimento da missão ao capitão [2], comandante da CCav 487 [3], e à 1ª CCaç, a que eu pertencia.

Preparámos as viaturas. Como não tínhamos carros suficientes, solicitou-se aos comerciantes de Farim a cedência de alguns carros, pedido que foi aceite, solicitando eles, apenas, que os seus condutores fossem dispensados, já que alguns eram idosos e outros muito jovens e sem qualquer preparação militar. Foram substituídos por condutores militares.

No meu caso, recebi a indicação de ir à Ultramarina buscar uma viatura.

–  Olha, o carro está bom. Mas tem um problema. Quando o sol está muito forte, o diafragma cola e o motor vai-se abaixo. Assim, eu costumo levar água para molhar a bomba manual e, pouco tempo depois, o motor pega. Vai parando, de vez em quando e molhando a bomba, chegas ao destino –  disse-me o condutor da Ultramarina.

Verifiquei o óleo e levei o carro para o quartel, para o atestar e fui aguardando a chegada dos outros colegas. Preparada a coluna, arrancámos. Tinha-se sentado ao meu lado um jovem, de baixa estatura, que eu nunca tinha visto, nem tão pouco sabia quem era. Imaginava que fosse algum colega da caserna.

Iniciada a marcha, com o sol a pique e o calor a queimar, a certa altura parei, lembrando-me da recomendação do motorista do comerciante. Saí do carro, molhei a bomba e reparei que o meu companheiro sorria. Novamente pus o motor em funcionamento, retomei a marcha até nova paragem para proceder a novo refrescamento da bomba. Com todas estas interrupções, a viagem até estava a ser pouco aborrecida.

À quarta paragem já me encontrava um bocado irritado e gritei para mim:

–   Porra para isto! Nem parece um carro, isto é um caco!

 –  Vamos voltar a molhar a bomba –  disse-me o tal companheiro.

Novamente molhada a bomba, minutos depois o motor voltou a pegar e retomámos a marcha. O que valia é que o caco, depois de arrefecer uns minutos acabava mesmo por voltar a pegar. E o jovem ao meu lado, sempre calado. A partir daqui, sempre que o motor ia abaixo, era o meu colega de viagem que dizia para molharmos a bomba e ocasiões houve que era ele que saía primeiro. Esta odisseia autêntica só parou, quando finalmente chegámos à tabanca de Lambam.

Começámos a carregar a viatura com caixotes, malas, alimentos, animais e, no fim, mandámos as pessoas subir. Tudo pronto, preparámo-nos para o regresso a Farim.

Voltaram as paragens, só que agora eram mais frequentes. A linguagem que eu usava, já sem paciência nenhuma, era linguagem de tropa, enquanto o meu companheiro mantinha a mesma postura, nada dizia, a não ser "vamos molhar a bomba", quando o motor parava. À última paragem, já com Farim quase à vista, eu já não podia mais, estava desesperado. E já não tinha água.

 –  Porra para esta merda! E agora? 

E o companheiro, ao lado:

 –   Vamos molhar a bomba.

 –   Como, pá? Não temos água, porra!

  –   Olha, se alguém ainda tiver um cantil com água que traga.

Apareceu um furriel europeu que passou um cantil para as mãos do meu companheiro. Naquela altura, disse para os meus botões:

  –   Quem será este gajo que vem ao meu lado? Às tantas é para aí um furriel, colega do outro do cantil!

Molhámos a bomba e logo o carro começou outra vez a funcionar.

 –   Se calhar, é melhor deixar aqui o cantil.

Chegámos finalmente à vila e começámos logo a descarregar os materiais que trazíamos. Eu estava exausto, deixei-me ficar sentado um pouco.

Entretanto, Paté, irmão do Régulo Iero, que era cipaio da administração civil, aproximou-se e começou a conversar com o meu companheiro.

 –  Amadu  –   ouvi chamar. Era o Régulo Ieró.

 –   Que é?  – perguntei.

  –  O capitão não está por aí?

Procurei com a vista e não vi nenhum capitão.

  –  Não, não está aqui capitão nenhum   –  respondi.

Paté, ao ouvir a minha resposta, perguntou:

 –   O que é que ele quer?

 – Anda à procura do capitão!

Paté, espantado com a minha resposta:

 –  Então, o capitão não está ao teu lado?

 –  Mas este é que é o capitão? Mas este é que é o capitão?

  –  Sim, esse é o capitão.

Esta conversa estava a ser trocada em fula. Até tremi, de repente assustei-me. Senti vontade de desaparecer com a vergonha. Paté, vendo-me meio desorientado, gritou para o irmão:

 –   Olha, o capitão está aqui.

O capitão não se apercebia da conversa, porque a linguagem era fula.

