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segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25904: Notas de leitura (1723): Breve história da evangelização da Guiné (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Estamos chegados ao Estado Novo e os autores dão-nos conta das atividades desenvolvidas desde a Missão da Guiné, constituída em 1940, até praticamente aos finais do século XX. Esta Missão foi desafetada do bispado de Cabo Verde, começaram grandes desafios para Franciscanos e para as Franciscanas Hospitaleiras, estas ficaram à frente dos Asilos de Bor e Bafatá. Logo a seguir vieram os missionários italianos de duas ordens, dinamizou-se o trabalho na leprosaria de Cumura. Dinamizou-se a atividade educativa que, evidentemente, foi fustigada pela guerra de libertação, e que levou ao encerramento de muitas escolas missionárias. Com a libertação, Roma decide criar a diocese de Bissau, aumentaram as vocações sacerdotais e religiosas, nasceram novas missões, a evangelização abriu as causas da saúde, educação e da promoção da mulher, uma evangelização que abarca hospitais, uma leprosaria, um liceu diocesano e duas escolas profissionais médias. Esta monografia tem o mérito de atualizar o trabalho de referência do padre Henrique Pinto Rema.

Um abraço do
Mário



Breve história da evangelização da Guiné (3)

Mário Beja Santos

Já aqui se deu amplo acolhimento à obra magna do Padre Henrique Pinto Rema, "História das Missões Católicas na Guiné", dela até coligi um resumo para um livro que tenho em preparação sobre os textos fundamentais da presença portuguesa na Guiné. Mas também não se pode descurar outras iniciativas como esta "Breve História da Evangelização da Guiné", da autoria de dois franciscanos devotados a estudos guineenses. Trata-se de uma edição do Secretariado Nacional das Comemorações dos 5 Séculos, datada de maio de 1997. Os autores explicam o significado daquele ano jubilar, tem a ver com a deslocação de D. Frei Victoriano Portuense, há precisamente 300 anos, saiu da sua sede de diocese, na Cidade Velha, na ilha de Santiago, e foi visitar as comunidades cristãs da Guiné; o significado também abrange os 20 anos de existência da Diocese de Bissau.

Já estamos em plenos anos 1940 e 1950. Viviam-se tempos anteriores ao Concilio Vaticano II, a tolerância dialogante sobre valores existentes em todas as religiões eram palavras desconhecidas. A evangelização na Guiné não escapava à regra – religião única era apenas a cristã. Com boa vontade, talvez possamos encontrar duas pequenas exceções a esta regra: o interesse dos Franciscanos no século XVIII em conhecer os usos e costumes dos Pepéis da ilha de Bissau (o desejo de conhecer é o primeiro passo para o respeito e pelo diálogo subsequentes); na morte de Becampolo Có em Bissau, em finais do século XVII, como era cristão o corpo do rei foi sepultado na capela do hospício franciscano em Bissau – os pepéis condescenderam, mas exigiram e conseguiram obter dos frades que nas cerimónias do choro que se pudessem matar vacas, bem como beber e comer à vontade.

Falemos agora da Missão da Guiné, 1940. Em 4 de setembro desse ano, o Papa Pio XII separou definitivamente a Missão da Guiné do bispado de Cabo Verde, ao qual estivera ligado desde 1533. Autónoma nos seus destinos, já com duas congregações religiosas permanentes (Franciscanos portugueses e Franciscanas Hospitaleiras portuguesas) e com a perspetiva de se poder abrir a outras congregações, com uma nova organização missionária voltada para a evangelização e promoção social, a Missão da Guiné trazia amplas expetativas.

