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terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25167: Manuscrito(s) (Luís Graça) (245): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte V: 'Pés quentes, cabeça fria, cu aberto, boa urina - Merda para a medicina': 2. O autoritarismo sanitário do Estado Novo


O manual escolar mais famoso do Estado Novo. Da autoria de Barros Ferreira. Ilustrações do talentoso artista "Emmérico", Emérico Hartwich Nunes. 4ª edição, Porto Editora, 1958. Reimpressão, Editora Educação Nacional, janeiro de 2008.  Era o manuel mais "ideológico" da nossa instrução primária, mas era também aquele de que eu mais... gostava.



Capa do livro do musicólogo Luís Moita (1894-1967): O Fado, canção de vencidos: oito palestras na Emissora Nacional. Lisboa:  [s.n.] [Lisboa, Oficinas Gráficas da Empresa do Annuário Comercial], 1936, 357 páginas. Ilustrações de Bernardo Marques (1898-1962). 

Foi, na época, o inimigo público nº 1 do fado... "Enquanto cantamos o Fado, de cigarro ao canto da boca, olhos em alvo e paixão a arrebentar o peito, não passamos de um povo inferior, incapaz de compreender a vida moderna das nações civilizadas. Por isso repito aos rapazes  [da Mocidade Portuguesa] : ' Não cantem o Fado!' " (pág. 229). 

Tanto à esquerda como à direita, em diferentes quadrantes político-ideológicos, o fado nunca foi bem aceite pelas elites portuguesas... a não ser mais recentemente com a sua consagração como "património  imaterial da humanidade, pela UNESCO (2011). (Temos mais de 7 dezenas de referèncias com o "tag" ou descritor "Fado")


1. Comecei publicar no blogue, desde meados de março passado, uma série de textos, da minha autoria, sobre as ensinamentos que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer"...

São textos com cerca de 25 anos, que constavam da minha antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

Dediquei uma boa parte da minha vida (quase quatro décadas) ao ensino e à investigação da arte e da ciência da proteção da doença e da promoção da saúde, o mesmo é dizer às "coisas" da saúde pública... Não gostaria que alguns dos muitos textos que escrevi (em suporte de papel, e em formato digital) se perdessem, independentemente do interesse que ainda possam ter hoje. Não os vou atualizar (em termos de bibliografia, etc.).  Poderão interessar a alguns leitores do nosso blogue, mesmo não tendo a ver, pelo menos diretamente, com a Guiné e a guerra que lá travámos... Ou terão mesmo ? Tudo depende das "grelhas de leitura" de cada um... 

Contando com a complacência (e sobretudo com a cumplicidade) dos nossos leitores, espero, ao menos, que a sua leitura possa ter algum proveito.   Por outro lado, o nosso blogue já atingiu, na Internet, a "terceira idade": vai fazer 20 anos (!) em 23 de abril de 2024 (se lá chegar, se lá chegarmos). E tem que ser "alimentado" todos os dias, com pelo menos três ou quatro postes... Estes textos também funcionam, às vezes,  como uma espécie de "tapa-buracos"... Estão a ser publicados na série "Manuscrito(s) (Luís Graça! (*).

Luís Graça (2000)
Representações Sociais da Saúde, da Doença e dos Praticantes da Arte Médica.



2. O autoritarismi sanitário em Portugal (Estado Novo, Séc. XX)


Os ensinamentos da Escola de Salerno  (**) são tardiamente retomados, entre nós, no célebre livro de Francisco da Fonseca Henriques (1665-1731), a Âncora Medicinal para Conservar a Vida com Saúde (Lisboa, 1721): Médico da corte de D. João V, também conhecido por Mirandela (cidade de onde era natural), Francisco da Fonseca Henriques "cita os princípios que a Escola de Salerno indicava para conservar a saúde e as seis coisas que era preciso ter em conta para o seu bom uso e administração" (Lemos, 1991, Vol. II: 143), a saber:

  • O ar e o ambiente;
  • O comer e beber;
  • O sono e a vigília;
  • O movimento e o descanso;
  • Os excretos e os retentos;
  • As paixões da alma.

A Anchora Medicinal é um dos mais conhecidos tratados de higiene do Séc. XVIII, tendo tido quatro edições entre 1721 e 1754. Embora não sendo um livro propriamente original, seriam dignos de nota, na opinião do conhecido historiógrafo médico (Lemos, 1991) , os "capítulos relativos aos alimentos e bebidas em particular": neles se dão conta de "grande número das substâncias alimentares que entre nós eram e são consumidas". 

É de presumir que Francisco da Fonseca Henriques conhecesse a edição original, em latim, do Regimen Sanitatis Salernitanum, ou das suas muitas versões (em latim e línguas vernáculas) que nessa altura corriam no Ocidente.

Nos conselhos para conservar a saúde e "viver largo tempo" (sic), indicavam-se invariavelmente a dieta moderada e a vida regrada ("Para longa vida regra e medida no beber e na comida"). Obviamente, tais conselhos "destinavam-se especialmente às classes abastadas", havendo pouca [ou nenhuma] preocupação com a alimentação e outras condições de saúde das classes populares (Ferreira, 1990, p. 192, itálicos nossos), incluindo as condições de trabalho cujo estudo só muito mais tarde, lá para o final do Séc. XIX, é que começa a interessar um ou outro médico (por ex., Miguel Bombarda, João Ferraz de Macedo) (Mira, 1947).

Diga-se a propósito, que ainda não encontrámos referência, na nossa literatura médica até à alvorada do Séc. XX, ao papel pioneiro de B. Ramazzini (1633-1717) e ao seu tratado sobre as doenças dos trabalhadores: De morbis artificum diatriba (1700; ed. rev., 1713).

A repulsa pelo trabalho manual é, de resto, um traço que distingue a sociedade senhorial (aristocrática, fundiária) da sociedade liberal (burguesa, capitalista, industrial), e que está bem patente em provérbios tais como (Quadro XIII, em anexo):

  • "Dá ofício ao vilão, conhecê-lo-ão";
  • "Deus ajuda a quem trabalha, que é o capital que menos falha";
  • "Há mais aprendizes que mestres" ;
  • "Mais vale bom administrador do que bom trabalhador";
  • "Mais vale um bom mandador que um bom trabalhador";
  • "Mão de mestre não suja ferramenta";
  • "Mãos de oficial, envoltas em sandal";
  • "Quem sabe de luta luta e quem não sabe labuta";
  • "Se o trabalho dá saúde que trabalhem os doentes";
  • "Sete ofícios, catorze desgraças";
  • "Só trabalha quem não sabe fazer mais nada";
  • "Trabalhar é bom pró preto";
  • "Trabalhar que nem uma besta";
  • "Trabalhar que nem um galego";
  • "Trabalhar que nem um mouro";
  • "Trabalhar que nem um negro";
  • "Trabalhar que nem uma puta";
  • Ou, ainda, como hoje se diz no Rio de Janeiro, "trabalho se fez para burro e português".

Essa repulsa pelo trabalho manual está bem patente na composição sociodemográfica das nossas misericórdias no Ancien Régime. Apesar de serem instituições de composição estatutariamente interclassista, estas confrarias só admitiam membros das elites locais (e do sexo masculino!) : nobreza e alto clero, por um lado; oficiais mecânicos, por outro, incluindo profissões as liberais - como o letrado, o jurista ou o físico (médico) -, os negociantes abastados, os mestres de oficina, os lavradores proprietários e categorias equivalentes.

De um modo geral, os oficiais mecânicos representavam a elite do artesanato urbano. Condição essencial para a sua admissão como irmãos na misericórdia local era não trabalhar por suas mãos, o que, pelo menos em teoria, implicava a categoria de mestre de oficina (Sá, 1996: 137. Itálicos nossos). Em teoria, porque na prática não era bem assim: vamos encontrar entre os irmãos das misericórdias categorias como os cirurgiões, os barbeiros-sangradores e os boticários que claramente trabalhavam por suas mãos (contrariamente aos médicos e aos juristas, por exemplo).

Séculos mais tarde, o Estado Novo saberia tirar partido, na formação ideológica dos portugueses (ou melhor, do "homem português"!), dos preceitos dos velhos higienistas e sanitaristas.  Em meados do século passado, ainda se ensinavam às criancinhas portugueses os aforismos atribuídos a Hipócrates (c. 460-c. 377 a.C.) ou à escola hipocrática, retomados mais tarde pela Escola de Salerno (!), justamente numa altura em que:

  • A taxa de mortalidade infantil era a mais alta da Europa (126 ‰ em 1940);
  • A esperança média de vida à nascença a mais baixa (48,6 anos para os homens e 52,8 para as mulheres, em 1940);
  • As condições de vida e de trabalho miseráveis, com a tuberculose a ser uma das principais causas de morte dos portugueses (200 mortes em cada 100 mil habitantes; 10% de todos os casos de morte).

Com a mais cínica das canduras defendia-se já então, num país que nem sequer tinha um ministério da saúde (!), a teoria do blaming the victim:

"Quando os homens (sic) chegam a velhos, é frequente ouvi-los dizer: Não há bem como a saúde; mas a gente só sabe o que ela vale, depois de a ter perdido para sempre. Eu, se agora começasse a viver, havia de ter mais cuidado" (Caixa 2, em anexo. Itálicos nossos).

Cuidar da sua saúde era responsabilidade principal do indivíduo e da sua família, cabendo ao Estado uma função meramente supletiva. Daí os conselhos dos higienistas de serviço: 

Se quiseres gozar de "saúde e alegria" até aos oitenta anos (!);

  • leva "uma vida regrada e higiénica";
  • depois, procura "viver em casa que tenha bom ar e boa luz";
  • a "vassoura" é importante para manter a higiene da tua casa;
  • mas, atenção!, "é o sol que destrói os micróbios";
  • também precisas de "bom ar";
  •  e, de preferência, deves "dormir em quarto que contenha pelo menos vinte e cinco metros cúbicos de ar por pessoa";
  • e, com o clima tão benigno que Deus nos deu, "o melhor é dormir de janela aberta" (!)

