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sábado, 21 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26299: No 25 de Abril eu estava em... (35): Fulacunda, região de Quínara, chão biafada (José Claudino da Silva, ex-1º cabo cond auto, 3ª C/BART 6520/72, 1972/74): "entre a euforia e o receio"



Penafiel > Biblioteca Municipal > 15 de dezembro de 2023  > Apresentaçáo do último livro de José Claudino da Silva, "O Puto de Senradelas" (*).  O autor é natural de Penafiel, mas vive em Amarante. Assume publicamente que é filho de pai incógnito, e que foi criado com a avó, que vendia peixe, porta a porta, para sobreviver
... A mãe morreria cedo, em 1 de junho de 1974, estava ele  ainda no TO da Guiné.

"A minha mãe não teve meios de me criar e entregou-me à minha avó. Isso nunca impediu de a respeitar; orgulho-me da minha mãe. Sem ela, eu não estaria aqui. Só passei uma festa com a minha mãe: Foi o último Natal, antes de assentar praça. Ainda bem que o fiz!" (...)

Foto:  Cortesia dos Amigos da Biblioteca de Penafiel (com a devida vénia...) (Edição e legendagem:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2023)



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > 1973 > O José Claudino da Silva junto a cartaz de parede com os dizeres: "Páscoa Feliz, Os Serrotes, Fulacunda". "Serrotes", além de ser o nome de guerra da companhia, era também o título do "jornal de caserna", dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, também nosso grão-tabanqueiro.

Foto: © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Na sua série "Ai, Dino, o que te fizeram!" (**)...,  o nosso grão-tabanqueiro José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74), não tem uma referência explícita ao dia 25 de Abril. A última carta, para a namorada [Amélia, sua futura esposa] , de que ele publicou uns excertos, era de março de 1974. Ora no dia 25 de Abril ele  ainda estava em Fulacunda, 

(...) Estou muito perto de terminar esta partilha confidencial de emoções que guardei, sem nunca ter intenção de divulgar. Entre o drama e a comédia, tentei dar-vos uma visão dum soldado que escreveu apenas por amor, num tempo de guerra.

A partir de março de 74, e talvez por influência da mãe e do irmão, a Amélia deixou de guardar o correio que lhe enviava. Embora eu continuasse a escrever, já não o fazia tão assiduamente.

No meu mapa, não está marcado que tenha escrito, por exemplo, no dia 25 de Abril de 1974. Sei que festejei esse acontecimento em Fulacunda mas não me lembro como foi.

Ora, como é lógico, e partindo do princípio que me norteou, não quero citar nada que não possa provar. Contudo, mesmo assim, ainda consegui reaver alguma correspondência sem grande relevância, exceto a última que escrevi. Esta última carta tem 12 páginas que perfazem um total aproximado de 2700 palavras. (...) (*)



2, Excertos  de uma entrevista, que deu há 8 meses, ao "Amarante Magzine", edição de 24 de abril de 2024 (e aqui reproduzidos com a devida vénia):


Claudino Silva: no 25 de Abril senti euforia, mas também receio




(,,,) José Claudino da Silva nasceu em Penafiel em 1950. Serviu nas forças armadas portuguesas entre 1972 e 1974, em Fulacunda, na então Guiné Portuguesa. 

Chapeiro automóvel de profissão, entretanto passado à reforma, é conhecido e reconhecido em Amarante pela fundação do Bosque dos Avós, um projeto de reflorestação lançado em 2018, em terrenos dos Baldios de Aboadela, na Serra do Marão. É autor de vários livros, nomeadamente “O puto de Senradelas – Um Percurso ao Acaso”, apresentado em Amarante em janeiro deste ano.

Numa manhã que despontava com a promessa de mudança, o 1º cabo condutor José Claudino da Silva acordou com uma notícia que lhe despertou um turbilhão de emoções. A 25 de abril de 1974, enquanto o mundo ainda dormia, uma revolta militar eclodia em Lisboa, ecoando até ao coração da então Guiné Portuguesa, onde se encontrava ao serviço da 3ª Companhia do Batalhão 6520 de 1972.

“Confesso que senti uma grande euforia, de que tudo acabara para mim, mas não sem uma sombra de receio”, afirmou a Amarante Magazine. 

Aos 74 anos, este antigo chapeiro automóvel de Penafiel recorda-se bem daquele dia, numa altura em que enfrentava represálias por ter expressado críticas às chefias militares numa publicação interna, editada em finais de 1973.

O medo de retaliação por mostrar contentamento com a revolta era palpável, recorda. “Outras tentativas de revolta, anteriores ao 25 de abril de 1974, fracassaram. E naquela altura estava a ser castigado pelas minhas palavras“, frisa.

Aquele já era um tempo de abalar convicções para o jovem cabo que, no início da sua carreira, se considerava um “militarista”, crente nas razões que o levaram a Fulacunda, bem no interior da Guiné. “Fui para lá convencido que ia defender Portugal”, recorda. (...)


Após o assassinato de Amílcar Cabral, em 20 de janeiro de 1973, e oito meses mais tarde, com a declaração unilateral da independêrncia, em 24 de setembro, o nosso "Dino" começa a ter dúvidas, conforme confessa ao jornalista: 
 
 (...) “Houve uma altura em que comecei a questionar a legitimidade da nossa presença na Guiné, quando vivíamos cercados por arame farpado, num país reconhecido e independente”.

Em 11 de junho de 1974, Claudino da Silva regressou antecipadamenet a Portugal por motivo da morte da sua mãe. Já chegaria tarde para o enterreno: ela tinha morrido no dia 1 (*): 

  (...) “Deixei a minha G3 num canto da cantina [ na altura ele era o cantineiro] e trouxe comigo apenas o essencial: a farda, fotografias, algum dinheiro e as cartas da minha namorada. (...)  Só quando chego a Lisboa é que finalmente percebo que [a guerra] acabou para mim, que já não havia volta a dar”.

