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segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21506: Histórias... com abracelos do Carlos Arnaut (ex-alf mil, 16º Pel Art, Binar, Cabuca, Dara, 1970/72)(2): Segundo o meu antigo soldado Bona Baldé e outras fontes, cerca de metade do 16º Pel Art terá sido fuzilado depois da independência


Guiné > Região de Cacheu > Binar > Pel Art > Obus 14 > O Carlos Arnaut a introduzir os elementos de pontaria, com alguns serventes, soldados do recrutamento local, a apreciar.

Foto (e legenda): © Carlos Arnaut (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Carlos Arnaut, membro nº 817 da nossa Tabanca Grande, ex-alf mil art, cmdt do 16º Pel Art (Binar, Cabuca, Dara, 1970/72):

Date: sábado, 31/10/2020 à(s) 23:27
Subject: Crónica da Guerra da Guiné

Caro Luís,

Não posso deixar de me solidarizar com o Manuel Luís Lomba (*) quando critica, com toda a justiça, a ignomínia do abandono daqueles que na Guiné combateram ao nosso lado:

" Ao ignorá-lo, o MFA não terá cuidado de salvaguardar os mais de 60 000 naturais guineenses, militares e militarizados, voluntários ou recrutados ao serviço das FA portuguesas. Foram deixados para traz – uma traição a eles e uma indecência (no mínimo) para com os mais de 100 000 dos veteranos da Guerra da Guiné, para com os seus 2 500 mortos, para com os seus 4 000 feridos, a maioria no grau de deficiente e para com cerca de 20 000 pacientes de stresse pós traumático.

"O seu irmão e sucessor Luís Cabral, começou a aplicá-lo logo no após o cessar-fogo, e, diz-se que, entre 1974 e até 1976, sancionou com o fuzilamento, sem qualquer julgamento, mesmo sumário, diz-se que cerca de 11 000 guineenses, somando militares, militarizados portugueses e oposicionistas políticos ao regime do PAIGC." 


Mais do que indignação, foi com um profundo sentimento de revolta que ouvi da boca de um ex-soldado do meu pelotão, Bona Baldé, que cerca de metade dos seus, e meus, camaradas de armas tinham sido fuzilados logo após a independência.

Como todos os que conviveram com pelotões de artilharia bem sabem, os seus efectivos eram constituídos por graduados oriundos da metrópole e soldados do recrutamento provincial, como era o caso do Bona Baldé, de etnia fula.

Esta notícia foi-me transmitida aquando do nosso reencontro em Lisboa, que me comoveu até às lágrimas, em circunstâncias só possíveis pelo génio e persistência deste Guinéu na conquista do que lhe era devido pela Mãe Pátria.

Sem grandes certezas quanto a datas, presumo que no início de 1972, por ordem do Comando de Batalhão sediado em Nova Lamego, fiz deslocar uma secção de obus para reforçar a segurança do aeroporto, comandada pelo Furriel Rodrigues e de que fazia parte o Bona.

Dado que esta situação era de carácter temporário, o alojamento do pessoal foi feito em moranças de familiares e amigos, sob o olhar benévolo e condescendente do Rodrigues.

Nesse período Nova Lamego sofreu uma flagelação com mísseis, das primeiras, tanto quanto sei, que aconteceram no TO, tendo um deles destruído parcialmente a morança onde dormia o Bona Baldé, o que com o estouro lhe provocou a surdez do ouvido esquerdo e ferimentos ligeiros por projecção de detritos.

Quando do regresso a Dara da secção, reparei que o Bona girava a cabeça para a esquerda quando falava com alguém, tendo-me respondido que nada ouvia de um lado e daí o comportamento algo bizarro.

Depois dos abraços e notícias da família, foi pai de dois filhos durante a minha comissão sendo eu "padrinho" da filha mais nova, soube que tinha tido que fugir da Guiné para escapar à morte, quando me relatou o destino de outros camaradas, tendo-se refugiado na Mauritânia, onde mercê das suas qualidades conseguiu construir um negócio proporcionando à família uma vivência confortável.

Fiquei também a saber que a razão primeira da sua vinda a Portugal,onde o filho mais velho já estava a trabalhar, teve como objectivo tratar de obter uma pensão como deficiente das Forças Armadas, a que muito justamente considerava ter direito. 