"Cuidar do corpo" (Caixa 3, em anexo) também fazia parte dos "preceitos de conservar a saúde", de uma maneira mais explícita do que "cuidar da alma" ou das paixões da alma. Assim, em caso de doença:

  • deves consultar o médico e não o curandeiro (sic), a bruxa, o endireita, a ervanária, etc.
  • e, antes de tomares qualquer remédio, lê com atenção o rótulo.
Mas o melhor é evitar as doenças,  e para isso deves:
  • não beber água fria;
  • não apanhar correntes de ar;
  • ser moderado na comida e, principalmente, na bebida;
  • lavar bem todo o corpo (e não apenas as mãos e a cara), com destaque para a cabeça que deve andar sempre limpa (leia-se: de parasitas...) e os cabelos penteados.

Last but not the least : meus queridos, "de pequenino é que se torce o pepino"! Ou seja: "Os hábitos de asseio contraídos em criança mantêm-se por toda a vida, e, além de auxiliarem a conservação da saúde, influem muito na consideração das pessoas que nos rodeiam" (sic).

Em suma, o projecto de educação sanitarista do Estado Novo não podia ser mais explícito: trata da tua saúde, trata do teu corpo, que nós depois tratamos do resto, ou seja, das paixões da alma... 

Era o mesmo projecto, tendencialmente totalitário, que levava, no ano da graça de 1936, o germanófilo (mas não necessariamente nazi...)  Luís Moita a gritar aos microfones da Emissora Nacional: "Rapazes, não cantem o fado!". 

Os rapazes eram a "Mocidade Portuguesa" (MP) que acabava de ser criada, no âmbito das reformas da "educação nacional", decretadas pelo poderoso ministro A. F. Carneiro Pacheco (1887-1957).

Organização de tipo miliciano, a MP visava o enquadramento político-ideológico da juventude, era de inscrição obrigatória para todos os estudantes do ensino primário e secundário, e potencialmente mobilizava todas as actividades circum-escolares: a educação cívica, o lazer, os cuidados de saúde, a preparação física, o dsporto, a formação política e militar, etc. (Rosas, 1994, pp. 282-283).

"Canção de vencidos", "cocaína de Portugal", o fado era visto por certas personalidades da direita integralista e nacionalista (incluindo escritores e musicólogos) como um "herança maldita vinda do ultramar" (referência ao lundum, "avô do fado", que nos terá chegado do Brasil, com o regresso da corte de D. João VI), subproduto de uma "raça abastardada" (sic) e que entre nós se havia expandido justamente "nos bairros onde, há trinta anos ainda, se albergavam o vício, o crime e a vadiagem" (sic!), em contraste com as "canções alemãs, fulgurantes e alegres" das cervejarias de Munique e dos wanderfogel (Moita, 1936, pp. 217-218).

Daí a cruzada do musicólogo e conferencista pela educação nacional contra a licença, pela saúde contra a deliquescente morbidez, pelo folclore nacional e pelo canto coral contra os "caldos de cultura" do fado gemido, de cigarro na boca e copo de vinho na mão, numa taberna imunda onde espreitavam o bacilo de Kock, a sífilis e até, hélàs!, as ideias subversivas no meio de versos heróicos, "entrelaçados na foice e no martelo" (sic)...

Em contrapartida, há um longo silêncio sobre as repercussões do trabalho na saúde. Só com o início da internacionalização da economia portuguesa, a partir de finais da decada d 1950 (enrada de Portugal na EFTA - Associação Europeia do Comércio Livre), é que os homens do Estado Novo começam a manifestar preocupações com a elevada incidência de acidentes de trabalho e doenças profissionais como a silicose (nomeadamente nas minas e pedreiras, na construção civil, na cerâmcia, no vidro, na metalomecânica, etc.)

Na justificação da Campanha Nacional de Prevenção de Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, organizada dentro do melhor estilo propagandístico do Estado Novo, aponta-se para o facto de "a Nação [ vir ] sofrendo anualmente incalculáveis danos de ordem material e moral" (sic).. 

Sem citar números concretos, o Ministro das Corporações e Previdência Social, Henrique Veiga de Macedo, não pode mais esconder a realidade da sinistralidade laboral: 

"Quem compulsar as estatísticas ou se der ao cuidado de tomar contacto com a vida dos tribunais do trabalho ficará impressionado ao verificar a frequência dos sinistros registados e a gravidade das suas repercussões, quer para os trabalhadores e suas famílias, quer para a economia nacional" (Do preâmbulo da Portaria nº 17118, de 11 de Abril de 1959. Itálicos nossos).


Caixa 2 - A higiene da casa

Quando os homens chegam a velhos, é frequente ouvi-los dizer assim:

Não há bem como a saúde; mas a gente só sabe o que ela vale, depois de a ter perdido para sempre. Eu, se agora começasse a viver, havia de ter mais cuidado.

Lembram-se então, quando já não há remédio, do mal que fizeram em não tratar da saúde.

Muitos nem precisam de chegar à velhice, para se sentirem gastos e doentes.

E, pelo contrário, há pessoas de oitenta anos que gozam de saúde e alegria como muitos jovens não têm. É que eles levaram uma vida regrada e higiénica.

O homem deve, pois, cuidar da saúde e esforçar-se por melhorar as condições da sua vida, para se tornar forte e sadio.

Primeiro que tudo, procure viver em casa que tenha bom ar e boa luz. Não se deve dispensar a vassoura, mas é o sol que destrói os micróbios, que se não vêem. É necessário que o sol entre em casa, para acabar com o bolor e a humidade, tão prejudiciais à saúde.

Também se precisa de bom ar.   Deve-se dormir em quarto que contenha pelo menos vinte e cinco metros cúbicos de ar por pessoa. Se o clima o permitir, o melhor é dormir de janela aberta.

Fonte: Livro de Leitura da 3ª Classe. ((Lisboa)): Ministério da Educação Nacional, s/d, p. 66 (Itálicos nossos)


Caixa 3 - Cuidemos do nosso corpo

Precisamos de cuidar do nosso corpo, para que não nos falte a saúde.

Se estamos doentes, devemos consultar o médico, porque só ele tem o saber necessário para averiguar a causa dos nossos sofrimentos e para nos curar. Evitemos, pois, os curandeiros que por toda a parte existem, sustentados pelos ingénuos que se deixam iludir com as suas palavras enganadoras.

Ao tomarmos os remédios, ou ao ministrá-los, é bom ler sempre os respectivos rótulos, para se evitarem confusões que podem ser fatais. Muitos doentes têm morrido envenenados com medicamentos tomados por engano.

Melhor ainda que tratar das doenças é evitá-las, não transgredindo os preceitos de conservar a saúde.

Não devemos beber água fria quando estamos a transpirar,  expor-nos a correntes de ar, para não darmos causa a resfriamentos ou pneumonias.

É preciso haver moderação na comida e principalmente na bebida. O alcoolismo é um vício horrível que todos os dias faz numerosas vítimas.

Todo o corpo deve andar sempre bem lavado, e não apenas as mãos e a cara; a cabeça precisa de  andar limpa, e os cabelos penteados.

Os hábitos de asseio contraídos em criança mantêm-se por toda a vida, e, além de auxiliarem a conservação da saúde, influem muito na consideração das pessoas que nos rodeiam.

Fonte: Livro de Leitura da 3ª Classe. ((Lisboa)): Ministério da Educação Nacional, s/d, p. 65 (Itálicos nossos)

(Continua)

____________


(**) Vd., poste anterior;

1 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25026: Manuscrito(s) (Luís Graça) (243): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte V: 'Pés quentes, cabeça fria, cu aberto, boa urina - Merda para a medicina' 1. A arte de bem conservar a saúde

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25026: Manuscrito(s) (Luís Graça) (243): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte Va: 'Pés quentes, cabeça fria, cu aberto, boa urina - Merda para a medicina' 1. A arte de bem conservar a saúde




Capa da primeira edição (Veneza, 1480) do livro "Regimen sanitatis cum expositione magistri Arnaldi de Villanova Cathellano noviter impressus". Venetiis: impressum per Bernardinum Venetum de Vitalibus, 1480. Fonte: Wikimedia Commons (com a devida vénia..) (Tr. port.: Regime de Saúde de Salerno, com a exposição do mestre Arnaldo de Vilanova, o Catalão, recém-impresso. Veneza: impresso por Bernardinum Venetum de Vitalibus)

1. Comecei publicar no blogue, desde meados de março passado, uma série de textos, da minha autoria, sobre as ensinamentos que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...

São textos com cerca de 25 anos, que constavam da minha antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).
Às vezes quando a doença e a morte me batem à porta, é que eu me lembro que dediquei uma boa parte da minha vida (quase quatro décadas) ao ensino e à investigação da arte e da ciência da proteção da doença e da promoção da saúde, o mesmo é dizer às "coisas" da saúde pública...

E dão-me saudades quando, sendo mais novo, escrevia sobre esses temas (e utilizava-os nas aulas com os futuros admninistradores hospitalares, médicos de saúde pública, médicos do trabalho, ou outros, mestres e doutores em saúde pública)...

Depois de sobrevivermos à dura prova que foi para todos os nossos leitores a pandemia de Covid-19, eis-nos agora a fazer o luto pela perda recente de pessoas que nos eram muito queridas. Daí a oportunidade da publicação deste textos que fui (re)buscar ao meu "baú", mas que não têm a ver, pelo menos diretamente, com a Guiné e a guerra que lá travámos... Ou têm mesmo ? Tudo depende das "leituras" e dos "leitores"...

Contando com a complacência (e sobretudo com a cumplicidade) dos nossos leitores, espero, ao menos, que a sua leitura possa ter algum proveito. É também uma forma de continuar a lidar com o meu sofrimento psíquico e o sofrimento psíquico das pessoas que me estão próximas.

Por outro lado, o nosso blogue já atingiu, na Internet, a "terceira idade": vai fazer 20 anos (!) em 23 de abril de 2024 (se lá chegar, se lá chegarmos). E tem que ser "alimentado" todos os dias, com pelo menos três postes... Estes textos também funcionam como uma espécie de "tapa-buracos"... LG



Luís Graça (2000)
Representações Sociais da Saúde, da Doença e dos Praticantes da Arte Médica.





1.1. "Mais que curar o mal, a arte (médica) deve prevenir" (Escola de Salerno)


Não se pense que o modelo salutogénico (ênfase nos factores multidimensionais que determinam positivamente a saúde, por oposição ao modelo patogénico, biomédico, organicista, orientado para a causa específica da doença) é uma construção intelectual dos nossos tempos. Na Europa Ocidental, o modelo salutogénico tem pelo menos 2500 anos e está igualmente presente nos provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa.

