quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22561: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XVI: O regresso de férias e o terceiro murro no estômago


S/l > s/d > Nordatlas – A viagem de uma vida!!!… Foto; cortesia do blogue  Luís Graça & Camaradas da Guiné  




O ex- furriel mil Joaquim Costa, Natural de V. N. Famalicão,
vive hoje em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado. 
Tem quase pronto o seu livro de memórias, 
de que estamos a editar alguns excertos, por cortesia sua.


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) 

Parte XVI:
O regresso de férias: O terceiro murro no estômago 

 Chegado de férias a Bissau, levo logo com um murro no estômago. Sou informado por camaradas em trânsito que, num ataque ao Cumbijã, com o conhecido canhão sem recuo do IN, manobrado por Cubanos, uma granada atingiu um grupo de soldados da companhia, dentro do destacamento, provocando um morto e vários feridos. Foi mau demais. Ao primeiro passo na Guiné sentir que tudo estava como deixei, ou pior...

Passei o dia arrasado, reconfortado por um conterrâneo, 1.º cabo especialista da Força Aérea, pensando que o melhor era tentar retardar o meu regresso a Cumbijã o mais possível, arranjando todo o tipo expedientes para conseguir tal desiderato. O normal era aguardar a LDG de abastecimento até Buba, esperar pela coluna para Aldeia Formosa e depois apanhar a coluna da água, diária, de Aldeia para o Cumbijã.

O abastecimento de água e outros produto para o Cumbijã continuava a ser feito diariamente com uma coluna da responsabilidade da nossa companhia, onde corríamos riscos permanentes, pois foi numa destas colunas que sofremos a primeira baixa.

Vou dormir ao quartel dos Adidos em Bissau amparado pelo meu conterrâneo que me fez uma visita guiada pelos locais de frequência obrigatória na cidade. Encharcado de ostras, cerveja e whiskym  não me saíam da cabeça as notícias do ataque ao Cumbijá e a perda de mais um amigo. Não dormi um segundo que fosse, sempre com o Cumbijã na mente e com o pensamento na “família adotiva” que estava a viver mais um momento dramático.

Levantei-me cedo, obcecado com a partida urgente para o Cumbijã. Não suportava mais uma noite em Bissau.

Fui saber quando estava prevista a minha partida, ao que fui informado que iria na LDG que partia dentro de 3 dias. Insisti que tinha muita urgência em regressar. Depois de alguns contactosm foi-me sugerido ir no Nordatlas (avião de transporte de carga e passageiros dos anos 50) para Aldeia Formosa, que partia nesse dia.

A viagem de Nordatlas, carregado só com carga, foi surreal. Sentado num banco rebatido, de costas para uma pequena janela, com o cinto bem apertado devido à trepidação, e com os pés em cima de sacos de batatas, transportou-me para imagens da segunda guerra mundial. Para além de batatas, era todo o tipo de produtos, supostamente frescos, alguns já em putrefação dado o cheiro a podre dentro do avião.

Não havia uma peça ou uma chapa do avião que não batesse, dando a sensação que tudo se ia desintegrar. Fiz a viagem em permanente sobressalto, com mais receio da falha do motor, que a cada momento me parecia que ia acontecer, do que dos famosos mísseis terra ar Strela.

 A aterragem, na pista de terra batida em Aldeia Formosa, deslizando no terreno enlameado e saltitando de buraco em buraco até se aninhar definitivamente (acompanhado de um grande suspiro de alívio deste passageiro improvável), foi o pináculo do medo. Situação só comparável à minha primeira visita à Madeira, com os destroços bem visíveis do avião da TAP que tinha caído meses antes (19 de Novembro de 1977 e onde morreram 131 pessoas), aterrando numa pista mais pequena que a de Aldeia Formosa[?], com católicos e ateus a rezarem quando o avião se faz à pista, com aplausos, vivas ao piloto e abraços de gente que não conhecia de lado nenhum...

Não tenho memória de ter caído na Guiné nenhum destes aviões, embora reza a história que, sempre que aterrava, já só levantava com a intervenção dos “milagreiros” dos técnicos.