 –   Como sabe, nosso capitão, ficou gente e haveres ainda na tabanca. Se dormirem lá, é certo que o PAIGC vai lá buscá-las ou até destrói a tabanca.

  –   Não, não fica lá ninguém, nós vamos lá buscar tudo o que falta  – respondeu o capitão.

Formámos novamente a coluna, tendo o capitão tomado novamente o meu carro, sentando-se ao meu lado.

Durante esta segunda viagem, como o sol já não estava tão forte, o carro só parou três vezes pelo caminho. A certa altura, o capitão começou a fazer-me perguntas:

 –   Qual é a tua tribo?

 –   Futa-Fula, meu capitão.

 –  Ah, vejo pelo sinal ao canto dos olhos!...  E de onde és?

 –  De Bafatá, meu capitão.

 –  Qual era a tua ocupação na vida civil?

 –  Comerciante, meu capitão.

 –  E quando assentaste praça?

 –   1962, meu capitão.

 –   Aprendeste a conduzir na tropa, foi?

 –  Sim, senhor, meu capitão.

  –  Estás a ver como a tropa é boa?

 –  Estou, sim, meu capitão.

Chegados à tabanca, carregámos o que faltava e as pessoas que tinham ficado e iniciámos a viagem de regresso que decorreu sem problemas. Chegados a Farim, o Capitão Cidrais, assim se chamava o meu companheiro de viagem, dispensou os condutores que estivessem livres, menos a mim. Logo pensei que ia haver uma conversa sobre a linguagem que tinha usado na primeira viagem. Terminado a descarga, o capitão voltou a sentar-se a meu lado e mandou seguir para a 1ª CCaç, a que eu pertencia.

Parámos frente à porta do gabinete do capitão, comandante da 1.ª Companhia de Caçadores. Apeou-se e dirigiu-se para o gabinete, enquanto eu preenchi o boletim da viatura.

Pedi licença e entreguei o boletim ao meu comandante, que logo me perguntou:

 –   O que vais fazer agora?

 – Vou aproveitar para me deitar cedo, porque amanhã tenho que ir acarretar água muito cedo, meu capitão.

Ouvi o Capitão Cidrais dizer:

 –   Olha, gostei de andar com este condutor. Quando voltar a precisar de um, vou pedir-te que mo dispenses.

O tempo foi assim decorrendo até que iria surgir a oportunidade para pedir transferência para Bissau.

Mas antes, aconteceu novo ataque do IN, que foi mais forte e durou mais tempo que o primeiro. Nesse dia estava marcada uma sessão de cinema ambulante, era um filme de música e dança, que não era muito do meu género, eu apreciava mais filmes de acção e policiais. Vi os cartazes e não comprei bilhete. Regressei ao quartel. 

Estava já a dormir bem, quando acordei com estrondos de rebentamentos e barulho de tiros. Parecia que a vila de Farim se encontrava toda debaixo de um fogo cerrado e, quem sabe, já sob o controlo dos assaltantes. Em correria muito rápida dirigi-me para os abrigos, onde me mantive enquanto durou o ataque, que demorou cerca de duas horas.

Durante o tempo em que estive em Farim, o PAIGC efectuou três ataques à povoação, sem consequências pessoais, causando apenas alguns danos em casas da tabanca.

Terminadas as saídas para Bricama, em virtude do desaparecimento da ponte pela sabotagem pelo fogo, nunca mais patrulhámos aquela zona, só lá passávamos quando nos deslocávamos em coluna para Cuntima ou Jumbembem.

A cadeia começou a receber prisioneiros para averiguações, alguns que viemos a ter provas de serem colaboradores da guerrilha. À noite, quando saíamos, às vezes víamos pessoas a entregarem maços de cigarros para os familiares detidos. Normalmente eram raparigas, filhas, irmãs ou sobrinhas dos prisioneiros, algumas das quais andavam com alguns colegas nossos. E certamente não se iriam esquecer, quando fossem libertados de que os tratámos humanamente.

Numa ocasião dessas ocorreu uma situação que me fez sofrer. Uma manhã, no quartel, quando eu estava a encher o depósito de água, aproximou-se de mim um prisioneiro cabo-verdiano [4], jovem ainda.

– Podia levar uma carta para o meu tio?

 –  Para quem?

 –  Para meu tio.

 –  Quem é o teu tio?

 –  É Pedro Sitató.

 –  E onde está a carta?

 –  Não a tenho comigo.

 – Conforme, vamos a ver.

À hora do almoço, do mesmo dia, o rapaz cabo-verdiano entrou no refeitório, passou pelas mesas todas até chegar junto à minha.

– Está aqui a carta. 