Na entrevista dada ao semanário Amarante Magazine, confidenciou que , durante a sua comissão de dois anos, escreveu perto de um milhar de cartas, na sua grande maioria para  a namorada, mas também para a família e amigos. Essa correspondência foi por ele listada e organizada.  Esses e outros escritos (em parte já publicados no nosso blogue), a par do seu álbum de 160 fotografias,  poderão estar na base de um futuro livro com as suas memórias da tropa e da guerra.(***)
 
(...) "Tudo isto é um legado para a minha neta, para que fique a saber quem era o avô e o que ele passou. (...)  Ao longo destes 50 anos, vivi tantas vicissitudes. Nasci e cresci numa condição humilde, mas sempre em evolução. E ainda continuo a evoluir, graças ao 25 de abril de 1974”. (****)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos e itálicos, parênteses retos:  LG) 

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25458: No 25 de abril eu estava em... (34): Fajonquito... "A guerra acabou?!"... E, agora, o que será de nós, "cães rafeiros do quartel", que não cumprimos os nossos sonhos de meninos, que eram ser "comandos"? (Cherno Baldé, Bissau)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Contuboel > Tabanca dos arredores > CCAÇ 2479 (1968/69) (futrura CART 11)  > Centro de Instrução Militar > Um instruendo, de etnia fula, cuja identificação se desconhece... (mas pode ter sido um futuro soldado da CCAÇ 12).

A placa rodoviária assinala alguns das povoações, importantes, mais próximas, a norte: Ginani (17 km), Talicó (22 km), Canhamina (27 km), Fajonquito (30 km), Saré Bacar (39 km), Farim (96 km)... Foto do nosso muito querido amigo e camarada, Renato Monteiro (Porto, 1946 - Lisboa, 2021), que foi instrutor no CIM de Contuboel, ex-fur mil CCAÇ 2479 / CART 11 (Contuboel, Nova Lamego, Piche, 1969/70) e CART 2520 (1970). Notável fotógrafo, com álbuns publicados e diversas exposições, e ainda co-autor, com Luís Farinha, recorde-se, da pioneiríssima Fotobiografia da Guerra Colonial (Lisboa: D. Quixote, 1998).

Foto (e legenda) : © Renato Monteiro  (2007). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Cherno Baldé, quadro superior
com formação em economia e gestão,
vive e trabalha em Bissau;
colaborador permanente do nosso blogue:
integra a Tabanca Grande
desde 19/6/2009
1. Texto do Cherno Baldé, com data de Bissau, 26 de abril 2024. 

No 25 de Abril de 1974 (*), eu estava em Fajonquito, e vivia entre a nossa casa e o quartel dos metropolitanos onde passava a maior parte do tempo como faxina na caserna de soldados condutores e mecânicos-auto (**).

Nos primeiros dias após o 25 de Abril de 1974, de repente, o ambiente no aquartelamento mudou, os militares pareciam estar divididos entre a alegria contida e a preocupaçãoo do que viria a seguir. 

O silêncio e os murmúrios tomaram conta do quartel e perante a incredulidade geral dizia-se sem nenhuma certeza que “a guerra acabou”. 

Entretanto a vida no quartel decorria normalmente e os patrulhamentos no mato também.

No seio da população nativa e as crianças a única coisa de que se ouvia falar era “a guerra acabou”. Ninguém sabia explicar como e porquê, pois as informações que circulavam,  baseavam-se sobretudo no diz-que-diz habitual dos tempos da guerra, onde as pouquíssimas informações que se filtravam do quartel,  rapidamente se transformavam em boatos e inconfidências da última hora. 

O que se passava no mato, entretanto, nós não sabiamos, pois nunca tinhamos tido quaisquer ligações.

−  A guerra acabou !?!?... Mas, como assim?!?!....

Na minha cabeça de criança que desde 1963/4 convivia com a guerra (**), simplesmente apareceu um vazio na minha mente, e não sabia o que pensar, não podia conceber que não houvesse guerra com os seus mortos e estropiados, com as luzes nocturnas das aldeias incendiadas.

Parecia uma brincadeira. E agora ?!?!... O que será de nós ?...
Vamos acordar e não pensar na guerra ?!... E os nossos amigos brancos vão partir de novo, sem se despedir, deixando o quartel virado de avesso, qual acampamento de tropas de Gêngis Cão ?!...

No quartel, mais do que antes, os nossos amigos soldados também olhavam para nós com alguma desconfiança, como se esperassem descortinar alguma coisa no nosso comportamento, como se estivessemos a esconder alguma informação vinda de não se sabia donde. 

Na incerteza do momento, as novas e milagrosas palavras em voga, “a guerra acabou,  parece que tinham trazido mais desconforto do que alegria. Os soldados estavam divididos, uma parte era de opinião que, por precaução, as crianças deviam ficar fora do arame farpado, mas a maioria deles não concordava e esses eram os nossos amigos de verdade, também nós estávamos desorientados.

− Chico, vamos à lenha ! 
− chamava o meu bom e turbulento amigo Dias, sentado na velha Mercedes.

Incredulidade, uma alegria contida e medo foram os sentimentos que nos dominaram nos dias que se seguiram aos acontecimentos do golpe militar em Portugal que chegou até nós em forma de uma mensagem codificada e curta, portadora de sentimentos contraditórios: “a guerra acabou ”.

A guerra tinha acabado com os nossos sonhos de crianças de guerra ainda por realizar.