Em 1932, os Franciscanos portugueses foram quase obrigados a regressar onde, nos séculos anteriores tinham estado mais de 170 anos seguidos. Regressaram e estabeleceram quartel-general em Bula, sendo durante alguns anos os únicos missionários presentes no território. Mas “arrastaram” consigo as Irmãs Franciscanas Hospitaleiras portuguesas (logo em 1933), primeiramente em Bula e depois nos Asilos de Bor e Bafatá e no Hospital Central de Bissau. A seguir chegaram os missionários estrangeiros, os primeiros foram os missionários do Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras, e com o seu precioso auxílio foi possível garantir melhor a assistência religiosa permanente a Geba-Bafatá, Bambadinca, Catió, Farim e Suzana. Em 1955, juntaram-se também à missionação os Franciscanos da província de Santo António de Veneza. Deste grupo faziam parte D. Settimio A. Ferrazzetta, o primeiro bispo de Bissau, e Frei Epifânio Cardin, que trabalhou na missão de Cumura. Em 1969, assumiram a direção da leprosaria. Mais tarde estenderiam a sua ação de bem fazer e de evangelização até Bolama, Biombo, Nhacra e Bissau. Também os Franciscanos italianos virão a “arrastar” consigo as Irmãs Franciscanas do Coração Imaculado de Maria, que chegarão à Guiné em 1970, trabalhando primeiro na leprosaria de Cumura e posteriormente em Quinhamel. Em 1969, chegavam à Prefeitura Apostólica da Guiné as Irmãs do Instituto do Santo Nome de Deus, italianas, que se instalaram em Suzana e em Bubaque até 1993.

A ação educativa missionária ir-se-á revelar do maior interesse. A partir da entrega do ensino primário não-oficial às Missões, muitas escolas espalharam-se pelo interior da Guiné. Para o regular funcionamento das aulas, os missionários socorreram-se de professores catequistas, formados sobretudo das escolas das missões de Bula e Bafatá.

Na assistência social e sanitária, foi igualmente relevante o papel das missões católicas em Bor, Bafatá, Bula, Bissau, sem esquecer os internatos menores de Bubaque, Mansoa, Quinhamel e Cumura. A guerra de libertação, como é facilmente compreensível, causou uma enorme perturbação da atividade missionária da Guiné. Muitas escolas missionárias tiveram de fechar as portas por falta de gente que as fizesse funcionar.

E assim chegamos à Diocese de Bissau (1977-1996). Pela Bula Rerum Catholicorum, de 21 de março de 1977, o Papa Paulo VI elevou a Prefeitura Apostólica da Guiné à dignidade de diocese. A sede ficou em Bissau, o seu templo principal é a igreja catedral de Nossa Senhora da Candelária.

Houve um fomento claro e decidido de vocações sacerdotais e religiosas no país. Em 1977 não havia um sacerdote autóctone, em 1997 eram 15. Após 1977 abriram-se mais 6 paróquias em Bissau e novas missões em Tite, Buba, Empada, Bedanda, Ingoré, Cacheu, Caió, Bajob, Betenta, Bigene, Nhoma, Bissorã, entre outras. É uma evangelização que não esquece a promoção social: na saúde, educação e promoção da mulher. Além de 3 hospitais de maiores proporções e de uma leprosaria, há uma trintena de pequenos centros onde diariamente as pessoas acorrem e onde bebés desnutridos ou adultos com toda a sorte de doenças ou problemas vêm procurar alívio.

Por fim, os autores resumem as atividades da educação e da promoção da mulher. A diocese possuiu já um liceu diocesano e duas escolas profissionais médias. Mais de 200 guineenses estudaram fora da Guiné com bolsas obtidas pela diocese, graças aos Amigos das Missões. Hoje as bolsas continuam a ser dadas, mas para estudos dentro do país, no liceu João XXIII e nas faculdades de Medicina e Direito em Bissau.

Trata-se pois de uma monografia que reatualiza o indispensável trabalho do padre Henrique Pinto Rema.


Igreja de Catió, agosto de 1973. Imagem retirada do blogue Arquivo Digital, com a devida vénia
Festa religiosa de Nossa Senhora de Fátima, Padroeira de Catió, 2014
Igreja de Nova Lamego (hoje Gabu), imagem retirada do nosso blogue
Imagem tirada durante a celebração de uma missa no Gabu, 2014
Administração do Crisma a jovens da Paróquia de Santa Isabel de Gabu
Cerimónia presidida pelo segundo bispo de Bissau, D. José Lampra Cá
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Notas do editor:

