HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (15)
ESSA ESTÁ MUITO BOA!
O COLÉGIO MILITAR!... OUTRA VEZ.
Os alunos do C.M. eram todos (serão ainda?) internos. Passavam apenas o fim de semana em casa com os pais ou com os encarregados de educação; regressavam ao colégio no domingo, até às 22h00.
Durante a semana viviam em autêntica “clausura”; não podiam receber chamadas telefónicas nem eram autorizados a comunicar com o exterior.
Com certa frequência, porém, os alunos mais velhos desenfiavam-se durante a noite; iam até Carnide ou Benfica ou, por vezes, aventuravam-se a viajar até à Baixa da cidade. Cada um tinha os seus motivos e objectivos para dar o salto: namoro, lavar os olhos, o prazer de infringir a Lei, confortar o estômago, etc.
No último caso o petisco mais frequente constava de ovos com chouriço e, certamente, um copo de tinto... ou branco.
Uma das incumbências especias do oficial de dia era impedir que os alunos saltassem os muros depois de jantar ou depois do toque a recolher – tarefa extremamente ingrata de cumprir ou.. praticamente (quase) impossível.
Falhada esta obrigação, o oficial de dia devia tentar averiguar se algum aluno se ausentara indevidamente e tudo fazer para surpreender o(s) faltoso(s) no regresso às instalações do C.M.
Quando apanhados em flagrante – o que raramente acontecia - os prevaricadores eram punidos com três dias de privação de saída durante os fins de semana – pena aparentemente pesada – até porque durante sete ou oito anos – máximo – o aluno não podia ultrapassar quinze dias de castigo; se atingisse este limite, o aluno era automáticamente expluso.
Também era coagido a abandonar o C.M. o aluno que “chumbasse” duas vezes; o mesmo acontecia a quem fosse atribuida duas vezes a nota de “MAU”... em comportamento durante todo o curso.
Estes castigos podem até parecer, nos dias de hoje, fruto de legislação draconiana... mas não era tanto assim.
Entre os alunos do Colégio Militar a camaradagem não era palavra vã; acontecia permanentemente.
Sempre que um aluno cometia uma falta punível com privação de saída e já se encontrava muito perto do limite, logo outro aluno com “cadastro” limpo, ou com folga suficiente, se apresentava como sendo ele o infractor para que o companheiro não fosse expluso. Era uma maneira simpática de aliviar o fardo da disciplina para com os menos bem comportados.
Muitas vezes tínhamos a convicção (ou até a certeza) de que o aluno que se acusava não era o prevaricador... mas se ele “jurava” que era... nada mais a operar que aplicar-lhe o castigo proporcional correspondente à falta que alegava ter cometido.
Colégio Militar de Lisboa
Foto de Carlos Fidalgo, retirada do site Panoramio, com a devida vénia.Um dia eu estava de serviço e conversei longamente com quatro alunos do 7ºano (graduados) que eram os comandantes das quatro companhias de alunos; veio à baila o “peso” exagerado ou não dos castigos por fuga nocturna; os “graduados” entendiam que o rigor das penas era excessivo. Eu defendi o contrário e justifiquei:
- Em primeiro lugar temos de ter em conta que mais de 90% dos transgressores (fugitivos) não são apanhados e, consequenetemente não são castigados; os restantes são detectados apenas porque tiveram azar ou porque foram burros. Se o aluno tem azar, quem aplica a Lei nada pode fazer para além da aplicação do castigo determinado; se o aluno é burro (ou pensa que os outros o são), deve ser severamente punido e consequentemente expluso se atingir o limite legalmente estipulado, porque no C.M.... não pode haver vagas para atrasados mentais.
Os alunos entenderam bem a segunda parte da minha exposição; perguntaram, no entanto, o que eu entendia por “azar”. Respondi com um exemplo dum caso recente e notório:
- Azarado foi o nº X; vigiou cuidadosamente os movimentos do oficial de dia; teve a certeza que naquele momento o oficial de serviço não conseguiria detectá-lo; aproximou-se “distraidamente” sorrateiramente da porta que dá acesso à parada; correu perpendicularmente em direcção à Estrada da Luz; lançou as mãos ao cume do muro (mais de 2 metros de altura) que separa o C.M. daquela via, saltando para o exterior; por pouco não “aterrou” em cima dum oficial que casualmente por ali passava àquela hora. Aquele oficial “laçou-lhe a luva” e foi entregá-lo ao oficial de dia. Não foi castigado... porque fez um bom planeamento da sua actuação... apenas não contou com o azar que quase o tramava. Além disso era um aluno bem comportado, o que pesou na decisão de não castigar.
Um dia, estando eu de serviço, um bom bocado depois do toque a silêncio e apagada a iluminação, entrei numa camarata dos alunos mais velhos; havia apenas a luz de presença, as “vigias”; esta iluminação foi sufuciente para me aperceber que em determinada cama havia um “boneco”. Os alunos usavam o travesseiro e por vezes até o capote para fazer o “boneco”, tentando ludibriar o oficial de serviço. Aquele boneco até estava mal feito o que não abonava a favor do transgressor.
Esperei uns minutos! Fui até à sala de leitura; havia ali uma janela aberta por onde alguem teria eventualmente saído. Aguardei ali cerca de meia hora! Ninguém apareceu! Deitei-me no lugar do “boneco”!
Um pouco mais tarde ouvi alguém sussurar fora da camarata:
- Passa agora! Caminho livre!
Logo quatro alunos entraram eufóricos na camarata, convencidos do sucesso da sua aventura. Um deles, ao chegar junto da cama e, apercebendo-se que eu a ocupava, exclamou:
- Essa está muito boa, meu Tenente! Mas os ovos com chouriço... ninguém nos tira! O resto logo se verá!
Neste caso também não houve castigo; fiquei pela reprimenda, aquilo que os alunos ouviam com muita atenção (fingiam) mas que, habitualmente, entrava por um ouvido e velozmente saía logo pelo outro, sem qualquer efeito prático; tive em conta que um deles estava no limite da explusão e ninguém poderia assumir aquela culpa, porque foram apanhados em flagrante; o tal que corria risco até nem era mau rapaz; estava prestes a concuir o 6ºano.
Como se depreende, embora as punições parecessem duramente rigorosas... na prática não eram tanto quanto pareciam.
Uns tinham boa sina para escapar incólumes; outros sendo surpreendidos, contavam apenas com o apelo ao coração e à benevolência de quem os interceptava. Havia muitos dias de sorte!
Belmiro Tavares
Ten. Mi. Inf.
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Nota do Editor:
Vd. último poste da série de 26 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8821: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (14): Soldados não viajam em 1.ª classe