Acabou sem avisar, acabou sem que pudessemos alimentar a nossa fome de servir nos comandos africanos e experimentar a sorte dos audazes, acabou sem podermos hastear a bandeira das nossas ilusões da república pluricontinental e plurirracial do Minho ao Timor, acabou sem podermos roncar, na tabanca, em passos ligeiros, com a farda e os galões de “Furriel” dos nossos sonhos de meninice, acabou sem que pudessemos mostrar a nossa bravura em combate, ambição suprema, genuinamente irrefletida e para a qual, no espírito, no corpo e na alma nos preparávamos há mais de 11 anos. 

Acabou como tinha começado, de forma caótica e de consequências imprevísiveis. Os elementos das nossas milicias estavam desamparadas e não era por menos.

Hoje, decorridos 50 anos, a minha vida é um questionamento constante. Às vezes penso que tive sorte por não ter sido soldado, sobretudo quando leio no Blogue da Tabanca Grande narrativas sobre as vivências dos antigos combatentes dos dois lados, às vezes fico com a sensação de não ter cumprido uma parte importante,  se não crucial, de tal maneira que estava convencido da sua inevitabilidade e que me completaria como homem, a vida de um soldado, depois da estoicidade sem precedentes demonstrada aos 10 anos de idade, na cerimónia tradicional (o fanado) de iniciação à vida adulta.

Com o 25A74, para nós, a guerra das armas tinha cessado, dando lugar a guerra do ilusionismo politico-ideológico, das mentiras pseudo-patrióticas e das mil e umas promessas que
nunca serão cumpridas por essa geração utópica de combatentes que nos fizeram acreditar no país de mel e maná do céu, o milagre da nova Suíça que nasceria nas bolanhas e na terra vermelha da Guiné-Bissau.

António Spínola, retrato
oficial.
Museu da Presidência
da República

(adapt. com a devida vénia)

Todavia, na minha visão pessoal, o verdadeiro 25 de Abril, tinha acontecido em princípios de 1970, quando o general Spinola chegou ao aquartelamento de Fajonquito, sem pré-aviso, e na nossa frente deu um tabefe na cara branca e surpreendida do Capitão da companhia, arrancando-lhe os galões que ostentava, alegadamente, por abuso de poder sobre a população indígena com cumplicidade do chefe tradicional local.

Hoje, sabemos que em 1974, apesar de toda a propaganda veiculada na altura e tendo em atenção o percurso e a real situação vigente, os nossos países ainda não estavam preparados para uma independência total como aconteceu, e a solução federalista proposta e almejada pelo general Spínola, pese embora fora de prazo e contra os ventos da história, seria o mal menor como solução a longo prazo e uma boa forma de levar Portugal a responsabilizar-se e trabalhar em conjunto com as suas antigas colónias sobre medidas para lidar com os legados de todos os seus actos e desventuras ao longo dos séculos nesses territórios, incluindo a contribuição para uma verdadeira reconciliação e justiça entre os seus povos. 

Mas isso sou eu a falar com os meus pequenos botões.

Bissau, 26 de Abril de 2014
Cherno AB

(Revisão/fixação de tecto, negritos: LG)
__________


(**) Vd. a notável série autobiográfica do Cherno Baldé, de que já se publicaram mais de meia centena de postes (fora os "avulsos")> 


19 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25442: No 25 de abril eu estava em... (33): No regresso de uma operação no mato, já no dia 26, com a malta (que tinha ficado no aquartelamento) a gritar, eufórica, no heliporto, à nossa espera: "Meu furriel, a guerra acabou, a guerra acabou"... A notícia tinha sido escutada na BBC por um dos um militares, rádio-amador na vida civil (José Manuel Lopes, ex-fur mil, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74)




Guiné > Região de Quínara > Buba > Julho de 1974 > A LDG carregada com o material da companhia, a CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74), a sair do cais de Buba, a caminho de Bissau, depois de terminada a comissão.


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > Em quase todos os aquartelamentos do CTIG, houve a seguir ao 25 de Abril de 1974, entre maio e junho, tentativas mais ou menos bem sucedidas de aproximação do PAIGC às NT, com vista ao cessar-fogo, ao fim da guerra e à reconciliação (e vice-versa, das NT em relação ao PAIGC). Nesta foto, vemos o ex-fur mil José Manuel Lopes (o poeta Josema) com um guerrilheiro do PAIGC.  Mais difícil foi, de facto,  a aproximação entre o PAIGC e os militares e mlícias guineenses que estavam do lado das NT, como foi o caso dos Comandos Africanos.

Fotos (e legendas): © José Manuel Lopes (2008). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


 1. O José Manuel Lopes, o Josema (pseudónimo literário), o Zé Manel da Régua (terra da sua naturalidade), vitivinicultor (Quinta Senhora da Graça),  foi Fur Mil Inf Armas Pesadas.

É  uma figura, muito querida e popular, da nossa Tabanca Grande.

Soube do 25 de Abril, já no dia seguinte, quando vinha de uma operação no mato e viu um grupo  de camaradas da CART 6250/72,  à sua espera, no heliporto de Mampatá, agitadíssimos, muito eufóricos, a gritar "Meu furriel, a guerra acabou, a guerra acabou!" (*).

Como noutros lados, pela Guiné fora, a notícia tinha sido escutada na BBC, por um dos um militares, que na vida civil era rádio-amador.

2. Recorde-se que a sua  unidade esteve entre 1972 e 1974, sempre em Mampatá, subsector de Mampatá,  sector S2 (Aldeia Formosa).

A tropa vivia misturado com a população (maioritariamente, futa-fula, razão talvez por que nunca foram atacados). Não tinham artilharia, só mais tarde é que passaram a ter obus 14, que dava apoio às operações de segurança de construção da estrada Aldeia Fomorsa (Quebo)-Mampatá-Salancaur. Também aqui, em Salancaur, abriram um destacamento (arame farpado, valas e tendas).