Em termos muito simples, o modelo salutogénico está na origem do conceito de protecção e promoção da saúde, enquanto o modelo patogénico está mais próximo do conceito de prevenção da doença e sobretudo de cura e tratamento da doença.

Aplicado ao local de trabalho, o paradigma salutogénico pode ser melhor entendido através da seguinte questão principal:

Como é que o indivíduo (e, por extensão, a família, o grupo, etc.) realiza as suas potencialidades de saúde e responde positivamente às exigências (físicas, biológicas, psicológicas e sociais) dum ambiente (laboral e extra-laboral) cada vez mais complexo e em constante mutação;

Para responder positivamente a essas exigências, o indivíduo tem de ter controlo sobre os factores (individuais, ambientais e societais) que determinam a sua saúde;

A promoção da saúde é uma intervenção conjunta e integrada sobre o indivíduo e o meio envolvente em que nasce, cresce, vive, respira, trabalha, consome e se relaciona;

Na abordagem mais tradicional e redutora da segurança e saúde no trabalho (em inglês, occupational safety and health) a questão que se punha (ou ainda põe) é como prevenir e, em última análise reparar, do ponto de vista médico e legal, os riscos profissionais.

A promoção da saúde é tradicionalmente um conceito baseado na evidência. No que respeita à protecção e manutenção da saúde, a filosofia de senso comum é céptica em relação ao papel da medicina ("O melhor médico é o que se procura e se não encontra"), se não mesmo sarcástica ("Se tens físico teu amigo, manda-o a casa do teu inimigo").

Ou por outras palavras: Tu és o melhor médico de ti mesmo... Mas nem por isso esta filosofia popular deixa de estar eivada das concepções dominantes da medicina arábico-galénica e da influência da teoria hipocrática dos quatros humores:
  • "A doença e a dor conhecem-se na cor";
  • "Contra os maus humores grandes suores";
  • "Fora de horas urinar é sinal de enfermar";
  • "Quem bem urina escusa medicina"; ou
  • "Mijar claro, dar figas ao médico"

Alguns preceitos simples são recomendados para conservar a saúde e, por conseguinte, dispensar os serviços do médico e do boticário, inevitavelmente associados a uma vida regrada (alimentação, etc.) e às condições de higiene pessoal e ambiental (habitação, etc.), de acordo com os ensinamentos do compêndio hipocrático e desse espantoso programa medieval de promoção de estilos de vida saudáveis que foi o Regime de Saúde da Escola de Salerno (em latim, Regimen Sanitatis Salernitanum).





A cidade de Salerno e o golfo de Salerno,
no sul da Itália


Salerno, perto de Pompeia e de Nápoles, na região da Campânia, Itália meridional, era conhecida pela sua escola médica, cuja origem remonta à Alta Idade Média (Séc. IX-X), antecedendo por isso o aparecimento da Universidade no Ocidente cristão (Séc. XIII).

Segundo a lenda, era um escola verdadeiramente ecuménica, tendo nascido do encontro de quatro homens, que representavam quatro culturas distintas (um romano, um grego, um judeu e um árabe, três dos quais seriam médicos).

Esta escola teve um papel importantíssimo na preservação e divulgação do legado greco-romano, no campo da medicina, nomeadamente devido ao papel do monge cartaginês e tradutor arabista Constantino, o Africano. Mas foi sobretudo o tratado de higiene que lhe perpetuou a fama de "cidade hipocrática" (Lafaille e Hiemstra, 1990; Nigro, 2003; Sournia, 1995)



Este documento, em verso, do Século XII ou XIII, terá sido um dos manuscritos mais amplamente divulgados na Europa durante a Idade Média; mais tarde impresso, em Lovaina, por volta de 1480, dele fizeram-se até 1850 cerca de 250 edições, não só em latim como na maior parte das línguas vernáculas europeias, estimando-se entre 120 e 250 mil o número de cópias que terão circulado (Lafaille e Hiemstra, 1990).

Segundo Nigro (2003), "la redazione multiforme con la quale il 'Regimen' si presenta, sia per la varietà numerica e la disposizione dei versi, che per le frequenti contraddizioni e ripetizioni, fa attualmente ritenere che l’opera sia frutto di una compilazione a più mani e di ripetute revisioni".

Por exemplo, o número de versos foi sucessivamente aumentando com as edições: 362 versos na primeira edição impressa (c. 1480), mais de 3500 nas últimas edições.

Mas durante muito tempo a autoria do regime de saúde de Salerno foi atribuída erradamente ao catalão Arnaldo da Villanova (c.1240-1313), que também é autor de um "regimen sanitatis", em prosa, dedicado a Fredereico de Aragão.

Voltando a citar Nigro (2003), o regime de saúde de Salerno é uma obra colectiva, anónima, "risultato della consuetudine popolare, raccolta e commentata nel secolo XIII dal medico e alchimista catalano Arnaldo da Villanova", e que se enquadra "nel filone letterario dei tacuìna e dei theatra sanitatis, opere a carattere enciclopedico, in cui accanto all’illustrazione degli elementi della natura, vi è quella degli alimenti, degli stati d’animo, delle stagioni, allo scopo di salvaguardare la salute mantenendo un perfetto equilibrio tra uomo e natura".

Ao longo dos séculos e das diferentes edições a obra foi sendo conhecida por diversos títulos (Nigro, 2003). Exemplificam-se alguns

  • "Regimen Sanitatis Salernitarum" (Colónia, [1480]);
  • "Schola Salernitana" (s/l, 1480);
  • "Regimen sanitatis, Das ist das Regiment der Gesundheit" (Froschauer, 1501)
  • "De conservanda bona valetudine" (Frankfurt, 1545)
  • "Medicina salernitana" (s/l, 1591)
  • "The Englishman's doctor, or the School of Salerne, or physicall observations for the preserving of the body of man in continuall health" (Londres, 1601)
  • "Le Reglement ou Regime de la Santé" (Douai, France, 1616);
  • "L'art de conserver sa santé, composé par l'école de Salerne" (Haia, 1743; Paris, 17);
  • "Flos medicinae Scholae Salerni" (Nápoles, 1859)
  • "La regola sanitaria della Scuola salernitana" (Milão, 1930)

Ao que parece, haveria uma edição portuguesa que desconhecemos (não consta da Biblioteca Nacional nem não sequer é referida pelos nossos historiógrafos médicos, tais como: Lemos, 1889; Mira, 1947; Correia, 1960; Pina, 1981; Ferreira, 1990).

Versos do Regimen Sanitatis Salernitanum apareciam com frequência nos Lunários Perpétuos dos Séculos XVII e XVIII, embora erradamente atribuídos a Avicena (segundo informação da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira que se baseia numa publicação de Luís de Pina, Um prático calendário...de higiene seiscentista, editada no Porto, em 1950, e a que ainda não tivemos acesso).

Em muitos dos provérbios que nos chegaram até aos nossos dias há uma filosofia sobre a arte de viver com saúde, por oposição à arte de curar, e que vai beber as suas raízes ao legado da medicina hipocrática e ao seu modelo salutogénico. Para a sua preservação e divulgação muito contribui sem dúvida o Regimen Sanitas Salernitanum (ver extracto, Caixa 1).

Face à impotência da medicina arábico-galénica para lidar com a alta morbimortalidade que atingia a população europeia nos finais da Idade Média, o livro de saúde de Salerno tem um propósito didáctico mas também programático: "Mais do que curar o mal, a arte [ a medicina ] deve prevenir".


Caixa 1 - Regime de Saúde Salernitano (Extractos de uma tradução versificada em francês no século XVIII)


Respira um ar sereno, brilhante de pureza,

Do qual nenhuma exalação turve a clareza;

Evita os odores infectos e vapores deletérios

Que sobem dos esgotos e empestam a atmosfera...

Queres dos teus prazeres prolongar o sucesso?

Do vício e da mesa evita o excesso...

Se o mal é insistente, cabe à arte reagir:

Mais que curar o mal, a arte deve prevenir.

O ar, o repouso e o sono, o prazer e a comida

Preservam a saúde do homem, saboreados com medida:

O abuso torna em veneno este bem inocente

Destruindo o corpo e turvando a mente



Fonte: Sournia (1995: 101) (tr. do fr., Jorge Domingues Nogueira)

Observações - Para mais detalhes ver o comentário crítico, sobre o texto (ou os vários textos) do Regimen Sanitatis Salernitanum, de Paola Nigra (2003) http://www.spolia.it/latino/2002/reg7.htm (15.03.03)




Na prática, há provérbios, na nossa língua, sobre tudo (ou quase tudo) o que constitui hoje as preocupações dos educadores e promotores de saúde (Quadro XV, em anexo). Por exemplo:

(1) A actividade física:

"Espírito são em corpo são";

"O corpo não deita raízes";

"Parar é morrer".

(2) Os autocuidados:

"Mijar claro - dar uma figa ao médico";

"O homem velho é médico de si";

"Pés quentes, cabeça fria, boa urina - merda para a medicina";

(3) O sono e o repouso:

"Deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer";

"O braço quer peito e a perna quer leito";

"Quatro horas dorme um santo, cinco o que não é santo, seis o estudante, sete o caminhante, oito o porco e nove o morto".

(4) O consumo de álcool e de tabaco:

"Bebe vinho mas não bebas o siso"

"Tabaco e aguardente transformam os sãos em doentes";

"Vinho, mulheres e tabaco põem o home fraco".

(5) A nutrição e a higiene dos alimentos:

"Carne de ontem, peixe de hoje, vinho do outro verão fazem o homem são"

"Come para viver, pois não vives para comer";

"Uvas, pão e melão é sustento de nutrição"

(6) O controlo do peso:

"O menino engorda para crescer e o velho para morrer";

"Pede o guloso para o desejoso";

"Tripa cheia nem foge nem peleja".

(7) As condições de vida e de habitação, a saúde ambiental:

"Águas paradas, cautela com elas";

"Deus te dê saúde e gozo e casa com quintal e poço";

"Onde não entra o sol entra o médico";

"Se a tua casa é húmida abre conta na botica";

"Toma caldo, vive em alto, anda quente - viverás longamente";

"Um ar purgado - morte no cabo".