Vd. post anterior de 26 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25882: Notas de leitura (1721): Breve história da evangelização da Guiné (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 30 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25896: Notas de leitura (1722): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1873) (18) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25859: Notas de leitura (1719): Breve história da evangelização da Guiné (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Continua-se a dar cumprimento a fazer reportório de toda a literatura para que seja alusiva à presença portuguesa na Guiné, a dimensão missionária não podia ser descurada. Recordo ao leitor que a obra magna continua a ser o memorável trabalho do Padre Henrique Pinto Rema intitulado a História das Missões Católicas na Guiné, mas mais recentemente um escol de franciscanos tem vindo a publicar obras, e delas temos feito referência. Mas há investigação espúria, recordo também que já aqui se aludiu em recensão o percurso geográfico e missionário de Baltasar Barreira, um jesuíta que deixou cartas relativas à missão de Cabo Verde entre os anos de 1604 e 1612.

Um abraço do
Mário



Breve história da evangelização da Guiné (1)

Mário Beja Santos

Já aqui se deu amplo acolhimento à obra magna do Padre Henrique Pinto Rema, História das Missões Católicas na Guiné, dela até preparei um resumo para um livro que tenho em preparação sobre os textos fundamentais da presença portuguesa na Guiné. Mas também não se pode descurar outras iniciativas como esta Breve História da Evangelização da Guiné, da autoria de dois franciscanos devotados a estudos guineenses. Trata-se de uma edição do Secretariado Nacional das Comemorações dos 5 Séculos, datada de maio de 1997. Os autores explicam o significado daquele ano jubilar, tem a ver com a deslocação de D. Frei Victoriano Portuense, há precisamente 300 anos, saiu da sua sede de diocese, na Cidade Velha, na ilha de Santiago, e foi visitar as comunidades cristãs da Guiné; o significado também abrange os 20 anos de existência da Diocese de Bissau.

Começam os autores por elencar as primeiras tentativas de evangelização, mesmo antes da criação da Diocese, em 1533, há prova de que alguém levou a mensagem evangélica a estes povos. Com efeito, o Papa Pio II nomeou Frei Afonso de Bolonho, franciscano, como primeiro responsável do grupo de missionários que partiram para a missão de Guiné. As dificuldades foram inúmeras, estava aceso o conflito entre Portugal e Castela por causa da administração das ilhas Canárias, um problema que só foi solucionado com a celebração do Tratado de Toledo, em março de 1480. Sobre a atividade deste religioso e dos seus 16 companheiros em terras da Guiné nada em concreto se sabe, a documentação é inexistente.

O território dos rios de Guiné foram demarcados a partir da fundação da Diocese da Guiné e Cabo Verde. Pela Bula Pro Excellenti, de 1533, foi criada a Diocese, englobando, além das ilhas de Cabo Verde “o espaço de 350 léguas de terra firme, a começar no rio Gâmbia, junto ao promontório ou lugar de Cabo Verde, continuando até ao promontório ou lugar chamado Cabo de Palmas e rio de Santo André”. Os autores fazem uma descrição dos povos e das regiões da Guiné ao tempo, recordam que os animistas creem no Irã, para eles a verdadeira força espiritual; os muçulmanos estendiam-se principalmente pelo interior, o que facilitou o contacto dos portugueses com as etnias animistas da costa. Contactos que se estabeleceram com os Balantas, Brames, Felupes e Papeis, a um nível comercial. Nesta época os comerciantes portugueses foram-se fixando sucessivamente em Arguim, na ilha de Goreia, Ziguinchor, Cacheu, Bissau e Buba. O nativo africano entendia bem a linguagem do comércio, mas de modo algum aceitava o estatuto de submissão.