Toda a minha ânsia de chegar ao Cumbijã não foi, obviamente, nenhum arrebatamento heroico (o medo estava lá), simplesmente concluí que me sentia muito mais seguro e confortável em casa (em Cumbijã, junto da “família”) do que em Bissau. Cidade que mal conheci, da qual guardo uma vaga ideia e uma má memória com a fuga ao “Caifás”, que será revelada no próximo capítulo...

Continua...
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7 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

As férias eram uma armadilha... Era um pesadelo voltar ao inferno... Luís

Hélder Valério disse...

Olá Joaquim

Pois sim, que calculo que essas situações de estar longe do local dos problemas mas com algum "sentimento de culpa" por esse facto, te fizessem balançar entre a vontade de distanciar a partida para lá e a urgência da viagem. E parece-me, pelo que li, que foi assim mesmo que as coisas se passaram.

Realmente, estando a Guiné muito mais próximo da "Metrópole" do que os outros "TO", foi possível, aos que tiveram condições para tal, fazer dois períodos de férias por cá. Comigo foi assim. E, se por um lado se dividiu a comissão em três períodos de 8 meses, sensivelmente, a verdade é que isso implicou 3 partidas, 3 separações, cada qual com as suas angústias.
Recordo que em mim o efeito era procurar junto dos meus amigos e familiares manifestar um à vontade e uma tranquilidade que proporcionasse confiança mas dei por mim a procurar algum isolamento onde podia dar largas ao meu lado mais taciturno.

Entretanto, o teu relato da viagem em "Nordatlas" fez-me recordar o meu, aquando do meu destina para Piche. Também fui num transporte assim, não me recordo se era ou não um Nordatlas, para Nova Lamego (Gabú) onde aguardei, salvo erro 2 ou 3 dias para integrar a coluna para Piche.
Nessa viagem do meio aéreo também segui em banquinho de lona de costa para a fuselagem, a lembrar o que se via nos filmes da 2ª GG com o transporte das tropas paraquedistas, e onde também a fuselagem tinha um comportamento "musical" e com o espaço interior cheio de géneros alimentares. Creio que também tinha os pés sobre sacas de batatas. Relativamente a cheiros a podre, isso não, o que mais recordo era o cheiro de louro que estava pro cima das carnes.

Enfim, recordações de "outras vidas".

Hélder Sousa

Carlos Vinhal disse...

Luís, ninguém era obrigado a vir à metrópole, havia muita malta que optava por passar as férias em Bissau.
Abraço
Carlos Vinhal

antonio graça de abreu disse...

Praticamente dia sim dia não, tínhamos os Noratlas na pista, de asfalto, de Cufar, anos 73/74. Reabasteciam de géneros, através da descarga em Cufar, parte do sul da Guiné,os aquartelamentos do Cantanhez, e faziam evacuações, até de noite, com a pista iluminada com as mechas acesas em petróleo em garrafinhas de cerveja. Havia os strella que jamais alvejaram um Noratlas. Viajei bastante nestes aviões (Bissau/Cufar, Cufar/Bissau,) que conmeçaram a voar no início dos anos 50 do século (não têm a ver com a 2ª. guerra mundial) e tenho boa impressão dos aviões, robustos e eficientes. Não voavam presos por cordéis. Cumpriram a sua missão.
Abraço,

António Graça de Abreu

gil moutinho disse...

A pista de Aldeia era asfaltada em 72/74 não sei desde quando.
Os "barriga de ginguba" eram fortes e feios e a insonorização não era prioritária
gil Moutinho

Valdemar Silva disse...

Hélder Valério
Se coluna Nova Lamego-Piche tivesse sido de meados de 1969 até meados de 1970, talvez fosse a rapaziada da minha CART11, eu próprio incluído, a fazer a segurança dessa coluna como várias vezes acontecia.
Uma vez viajei de Nordatlas de Nova Lamego-Bissau, para vir de férias, sentado naqueles assentos de lona e via-se um dos motores a "incendiar" com a combustão(?).Uff!
Abraço
Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Pois, assim era. Estava sempre mortinho por sair de lá, do mato. Os dias de férias terminavam em menos de um fósforo, mas, chegado a Bissau, vivia aquele sentimento contraditório, entre não ter pressa de voltar a Mampatá e sentir remorso de por estar lá a fazer falta. Vencia sempre o segundo.

Um abraço.

Carvalho de Mampatá