(8) A gestão do stresse e das 'paixões da alma':

"A ferrugem gasta o ferro e o cuidado o coração";

"Quem se ralou já morreu";

"Quem tiver paixão tome tabaco", etc.
___________

Não cabe aqui a tarefa de analisar uma a uma as crenças terapêuticas que são veiculadas pelos provérbios populares:

Alguns são puros disparates (por ex., o "abafa-te, abifa-te e avinha-te", como remédio contra a gripe; ou outro parecido: "antes embebedar do que constitapar");

Outros, e nomeadamente no domínio da nutrição, reproduzem preconceitos, como os perigos da carne de porco, que têm a ver com a nossa matriz judaico-cristã (por ex., "porco fresco e vinho novo, cristão morto");

Pelo contrário, há provérbios que têm um conteúdo que se baseia no conhecimento empírico milenar dos povos mediterrânicos e que é hoje em dia suportado pela própria investigação farmacológica e biomédica: por ex., a importância do consumo moderado do vinho (tinto) na prevenção das doenças cardiovasculares ("Um copo de vinho por dia mantém o médico à distância"); ou as propriedades terapêuticas do azeite: "Azeite de oliva o mal cura".



Quadro XV— Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre a saúde e os estilos de vida



Objecto / Provérbio

Actividade física

"Andar, ventura até à sepultura"

"Espírito são em corpo são"

"Mais vale romper sapatos que lençóis"

"O corpo não deita raízes"

"Para baixo todos os santos ajudam, para cima é que as coisas mudam"

"Para ter saúde, pouca cama, pouco prato e muito sapato"

"Parar é morrer"

"Quem corre por gosto não cansa"

"Quem em novo dança bem, em velho algum jeito tem"


Água

"A quem Deus quer dar vida, a água da fonte é mezinha"

"A quem é de vida a água lhe é medicina"

"Água e vento são meio sustento"

"Água fervida alimenta a vida"

"Água fria sarna cria; água quente nem a são nem a doente"

"Água que não soa não é boa"

"Água quente saúde para o ventre"

"Águas paradas, cautela com elas"

"Ao doente forte a água é medicina"

"Mal de morte não tem jeito, e o que não é, se cura com água do pote" (d)

"Quando Deus quer, água fria é remédio"


Álcool  | Tabaco  | Vinho

"A cachaça tira juízo, mas dá coragem" (d)

"A mulher e o vinho tiram o homem do seu juízo"

"Abafa-te, abifa-te e avinha-te" (a)

"Afoga-se mais gente em vinho do que em água"

"Antes embebedar do que constipar"

"Baco, tabaco e Vénus reduzem o homem a cinzas" (b)

"Bebe vinho mas não bebas o siso"

"Beber vinho mata a fome"

"Cada bucha sua pinga"

"Carne de ontem, peixe de hoje, vinho do outro verão fazem o homem são"

"Do vinho e da mulher livre-se o homem se puder"

"Haja saúde e dinheiro para vinho"

"Isso é birra: quem toma tabaco espirra"

"Livra-te de mau vizinho e de excesso de vinho"

"Mais pessoas se afogam no copo do que no mar"

"Malandro não tem vícios, só fuma e bebe quando joga" (d)

"Na taberna enquanto bebes, na igreja enquanto rezas"

"Nada escapa aos homens senão o vinho que as mulheres bebem"

"Nem vinho sem Cristo nascer nem laranja sem Cristo morrer"

"O beijo é como o cigarro, não sustenta mas vicia" (d)

"O bom vinho arruina o bolso; o mau, o estômago"

"O cigarro adverte: O Governo é prejudicial à saúde" (d)

"O homem que vive na taberna acaba por morrer no hospital"

"O pródigo e o bebedor de vinho nunca têm casa nem moinho"

"O vinho faz mal aos homens quando são as mulheres que o bebem"

"Onde entra o vinho sai a razão"

"Quando a cachaça desce, as palavras sobem" (d)

"Quem tiver paixão tome tabaco"

"Tabaco e aguardente transformam os sãos em doentes"

"Tabaquear o caso"

"Três coisas enganam o homem: as mulheres, os copos pequenos e a chuva miúda"

"Três coisas mudam o homem: a mulher, o estudo e o vinho"

"Um copo de vinho por dia mantém o médico à distância"

"Vinho e medo descobrem o segredo"

"Vinho, mulheres e tabaco põem o home fraco"

"Vinho que baste, casa que farte, pão que sobre e seja eu pobre"

"Vinho sobre melancia faz pneumonia"

Alimentação | Frugalidade | Nutrição Saudável

"A fome é a melhor cozinheira"

"Anda quente, come pouco, bebe assaz e viverás"

"Aquilo que sabe bem ou é pecado ou faz mal"

"Barriga cheia, cara alegre"

"Boca que apetece, coração que deseja"

"Carne que baste, vinho que farte, pão que sobre"

"Come como são e bebe como doente"

"Come para viver, pois não vives para comer" (Séc. XVII)

"Come que a hora de comer é a da fome" (Séc. XVII)

"Das grandes ceias estão as covas cheias"

"De fome ninguém morreu, mas sim de muito que comeu"

"Gordura é formosura"

"Gota é mal de rico; cura-se fechando o bico"

"Mais cura a dieta que a lanceta"

"Mais mata a gula que a espada"

"Menino bolsador - menino engordador"

"Moças, quem vos deu tão ruins dentes ? Água fria e castanhas quentes"

"Morra Marta, morra farta"

"Morre o peixe pela boca" ou "Pela boca morre o peixe"

"Na casa desta mulher come-se tudo o que ela der"

"Nem sempre galinha nem sempre sardinha"

"O menino engorda para crescer e o velho para morrer"

"Para longa vida regra e medida no beber e na comida"

"Pede o guloso para o desejoso"

"Por cima de comer nem um escrito ler"

"Quem caga e come não morre de fome"

"Quem não é para comer, não é para trabalhar"

"Se queres enfermar, ceia e vai-te deitar"

"Se és velho comilão encomenda o teu caixão"

"Ter mais olhos que barriga"

"Vinho que baste, casa que farte, pão que sobre e seja eu pobre"


Alimentos (Carne, Peixe, Fruta, etc.) | Higiene Alimentar


"A carne de um ano e o peixe de dez"

"A laranja de manhã é ouro, à tarde prata e à noite mata"

"Azeite de oliva todo o mal tira"

"Carne de ontem, peixe de hoje, vinho do outro verão fazem o homem são"

"Cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a doente"

"Comer verdura e deitar má ventura" (Séc. XVII)

"Comer pinhões antes de chover dá sezões"

"Depois de Maio a lampreia e o sável dai-o"

"Dia de São Silvestre (b), não comas bacalhau que é peste"

"Fiambre e fiado sabem bem e fazem mal"

"Laranja antes do Natal livra do catarral"

"Livre-te de fruta mal sazonada que é peste disfarçada"

"Milhafre em Janeiro escusa capão de poleiro"

"Não comas cru, nem andes com o pé nu"

"O coelho e a perdiz, uma mão na boca e outra no nariz"

"Pão durázio, caldo de uvas, salada de carne e deixa a medicina"

"Peixe não puxa carroça"

"Pela boca morre o peixe" (Séc. XVI)

"Pobre só come carne quando morde a língua" (d)

"Porco fresco e vinho novo, cristão morto"

"Quem come salgado, bebe dobrado"

"Raia em Maio, tumba à porta"

"Se queres o marido morto, dá-lhe couve em Agosto"

"Todas as indigestões são más e a da perdiz é péssima"

"Um copo de vinho por dia mantém o médico à distância"

"Uvas, pão e melão é sustento de nutrição"


Ambiente | Ar | Clima

"A vassoura limpa a casa mas é o sol que mata os micróbios"

"A velho muda-lhe o ar, vê-lo-ás acabar"

"Casa onde não entra o sol entra o médico"

"Come caldo, vive em alto, anda quente, viverás longamente" (Séc. XVII)

"Dia frio e dia quente fazem andar o homem doente"

"Livra-te dos ares, que eu te livrarei dos males"

"No quente é que se cura a gente"

"Respirar mau ar é beber a morte"

"Se queres viver são, anda quente, come pouco, vive em alto"

"Tarde fria, dia quente, põem um homem doente"

"Um ar purgado - morte no cabo"


Casa | Habitação


"Casa em que caibas, vinha quanto bebas, terra quanto vejas"

"Casa onde não entra o sol entra o médico"

"Casa sem luz, tumba de vivos"

"Deus te dê saúde e gozo e casa com quintal e poço"

"Dormir com a janela aberta - constipação quase certa"

"Na casa se vê quem tem maleitas"

"Onde entra o sol não entra o médico"

"Quem quiser medrar viva em pé de serra ou poto de mar"

"Se a tua casa é húmida abre conta na botica"


Corpo | Higiene | Peso | Excretos !| Retentos

"Gordura é formosura"

"Mijar claro - dar uma figa ao médico"

"O que a boca apetece o coração deseja"

"O rabo sempre cheira ao que larga"

"Pés quentes, cabeça fria, boa urina - merda para a medicina"

"Quando em casa engorda a moça, ao corpo o baço e ao rei a bolsa - mal vai a coisa"

"Quem ao ano andou e aos dois falou bom leite mamou"

"Quem bem urina escusa medicina"

"Quem grande peido dá do cu se atreve"

"Quem má boca tem má bostela faz"

"Quem se lava e não se enxuga toda a pele se lhe enruga"

"Quem sofre de coração não tome banho suão"

"São peidar faz bom jantar" (Medieval) (e)

"Se queres que o teu filho engorde e cresça, lava-lhe o corpo e rapa-lhe a cabeça"

"Se queres ter um corpo são, lava-te com água e sabão" ou "se queres ter um corpo são, lava-te com água de erva montão"

"Tripa cheia nem foge nem peleja"


Prevenção da doença | Promoção da saúde

"Bem prega Frei Tomás, faz o que ele diz não faças o que ele faz"

"Cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém"

"Coração alegre é melhor que botica"

"Mais vale a saúde que o dinheiro" ou "Mais vale saúde boa que pesada bolsa"

"Mais vale perder um minuto na vida do que a vida num minuto"

"Mais vale prevenir que remediar"

"Mais vale um pé no travão do que dois no caixão"

"Melhor é curar gafeira que casa inteira"

"Não há dinheiro que pague a saúde"

"Nem com cada mal ao médico, nem com cada dúvida ao letrado"

"O homem velho é médico de si"

"Para longa vida boa regra e boa medida"

"Para longa vida regra e medida no beber e na comida"