O essencial da missão da companhia era fazer segurança aos trabalhos da nova estrada Aldeia Fomorsa (Quebo) - Mampatá - Salancaur, que ficou asfaltada antes do 25 de Abril... Tratava-se de uma obra que ia ao encontro da estratégia do Spínola, a da contra-penetração nas regiões libertadas do PAIGC. A obra parou com o 25 de Abril: o novo troço deveria ter uns 30 quilómetros.

Segundo a história que nos contou ao entrar para a Tabanca Grande (em 27 de fevereiro de 2008) (**)  , tinha sido inesperadamente mobilizado para a Guiné, já com 18 meses de tropa... Trabalhava numa empresa inglesa de vinhos (se não ero). Juntou se à malta da CART 6250, que era constituída por gente do interior/72 (do Alentejo, das Beiras, do norte)... A unidade mobilizadora foi o regimento de Vila Nova de Gaia.

Após realização da IAO, de 30jun72 a 26jul72, no CIM, em Bolama, seguiu em 29jul72 para Mampatá, a fim de efectuar o treino operacional e  a sobreposição com a CCaç 3326.  Em   Buba tiveram logo o baptismo de fogo.

Em 24ago72, assumiu a responsabilidade do referido subsector de Mampatá, ficando integrada no dipositivo e manobra do BCaç 3852 e depois do BCaç 4513/72, sendo orientada, inicialmente, para a segurança e protecção dos trabalhos da estrada Marnpatá-Buba e depois para a contrapenetração no corredor de Missirã, em conjugação com outras subunidades do sector. 

Em 10fev73, a CART 6250/72  destacou dois pelotões para Colibuia, no mesmo subsector, para construção do aquartelamento respectivo e execução dos trabalhos de reordenamento das populações.

Em 6set73, após substituição pela 2ª Comp/BCaç 4516/73, os pelotões recolheram à sede da subunidade, voltando, em 9nov73, a destacar um pelotão para Colibuia, a fim de integrar um destacamento, em conjunto com outro pelotão de outra subunidade, o qual substituíu a 3ª Comp/BCaç 4516/73, ali colocada do antecedente.

Em 22 e 23lu174, após ter sido substituída no subsector de Mampatá por forças do BCaç 4513/72, recolheu a Ilondé, a fim de aguardar o embarque de regresso.

 
3. Ele e a companhia dele seguiram os acontecimentos de Guileje em maio de 1973, e saíram de Mampatá para fazer segurança à CCAV 8530, restantes forças e população civil, que andaram perdidos, nesse perigoso campo de minas, que era todo o corredor de Guileje, montadas umas pelo PAIGC e outras pelas NT. 

Aliás, a sua CART 6250 foi uma das unidades que mais minas levantou, durante a guerra e no final da guerra; recorda-se que se pagava mil escudos por cada mina levantada...

Durante a sua comissão, ele próprio costumava andar com um lápis e um caderninho n0 bolso, onde nomeadamente ia escrevendo os seus poemas... Fez versos  que depois  eram acompanhados com músicas conhecidas da época, de autores contestatários como o Zeca Afonso. Chegou a fazer um poema por dia. A maioria foi destruída, já depois da "peluda"... Salvaram-se umas escassas dezenas, que fomos publicando na série "Poemário do José Manuel" (trinta postes, desde março de 2008: o último em  29 de setembro de 2009)...

Durante anos não falou da guerra colonial com ninguém... Teve conhecimento do nosso blogue, porque viu o programa Câmara Clara, da RTP Dois, a Paula Moura Pinheiro, edição de 24 de Fevereiro de 2004, que foi dedicado à literatura sobre a guerra colonial, e teve dois convidados em estúdio, os escritores Lídia Jorge (autor da Costa dos Murmúrios...) e Carlos Matos Gomes (que assina Carlos Vale Ferraz, o autor de Soldadó, Nó  Gordio, Geração  D).

Nessa edição, o fundador e editor deste blogue foi entrevistado; o nosso blogue foi amplamente divulgado; o programa passava também na RTP África e na RTP Internacional.

Ficou muito sensibilizado e até emocionado, e foi visitar o blogue de que passou a ser visita diária nessa altura...
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quarta-feira, 24 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25435: No 25 de Abril de 1974 eu estava em... (32): Rio de Janeiro, como rececionista num hotel, numa fase difícil da minha vida; como emigrante não prestava, até 1996, grande atenção à política em Portugal (João Crisóstomo, Nova Iorque)



João Crisóstomo: (i) é natural de Torres Vedras; (ii) membro da nossa Tabanca Grande desde 26 de julho de 2010, sentando-se à sombra do nosso poilão sob o n.º 432; (iii) tem 225 referências no nosso blogue; (iv) é o régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona; (v)  foi alf mil inf, CCAÇ CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67); (vi) vive em Queens, Nova Iorque, desde 1975, mas vem cá com frequência, ao seu querido Portugal; (vii) conhecido ativista social, foi-lhe atribuido recentemente o Prémio Tágides 2023 (na categoria de "Portugal no Mundo")



Guiné >Zona Leste >  Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Xime > CCAÇ 1439 (1965/67) > Agosto de 1965 > O primeiro contacto com as terras do Xime...Em primeiro plano, o alferes Crisóstomo  e o picador...

Foto (e legenda): © João Crisóstomo (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Mensagem do João Crisóstomo:

Data - segunda, 22/04/2024, 06:37
Assunto - 25 de Abril

Vejo já artigos, reportagens, descrições individuais fabulosas sobre este 25 de Abril. E quase estou na dúvida se devo mandar o que segue, que em comparação não tem muito por onde se lhe pegue, a não ser que o tédio também conte.

Ao fim e ao cabo estou a falar pouco desse dia, exceto dum ponto muito subjetivo e mesquinho, quase e apenas pessoal. Bom, talvez conte, para fazer vir o sono a alguns dos mais velhotes e como eu com dificuldades de dormir, antes de irem para a cama… 

Mas foi isto que me veio à ideia quando pensei no “meu’ 25 de Abril (*).