E retirou-se, sem mais nada. O que ficou foi uma impressão nos meus colegas e no sargento de dia, que estava perto de mim, que havia qualquer coisa combinada entre mim e o prisioneiro. E ouvi colegas segredarem:

 – Para quem é a carta?

Não fiquei muito satisfeito com a ideia que ficou no ar e dirigi-me à caserna e fui ler a carta, que estava dentro de um envelope aberto. Era uma carta simples, a pedir ao tio que o tirasse da prisão, porque ia ser incorporado em janeiro próximo. Mais nada. E então dirigi-me à messe de oficiais, para a entregar ao meu capitão.

 – Meu capitão, tenho aqui uma carta que um prisioneiro me pediu para entregar ao tio.

  –  Isso é com o oficial de informações   –  respondeu-me.

O oficial de informações era o tal alferes, que me tinham dito,  meses antes, ser sobrinho do actual Governador, brigadeiro Arnaldo Schulz, e que anteriormente, não tinha revelado grande simpatia por mim.

Um pouco receoso da reacção dele, fui procurá-lo ao gabinete e, pedindo-lhe licença, disse-lhe:

– Meu alferes, é um prisioneiro que quer mandar esta carta a um tio dele.

– E quem te mandou receber a carta?

– Meu alferes, recebi a carta para alguém não a levar e poder vir aqui entregá-la.

– Põe-na aí!

No dia seguinte chamaram-me e fui ter com um furriel, que estava na parada com uma secção de soldados.

 – O teu carro ainda tem água?  – perguntou.

 – Ainda tem para aí metade.

Deu ordens à secção para retirar a água toda da minha viatura e, depois de retirados todos o bidões, mandou-nos colocar sacos de serapilheira, vazios, e ir enchê-los de areia a Morocunda, onde havia muita.

Regressámos a Farim, com a minha viatura recoberta com sacos de areia e que iriam afinal servir para abrir as colunas, como "rebenta minas".

(ii) Emboscadas entre Farim e Cuntima

Saímos do quartel da 1ª CCaç em coluna formada por quatro viaturas. A minha, cheia de sacos de areia, e as outras três para serem carregadas de géneros e militares para a necessária segurança, com destino a Jumbembem e Cuntima, mesmo na fronteira com o Senegal.

Antes de partirmos apresentámo-nos na CCav 487, que era comandada pelo capitão Cidrais, e que era o responsável pela missão de trazer o pessoal da CCav 488, do BCav 490, que estava em Cuntima e deixá-los em Jumbembem que, até à data, não tinha tropa.

Em finais de maio de 1964, em dia que já não recordo [5], arrancámos pelas 7h00 da manhã, com a minha viatura à frente. Oito ou nove quilómetros percorridos, deparei-me com uma árvore abatida para o lado oposto à estrada. Alguém a terá acarretado para ali e decidi não parar, mantendo a marcha, uma vez que podia passar. Ocorreu que podia estar ali montada uma emboscada, mas continuei em frente. Cem metros adiante, outra árvore atravessava a estrada de um lado a outro. Desta vez, tive mesmo que parar. Atrás da minha viatura seguia a viatura das transmissões, comandada por um furriel europeu, que logo me gritou:

–  Que é que se passa?

 – Árvore na estrada, meu furriel!

O capitão, depois de observar o local, mandou-me arrancar com o guincho uma árvore seca que se encontrava ali, do lado direito, para abrir uma passagem. Continuámos e cerca de uma centena de metros à frente, antes de descermos uma pequena rampa, avistámos várias árvores, quinze, contámo-las, abatidas, cortadas propositadamente para impedir a passagem.

Agora é que eu não via meio de passar. O capitão decidiu enviar as últimas viaturas a Farim, para trazerem serras mecânicas.

Esta paragem durou muito tempo. Enquanto ficámos na mata a aguardar que as viaturas chegassem com o material, fomos sobrevoados por uma Dornier, que perguntou ao capitão se havia tropa ao fim da rampa. Que não, nós estávamos ainda na parte de cima, não tínhamos ainda começado a descê-la. E avisaram:

– Então cuidado, estamos a ver movimento de pessoal perto do local onde vocês estão.

Chegadas as viaturas, procedemos ao corte das árvores. Eram enormes, as serras não davam conta do trabalho. O capitão pediu-me que tentasse abrir uma passagem através da mata, o que consegui fazer. Aberta a picada, retomámos a marcha até que chegámos a Jumbembem sem mais atrasos. Deixámos ali viaturas com géneros e um pelotão de segurança e sem perder tempo abalámos para Cuntima.

Jumbembem e Cuntima eram duas povoações ligadas entre si por uma estrada de cerca de quinze quilómetros e a paisagem era mais aberta, com poucas árvores.