"Pés quentes, cabeça fria, coração bom, ventre desembaraçado e desprezar medicina"

"Pés quentes, cabeça fria, cu aberto, boa urina - merda para a medicina"

"Quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga"

"Quem bem vive, bem morre"

"Quem bem urina, escusa medicina"

"Só se sabe o que é a saúde quando se está doente"

"Tenhamos saúde e paz e teremos assaz"

"Usa cama de frade e mesa de pobre, terás saúde que farte e alegria que sobre"

"Vale mais prevenir do que remediar"

"Vale mais uma onça de cautela que uma arroba de botica"

"Vida de porco, curta e gorda"

"Vive o pastor com a sua rudeza e morre o físico que a física reza"


Sono | Vigília

"De longos sonos e grandes ceias estão as sepulturas cheias"

"Deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer"

"Levanta-te às seis, almoça-te às dez, jantarás às seis, deita-te às dez: viverás dez vezes dez"

"O braço quer peito e a perna quer leito"

"Quatro horas dorme um santo, cinco o que não é santo, seis o estudante, sete o caminhante, oito o porco e nove o morto"

"Se não és de bronze deita-te às onze"

"Se queres enfermar, ceia e vai-te deitar"

"Se queres enfermar, lava a cabeça e vai-te deitar"

"Usa cama de frade e mesa de pobre - terás saúde que farte e alegria que sobre"


Paixões da alma | Gestão do stress

"A boa vida não quer pressa"

"A ferrugem gasta o ferro e o cuidado o coração"

"A quem dorme descansado dorme-lhe o cuidado"

"A razão é fruta do tempo, as paixões são de todo o momento"

"Boca, que queres; coração, que desejas?"

"Desejo e satisfação raro de acordo estão"

"Homem apaixonado não quer ser aconselhado"

"Não corre mais o que caminha, mas sim o que mais imagina"

"O ventre sacia-se, os olhos não"

"Quem canta seu mal espanta"

"Quem come a correr do estômago vem a sofrer"

"Quem mais tem mais quer"

"Quem se mete em atalhos mete-se em trabalhos"

"Quem se ralou já morreu"

"Quem tem cu tem medo"

"Quem tem saúde e liberdade é rico e não o sabe"

"Quem tiver paixão tome tabaco"

"Quem vai muito depressa pode quebrar a cabeça"


Trabalho | Capital ! Trabalho & Saúde

Capital

"Aonde oiro fala, tudo se cala"

"Deus ajuda a quem trabalha, que é o capital que menos falha"

"Tempo é dinheiro"

"Um tem a bolsa, outro o oiro, e assim vai andando o mundo"

Trabalho

"A martelada do mestre vale por mil das dos operários"

"Bendita a ferramenta que pesa mas alimenta"

"Dá ofício ao vilão, conhecê-lo-ão"

"Há mais aprendizes que mestres"

"Janeiro, gear; Fevereiro, chover; Março, encanar; Abril, espigar; Maio, engrandecer; Junho, aceifar; Julho, debulhar; Agosto, engravelar; Setembro, vindimar; Outubro, revolver; Novembro, semear; Dezembro, nasceu Deus para nos salvar"

"Madruga e verás, trabalha e terás"

"Mais vale bom administrador do que bom trabalhador"

"Mais vale um bom mandador que um bom trabalhador"

"Mão de mestre não suja ferramenta"

"Mãos de oficial, envoltas em sandal"

"Mineiro, nem a prazo nem a dinheiro"

"Na casa deste home quem não trabalha não come"

"O boi pega no arado mas não por seu grado"

"O Verão colhe e o Inverno come"

"Oficial tem ofício e al"

"Para gozar eu; para trabalhar um irmão que Deus me deu"

"Para homem dado ao trabalho não há dia grande"

"Para o trabalho se chama uma, duas ou três vezes; para comer uma só"

"Quando o mestre canta boa vai a obra"

"Quanto mais patrão mais cabrão"

"Quem ao moinho vai enfarinhado sai"

"Quem não poupa a lenha, não poupa nada que tenha"

"Quem não tem ofício não tem benefício"

"Quem não trabuca não manduca" (do latim: Qui non laborat, non manducet )

"Quem poupa seu mouro poupa seu ouro"

"Quem sabe de luta luta e quem não sabe labuta"

"Saber muitas artes é ter pouco dinheiro"

"Semeia e cria, viverás com alegria"

"Sete ofícios, catorze desgraças"

"Só trabalha quem não sabe fazer mais nada"

"Trabalhar a seco"

"Trabalhar de jornal"

"Trabalhar é bom pró preto"

"Trabalhar para aquecer"

"Trabalhar para aquecer, é melhor morrer de frio"

"Trabalhar para o boneco (para o bispo)"

"Trabalho de menino é pouco, quem não o aproveita é louco"

"Trabalho se fez para burro e português" (f)

Trabalho & Saúde

"A tarefa que agrada é depressa acabada"

"É preciso ser doido para trabalhar aqui"

"Não há trabalho sem trabalhos"

"O trabalho dá saúde"

"O trabalho não mata ninguém"

"Se o trabalho dá saúde que trabalhem os doentes" (g)

"Tendo saúde e comendo bem, o trabalho não mata ninguém"

"Trabalha como se vivesses sempre; ama como se fosses morrer amanhã"

"Trabalhar como um animal (um cão, um boi, um touro, um burro, um leão, um cavalo, etc.)

"Trabalhar como um escravo (um mouro, um negro, um preto)"

"Trabalhar que nem um boi"

"Trabalhar que nem um galego"

"Trabalhar que nem um mouro"

"Trabalhar que nem uma puta"

"Trabalhar que nem um touro"

"Trabalhar sem comer é cegar sem ver"

"Trabalho com gosto alegria no rosto"

"Trabalho é meio de vida e não de morte"

"Trabalho é caminhar a cavalo, que a pé é morte"

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(a) Receita tradicional para combater a gripe; (b) Rifão italiano (Amaral, 1994); (c) 31 de Dezembro

(d) Ditado brasileiro: Vellasco (1996) (e) Mattoso (1987) (f) Brasil

(g) Ou como dizem os franceses: "Si le travail c'est la santé, à quoi sert alors la médecine du travail ?" (Se o travbalho dá saúde, para que serve afinal a medicina do trabalho?)

(Bibliografia a apresentar no final da série)

(Continua)

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Notas do editor:

Último poste da série > 12 de agosto de 2023 > Guiné 61/74 - P24550: Manuscrito(s) (Luís Graça) (226): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IVB: Enfermagem, Misoginia e Sexismo

Ver postes anteriores:

20 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24328: Manuscrito(s) (Luís Graça) (225): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IVA: Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras

4 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24281: Manuscrito(s) (Luís Graça) (223): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte III C: Contestação da Iatrogénese, da Medicina Defensiva e do Encarniçamento Terapêutico

3 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24189: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IIIB: Quando o pobre come frango, um dos dois está doente

28 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24173: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIIA: Hospital, o triunfo da hospitalidade e da caridade... mas "o peixe e o hóspede ao fim de três dias fedem"

23 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24164: Manuscrito(s) (Luís Graça) (218): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIB: "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia"

20 de março de 2023 Guiné 61/74 - P24155: Manuscrito(s) (Luís Graça) (217): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIA: 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro"

17 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24148: Manuscrito(s) (Luís Graça) (216): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte I: "Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dá tudo"

sexta-feira, 17 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24148: Manuscrito(s) (Luís Graça) (216): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte I: "Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dá tudo"


Ilustração: © Joana Graça (2008)


Sintra > Azenhas do Mar > 31 de dezembro de 2018 > O último pôr do sol do ano...


(...) Um gajo não é um herói, muito menos um deus.
Afinal, és melhor, camarada: 
és um homem, 
que tens de saber dar corda  aos sapatos e ao coração, 
e que és capaz de parar um segundo frente ao pôr do sol,
e tirar um autorretrato instantâneo
e, como um bom franciscano, 
dizer ao deus-sol:
-Até amanhã, camarada, amigo, irmão! (...) (*)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados. [Edição : Blogue Luís Graça & Canaradas da Guiné]


Graça, L.  - Representações Sociais da Saúde, da Doença e dos Praticantes da Arte Médica nos Provérbios em Língua Portuguesa

Parte I : 'Muita Saúde, Pouca Vida, porque Deus não Dá Tudo' (**)

Às vezes quando a doença e a morte me batem à porta, à minha, à da minha família, à dos meus amigos e camaradas mais próximos, é que eu me lembro que dediquei uma boa parta da minha vida (quase quatro décadas) ao ensino e à investigação da arte e da ciência da proteção da doença e da promoção da saúde, o mesmo é dizer às "coisas" da saúde pública...

Desde ontem no Norte, eu e a Alice, aguardamos o desfecho fatal de uma doença crónica degenerativa e irreversível de que é vítima, desde há 4 anos, alguém que muito amamos.    A nossa Nitas não merecia isto, dizemos com raiva e impotência, mesmo sabendo que ela tem recebido "os melhores cuidados do mundo", no Hospital de São João. 

Para mais tratando-se de uma doença que poderia ter sido evitada, ou prevenida, sendo muito provavelmente de origem profissional ou relacionada com o trabalho (exposição continuada ao benzeno, conhecida substância cancerígena,  no laboratório de química orgânica onde começou a trabalhar no início dos anos 70), se nessa altura, mas também antes e depois,  os portugueses tivessem feito, individual e coletivamente, um maior esforço na proteção da saúde e segurança no trabalho, nas empresas, nos laboratórios, nas universidades, nos campos e nos outros locais de trabalho.  

É uma brutal realidade, mas não é só a guerra que mata: o trabalho mata, muitas vezes lentamente, insidiosamente... E pior ainda: quando saímos de cena, e dizemos, com alguma euforia e muita ingenuidade, no último dia de trabalho: "Amanhã é o primeiro dia do resto da minha vida"... Há quem, infelizmente, não ultrapasse os primeiros anos da reforma...

Depois de sobrevivermos à dura prova que foi para todos (nós/vós) a pandemia de Covid-19 (***), estamos agora a lidar com outra situação-limite, devastadora em termos pessoais e familiares. É uma boa ocasião para pensarmos e reflectirmos sobre  o que é importante, afinal,  na vida. E sobretudo para se ser solidário e emprestar o "ombro amigo" a quem dele precisa ainda mais do que nós...

