Foto: © João S. Parreira (2005). Direitos reservados.
Mensagem do novo membro da nossa tertúlia, o ex- Alf Mil António de Figueiredo Pinto, BCAÇ 506 (1963/65) (1):
Caro José Martins:
Foi por mero acaso que, pesquisando na Internet assuntos sobre a Guiné, encontrei o site do Amigo Luís Graça (feliz acaso !), apartir do qual e em pouco tempo começo a receber notícias de Amigos, que, como eu, passaram por terras da Guiné.
És o primeiro que eu constato que palmilhou muitos dos caminhos por onde andei. Já estou quase nos 68 anos, um bocado entradote na idade mas um novato nestas andanças de computadores e Internet.
A memória já me vai traindo um bocado, mas há momentos que jamais poderei esquecer e com certeza que me acompanharão para sempre. Guardei alguns documentos daquele tempo e, vasculhando-os, verifico que pertenci à 3ª Companhia de Caçadores, em Nova Lamego, e aos Batalhões de Caçadores, sediados em Bafatá, nºs 506 e 512 e finalmente ao Batalhão de Cavalaria nº 705.
Sobre Madina do Boé (2) estive lá no 2º ano de comissão, lembro-me que fomos os primeiros a lá chegar e montar o 1º aquartelamento que ficou ao fundo da estrada, onde havia uma escola desactivada. Os primeiros tempos passámo-los sem sobressaltos de maior até que houve o 1º ataque, não posso precisar a data. Não tivemos feridos.
Há um episódio, no entanto, entre vários, que me marcou bastante. Vou tentar resumi-lo:
Uma tarde estávamos no Destacamento, quando, de repente, ao fundo da tal estrada vimos chegar, com grande alarido dois ou três jipes com uma velocidade inusitada e alguém aos gritos, que só conseguimos entender quando chegaram à nossa beira. Era um grupo de Comandos, chefiados pelo alferes Saraiva (um homem tremendamente marcado pela guerra em Angola, onde assistiu à morte de familiares seus ) . Aos berros, pediu-nos viaturas e homens para efectuar uma operação (de que eu não tinha conhecimento ) nos arredores de Madina. De tal maneira ele estava transtornado que chegou a puxar de pistola para um Furriel do Destacamento, que esta a apertar as botas, tal era a sua pressa.
O que não posso esquecer é o pedido que um dos nossos soldados fez para substituir o condutor duma viatura, salvo erro, uma Mercedes, argumentando que, sendo ele pequeno ( e era-o de facto) se uma mina rebentasse ele saltava com mais facilidade, pedindo só para deixar tirar a capota da viatura. Não me recordo do nome dele mas vejo-o constantemente...
Essa patrulha, em que não participei, pois o Saraiva não o permitiu, foi atacada, após o rebentamento de minas. Morreram vários camaradas nossos, entre eles o referido condutor, que teve uma morte horrorosa.
Alguns desses camaradas deixaram este mundo nos meus braços e nos do médico que, na altura, estava conosco e que é por demais conhecido - o Luiz Goes, que todos conhecem, com certeza, pelos seus fados de Coimbra (3).
Este foi um dos momentos mais dramáticos que vivi na Guiné (4), para além de outros, especialmente em Beli, onde fui ferido e que noutra altura relatarei.
Penso não estar a ser fastidioso.
Tu mo dirás se posso relatar outros factos que agora se estão a soltar e vir ao consciente.
Fiquei bastante emocionado ao ver no teu contributo de Memórias da Guiné ao ver o nome do meu maior Amigo, dentre tantos Amigos que lá tive - Martinho Gramunha Marques. Sobre ele também gostaria de falar um dia.
Amigo José Martins, breve voltarei, se não fôr inconveniente.
Um grande abraço.Tudo de bom para ti e toda a tua Família.
Pinto
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Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 18 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1378: António de Figueiredo Pinto, Alf Mil do BCAÇ 506: um veterano de Madina do Boé e de Beli
(...) "Alguns dados sobre a minha estadia na Guiné:
(i) Embarquei em Novembro de 1963, em rendição individual. Fui substituir um colega que se pirou para o Senegal.