O 25 de Abril 1974 apanhou-me numa fase difícil da minha vida. Depois de ter regressado são e salvo da Guiné (**), decidi dar uma volta pela Europa para aperfeiçoar línguas, pois tinha posto na cabeça que o meu futuro em Portugal seria o turismo.

Dois anos na Inglaterra, um ano em França, sete meses na Alemanha e no meio deste encontrei a que viria a ser minha esposa.

Casados em Londres,  decidimos ir para o Brasil,  onde tencionávamos gerir um restaurante que teórica e oficialmente pertencia a um avô da minha esposa. Mas no Brasil isso não contava já nada.

Avisados para não nos metermos em sarilhos, pois se tentássemos sequer reaver o restaurante tudo nos podia acontecer, acabei por começar do zero, pois a tal lei de reciprocidade entre portuguese e brasileiros, nessa altura. na prática não passava de uma fantasia no Brasil.

A cunha de um português bem alicerçado no Brasil que tinha sido colega de escola da minha sogra, foi a minha salvação. 

E estava já trabalhando como rececionista num hotel, quando chegou a notícia : houve um golpe de Estado em Portugal.

A minha reação foi quase nula: "Oxalá não hajam mortos e apareça alguém com capacidade para governar", pensei eu.

Tudo o que me preocupava era encontrar maneira de dar à minha jovem família e a mim mesmo razão de esperança e confiança de um futuro melhor do que estava experimentando desde que tinha chegado ao Brasil.

Uma crise de meningite em crianças que subitamente pôs o Rio de Janeiro em estado de pânico,  levou-me a pôr a minha família no primeiro barco de regresso a Portugal, enquanto eu, que tinha sido promovido a subgerente, ficava, mas ainda procurando algo melhor.

Do Brasil vim aos Estados Unidos, convencido de que aqui podia tirar um grau superior em Hotelaria, que me ia abrir as portas no mundo do turismo, que era para mim a minha primeira escolha depois que voltei da Guiné.

Tudo saiu diferente do que esperava e acabei por ficar em Nova Iorque para onde trouxe depois a minha família, agora acrescida de um filho que tinha nascido em Portugal, seis meses depois do regresso do Brasil.

Como emigrante não prestava muita atencão à política em Portugal, sabendo apenas que, graças a Deus, tal golpe de Estado tinha sido quase pacífico, mas que havia muita confusão : que se tinha dado a correr a independência a todos os que a pediam; mas que a pressa em que tudo era feito não augurava bom futuro para ninguém, como se veio a verificar.

E lembro que em 1996 quando me pediram para me envolver na causa de Timor Leste, eu respondi imediatamente que não me queria envolver em guerras fraticidas e na confusão que essa concessão de independência total sem as preparações devidas tinha causado em toda a parte.

Mas a minha experiência na Guiné vinha-me frequentemente à memória e comecei a procurar saber notícias e mesmo literatura . Não encontrava nada.

Até que numa visita a Portuga encontrei numa feira do livro, na Gare do Oriente, o livro "em Terras de Soncó", do Mário Beja Santos. Esse livro , logo seguido pela minha entrada para a Tabanca Grande, e encontros com camaradas da Guiné e outros veio reforçar o interesse por assuntos portugueses que durante muito tempo eu tinha intencionalmente ignorado.

Minha opinião agora é de que o 25 de Abril possibilitou e desencadeou um despertar de consciências geral, que possibilitou a democracia que agora vivemos. Não é perfeita, mas parece-me que o é o melhor que já alguma vez tivemos. E isso faz dessa data uma das mais importantes da nossa história.

João Cisóstomo, Nova Iorque

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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Notas do editor:

(*) ÚLtimo poste da série > 21 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25419: No dia 25 de Abril de 1974 eu estava em... (31): Lisboa, de licença de férias, e depois de uma noitada o meu cunhado acordou-me às 9h00: "Eh, pá, já não voltas mais para a guerra" (Jorge Pinto, ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)

(**) Vd. poste de:

14 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23078: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - XIX (e última) Parte: Anexo B: Outros dados estatísticos: baixas, louvores e condecorações

domingo, 21 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25419: No dia 25 de Abril de 1974 eu estava em... (31): Lisboa, de licença de férias, e depois de uma noitada o meu cunhado acordou-me às 9h00: "Eh, pá, já não voltas mais para a guerra" (Jorge Pinto, ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)





















Lisboa >Av Lierdade e Marquês de Pombal>  28 de abril de 1974, domingo > Um alferes de Fulacunda, de férias na metrópole, transformado em fotojornalista,captou estas imagens...

Fotos (e legendas): © Jorge Pinto (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagemcomplemene: Blogue Luís GRaça & Camaradas da Guiné]



Jorge Pinto
1. O Jorge Pinto (ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74) mandou-nos, há tempos, fotos do seu arquivo pessoal relativas ao 25 de Abril de 1974.(*)

Escreveu ele: "Como sabes, tive o privilégio, de estar de férias na 'metrópole' , nessa data. No próprio dia 25, vim de Alcobaça (Turquel) para Lisboa e por aqui permaneci, até regressar a Bissau no dia 3 de Maio."

Nessa altura, enviou-nos fotos f tiradas no primeiro domingo (28.04.74), a seguir ao 25 de Abril, que fora numa quinta feira. (**) 

E explicou-nos que foram  "tiradas junto ao Marquês de Pombal, apanhando manifestação (ões) espontânea(s) que subia(m) a Avenida da Liberdade".

Ontem almoçámos juntos, em casa de amigos comuns, no lugar da Estrada,  
Geraldes, Peniche. (Um belíssimo almoço, acrescenta-se  de "arraia com batata e cebola cozida",  em dois panelões, éramos 16 à mesa, à moda das aldeias ribeirinhas do concelho da Lourinhã.)