Pessoalmemente, confesso que não tenho agora, por estes dias,  grande cabeça para escrever sobre  a guerra que nos roubou, a todos, alguns anos de vida e de saúde, ou deixou marcas para o resto da vida. Mas o nosso blogue existe, continua teimosamente a querer viver e sobreviver (vai fazer 19 anos em 23 de abril próximo). E tem que ser "alimentado". Todos os dias, como o nosso corpo...  É um compromisso que temos com os "amigos e camaradas da Guiné", o de publicar todos os dias um ou mais postes.

Daí a portunidade (ou não) deste  e doutros textos que vou buscar ao meu "baú"... Espero, ao menos, que a sua leitura tenha algum proveito para os nossos leitores.  Para mim, é também é uma forma de lidar com o meu sofrimento psíquico e o sofrimento psíquico das pessoas que me estão próximas. Não sei até quando vou ficar por cá, pelo Porto.  No mínimo, até à Páscoa. Vamos falando. H0je, através da "crueldade" dos nossos provérbios a que chamamos populares (****)... LG


1. Provérbios: Arqueologia da Língua e do Saber

Os provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa deveriam decididamente merecer um outro estudo como objetos de investigação científica (sociolinguística, semiológica, histórica, antropológica, sociológica, etc.), para além da sua simples recolha sistemática (por ex., Machado, 1996) ou do seu embrionário tratamento em termos de categorização temática (por ex., Gomes, 1974; Joaquim, 1983; Costa, 1999).

Pondo de lado questões como a sua origem, a sua historicidade, a sua função ideológica, o seu modo de produção e reprodução, etc., vamos limitarmo-nos aqui a analisá-los enquanto representações sociais tanto da saúde e da doença como dos praticantes da arte médica (Herzlich e Pierret, 1984; Graça, 1996).

Gomes (1974. 5) define o conceito de lugar comum como "estrutura frásica, decorada, fossilizada e envelhecida". 

Machado (1996), em O Grande Livros dos Provérbios, não perde tempo a fazer a distinção entre os muitos sinónimos que é habitual a associar-se ao termo provérbio (por ex., adágio, aforismo, anexim, apotegma, axioma, ditado, dito, dito sentencioso, dizer, exemplo, máxima, parémia, preceito, prolóquio, refrão, rifrão, sentença). Para nós, essa distinção também é algo bizantina, devendo ser remetida aos eruditos da língua portuguesa.

O Dicionário Houaiss da Língua Portugesa (Lisboa, 2003) define provérbio como:

(i) uma frase curta;

(ii) geralmente de origem popular;

(iii) frequentemente com ritmo e rima;

(iv) rica em imagens ou metáforas;

(v) sintetizando um ideia a respeito da realidade, uma regra social ou uma normal moral.

Um dos nossos pressupostos, seguindo Gomes (1974), é o de que muitos deles teriam uma matriz ideológica cristã-feudal, indissoluvelmente ligada à ruralidade e à oralidade, por um lado, mas também à cristandade, como um todo. Aliás, muitos deles são comuns às principais línguas europeias, em particular às de origem latina.

Uma das suas particularidades ou originalidades é a forma de expressão

(i) em poucas palavras, resume-se uma ideia-força, por vezes em termos antinómicos ("Deus dá o mal e a mezinha"); além disso,

(ii) são fáceis de decorar ("Espírito são em corpo são"); 

(ii) têm, por vezes, um claro objetivo de crítica social ("Os erros do médico, a terra os come"); 

(iv)  
ou um simplesmente um um propósito didático ("O mal do olho coça-se com o cotovelo");

(v) moralizante ("À custa do doente come toda a gente");

(vi) ou filosófico ("Queres conhecer o teu corpo ? Mata o teu porco").

Enquanto parte de uma arqueologia da língua e do saber e, portanto da nossa própria cultura (Braga, 1986), os provérbios parecem-nos constituir um material no mínimo interessante para o estudo não só da 

(i) história das mentalidades,  como até da 

(ii) emergência dos modernos sistemas, políticas, profissões e práticas de saúde (Mira, 1947; Barbosa, 1984; Goff e Sournia, 1985; Ferreira, 1990; Lemos, 1991; Barbaut, 1991; Cosmascini, 1995; Geremeck, 1995; Sournia, 1995; Graça, 1994, 1996, 1997 e 1999).

Além do mais, há um grande défice da contribuição antropossociológica para a formação pré e pós-graduada dos nossos profissionais de saúde, não só dos nossos médicos e enfermeiros e outros prestadores como dos gestores de serviços de saúde.

Por exemplo, de há muito que é reconhecida a necessidade de se desenvolver a "sensibilidade sociocultural" dos médicos de medicina geral e familiar (Barbosa, 1984). Por outro lado, só muito lenta e tardiamente as nossas faculdades de medicina e as nossas escolas de enfermagem (e de tecnologias da saúde) se têm aberto para o contributo das ciências sociais, em particular da  história, da sociolinguística, da psicologia social, da sociologia e da antropologia.

Daí que o presente texto possa ser visto, também, como uma proposta (modesta) para repensarmos a história da saúde, da doença e da medicina em Portugal , ainda largamente dominada até ao final do séc. XX  dominada pelo iatrocentrismo e pelo etnocentrismo (Mira, 1947; Ferreira, 1990; Lemos, 1991).

É hoje relativamente pacífica a ideia de que:

(i) não há só uma medicina;

 (ii) nem um só modelo etiológico ou explicativo de saúde/doença. 

J. Ch. Sournia, conhecido médico francês e historiador da medicina, relativiza a pretensa universalidade da medicina (ocidental), pondo o acento tónico naquilo que é, por essência, o ato médico, desde a Grécia Antiga até às nossas atuais sociedades da informação:

"O ato médico coloca uma pessoa que se considera doente na presença de outra à qual atribui poder e conhecimentos. Nenhuma destas circunstâncias pode escapar à história: o desejo de ser tratado é justificado por uma dor ou uma anomalia na aparência ou no funcionamento do corpo, cuja apreciação varia de acordo com as épocas, as culturas, as sociedades e as religiões", escreve J. Ch. Sournia, na sua História da Medicina (Sournia, 1995. 7).

Muitos destes provérbios e expressões idiomáticas da língua portuguesa devem ser tratados como verdadeiros "fósseis" da filosofia de senso comum. Todos eles fazem parte do nosso património cultural mas alguns deles ainda são verdadeiros "fósseis vivos".

No mínimo, veiculam representações sociais (Vala, 2002) da saúde, da doença, da dor, da morte e da medicina e dos seus praticantes, que ainda hoje sobrevivem sob a forma de estereótipos, preconceitos e teorias espontâneas, e que às vezes emergem, aqui e acolá, no discurso e na prática dos atores sociais.

Alguns, inclusive, são verdadeiras joias do pensamento sincrético (tal como alguns dos grafitos que, teimosamente, provocatoriamente, cobrem muros e paredes das nossas cidades). Pensamos que uma parte deste património cultural pode e deve ser recuperadas por aqueles de nós que lutam pelo triunfo de uma nova saúde pública.

Alguns destes provérbios podem inclusive ser usados no âmbito da educação e da promoção da saúde, nomeadamente aqueles que estão relacionados com fatores de risco e fatores protetores da saúde (físicos, químicos, biológicos e psicossocais).

Vou exemplificar alguns destes pontos de vista, através da análise, meramente exploratória, de um primeiro corpus de provérbios portugueses que está longe de ser exaustivo e sistemático: no essencial, baseia-se nas recolhas feitas por Gomes (19974) e Machado (1996); há outras fontes avulsas (incluindo inúmeros sítios na Internet) que, por economia de espaço e de tempo, não vou aqui referir.

Machado (1996) reuniu mais de 26 mil entradas, organizadas por ordem alfabética. Nalguns casos, é referida a mais antiga documentação da sua origem que o autor conseguiu obter, anterior ao Séc. XIX. Por outro lado, Costa (1999) compilou e classificou em termos temáticos mais de 40 mil provérbios, num paciente trabalho digno de monge, ao longo de toda uma vida.

Diga-se, por fim, que é discutível o estatuto de provérbio, português e de origem popular, que é atribuído a um ou outro dos objetos seleccionados. Alguns são de origem bíblica, latina e erudita. Não vamos, porém, perder tempo com essa discussão.

Outros confundem-se com o calão usado pelas classes populares. Por muito que isso possa ferir algumas sensibilidades, entendemos que não tínhamos o direito, enquanto estudiosos destes materiais significantes, de os amputar, censurar, branquear ou suavizar... O que importa é a sua apropriação pelos falantes da língua portuguesa, o seu uso mais ou menos socialmente alargado e historicamente documentado.


2. A Representação da Doença e do Doente

Na ideologia cristã-feudal, a doença é representada socialmente da seguinte forma esquemática (Quadro I):

(i) está quase sempre associada à morte ("Mal viver, mal acabar"; "Tosse seca, trombeta da morte"; "Doença comprida em morte acaba"; "Não há morte sem achaque");

(ii) e, muitas vezes, à morte em massa de que a peste negra de 1348-1351 e o infernal ciclo de epidemias que se lhe seguiu durante mais de quatro séculos é o termo de comparação ("Não matou mais a Peste Grande de Lisboa", ou seja, a de 1569) (Quadro III);

(iii) é vista como algo de inelutável, que transcende a vontade humana e contra a qual o homem é totalmente impotente ("Boda e mortalha no céu se talha"; "Deus faz o que quer e o homem o que pode") (Quadro II);

(iv) e quase sempre um castigo ou uma provação de um Deus que é estranha e misteriosamente um pai maniqueísta, justiceiro e misericordioso ("A quem Deus não açoita é sinal de que o não perfilha"; "De Deus vem o mal e o bem"; " Deus o dá Deus o leva"; "Deus castiga sem pau nem pedra"; "É tão bom Deus como o Diabo");

(v) e que só Deus, e não os médicos, pode curar ("De hora a hora Deus melhora"; "Deus dá o mal e a mezinha"; "Deus fere porém Suas mãos curam").

Até à criação do Estado Moderno (grosso modo, até ao fim do Ancién Régime ou Antigo Regime, no nosso caso até à revolução
o de 1820) não faz qualquer sentido falar-se em sistemas e políticas de saúde ou de protecção social ou até de assistência pública.