Chegados a Cuntima, outra vez sem grande demora, descarregámos o que havia para descarregar. A noite era boa para as emboscadas, por isso não era conveniente demorar muito para podermos fazer o percurso de regresso, ainda durante o dia.

Embarcado o pessoal da CCav 488, que estava destacado em Cuntima, iniciámos o regresso a Jumbembem, onde deixámos os militares, que ficaram a ocupar a antiga serração, enquanto nós prosseguimos a marcha de regresso a Farim.

Entre Jumbembem e Farim, na zona da rampa, onde começava a mata cerrada, vi grande quantidade de fumo a sair de um ajuntamento de lenha.

Parei e gritei para trás:

– Fumaça!

Um pelotão saiu e foi espalhar a lenha para desfazer a fogueira. Quando entrámos na picada, começámos uma ligeira subida e, de um momento para o outro, as viaturas que me seguiam ficaram debaixo de fogo. A minha viatura, talvez por ter apenas o condutor, passou. Peguei na minha Mauser, saltei da viatura e abriguei-me. A nossa resposta foi pronta e livrámo-nos sem problemas.

Tivemos ainda mais uma flagelação até à última emboscada, esta sim, bem mais séria. Apesar de estarmos prevenidos e da nossa resposta, sofremos um ferido muito grave [6] e vários feridos. O fogo acabou da mesma forma como começou, de um momento para o outro.

Dias depois, nova saída para Cuntima, comigo e a minha viatura à frente, como “rebenta minas”. Viajámos de noite, contra o que era costume, a coberto da escuridão e com ordem para não acender as luzes. Eu ia sozinho no meu carro, tentando respeitar a ordem, o que me tornava a condução muito difícil. Ia um pouco apreensivo e a condução estava a pôr-me cansado. Nunca até então tinha conduzido em tais condições, uma situação de arrasar os nervos. Por vezes, não sabia se devia voltar para a direita se para a esquerda, conduzia à sorte, quase só com a luz dos meus olhos, ou seja, quase às cegas.

Uma vez ou outra não resisti, acendi as luzes, por breves instantes. Andámos muito devagar e chegámos a Cuntima só ao amanhecer.

Na ida, não tivemos contacto com o inimigo, mas não aconteceu o mesmo no regresso. Fomos flagelados várias vezes, ao longo do trajecto, e lá nos fomos desenrascando com mais ou menos perícia. Isto é, eu acho que foi com perícia, porque não sofremos nem mortos nem feridos, o que não aconteceu ao PAIGC que teve, pelo menos, um morto, que foi o primeiro guerrilheiro que eu vi a morrer em combate.

Era um jovem, talvez com menos de 20 anos, sem camisa, de calções e descalço, com um barrete amarrado à cabeça por uma fita de pele de carneiro. Vi-o a ser arrastado pelo soldado Paulista Solda [7], da CCAV 487. Estava morto.

Durante a minha permanência em Farim, a povoação sofreu três ataques. A abrir colunas, como “rebenta minas”, em colunas de reabastecimentos, em patrulhamento ou em simples observação, sofri várias emboscadas, algumas em que fomos apanhados em terreno aberto e sem grande possibilidade de defesa. Posso dizer que a sorte andou comigo.

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Notas do autor Amadu Djaló /ou do editor Virgínio Briote:

[1] O BCav 490, comandado pelo Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro, tinha estado no Sul, na Op Tridente, o primeiro grande movimento militar na África Portuguesa, 70 e tal dias seguidos, abarracados na ilha do Como, a comer enlatados. Regressara de lá arrasado, cheio de hepatites, com os pelotões reduzidos a metade. Depois, o Batalhão foi colocado em Farim e dispôs-se em quadrícula com uma companhia, a CCav489, em Cuntima, na fronteira com o Senegal, a CCav488 em Jumbembem, a meio caminho entre Cuntima e Farim e a CCav 487 em Farim.

[2] Capitão de Cavalaria Rui Gonçalves Soeiro Cidrais

[3] Chegada a Farim em 11 Março de 1964

[4] Depois de solto, foi incorporado no Exército e cumpriu comissão em Bafatá, no esquadrão de Cavalaria. É DFA e vive em Lisboa.

[5] Em 31 Maio de 1964, conforme História do BCav 490.

[6] João Félix Pereira dos Santos, Soldado Apontador de Morteiro, da CCav 487, evacuado para o HM 241 onde morreu 7 horas depois, ou seja, em 1 junho 1964. Condecorado com a Cruz de Guerra de 2ª Classe.

[7] Participou na Op Tridente, integrado no Grupo de Comandos, tendo sido agraciado em 5 junho de 1964 com a Cruz de Guerra de 4ª Classe.
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 8 de novembro de  2022 > Guiné 61/74 - P23770: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte VI: os primeiros ataques a Farim, em 1963