Em Fulacunda
Depois de folgar em saber que ele está melhor das suas mazelas músculo-esqueléticas (foi operado ao fémur), falámos desta história do 25 de Abril. E ele esclareceu algunas das minhas dúvidas... 

Se bem percebi, ele já estava em Lisboa no 25 de Abril, deitou.se muito tarde, depois de estar com amigos até às tantas, ficou na casa da irmã,ali perto do Marquês de Pombal e às nove horas, foi acordado abruptamente pelo cunhado, que eufórico lhe disse:
- Jorge, tu já não voltas para a Guiné!

Ele estava a acabar de licença de férias, com viagem marcada  para o dia 3 de maio. 

Como muitos de nós, face à escassez de notícias nerdsa manhã,  ficou na dúvida se se tratava de um golpe militar encabeçado pelo Kaulza de Arriaga, do Spínola ou de outros generais...Com o passar das horas, as coisas começaram a clarificar-se. Não conseguiu chegar ao Terreiro do Paço nem ao Carmo, mas já não saiu de Lisboa, até ao regresso a Fulacunda.

Tomou o avião no dia 3, voltou a Fulacunda que foi atacada em força com canhão s/r no dia 7...Terminou a comissão em junho, mas só regressou em setembro... Nessa altura, além do 3ª C / BART  6520/72,  Fulacunda dispunha  do Pel MIl 221 e do 31º Pel Art (obus 14 cm).  

PS - O Jorge Pinto trabalhava na União Gráfica, como revisor de texto,  e já tinha o 1º ano da licenciatura em História, quando foi chamado para  tropa.

2. Comentário do editor LG:

Jorge, recuperei e reeditei as tuas fotos, que ficam para a história do nosso blogue

São de uma manife (o vocábulo já foi grafado pelos nossos dicionaristas...) do dia 28, domingo...

Como escrevi na altura (28 de fevereiro de 2016, também domingo), há 8 anos, há um certo olhar "naïf" do fotógrafo de Alcobaça, ou se calhar, mais de Fulacunda do que Alcobaça ... Afinal, só agora fico a saber que já vivias e trabalhavas em Lisboa.

Nessa altura eu estava a viver e a trabalhar em Mafra, e o dia 25 de abril de 1974, quinta-feira, foi de alguma inquietação, ansiedade, incredulidade e depois de alegria... Também eu bão sabia de que lado é  que estavam as tropas sublevadas... Pela "Máfrica", a EPI, estava tudo aparentemenet calmo... Já não tenho a certeza se nesse fim de semana fui a Lisboa, mas fui, isso sim, ao 1º de maio... Irrepetível, esse 1º de maio histórico.

Tenho pena de nessa época não fazer fotografia!... Nem se quer tinha máquina...

De facto, foste fotojornalista de ocasião, e estas fotos, mesmo de amador, vão ter daqui a muitos anos grande valor documental... Aliás, já têm... Não é todos os dias que a História nos entra pela porta dentro... No teu caso, pela porta dentro do quarto adenetro de um alferes miliciano, em férias, e com bilhete marcado de regresso a Bissau (e depois Fulacunda, na região de Quínara, lá no cu de Judas)...

Por outro lado, até o analista do mercado automóvel e o sociólogo é capaz de achar piada às tuas fotos: está ali o Portugal no seu melhor em autorrodas: os Fiat 127, os minis, a carroça do burro, a Panhard AML 60... para além os marinheiros aventureiros, os briosos cavaleiros do RC 7, e até as "flausinas" da Reboleira e arredores!...

É um retrato socioantropológico do teu, do nosso Portugal dos anos 70... Espantoso, ternurento, humano, ingénuo, lírico, desconcertante, espontâneo, mágico, solidário, piroso, popular, desenrascado, enrascado, generoso, sonhador, interesseiro, sublime...

O Portugal no seu melhor, que o Zé Povinho éramos todos nós, fomos todos nós, que aguentamos há mil anos a insustentável leveza deste estranho e fascinante país à beira mar plantado, destruído,replantado, recontruído, inventado, reiventado... Representado, aqui, neste blogue pelos melhores dos seus filhos!
____________

Notas do editor:

(**) Último poste da série > 18 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25404: No 25 de Abril de 1974 eu estava em... (30): Em Bolama, à espera do meu "periquito"... Embarquei nos TAM, em meados de maio, a expensas minhas (João Silva, ex-fur mil at inf, CCAV 3404, Cabuca; CCAÇ 12, Bambadinca e Xime; CIM, Bolama, 1972/74)

sábado, 20 de abril de 2024

Guiné 61/74 – P25415: Os 50 anos do 25 de Abril (10): Até sempre, Nova Lamego! (José Saúde, ex-fur mil op esp/ranger, CCS / BART 6523, 1973/74)


Guiné  > Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/ BCAÇ 6523 (1973/74) > 
Na porta de armas,  o pessoal civil  por lá se aglomerava pós 25 de Abril



Guiné  > Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/ BCAÇ 6523 (1973/74) > O José Súde (à direita) com o furriel Santos, minas e armadilhas, no dia da nossa despedida do quartel

Fotos (e legendas): © José Saúde (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Abril em Nova Lamego

por José Saúde


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas,

O 25 de Abril de 1974, dia em que se proclamou a Liberdade, permitiu o regresso dos camaradas, instalados em territórios africanos – Angola, Moçambique e Guiné - onde a guerrilha predominava, à Pátria mãe. Sentiu-se, então, que o fim do martírio de “miúdos” enviados para os palanques da guerra, havia terminado. Era um Abril a rejuvenescer à “sonância” de um cravo vermelho e a rapaziada, eufórica, a preparar-se para um retorno, a casa, antecipado.

Abril, e o seu cravo vermelho!