Estes conceitos irão surgir, lentamente, como resposta aos efeitos perversos da revolução industrial e urbana, operada pelo desenvolvimento do capitalismo liberal, bem como às profundas transformações demográficas, sociais, económicas, científicas, culturais e políticas que marcam o Século XIX . Nomeadamente o conceito de assistência pública é um conceito burguês que irá emergir da Revolução Francesa (Graça, 1996).


Quadro I — Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre a doença e o doente

Objeto

Provérbio

Doença /  Enfermi- dade

  • "A bouba (1) dói é no cu de quem tem"

  • "A doença e a dor conhecem-se na cor"

  • "A doença vem a cavalo e vai a pé"

  • "A doença vem às braçadas e sai às polegadas"

  • "As sezões vêm a cavalo e voltam a pé"

  • "Doença comprida em morte acaba"

  • "Febre hermititeus não cura senão Deus" (2)

  • "Febre outonal ou longa ou mortal"

  • "Fora de horas urinar é sinal de enfermar"

  • "Melhor é curar gafeira (3) que casa inteira"

  • "O mal vem às braçadas e sai às polegadas"

  • "Sarampo, sarampelho, sete vezes vem ao pêlo"

Doente

 

 

 

 

  • "À custa do doente come toda a gente"

  • "Doente mudou de cabeceira, morte certa"

  • "Doente que espirra, não morre no dia"

  • "Em casa de doente o lugar não se aquente"

  • "Feliz o doente que se conhece"

  • "Não fujas que eu não tenho lepra"

  • "Não há doenças, só há doentes!"

  • "Não há nada pior para a saúde do que a gente estar doente"

  • "O são ao doente em regra mente"

  • "Terra ruim e mulher doente é que quebra a gente"

  • "Um doente come pouco e gasta muito"


(1) Termo que em meados do Séc. XVI passou a designar as doenças do foro dermatológico, com especial destaque para as doenças venéreas, como a sífilis; (2) Intermitente, segundo Machado (1996. 232); referência provável ao sezonismo ou sezões; (3) Lepra

Até à Renascença (grosso modo, até ao Séc.XVI)   não há sequer um clara noção do que seja a saúde, em termos individuais ou colectivos. De resto, "não há doenças, só há doentes" (Quadro I).

A única excepção são a lepra e as epidemias que devastam a Europa medieval e a que Herzlich e Pierret (1984) chamam l'Ancién Régime du Mal, o Antigo Regime do Mal...

Enquanto hoje a doença crónica é (ou pode ser) vista como uma forma de vida, a epidemia será então uma forma de morte. A doença era marcada por três características 
(Herzlich e Pierret, 1984. 23):

(i) o número;

(ii) a impotência e a morte;

(iii) a exclusão social.

De facto, com a epidemia, não há doentes individualizados: não se morre só, em casa ou no hospital, morre-se em massa, por toda a parte, das formas mais cruéis e macabras (por ex., emparedado vivo com toda a família).

A morte é algo de inelutável, indizível e fatal, sendo a exclusão a única saída. A resposta colectiva, através da "socialização do mal", será a do internamento forçado e da brutal segregação dos doentes (Foucault, 1972; Geremek, 1995).


Quadro II— Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre Deus enquanto ‘fatum’

Objeto

Provérbio

Deus / 

Fatum

 

 

  • "A quem Deus não açoita é sinal de que o não perfilha"

  • "Ao menino e ao borracho põe-lhes Deus a mão por baixo"

  • "Boda e mortalha no céu se talha"

  • "Cada qual é como Deus o fez"

  • "De Deus lhe venha o remédio"

  • "De Deus vem o mal e o bem"

  • "De hora a hora Deus melhora"

  • "De tudo Deus se serve"

  • "Deixai fazer a Deus que é santo velho" (Séc. XVI)

  • "Deus castiga sem pau nem pedra"

  • "Deus dá o mal e a mezinha"

  • "Deus escreve direito por linhas tortas"

  • "Deus faz o que quer e o homem o que pode"

  • "Deus fere, porém Suas mãos curam"

  • "Deus mora na igreja, não sai de casa e ainda por cima se tranca dentro do sacrário"

  • "Deus o dá Deus o leva" ou "Deus o dei Deus o levou"

  • "Diz o são ao doente: 'Deus te dê saúde' "

  • "Em tempo de inverno, ninguém se fie em Deus"

  • "Enquanto há saúde quedos estão os santos"

  • "Febre hermititeus (1) não cura senão Deus"

  • "Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dá tudo"

  • "O diabo não é tão feio como o pintam"

  • "O futuro a Deus pertence"

  • "Quando Deus não quer, os santos não podem"

  • "Quando Deus não quer, santos não rogam" (Séc. XVI)

  • "Quando Deus o assinalou,  alguma coisa má lhe achou"

  • "Quando Deus se atrasa, vem um anjo no caminho"

  • "Saúde e geração não se apura"

  • "Tão bom é Deus como o Diabo"


(1) Intermitente, segundo Machado (1996. 23); referência provável ao sezonismo.

No caso da lepra, os doentes eram apartados da comunidade e da família, despojados dos seus bens, submetidos a um macabro simulacro de funeral em vida, além de serem obrigados a viver da caridade, a usar um vestuário distintivo e a fazer-se anunciar através do toque de matracas, junto às povoações e nas vias públicas.

A lepra era, na Alta Idade Média, a Doença, por antonomásia. Conhecida desde a antiguidade, é amplamente citada na Bíblia como a doença do pecado da carne, logo um terrível castigo divino, susceptível de se propagar às gerações seguintes.

Com as Cruzadas (Séc. XI), aumentou consideravelmente o número de leprosos e, em consequência, multiplicaram-se as leprosarias (ou gafarias, em Portugal) ao ponto de terem existido em França mais de duas mil, por volta de meados do Século XIII (Imbert, 1958).

A partir de finais do Século XIV, esta terrível doença que marcou o imaginário do homem medieval ("Não fujas que eu não tenho lepra" é uma expressão que ainda hoje se usa em Portugal), tenderá a regredir no Ocidente. O regresso dos cruzados terá igualmente contribuído para a introdução de muitas doenças transmissíveis, até então desconhecidas na Europa, e que se transformaram em temíveis epidemias e doenças endémicas (peste, tifo, varíola, etc.).

A mais mortífera de todas foi, contudo, a peste negra (do latim pestis, derivado de peius, "a pior doença") , designada sob a forma de múltiplas expressões como febris pestilentilis, infirmitas pestifera, morbus pestiferus, morbus pestilentialis, mortatitas pestis ou muito simplesmente pestilentia. Estima-se que, em meados do Séc. XIV, terá vitimado cerca de 25 a 30 milhões de pessoas (entre um terço a um quarto da população do Ocidente), a maior catástrofe demográfica de que os europeus têm memória.

Quanto à sífilis (também conhecida como morbo serpentino, mal das boubas, morbo gálico, etc.), é já, claramente, um pandemia pós-feudal, resultante do florescimento das cidades, da economia mercantil, da mobilidade espacial e sobretudo das viagens marítimas intercontinentais: trazida, ao que parece,  do Novo Mundo pelos marinheiros de Cristovão Colombo, era conhecida como o mal francês (morbo gálico) na Itália, como o mal italiano em França, como o mal português na Índia, como o mal espanhol nas Américas, como o mal cristão entre os otomanos, e assim sucessivamente (Mira, 1947. 103-104).

Embora não haja dados que permitam calcular as taxas de natalidade e mortalidade da população portuguesa nos Séculos XIV e XV, aceita-se como pacífico que fossem muito elevadas. Segundo os historiadores, a média de vida ou a esperança de vida após a puberdade situar-se-ia entre os 35 e os 40 anos. O que aliás está implícito nalguns dos provérbios seleccionados (Quadro III e Quadro IV):
  • "A morte não escolhe idades";
  • "Até aos 40 bem eu passo, dos 40 em diante 'ai a minha perna, ai o meu braço' ";
  • "De quarenta arriba não molhes a barriga";
  • "Esta vida não chega a netos nem a filhos com barba";
  • "Na era de 31, poucos moços, velhos nenhum".
A começar pela capital do Reino, sempre foi alta a taxa de morbilidade e de mortalidade da população portuguesa. Mesmo no auge dos Descobrimentos, a deslumbrante e magnífica Lisboa, celebrada por viajantes estrangeiros que aportavam ao estuário do Tejo, não passava de uma montureira em que a peste era endémica (do grego en+demos, no meio do povo):

A Lisboa que o médico, de origem hebraica, Amato Lusitano (1511-1568) evoca nas suas Centuriae curationum medicinalium, não é apenas a do conhecido 'postal ilustrado', publicado na obra de J. Braunius, Civitates orbis terrarum (1572);

Para além da sua ímpar topografia e da benignidade do seu clima, a par da grandiosidade do seu porto, muralhas, palácios, igrejas e conventos, Lisboa continua a ser uma cidade medieval no que respeita à sua malha urbana e sobretudo às suas condições sanitárias (Graça, 1996).

Como diz Ricardo Jorge (s/d. 170), "as ruas afogavam-se em estrumeiras; quem podia, só as transitava a cavalo. Canos, apenas mencionados no regimento de municipal de 1502, só ao findar do século XVI é que tinham traçado figurável - tudo parcelar e desconexo, contando-se tão somente dois canos reais". A par isso, "na praia vazavam-se todos os despejos e despojos; e a barbárie era tal que os próprios cadáveres dos escravos eram deitados ao monturo, entregues ao dente do cão, do rato e à podridão livre".

Ricardo Jorge referia-se nomeadamente ao execrável hábito de lançar os cadáveres dos escravos negros e mouros ao Estuário do Tejo (por ex., na praia de Santos ou a partir da escarpa de Santa Catarina). Esta prática, muito pouco misericordiosa, atentatória da saúde pública, terá levado D. Manuel I a mandar construir dois poços funerários (o dos Negros e o dos Mouros), onde os cadáveres eram lançados e, periodicamente, cobertos de cal viva!

E acrescenta o autor da biografia de Amato Lusitano:

"Daí a mortandade, a curteza de vida. Amato viu superiormente, e é o primeiro a dizê-lo, quanto Lisboa reduzia a vida dos seus habitantes, assinalando o seu regime de baixa longevidade; e, antecipando-se à observação mais moderna, afirma de ciência certa que a maior parte dos lisboetas sucumbem às primeiras idades - maiori ex parte juvenes e vita decedunt " (Jorge, s/d. 170-171).