No capítulo subsequente, os autores dão conta do que foi a evangelização entre a data da presumível chegada portuguesa à região (1446) até à criação da Diocese, em 1553. Apareciam esporadicamente os padres de visitadores que alimentavam a fé dos cristãos mas diz-se claramente que ao longo de mais de dois séculos a missionação da Costa da Guiné não foi preocupação da Igreja Católica. E daqui os autores transitam para a narrativa das atividades da diocese até à criação da missão contemporânea em 1941. Alertam o leitor para a efémera presença portuguesa em toda a faixa da África Ocidental, explanam as primeiras tentativas de fixação de missionários nas terras da Guiné, recordam os clérigos seculares, os capuchinos franceses e espanhóis e os jesuítas. Alguns pontos são controversos, veja-se este exemplo. Não há notícias da estadia dos Carmelitas Descalços na Guiné, em todo o século XVI, escreve o Padre António Brásio; mas o jesuíta Padre Fernão Guerreiro assegura que nessa época houve missionação na região do Rio Grande de Buba. À cautela, mantém-se a dúvida. É também referido o nome do Padre João Pinto, designado por Padre Jalofo, terá sido o primeiro sacerdote nativo da Guiné. Depois de se fazer referência aos franciscanos, capuchinhos franceses e espanhóis, seguem-se comentários à missão dos padres jesuítas e depois dá-se nota dos franciscanos na Guiné nos séculos XVII e XVIII. Com alguma propriedade, pode falar-se das cristandades de Cacheu, Farim e Geba a partir do século XVII e também está documentada, à época, a comunidade de Bissau e dos Bijagós. É neste contexto que ganha destaque a visita pastoral de D. Frei Victoriano Portuense, ainda no século XVII (recorda-se que ele chegou à diocese em 1688) fez duas viagens ao continente.

O século XVII foi o século da expansão missionária mas o mesmo não se poderá dizer do século XVIII, os autores avançam as hipóteses sobre este decréscimo missionário destacando as ideias do iluminismo. Impõe-se agora uma referência ao clero secular, os autores fazem uma apreciação até aos meados do século XX e dão uma especial ênfase àquele que foi o Vigário-Geral da Guiné, dela nativo, o Padre Marcelino Marques de Barros, iremos de seguida falar desse período.

Encontrou-se num documento um quadro histórico desta fase da missionação e terminamos hoje com este conjunto de datas que podem ajudar o leitor a melhor entender os eventos fundamentais da evangelização:
“Embora desde 1533 esteja criada a Diocese de Cabo Verde, deverá dizer-se, no entanto, que é sobretudo a partir de 1660 (fixação dos Franciscanos portuguese em Cacheu, e posteriormente em Bissau) que a evangelização da Guiné se começa a processar com caráter de suficiente regularidade.
Essa evangelização desenvolveu-se em estilo notoriamente itinerante, ou seja, com alguns poucos pontos de fixação (sobretudo nos hospícios de Cacheu e Bissau), e daí irradiando depois para diferentes pontos do território, com a agravante de que, até meados do século XVIII, a itinerância dos frades se espalhava muito para lá da Guiné-Bissau atual, atingindo a sul as costas da Serra Leoa e a norte as do Senegal. Os inícios da evangelização no Senegal, Guiné-Conacri, Serra Leoa, etc., devem bastante a estes primeiros missionários itinerantes, partindo da atual Guiné-Bissau.
O número dos missionários franciscanos da primeira missão franciscana (1660-1834) foi sempre reduzido, embora permanente, raramente ultrapassando a dezena de frades, espalhados por Cacheu, Farim, Geba, Bissau, Ziguinchor.”

Esta referência foi retirada do blogue Intelectuais Balantas na Diáspora, com a devida vénia.

D. Settimio Ferrazzetta (1924-1999), 1.º Bispo da Guiné-Bissau
Imagem de uma reunião da Associação das Mulheres Católicas Guineenses, em tempos de pandemia
Jovens cristãos e a sua catequista

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 16 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25847: Notas de leitura (1718): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, de 1870 a 1872) (16) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25705: Notas de leitura (1705): Recordações da guerra civil de Bissau, pelo então Vigário-Geral da Diocese, Padre João Dias Vicente (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Trata-se do testemunho de um responsável franciscano que viveu do princípio ao fim a guerra civil, acompanhou as conversações onde esteve envolvido Dom Settimio, assistiu às pilhagens e destruições, viveu debaixo de fogo, colaborou na ajuda humanitária, invoca com propriedade o acolhimento que as missões deram aos fugitivos de Bissau enquanto troavam os canhões, de um lado e do outro. Dir-se-á que não há neste apontamento de memória absolutamente nada de novo quanto aos factos militares, mas compreende-se que este religioso queria expor à nossa lembrança o esforço em prol da paz e da mitigação do sofrimento humano nesse período trágico, ainda não se sabe exatamente o número de mortos que provocou, só se conhece o balanço da perda de património que empobreceu ainda mais um país que continua à espera de ver a palavra desenvolvimento com expressão real no quotidiano.

