segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8917: Nós da memória (Torcato Mendonça) (3): Baguera, baguera e Desconforto





1. Em mensagem do dia 14 de Outubro de 2011, o nosso camarada Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 Mansambo, 1968/69), enviou-nos o segundo texto para publicação na sua série "Nós da memória".





NÓS DA MEMÓRIA
(…desatemos, aos poucos, alguns…)

3.1 - Baguera; Baguera

Aprontava-se o Sol para esfregar os olhos iniciando aquele dia e já eles estavam a caminhar.
Progressão cuidada, guias e um Grupo à frente e o dele logo atrás. O ruído da mata, o chilrear da passarada sossegava-os.

Entravam numa zona que fora cultivada de arroz e passaram para o cimo do muro de terra, entre os canteiros. Cuidados redobrados, passos mais lentos e os olhares a entrarem mata fora.
De repente, como sempre, um estrondo brutal um pouco atrás dele, o rebentar do tiroteio. Deitaram-se na espalda do muro para resposta pronta à emboscada, os gritos, o estranho som do chicotear de algumas balas no lado da emboscada.

- Que merda é esta?
- O carregador balanta a apontar para umas árvores atrás deles.
- Fogo, “rega” além com a MG, fogo…

Após as primeiras rajadas algo caiu com estrondo de uma árvore.
- Era macaco, dá mais uma ou duas rajadas… e pronto…

Minutos depois, ou uma eternidade depois, o silêncio só quebrado pelos gemidos dos feridos.
Sai, sai. Já pediram evacuações.
Agarrou no Furriel e carregou-o com as armas para o riacho à frente, os gemidos dele, o querer dizer algo e a resposta que ele dava para o animar. Pararam, deu-lhe água e ânimo, talvez só um olhar e um sorriso.

Dirigiram-se para o pequeno riacho quase seco e atolou-se na lama com o peso duplo de cada perna.
Surgiu então o grito: - baguera, baguera (abelhas). Parou, tentou cobrir a cabeça e cara do Camarada com o protector – um carapuço de tule ou tecido de mosquiteiro que enfiavam na cabeça. O cheiro do sangue trouxe-as mais irritadas e ele com o cabelo rapada e as ferroadas, a lama e, finalmente, o grito da ajuda.

Deixa uma arma porra. Eu levo o Furriel. Caminharam para o possível lugar da evacuação. O enfermeiro ia tratando aquela meia dúzia de feridos e o guarda-costas tirava os ferrões da cabeça dele.

Informou-se melhor do que se havia passado e a raiva veio forte, muito forte. Calma, porra. Tem calma logo os vingas. O cigarro indevidamente acesso.

Uma voz veio do lado dele:
- Não era macaco o cabrão e era mais do que um.

Riram…


3.2 - Desconforto

Já tinha ano e meio de Comissão. Sim ano e meio.
Estava farto, farto, farto. Que tédio.
De quando em vez a rotina era quebrada por uma noite de Loto. Santa Luzia animava-se então. De quando em vez interrompia-se o grito dos números pelo grito do vencedor. Tudo alegre e sorridente. Breve intervalo e novo jogo.

Havia outros, claro. Havia outros e tinham noites diferentes.

Poucas. Uma pasmaceira. Horrível viver naquelas condições. Ano e meio sem conforto, sem nada e já viera duas vezes de férias á Metrópole. Felizmente.

Diariamente era a Repartição, a papelada, aquela barafunda toda, os pedidos aborrecidos, chatos, de quem estava no mato e ele nem sabia onde. Que esperassem. Não esperava ele por lhe arranjarem o frigorifico, limpar o ventilador do ar condicionado ou outras faltas. Uma bagunça aquela Repartição.

Tudo era uma bagunça, um desconforto horrível naquela terra, naquele Quartel-General ou o que era. Até a casa onde estava instalado. Imprópria. Quando muito dava para duas pessoas. Estavam quatro, quatro oficiais – três Alferes e um velho Capitão do SGE. Ressonava o Capitão. Talvez o peso dos galões lhe tivesse entupido os cornetos.

Pior era o frigorífico. De quando em vez ou por carga excessiva ou pela electricidade não arrefecia o suficiente. Horrível viver assim.
Ainda faltavam seis meses, seis longos meses.

Mas já saíra de Bissau. Fora, com um Piloto amigo de infância, a Bolama e a Farim. Não gostara nada. Só a paisagem vista por detrás da janela da DO.
Ouvira ainda, raramente, o som de rebentamentos lá longe. Uma vez disseram-lhe ser em Tite. Assunto a ser resolvido por outros.

Esquecia-se, como acontecera na noite passada. Uma vez por semana, geralmente à sexta-feira, ia com amigos jantar ao Solar dos Dez. Acontecera na noite passada. Bebera demais, talvez. Certo é que se deitara e adormecera docemente ao som do Bolero de Ravel…

Acordara mais bem-disposto. Talvez da música e do sonho. Pequenos luxos naquele horrível fim de Mundo.
Um dia, quando voltasse teria muito que contar aos amigos daquela terrível guerra e logo a da Guiné.
Ficava triste ao recordar os amigos e amigas,

Que mês era? Julho… pior… Seis meses naquele fim de mundo…
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8873: Nós da memória (Torcato Mendonça) (2): Retaliação

2 comentários:

Anónimo disse...

Camarada Torcato

Provavelmente não seria só ficção.
Acredito que até houvesse "entediados" em Bissau..só que nunca se ofereceram para ir para a folia..digo mato.

"entediado" vai no mato que "folião" vai no Bissau.

Um abraço
C.Martins

Rui Silva disse...

Retrato perfeito (!) Eloquente (!) de uma vivência real.
Caro T.
Em poucas palavras dizes muito, quase tudo (ou tudo ?).
Falas no chilrear da passarada. Inolvidável! Todos, à sua moda (canto) faziam um hino à alvorada, do nascer de mais um dia, naquele local mais um dia de guerra.
Ouviamos-los cantar no preciso momento de enfrentar o inimigo, na circunstância.
Será que eles estavam a contestar?
Tinha raiva aquela passarada. Porque eram livres e cantavam à vida e para a vida.
Muitos músicos não desdenhariam descodificar aquela diversidade de notas musicais.
Fazes-me sair do computador e ir à Guiné.
Venho outra vez, vou lá outra vez.
Recebe um abraço.
Rui Silva.