Fot (e legenda): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
O ex- furriel mil Joaquim Costa, Natural de V. N. Famalicão,
vive hoje em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.
Tem quase pronto o seu livro de memórias,
de que estamos a editar alguns excertos, por cortesia sua.
Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)
Parte XVII: O “Cantiflas”... do Cumbijã (ou a "bigodaça” que tanto incomodou os senhores da guerra)
Estava eu em Bissau, regressado de férias a Portugal, quando, ao entrar no quartel dos Adidos, completamente alheado de tudo (ainda estava a digerir/moer a notícia que um camarada da companhia tinha morrido atingido por uma granada num ataque ao Cumbijã) (*), sinto um soldado a correr atrás de mim, já esbaforido por muito me chamar, e me informa que o comandante do quartel queria falar comigo.
Fiquei atónito. Pensei: "fAinal, devo ser muito importante neste teatro de guerra. Com centenas de militares a passarem diariamente aquela porta e logo havia de me chamar a mim! Queres ver que me vai oferecer um lugar nos altos comandos?"
Lá vou eu, meio entusiasmado e a tremer como varas verdes, falar com o “homem grande” do quartel dos Adidos. O altíssimo graduado (altíssimo, já que o amarelo ocupava quase na totalidade os seus ombros) ainda antes de me mandar entrar, sem perguntar quem eu era, de onde vinha e para onde ia, atira-me à cara: "Você já se viu ao espelho?"
Eu, a gaguejar, lá fui dizendo: "Meu comandante, no nosso destacamento não há espelhos"…
Seguiu-se a ordem: "Vá imediatamente ao barbeiro e rape-me essas excrescências dependuradas nesse lábio superior".
Não obstante a “tremideira”, ainda pensei: com toda a região a ferro e fogo, com a guerra praticamente perdida e a preocupação deste altíssimo graduado é o bigode (ou quase bigode) do Furriel Costa?… Pensaria o homem que, cortando o bigode do furriel Costa, a situação dramática que se vivia no terreno ia dar a volta? Enganou-se. Não deu! Em abono da verdade talvez porque eu, não respeitando a ordem superior, não cortei o bigode!… (Foto nº 1)
Analisando hoje mais friamente a situação, constato que o homem (em abono da verdade não sei se era o comandante ou alguém do seu “staff”) teve muita sorte na pessoa que escolheu para alimentar o seu ego. Alguém que ansiava, mais que tudo, que o tempo passasse para regressar a casa para junto da família e amigos, pelo que, disposto a cumprir, até ao limite da dignidade, todos os ensinamentos e conselhos do seu irmão e “padrinho de guerra”: "Respeita os teus superiores"!!!
Acabado de chegar de férias, a caminho de uma zona a ferro e fogo, com a notícia da morte de um camarada (o terceiro), no dia anterior num ataque ao destacamento, e ser confrontado por um alto graduado do ar condicionado de Bissau, com sofá de veludo (pelo menos parecia) e cristaleira com garrafas de uísque e copos de cristal (pelo menos pareciam já que não tinham pó – coisa rara na Guiné), embirrando, com a arrogância dos fracos, com o seu bigode,!... fosse alguém com o sangue mais quente e uma tragédia teria acontecido…
Este altíssimo graduado precisava de passar um dia no Cumbijã, fazendo revista às tropas em parada no dia da operação “Balanço final” (assalto a Nhacobá). O mais provável era não haver operação já que, analisando a fotografia do meu pelotão, ninguém estava em condições (de ir de fim de semana) de sair do destacamento (Foto nº 2)…
Foto nº 2 > Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 (1972/74) > O meu pelotão, em mais uma saída para o mato, “devidamente fardado” e armado “até aos dentes” para o que der e vier…
Acabado de chegar de férias, a caminho de uma zona a ferro e fogo, com a notícia da morte de um camarada (o terceiro), no dia anterior num ataque ao destacamento, e ser confrontado por um alto graduado do ar condicionado de Bissau, com sofá de veludo (pelo menos parecia) e cristaleira com garrafas de uísque e copos de cristal (pelo menos pareciam já que não tinham pó – coisa rara na Guiné), embirrando, com a arrogância dos fracos, com o seu bigode,!... fosse alguém com o sangue mais quente e uma tragédia teria acontecido…
Este altíssimo graduado precisava de passar um dia no Cumbijã, fazendo revista às tropas em parada no dia da operação “Balanço final” (assalto a Nhacobá). O mais provável era não haver operação já que, analisando a fotografia do meu pelotão, ninguém estava em condições (de ir de fim de semana) de sair do destacamento (Foto nº 2)…
Foto nº 2 > Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 (1972/74) > O meu pelotão, em mais uma saída para o mato, “devidamente fardado” e armado “até aos dentes” para o que der e vier…
Foto (e legenda): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Veja-se, a propósito, o comentário (que me foi enviado por mail), feito pelo meu camarada e grande amigo Machado, ex-furriel mil da minha companhia, ao meu post sobre o regresso de férias:
Amigo Costa
Já li o teu último post e gostei muito, apesar de teres levado o terceiro murro no estômago quando chegaste de férias em 1973. Eu estava no Cumbijã e o ataque foi de noite no meio duma grande trovoada que não nos deixava distinguir as saídas do canhão ou rampa de lançamento.
