segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22557: Notas de leitura (1382): “Mare Nostrum”, por João Paulo Oliveira e Costa; Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2013 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Outubro de 2018:

Queridos amigos,
O historiador João Paulo Oliveira e Costa é hoje um nome de referência obrigatória nos estudos da Expansão Portuguesa. Juntou neste trabalho "Mare Nostrum" as suas tomadas de posição quanto ao relevo que deve ser dado ao reinado de D. Afonso V e como este foi um galvanizador do processo expansionista. O seu trabalho enfatiza a formação do aparelho central da administração ultramarina e aí se confirma que a Guiné foi a primeira peça desse aparelho, lança nomes e refere estratégias. Para que conste, o estudo da Guiné Portuguesa bem merecia que uma equipa de historiadores reelaborasse tudo quanto se tem vindo a escrever, dando à estampa uma obra com novo sopro e dimensão mais ampla a trabalhos anteriores, muitos deles profundamente desatualizados.

Um abraço do
Mário



A Guiné na formação da administração ultramarina no século XV

Beja Santos

A obra “Mare Nostrum”, por João Paulo Oliveira e Costa, Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2013, é uma coletânea de ensaios de um historiador, professor catedrático e diretor de Anais de Histórias de Além-Mar, com extensa obra, e reconhecido como cientista de mérito. Como o investigador escreve na introdução, “A primeira parte desta obra reúne estudos sobre a intervenção da Coroa no império emergente. Analisei as origens da Expansão, os primórdios dos Descobrimentos e o modo habilidoso, mas firme, como o reino de Portugal se apropriou do mar oceano, é um fio da História a partir do governo de D. Afonso V. Apresento-vos uma imagem do monarca bem diferente da que é propalada pela maioria dos autores, um monarca empenhado no alargamento do poder marítimo de Portugal”.

O historiador parte da premissa de que os portugueses foram pioneiros na exploração do Atlântico devido à localização geográfica, da precoce definição das suas fronteiras e de terem beneficiado do desinteresse de outras potências europeias, que estavam envolvidas em guerras de fronteira ou em processos de centralização política que as impediam de desafiar o oceano. Estuda a nobreza nos primórdios da Expansão e recorda que até meados do século XV a Coroa permaneceu quase à margem da expansão marítima: “Embora a viagem que desencadeou os Descobrimentos tivesse ocorrido em 1434, no início do reinado de D. Duarte, este faleceu pouco depois, num momento em que as atenções do país estavam concentradas em Marrocos e nas consequências na campanha que D. Henrique comandara desastradamente contra Tânger, em 1437”.
D. Afonso V dará uma atenção especial ao processo expansionista. Nos anos 1450, a despeito dos privilégios do Infante D. Henrique, o infante enviou navios seus à Guiné e instituiu pelo menos um oficial régio relacionado com oso negócios africanos. Assim, em 1453 enviou três caravelas suas à Guiné; em 12 de abril de 1455 criou o cargo de “recebedor de todos os mouros e mouras e quaisquer outras coisas que vierem da Guiné” e atribuiu-o a Fernão Gomes. É muito provável que o nomeado fosse o mesmo indivíduo que mais tarde, em 1468, arrendou o comércio da Guiné à Coroa.

E o historiador continua:
“A criação deste ofício mostra-nos que a Coroa já intervinha nos negócios na Guiné, apesar do articulado da carta de 1443, que dera o exclusivo da navegação e do comércio a D. Henrique e que fora confirmada pelo africano, em 1448. O envio da expedição de 1453, a criação do ofício de recebedor, em 1455, e a doação, em 1457, ao infante D. Fernando, irmão do rei e herdeira da Casa de Viseu, de quaisquer ilhas que este fizesse descobrir no oceano parecem significar que os privilégios de D. Henrique terão sido alterados ligeiramente nos últimos anos da sua vida. Note-se ainda que pelo menos em 1451, a Coroa confirmara uma autorização dada pelo infante a um particular que ia negociar à Guiné. Com efeito, a 5 de fevereiro desse ano, a Coroa emitiu uma carta de seguro em que ‘tomava em sua guarda e especial encomenda’ a Abraão de Paredes, judeu, portador de uma licença do infante D. Henrique para ir negociar à costa da Guiné.
A 30 de setembro de 1459, o rei nomeou Diogo Borges, escudeiro da Casa Real, para o cargo de ‘recebedor do trato da Guiné’. A designação do cargo não é a mesma do original, mas tudo leva a crer que correspondesse exatamente às mesmas funções. Importa ainda assinalar que no caso de Diogo Borges, a documentação é clara quanto ao seu estatuto de membro da baixa nobreza, integrado na Casa d’el-Rei. Começava a definir-se um modelo de nomeações para os cargos relacionados com a administração ultramarina que repetia as práticas que a Coroa já seguia para os ofícios ligados ao governo do reino”
.