(ii) Estive algum tempo em Nova Lamego, tendo sido, em seguida destacado para Pirada onde reconstrui o aquartelamento.
(iii) Estive algum tempo em Geba, zona na altura um bocado perigosa, mas sem problemas.
(iv) Vim de férias em Outubro de 1964, conhecer o meu primeiro filho, com 3 meses de idade.
(v) No regresso, fui destacado para Madina do Boé, tendo sido o primeiro pelotão a chegar lá onde montei o primeiro aquartelamento.
(vi) Depois fui para Beli, onde ao fim de algum tempo, e depois também de ter sido o primeiro pelotão a lá chegar e ter montado o destacamento, em Maio de 65, fomos atacados tendo aí sido ferido (mais seis companheiros) mas, felizmente ninguém morreu. Os meus ferimentos foram motivados pelo rebentamento de uma granada de morteiro, que me encheu o corpo de pequenos estilhaços, mas depois de um mês no hospital em Bissau, fiquei OK" (...).
(2) Vd. posts recentes do José Martins:
18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1292: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte I)
15 de Dezembro de 2006> Guiné 63/74 - P1370: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte II)
(3) Vd. blogue Fado de Coimbra e... > Luiz Goes
(...) "Luiz Fernando de Sousa Pires de Goes nasceu em Coimbra, em 1933 e licenciou-se em Medicina, em Outubro de 1958.
"Sobrinho de Armando Goes (que foi contemporâneo de Edmundo de Bettencourt, António Menano, Lucas Junot, José Paradela de Oliveira, Almeida D’Eça e Artur Paredes), Luiz Goes cedo se iniciou nas cantorias do fado por influência de seu tio.
(...) "Terminado o curso de Medicina em 1958, Luiz Goes fixou-se em Lisboa como médico estomatologista. De 1963 a 1965 o cantor prestou serviço militar na Guiné, na guerra colonial, como alferes-médico. Mas depois, continuou a sua carreira artística, como aliás se demonstra pela quantidade de discos que gravou a partir dessa altura.
"Nesta segunda fase, Luiz Goes foi acompanhado, à guitarra, por Carlos Paredes (que com ele participou na gravação de discos, embora sob pseudónimo), por João Bagão, António Andias, Aires de Aguiar e esporadicamente, por Jorge Tuna e Octávio Sérgio; à viola, por Fernando Alvim, João Gomes, António Toscano, Fernando Neto, e Durval Moreirinhas.
"Para além de excelente intérprete, Luiz Goes é também autor da música e da letra de muitos fados e baladas de Coimbra (25 e 18 respectivamente)" (...).
(4) Julgo tratar-se do mesmo episódio já aqui evocado pelo Virgínio Briote (que comandou o Grupo de Comandos Diabólicos):
Vd. post de Virgínio Briote, de 13 de Dezembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXV: Brá, SPM 0418 (3): memórias de um comando (Virgínio Briote).
Extracto:
"Novembro de 64, dia 28. Na estrada de Madina do Boé para Contabane, a uma escassa centena de metros do pontão sobre o rio Gobige, os Fantasmas detectaram uma mina anti-carro. Levantaram a mina e simularam o rebentamento. Ficaram emboscados nas proximidades cerca de 2 horas. Viram um grupo IN aproximar-se e afastar-se logo que deram pela presença de mulheres na estrada. Uma hora depois viram um elemento IN a fugir. Afinal, estavam em igualdade de circunstância, todos sabiam da presença uns dos outros.
"No dia seguinte voltou com o grupo ao local. Meteu-se com alguns soldados no Unimog mais pequeno à frente, e encaixou dezasseis militares no Unimog maior atrás. A 1ª viatura passou, a outra, uma dezena de metros atrás, não. Pisou uma mina. Ao mesmo tempo que em cima deles caía uma chuva de balas de armas automáticas, o Unimog incendiou-se e as munições explodiram como foguetes num arraial minhoto. Quase todos os homens foram projectados a arder. 7 mortos logo ali e três feridos graves. Tinham partido 22 de Bissau, regressaram doze. Com o grupo dizimado, poucos dias depois arrancou com os restantes para uma operação".
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