Só tive tempo de sair do bar e abrigar-me atrás do embondeiro [, talvez poiolão] que estava perto da saída, embondeiro esse que foi furado dum lado ao outro por uma das granadas. Apanhei um susto que até perdi o meu isqueiro Ronson mas encontrei-o no dia seguinte.
O pessoal de noite com lanternas na mão procurou rapidamente abrigo nas valas pois a iluminação elétrica do Cumbijã tinha sido cortada por falta de pagamento, mas o Fausto Costa que era do meu pelotão e um excelente camarada foi atingido por uma granada que lhe caiu nos pés.
São os horrores da guerra que daí para a frente iria ficar mais complicada. Eu, no início de 1974, vim de férias e só consegui sair de Aldeia Formosa numa avioneta militar que foi fazer uma evacuação dum soldado do Batalhão com uma perna partida, havia 5 ou 6 dias. O sargento que conduzia a avioneta ofereceu-se como voluntário para a evacuação. Não havia aviões privados para alugar, já não levantavam voo por causa dos misseis. Estava em Aldeia a ver se aparecia algum meio de transporte para Bissau e estava a ver as minhas férias a ir ao ar, já com o bilhete TAP marcado tinha 2 dias para chegar a Bissau.
Quando vi a avioneta militar a pousar na pista fui a correr falar com o piloto pedir para me levar. Ele acedeu ao meu pedido, mas obrigou-me a fazer uma declaração de responsabilidade assinada pelo comandante do batalhão de Aldeia Formosa. Corri tanto para um lado e outro lá encontrei Tenente-Coronel que me disse: "Você sabe como está o espaço aéreo", eu disse que sim e que me responsabilizava , ele assinou a minha declaração e lá vim eu com e doente da perna partida a gemer. A avioneta levanto voo e esteve a ganhar altura a fazer círculos durante meia hora por causa dos misseis. O piloto depois mostrou-me que estava a ser escoltado por dois T6 que voavam muito alto e que nos acompanharam até Bissau.
Com tantas voltas cheguei a Bissau enjoado. Quando a avioneta parou e abriu a porta, eu saí a fugir e só ouvia piloto a dizer "Não atravesse a pista". Quando li este teu post, pensei que até para virmos de férias era uma aventura de grande risco.
Um grande abraço …. e continua a escrever. Machado.
Em abono da verdade (e para descanso do meu irmão Manuel), não desrespeitei a ordem do superior, mas, tal como dizia o meu irmão Avelino “finúria” para quem se arma em fino: antecipando a viagem para o Cumbijã, embarcando nesse mesmo dia num Nordatlas, não sobrou tempo para o corte…
Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 (1972/74) > Foto do pelotão do furriel Machado (o primeiro da esquerda de pé) e do furriel Aleixo (o segundo da direita de pé e de óculos escuros)... As bigodaças do Machado e do Aleixo, bem como de um ou outro soldado, ao contrário da minha, sempre passaram na vistoria da “ASAE” de Bissau... Á foto é do Machado.
Foto (e legenda): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
(Continua)
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Nota do editor:
(*) Vd. poste de 22 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22561: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XVI: O regresso de férias e o terceiro murro no estômago