Fiquei estarrecido com a sua competência em navegar nas ondas da nossa malfadada burocracia, tendo desenterrado no Arquivo Geral do Exército o relatório do ataque, conseguiu ser observado por uma Junta Médica, que confirmou a sua surdez irreversível, faltando apenas o meu testemunho no Auto de Averiguações já em curso para que lhe fosse outorgada a pensão a que tinha indubitavelmente direito.

Fui ouvido no quartel em Sacavém, onde confirmei quer as circunstâncias da sua presença em Nova Lamego, quer a sua óbvia surdez, tendo tido a alegria de não muito tempo depois receber o Bona em minha casa, portador de uma garrafa de Chivas em bolsa de veludo e rolha de prata, para além da notícia de lhe ter sido concedida uma pensão vitalícia com retroactivos à data do acontecido.

Estes diligências ocorreram em 1984, já ele se tinha entretanto estabelecido na terra natal, a poeira das vinganças já se tinha desvanecido, e os retroactivos de 12 anos devem ter-lhe caído como um jackpot no Euromilhões.

Numa romagem de saudade em 1985 à já então Guiné-Bissau, visitei Dara, onde me confirmaram quer o fuzilamento de soldados do meu pelotão como também o de diversos elementos do corpo de milícias, para além da amputação de três dedos da mão direita ao homem grande que nos vendia a carne de vaca que consumíamos no destacamento.

Perante tudo isto, ninguém pode deixar de sentir o sabor amargo de quem se sente traído pelo abandono daqueles que vestiram e honraram a nossa farda. (**)

Abracelo,

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21407: Histórias... com abracelos do Carlos Arnaut (ex-alf mil, 16º Pel Art, Binar, Cabuca, Dara, 1970/72) (1): Rissóis de marisco com arroz de tomate, na messe de oficiais do GACA2, Torres Novas


Guiné > Região de Binar > Bibar > Pel Art >  Obus 14 > O Carlos Arnaut a introduzir os elementos de pontaria, comn alguns serventes, do recrutamento local, a apreciar.

Foto (e legenda): © Carlos Arnaut (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Carlos Arnaut, Lisboa


1. Mensagem,  com data de 23/09/2020 à(s) 21:50, de Carlos Arnaut, o novo membro da Tabanca Grande, nº 817, ex-alf mil art, cmdt do 16º Pel Art (Binar, Cabuca, Dara, 1970/72) (*):


Caro Luís,

Quero em primeiro lugar agradecer a gentileza dos votos pelo meu aniversário. (*ª)

No tocante à tua pergunta sobre o pelotão de artilharia de Binar, parece incrível mas não me recordo do número já que fiquei por ali pouco tempo.

Consegui descobrir uma foto (que junto em anexo) onde estou a introduzir os elementos de pontaria num Obus 14 com alguns serventes a apreciar.

Esta amnésia é provável que faça parte de um mecanismo de auto-protecção mental, bloqueando nomes, datas e outros detalhes, pois em Binar protagonizei uma acção que poderia ter tido um desfecho trágico, fruto sobretudo da minha "periquitice".

É provável que venha a dar conta do que se passou numa próxima ocasião.

Como tenho vindo a constatar, as histórias relatadas pela rapaziada cobrem os acontecimentos mais diversos, desde experiências traumáticas a farras de todo o género.

Assim sendo, vou começar por vos contar um episódio que se passou comigo, ainda Aspirante em Torres Novas, pouco antes de ser mobilizado.


Boa noite, Luís, outras histórias se seguirão se para tanto não me faltar inspiração e a vocês paciência para as lerem.

Abraçelo (Abraço com cotovelo)


2. Histórias... com abracelos > Rissóis de Marisco 

por Carlos Arnault

Finda a especialidade (PCT) e após o tirocínio em Vendas Novas, já Aspirante, fui colocado em Torres Novas no GACA 2.

Após a apresentação da praxe ao Comandante, foi-me atribuída a missão de zelar pelo parque das baterias de 4 cm, o que desde logo me levou a concluir que o meu destino estava traçado.

Aquele material para mim eram fisgas quando comparadas com os obuses de Vendas Novas, pelo que fiz um acordo com a secção ali destacada:

 − Cabo, equipamentos e instalações sempre limpas, eu nunca estou ausente, ando por aí, e podem ir levantar todas as tardes à cantina uma garrafa de Lagosta (...lembram-se ?!) para o lanche.

Assim foi, fazia as contas semanalmente na cantina, era a felicidade suprema, com namorada já arregimentada nos convívios dos cafés chiques de Vendas Novas, até que, não há bem que sempre dure, tocou-me a gerência da messe de oficiais.