Somos filhos de longas madrugadas que se imortalizaram no tempo, mas onde a esperança da liberdade residiu permanentemente em nós. Somos também filhos de pessoas humildes, “que comeram o pão que o diabo amassou”, mas que nos educou, o quanto lhes foi possível, uma vez que os tempos da obscuridão ter-lhe-ão coartado a ânsia de mandar os seus descendentes para estudos médios ou superiores, visto que as possibilidades financeiras do clã familiar eram demasiado escassas, ou ainda filhos de um regime totalitário, Estado Novo, onde o poder sobre o mais incauto cidadão impunha ordens absolutas aquando o pessoal reclamava, apenas, um compreensível dia de trabalho que, nesses idos, eram tão-só sazonais.

Os tempos eram outros! Tempos em que a liberdade, melhor, a falta dela em expressar sensibilidades pessoais tinham o condão de enviar os mais destemidos para “campos de férias”, mas onde as grades de uma prisão se apresentavam como inequívocas realidades. Pessoas sérias, honestas, uns “letrados” com então a 4ª classe, já era bom, outros analfabetos, mas cuja altivez dalguns passou pela prisão política. Seres humanos que se entregavam de alma e coração a uma profícua convicção que entendiam como justa e, sobretudo, para o bem do seu povo. Mas, do outro lado, lá estavam sempre atentos os fiéis agentes de um regime que não dava tréguas ao mais honesto plebeu.

Fomos crianças alegres, brincámos na rua, jogámos ao berlinde, à bola, algumas de trapos outras com bexigas de porco cujo enchimento era feito através do ar que vinha dos nossos pulmões, à pata, ao eixo, ao pau da lua, e de tantas outras brincadeiras que ainda hoje recordamos, crescemos a ouvir as barbaridades omnipotentes vindas de um Estado Novo, de agentes de uma PIDE que tudo ou quase tudo dominavam, conhecemos inegáveis sofrimentos de famílias marcados pelos constrangimentos das austeras estratégias de pessoas que envergavam fatos à príncipes de Gales com gravatas de seda pura, mas vimos um dia o desamarrar das âncoras do medo que nos prendiam a uma governação que fora substancialmente impiedosa. 

Porém, o 25 de Abril de 1974, a glorificada Revolução dos Cravos, abriu-nos as portas para a Liberdade e, fundamentalmente, para o conhecer novos mundos e novas realidades.

Perfilho, com toda a legitimidade, que essas lealdades de outrora nos trouxeram novéis conhecimentos, novas vidas, novos universos que harmonizaram em indesmentíveis empatias sociais. Aliás, somos de uma geração que teve a oportunidade em conhecer as remodelações dos lugares, ou, em síntese, reestruturações humanas, créditos estes que paulatinamente se transformariam ao cimo desta imensa esfera chamada Terra.

Assistimos à guerra colonial da qual fomos mais um dos muitos milhares de camaradas que por lá andaram, no nosso caso em solo guineense, sendo que a peleja começou em Angola, 1961, estendendo-se a Moçambique e Guiné, terminando o conflito em terras de além-mar com a queda do poder até então instalado sob o camando dos Capitães de Abril.~

Nós, jovens militares, fomos enviados para o palco de uma guerra na qual os camaradas no momento em que se deparavam com os conteúdos reais da guerrilha, lançavam exclamações de raiva, de revoltas incontidas e de impropérios “berros” que os transportavam para um tabuleiro, que não sendo o de xadrez, mas um outro em que se esculpia a simples frase: “matar para não morrer”!

 Sim, como sabeis camaradas, porque é inevitavelmente verídico, muitos companheiros perderam as vidas nas frentes de combate, outros nas "picadas", ou em emboscadas, outros no interior dos seus quartéis resultantes de ataques noturnos levados a cabo pelo IN, mas quando descansavam num sono, que não sendo profundo, o seu descansar permite-me, agora e sempre, parafrasear uma metáfora que se traduzia, naqueles tempos, num "descansar de armas". E tantos foram os camaradas mutilados e de muitos outros cuja patologia os remete para inesperadas circunstâncias de vidas de todo inesperadas.

Quando a revolução de Abril “rebentou” e se ouviu o som do clarinete a emanar a sonoridade do toque a reunir, este vosso camarada cumpria a missão militar na Guiné, precisamente em Nova Lamego, Gabu. Claro que todos rejubilámos com tamanha aventura. Seguiram-se momentos de intercambio com elementos do PAIGC, o conhecer de rostos com os quais antes havíamos combatido, trocaram-se “galhardetes” e eles, por fim, assenhorearam-se das nossas instalações.

Naturalmente que pelo meio de tanto alvoroço, a população, sempre expectante, não dava tréguas aos camaradas que assumiam o serviço da porta de armas. Reuniam-se em grupo e vá de reclamar quiçá benesses. Os seus semblantes indicavam acumuladas incertezas.

 Compreendia-se. A nossa missão chegara ao fim. Brevemente voltaríamos a casa. Ficava o nosso repto: “até sempre,  Nova Lamego”!

E eis-me, finalmente, no dia 4 de setembro de 1974 com o camarada Santos à porta das nossas instalações de malas feitas e prontos para o embarque num avião Noratlas que nos conduziria ao aeroporto de Bissalanca, seguindo-se uma viagem para o quartel do Cumeré, local onde permanecemos até ao regresso a Lisboa, Figo Maduro.

Momentos inesquecíveis que levarei comigo para a eternidade, tendo em linha de conta aquele Abril, e o seu cravo vermelho!