A doença, a infelicidade e a morte também estão intimamente associadas à pobreza (Quadro IV):
  • "De gente pobre até o rasto é triste";
  • "Desgraça do pobre é ter nascido";
  • "Quando pobre come frango, um dos dois está doente".
Quadro III - Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre a morte e a peste

Objeto

Provérbio

Morte/ Vida

  • "A morte não escolhe idades"

  • "A tris matou quem quis" (1)

  • "A vida é um sono de que a morte nos desperta"

  • "A vida tem uma porta só, a morte tem cem"

  • "Ano de muito peixe ano de mortes"

  • "Antes a morte que tal sorte"

  • "Esta vida são dois dias e o Carnaval são três"

  • "De má vida se engendra a morte"

  • "Esta vida não chega a netos nem a filhos com barba"

  • "Mais vale andar neste mundo em muletas do que no outro em carretas"

  • "Mais vale morte que má sorte"

  • "Mal desconhecido com seu dono morre"

  • "Mal viver, mal acabar"

  • "Morreu, acabou-se"

  • "Na hora da morte não vale a pena tomar remédio"

  • "Nada mais certo do que a morte; nada mais incerto do que a hora da morte"

  • "Não há cousa tão junta a outra como a morte à vida" (Séc. XVI)

  • "Não há morte sem achaque"

  • "Nem rei nem papa à morte escapa"

  • "O que no leite se mama,  na mortalha se derrama"

  • "O sono é a imagem da morte"

  • "O temor da morte é a sentinela da vida"

  • "Onde entra a morte entra a má sorte"

  • "Para a morte o remédio é abrir-lhe a boca"

  • "Para tudo há remédio senão para a morte" (Séc. XVI)

  • "Quem de novo não morre de velho não escapa"

  • "Quem mal vive mal acaba"

  • "Quem nasceu para a forca não morre afogado"

  • "Quem se mata morto fica e, se não morre, entesica"

  • "Só uma porta a vida tem, enquanto a morte tem cem"

  • "Tal vida tal morte"

  • "Temer a morte é morrer duas vezes"

  • "Tosse seca – trombeta da morte"

Epidemia/ Peste

  • "Fuge cito vade longe rede tarde" (4)

  • "Da fome, da peste e da guerra e do bispo da nossa terra - libera nos, Domine"

  • "Dia de São Silvestre (5), não comas bacalhau que é peste"

  • "Em tempo de guerra e peste é mentira como terra"

  • "Livre-te de fruta mal sazonada que é peste disfarçada"

  • "Mal de muitos é peste"

  • "Não matou mais a Peste Grande de Lisboa" (2)

  • "Se durante a epidemia temeres a morte, serás presa dela" (3)



(1) Icterícia, segundo Machado (1996: 55); (2) A de 1569; (3) Adágio oriental (Mira, 1947: 405); (4) Provérbio latino usado na Idade Média ("Foge depressa, vai para longe e não voltes não cedo"); (5) 31 de Dezembro

De qualquer modo, o facto de não haver uma consciência colectiva da saúde/doença terá a ver, antes de mais, com o nível de conhecimento sobre a etiologia (ou a causalidade) das doença humanas:

  • Até à revolução bacteriológica de meados do Séc. XIX (protagonizda por Pasteur, Koch e outros), as doenças infecciosas eram atribuídas a misteriosos miasmas; daí (i) o sentido do provérbio português "Livra-te dos ares, que eu livrar-te-ei dos males" e (ii) a vulgarização de práticas mais ou menos ritualizadas como as fogueiras nas ruas em caso de epidemia, as fumigações de pessoas, animais, objectos e casas, a travessia das ruas por manadas de gado bovino, etc.;
  • Quanto às doenças não transmissíveis, essas, continuavam a ser, ainda até há relativamente pouco tempo, um outro "mistério";
  • De facto, só a partir dos anos 60 foi possível tentar "uma interpretação global das relações existentes entre as condições de vida, a saúde e o crescimento da população" (McKeown, 1990. 13).

Quadro IV —Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre a pobreza e a velhice

Objeto

Provérbio

Pobre / Pobreza

  • "De gente pobre até o rasto é triste"

  • "Desgraça de pobre é ter nascido"

  • "Entre ricos e pobres alguém há-de escapar"

  • "Frango na panela do pobre é desgraça certa, doença do pobre, 'bouba' do franguinho ou raiva do vizinho"

  • "Os pobres têm tempo"

  • "Por pouca saúde, vale mais nenhuma"

  • "Pobre com pouco se alegra"

  • "Quando pobre come frango, um dos dois está doente"

Idade / Tempo / Velhice

  • "A morte não escolhe idades"

  • "A saúde nos velhos é mui remendada"

  • "Até aos 40 bem eu passo, dos 40 em diante 'ai a minha perna, ai o meu braço' "

  • "A velhice não tem cura"

  • "Cabelos brancos, flores de cemitério"

  • "De quarenta arriba não molhes a barriga"

  • "Em uma hora se paga quanto se erra em toda a vida (Séc. XVI)

  • "Engorda o menino para crescer e o velho para morrer"

  • "Esta vida são dois dias"

  • "Hoje com saúde, amanhã no ataúde"

  • "Hoje na figura, amanhã na sepultura"

  • "Hora de morrer não tem retardo"

  • "Mal vai à corte em que o  boi velho tosse"

  • "Na era de 31, poucos moços,  velhos nenhum"

  • "Não há moço doente nem velho são"

  • "O menino engorda para crescer e o velho para morrer"

  • "O tempo dá o remédio onde me falta o conselho"

  • "O tempo tudo cura "

  • "O tempo tudo cura menos velhice e loucura"

  • "Perde-se o velho por não poder e o novo por não saber"

  • "Por um dia de prazer um ano de sofrer"

  • "Porco de um ano, cabrito de um mês, mulher dos dezoito aos vinte e três"

  • "Prisca idade, priscos tempos" (1)

  • "Quem a trinta não tem siso a quarenta não é rico"

  • "Quem faz em novo paga em velho"

  • "Teme a velhice porque nunca vem só"

  • "Um dia pior, outro melhor"

  • "Velho não se senta sem 'ui', nem se levanta sem 'ai' "

  • "Velho que de si cura cem anos dura"


(1) Prisco=antigo (em linguagem poética)


Em suma, foi preciso esperar pelo século XIX para que se fizesse luz sobre a natureza das doenças transmissíveis. Em escassas dezenas de anos, os progressos da bacteriologia e virologia tornam-se espectaculares (Quadro V).

Em contrapartida, só na segunda metade do século XX é que foi posta em evidência a etiologia multifactorial de doenças crónicas como o cancro, a diabetes ou a cardiopatia isquémica, e o peso que nesse tipo de doenças tinham (e têm) os factores ambientais e comportamentais, e não apenas os biológicos ou genéticos.

No complexo puzzle das teorias explicativas da saúde/doença, há hoje quatro evidências empíricas que McKeown (1990:14) considera como fundamentais:
  • O reconhecimento de que o genoma humano é sensivelmente o mesmo do primitivo Homo Sapiens Sapiens, ou seja, dos nossos antepassados caçadores-recolectores de há cem mil anos;
  • A descoberta de que, nos países desenvolvidos, o salto qualitativo em termos de melhoria do estado de saúde e de crescimento populacional começou um século antes da medicina ter meios eficazes de intervenção no combate às doenças, sendo esse salto atribuído, em grande medida, à melhoria da envolvente socioeconómica (alimentação, habitação, saneamento básico, higiene ambiental e pessoal, nível de instrução e de informação, serviços de saúde pública, etc.);
  • A descoberta, pelas ciências biomédicas, da natureza das doenças infecciosas e da possibilidade da sua prevenção pela dupla via do aumento da resistência do organismo humano e da redução da exposição aos agentes transmissores;
  • E, finalmente, o reconhecimento (este muito mais recente, de há quarenta anos para cá, desde os anos 60 do séc. XX ) de que a maior parte das doenças não transmissíveis não podem ser apenas imputáveis àbiologia humana e à constituição genética, mas também ao sistema socioecológico em que vive o homem moderno; nessa medida, podem ser objecto de prevenção, através da eliminação, redução ou controlo dos factores de risco quer ambientais quer comportamentais.

Quadro V - Alguns dos principais genes patogénicos identificados na época de ouro da bacteriologia

Ano

Germes patogénicos

Autor

País

1875

Lepra

Hansen

Noruega

 

Amebíase

Loesch

Alemanha

1878

Furúnculo

Pasteur

França

1879

Febre puerperal

Roux

França

 

Blenorragia

Neisser

Alemanha

1880

Malária/ Paludismo

Laveran

França

 

Febre tifóide

Eberth

Alemanha

1882

Tuberculose

Koch

Alemanha

1883

Cólera

Koch

Alemanha

1884

Tétano

Nicolaïer

Rússia

1887

Febre de malta

Bruce

Grã-Bretanha

1889

Cancro mole

Ducrey

Itália

1894

Peste

Yersin

França

1901

Doença do sono

Dutton

Grã-Bretanha

1905

Sífilis

Schaudinn

Alemanha

1906

Coqueluche

Bordet

França

1909

Tifo

Nicolle

França



Fonte: Adapt. de Sournia (1995: 260)

Referências bibliográficas (a publicar no final da série)

(Continua)
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19370: Manuscrito(s) (Luís Graça) (149): O último pôr do sol... nas Azenhas do Mar

(**)  Adpat. de um texto do autor, de 2000, publicado na sua página pessoal, Saúde e Trabalho - Luís Graça; u
ma outra versão, mais abreviada, foi publicada no Médico de Família, III Série, 6 (Junho 2000)

(***) Vd. postes de:

2 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20800: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado ? (Luís Graça) - Parte I: A lepra, a doença por antonomásia na Idade Média

4 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20810: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte II: Peste: "Mercator ergo pestiferus"

7 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20827: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte III: Entrevista dada ao jornalista José Pedro Frazão, programa "Da Capa à Contracapa", emitido aos sábados, às 9h30, na Rádio Renascença
14 de abril de 2020 Guiné 61/74 - P20855: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte IV: Saúde e terror até ao fim do Antigo Regim

(****) Último poste da série > 12 de dezembro de  2022> Guiné 61/74 - P23870: Manuscrito(s) (Luís Graça) (215): Verão de 68