Após um período inicial, de estudo aturado da gestão hoteleira castrense, entendi ser criativo e fugir aos carapaus fritos, à massa guisada e às diversas iguarias com base no frango.

Convoquei o cozinheiro e seus ajudantes, começando por lhe perguntar se sabia fazer croquetes. O alarve respondeu-me que não percebia nada de estrangeiro, ainda hoje estou para saber se o sacana estava a gozar, e decidi-me então avançar para rissóis de marisco, sendo que o marisco se limitava ao berbigão.

Foram comprados de manhã na praça, antes do almoço, tendo eu tido o cuidado de estudar no livro de culinária que existia na cozinha quais os ingredientes necessários, e em que quantidades. As receitas eram para 10 pessoas, uma simples conta de multiplicar por 4 definiu quantidades, pelo que passei o receituário ao cozinheiro com as devidas instruções:

 − Isto, mais isto, mais aquilo, bem misturado, dá uma massa. Isto,  mais isto,  mais aquilo, dá um creme, a que juntas o berbigão. Estendes a massa com o rolo...

 − Não temos rolo,  meu Aspirante.
 
−  Usa uma garrafa, porra !, deitas uma colher cheia do recheio, dobras e cortas em meia lua.

 − Então,  corto como ? 

 − Usa um copo,  minha aventesma. Depois passas o pastel por ovo batido, a seguir pelo pão ralado e toca a fritar. Entendeste ???

 − Sim,  meu Aspirante, vá descansado que não há problema.

Montei a operação com todo o cuidado, até porque a Unidade entrou de prevenção e toda a oficialagem estaria presente, Comandante incluído, pelo que esperava brilhar com aquela ementa diferente de tudo o que era habitual.

A pressão era grande, a criatividade por vezes tem custos, pelo que a meio da tarde fui à cozinha para me certificar do andamento da receita. A massa já estava pronta, com bom aspecto, o recheio na fase terminal, tudo parecia rolar sobre esferas.

 − Vejam  lá,  não me lixem, está cá toda a gente, isto tem que correr às mil maravilhas.

Voltei costas, mesmo assim não completamente descansado, sem garantias que o meu atrevimento culinário fosse bem interpretado por malta que nem sabia (?) o que era um croquete.

Cerca das 19h30 voltei à cozinha para fiscalizar a última fase da operação "rissóis com arroz de tomate", a frigideira XXL fervilhava e eu ia tendo um colapso.

 − Então,  mas o que é isto,  seus sacanas ? Como diabo é que,  em vez dos pastéis que eu vos ensinei a fazer, passo a passo, vocês conseguiram parir estas bolas de ténis ?

De facto, ao olhar para o produto final, o que tínhamos era uma bola onde aqui e ali despontava uma ponta de berbigão, sabor não testado.

A explicação que se seguiu foi de que não tinham arranjado uma garrafa, como se tal fosse possível num quartel, e vai daí misturaram tudo, massa, recheio, ovos batidos, pão ralado, e toca a fritar.

Saí porta fora brindando-os com ameaças num vernáculo que não me atrevo a reproduzir, garantindo-lhes que aquilo que me viesse a acontecer reverteria para eles multiplicado por 10.

Fui jantar fora, fugi, incapaz de enfrentar a turba decerto esfomeada que estaria a pedir a minha cabeça.

Como dormia fora, em casa de umas velhotas que me tratavam com todo o carinho, só na manhã seguinte voltei ao quartel, qual Egas Moniz de baraço ao pescoço, quando,  para minha grande surpresa,  percebi que nem sequer se tinha levantado qualquer celeuma.

A ordem de prevenção tinha sido levantada, toda a gente se tinha pirado para o fim de semana, tendo ficado na unidade apenas aqueles que com famílias muito distantes se viam obrigados a ficar confinados ao quartel, pelo que o jantar só foi servido a meia dúzia de gatos, um dos quais ainda por cima elogiou a ementa, dizendo nunca ter visto tal petisco mas que era bem bom.

A sorte protege os audazes.

Carlos Arnaut
_________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 12 de setembro de  2020 > Guiné 61/74 - P21351: Tabanca Grande (502): Carlos Arnaut, ex-alf mil art, 16º Pel Art (Binar, Cabuca, Dara, 1970/72): senta-se, no lugar nº 817, à sombra do nosso poilão