Abraço, camaradas

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

__________ 


Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

19 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25410: Os 50 anos do 25 de Abril (9): "Factum": c. 170 das melhores fotografias do Eduardo Gageiro, no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, até ao próximo dia 5 de maio

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25404: No 25 de Abril de 1974 eu estava em... (30): Em Bolama, à espera do meu "periquito"... Embarquei nos TAM, em meados de maio, a expensas minhas (João Silva, ex-fur mil at inf, CCAV 3404, Cabuca; CCAÇ 12, Bambadinca e Xime; CIM, Bolama, 1972/74)



 a título póstumo, nº 866, desde 22 de outubro de 2022


1. Comentário de João Pedro Candeias da Silva (1950 - 2022), ex-Fur Mil At Inf, CCAV 3404 (Cabuca, 1972), CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973) e CIM Bolama (1973/74), ao poste P 13078 (*):

Estava em Bolama no dia 25 do quatro (**)... e dias seguintes, onde pude aperceber-me da confusão, isto é, da falta de informação que chegava pelo menos aos furriéis.

Assim ficamos durante largos dias, vivendo de boatos, alguns mais tarde confirmados como a prisão do Comandante-Chefe.

Recordo que uns dias mais tarde, não é para rir, fomos informados pelo major Lima, uma bela peça, que poderíamos, se o quiséssemos, participar numa manifestação do PAIGC. 

Que me recorde,  tal sugestão não teve aderência.

Depois a bagunça que veio afectar os que,  como eu, aguardavam a chegada do periquito. Acabou por não chegar. A muito custo e depois de alguma insubordinação, lá fui para Bissau onde aguardei alguns dias no QG o embarque nos TAM.

No dia aprazado eu e muitos outros militares fomos informados de que não tínhamos lugar no avião porque este estava ocupado pelo pessoal da DGS (Direç ão-Geral de Segurança) e família. 

Eu,  mais dois furriéis, um deles de nome Spínola, fomos ao QG, e obtivemos uma autorização escrita do Major Freitas, responsável pelas companhias africanas, para regressarmos a Lisboa a extensas próprias, documento que ainda hoje tenho.

Fomos à TAP,  comprámos o bilhete e, no dia seguinte, já em meados de maio de 1974, aterrámos em Lisboa.

Penso não haver muitos militares que fizeram a viagem de regresso a sua casa pagando do seu bolso.

Foi a primeira benesse que o 25 de Abril me ofereceu.

João Silva ex-furriel mil, Ccav 3404, Cabuca, Ccaç 12, Bambadinca e Xime, CIM, Bolama.

2 de maio de 2014 às 15:45 (*)


2. Fichas de unidade > CIM - Centro de Instrução Militar

Identificação; CIM
Cmdt: Cap Inf José Manuel Severiano Teixeira
Cap Inf António Lopes de Figueiredo
Cap Inf António Ferreira Rodrigues Areia
Cap Inf Laurénio Felipe de Sousa Alves
Cap Inf António Feliciano Mota da Câmara Soares Tavares
Cap Inf João José Louro Rodrigues de Passos
Cap Inf Alcino Fernando Veiga dos Santos
Cap Inf António de Matos
Cap Art Samuel Matias do Amaral
Cap Inf Carlos Alberto Antunes Ferreira da Silva
Maj Cav Carlos Manuel de Azeredo Pinto Melo e Leme
Maj Inf Carlos Alberto Idães Soares Fabião
Maj Inf Fernando Jorge Belém Santana Guapo
Maj Cav José Luís Jordão de Ornelas Monteiro
TCor Inf Octávio Hugo de Almeida e Vasconcelos Pimentel
TCor Cav Raúl Augusto Paixão Ribeiro
Cor Inf Carlos Emiliano Fernandes

Divisa:

Início: Anterior a 1Jan61 | Extinção: 14Set74

Síntese da Actividade Operacional

Era uma unidade da guarnição normal, tendo sido criada inicialmente em
Bissau no aquartelamento de Santa Luzia, a partir de 17Mar59, com a finalidade
de ministrar instrução militar ao pessoal residente na Guiné e já recenseado
e com documentos de identificação nacionais. 

Inicialmente, com a designação Centro de Instrução de Civilizados, passou, a partir de 24Nov59, a ter a designação de Centro de Instrução Militar, ministrando também instrução a praças I(ndígenas).

Em 20Mai61, foi transferido para Bolama, tendo assumido a responsabilidade
do subsector respectivo, o qual englobava ainda as ilhas de Bijagós.

Para além da instrução básica e especial ministrada aos militares do
recenseamento local para formação de diversas especialidades, efectuou ainda a
IAO de unidades e subunidades metropolitanas, esta instrução especialmente a
 partir de meados de 1970, e estágios de Oficiais e Sargentos para enquadramento
de unidades africanas da guarnição normal. 

Efectuou também acções de patrulhamento e de contacto com as populações, garantindo ainda a segurança, protecção e controlo dos itinerários, dos aldeamentos e das populações, contribuindo para o seu desenvolvimento social, económico e cultural e superintendendo no funcionamento do Centro de Licenças de Bolama.

Em 14Set74, na sequência do plano de retracção do dispositivo e após
entrega do aquartelamento de Bolama ao PAIGC, o Centro foi desactivado e extinto.

Observações - Tem História da Unidade, referente a lJan72 a 30Jun74 (Caixa n.º 117 - 2ª Div/4ª  Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp. 683/684.
__________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de maio de  2014 > Guiné 63/74 - P13078: O golpe militar de 26 de abril de 1974 no TO da Guiné: memorando dos acontecimentos, pelo cor inf António Vaz Antunes (1923-1998) (Fernando Vaz Antunes / Luís Gonçalves Vaz): Parte I

(**) Último poste da série > 14 d abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25386: No 25 de abril de 1974 eu estava em... (29): Bissau, Depósito de Adidos, era oficial de justiça, na Secção de Justiça... e a viver com a minha mulher, em "segunda lua de mel"...( Joaquim Luis Fernandes, ex- alf mil, CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973, e Depósito de Adidos, Brá, 1974)