Adiante, o historiador Oliveira e Costa explana o que foi o início da administração régia da Guiné. Falecido o Infante D. Henrique, Diogo Borges é nomeado em fevereiro de 1461 ‘tesoureiro do trato da Guiné’. Por outras palavras, a Coroa deixava de receber apenas uma fatia dos proveitos obtidos na Guiné para passar a controlar diretamente a ação dos portugueses na região. Em 1462, Pedro Afonso é nomeado como ‘vedor da Fazenda das partes da Guiné’. Há nomeações, na mesma época, para o trato de Arguim.
Descreve o historiador:
“Entretanto, persistia o envolvimento dos mercadores algarvios nos negócios da Guiné. Num documento de fevereiro de 1464, encontramos referência a Pedro de Sintra, escudeiro da Casa Real, que desempenhava o cargo de ‘recebedor das coisas da Guiné que se arrecadam no Algarve’. A Casa de Viseu continuou a manter uma importante máquina administrativa ultramarina, pois conservava o governo das ilhas atlânticas. Além disso, o Duque tinha pelo menos um oficial ligado diretamente ao trato da Guiné; a 23 de novembro de 1461, Pero de Barcelos, então escudeiro da Casa Ducal, exercia o cargo de ‘recebedor das vintenas da Guiné’, cargo que conservaria pelo menos até 1497. Para os primeiros anos da gestão direta da Coroa sobre a Guiné não conhecemos outras referências a cargos relacionados com a administração dos negócios da Guiné, mas o número de oficiais ligados a esta atividade era seguramente maior. Talvez já estivesse então em funções Pedro de Alcáçova, escudeiro da Casa Real, que a 14 de dezembro de 1468 é referido como ‘escrivão da Câmara d’el-Rei e da Fazenda da Guiné’.”

O progresso da exploração da costa africana provocou a criação de um novo ofício, recorda o historiador. Gil Eanes foi ‘tesoureiro e feitor do trato da Guiné’, ele era Cavaleiro da Casa do Príncipe. “O caso de Gil Eanes é particularmente interessante pois nos anos em que exerceu o cargo a Coroa confiara ao príncipe a administração do comércio da Guiné. Fernão Lourenço, por sua vez, começou por ser designado ‘tesoureiro e feitor da Casa da Mina e tratos da Guiné’, e a 13 de setembro de 1501 passaria a ser designado como ‘tesoureiro e feitor dos tratos da Guiné e de todos os tratos da Guiné, Mina e de Sofala e das ilhas’.”. No seu trabalho, o autor também refere os cargos judiciais e a evolução deste aparelho administrativo decorrente do crescimento do império. Não resta dúvida que a Guiné foi a primeira parcela do continente africano a merecer as atenções da constituição do aparelho administrativo ultramarino. Mais adiante, Oliveira e Costa refere os problemas da missionação e lembra que D. João II procurou estabelecer uma série de alianças, tentando criar estados-satélites unidos a Portugal por uma religião comum. A primeira tentativa foi com o Bemoim, antigo rei dos Jalofos. Este foi batizado em Palmela, falou-se na construção de uma fortaleza junto do rio Senegal. Mas D. João Bemoim foi assassinado pelo capitão-mor da Armada, a fortaleza não se concluiu.
E vale a pena ouvir o autor quando procede ao balanço deste império português em meados do século XVI:
“O império português era uma entidade dinâmica, era um império marítimo que começava a desenvolver uma lógica de domínio terrestre.
Até 1521 predominara uma geoestratégia adequada ao mundo medieval. As áreas descobertas no final de Quatrocentos e início de Quinhentos haviam sido concebidas essencialmente como meios de enriquecimento rápido, e também como pontos de apoio que permitiriam alcançar velhos objetivos, como o da Grande Cruzada contra a Mourama”
.

Recorde-se que toda esta lógica foi ultrapassada com a viagem de circunavegação, com as descobertas do continente americano e a fragilidade de meios que levou à diluição da presença portuguesa na Senegâmbia, uma constante até ao século XIX.


Brasão de armas da Guiné, extraído do relevo da fachada do Banco Nacional Ultramarino, na Rua do Ouro, obra da década de 1960.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22539: Notas de leitura (1381): "No mato ninguém morre em versão John Wayne, Guiné o Vietname português", por Jorge Monteiro Alves; LX Vinte e Oito, 2021 (Mário Beja Santos)

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