Um abraço do
Mário



Recordações da guerra civil de Bissau, pelo então Vigário-Geral da Diocese

Mário Beja Santos

O Padre João Dias Vicente, que foi Vigário-Geral da Diocese de Bissau durante a guerra civil publicou as suas recordações na revista Itinerarium, publicação semestral de cultura publicada pelos franciscanos de Portugal, n.º 228, julho/dezembro de 2022, referentes à guerra civil.

Começa por nos dizer: “Marcou-me profundamente por vários motivos: nunca ter experimentado ao vivo a sensação inquietante de estar debaixo de fogo real, contudo o que isso significa de ansiedade, de revolta interior e de habituação ao máximo risco.”

Nem todos os dias houve guerra durante aquele período que foi de junho de 1998 a maio de 1999, quando Nino assinou a sua capitulação. Havia uma clara alternância de fogo violento e paragens promissoras de cessar-fogo, de acordo com os diferentes protocolos assinados por ambas as partes, e nunca respeitados. O palco central da guerra foi Bissau, troavam os canhões e a população habituou-se a fugir para fora da cidade e a regressar logo que as armas se calavam, temiam, justificadamente, ver as suas casas e pilhadas. Não esconde que reserva no seu testemunho o papel revelante da Igreja Católica (sobretudo do seu bispo, Dom Settimio Ferrazzetta) no esforço de fazer calar as armas e procurar uma solução dialogada para o conflito. Lembra-nos que houve três acordos de paz, mal eram assinados, pouco tempo depois desrespeitados: o da cidade da Praia, em 26 de agosto de 1998; o de Abuja, Nigéria, em 1 de novembro do mesmo ano; e o de Lomé, no Togo, em 17 de fevereiro do ano seguinte.

As hostilidades foram desencadeadas pela chamada Junta Militar em 7 de junho, nesse dia morreram em Brá o guarda-costas e o chefe do protocolo do Presidente Nino. A causa direta e próxima fora a destituição de Ansumane Mané do cargo de Chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas com o pretexto de estar implicado num negócio escuro de venda de armas aos separatistas do Casamansa. A Junta Militar revelou-se imediatamente eficaz, desencadeadas as hostilidades, Ansumane e as suas tropas garantiram o domínio dos postos militares mais decisivos: o quartel militar de Brá com os seus paióis de armamento; o aeroporto internacional de Bissau; e a estrada do aeroporto para Safim, única estrada para sair da capital até ao interior do país. Apercebendo-se da debilidade em que se encontrava, Nino apela à ajuda militar dos países limítrofes, virão tropas do Senegal e Guiné Conacri, aquele que foi a maior lenda da guerrilha não entendeu que estava a cometer o maior erro diplomático-militar de sempre.

O autor vai-nos dando conta de que se foi encontrar com Dom Settimio em Pirada e como se irão encaminhando até Bissau, o bispo começou logo diligências para a paz, conversando com os dois grupos em contenda, resultado nulo. Constituiu-se a Comissão de Cidadãos de Boa Vontade, era uma tentativa de ponte para o diálogo. O bispo conversa com a Junta Militar, esta exige a saída imediata das tropas estrangeiras. Regista-se fogo intenso das forças leais a Nino, alguns pontos de Bissau são bombardeados, a população foge, espavorida.

O bispo desdobra-se em reuniões, mas nesta fase o Governo manifestava-se ainda muito seguro de que tudo ia ser resolvido pelas armas. Nino é presidente numa capital semideserta, grande parte da população abandonou precipitadamente a cidade, uns foram para as missões próximas, os estrangeiros partiram para os seus países, iniciaram-se as pilhagens, parecia que se ia instalar o caos. Em 2 de agosto, o bispo manda abrir a Catedral ao público, outras igrejas seguiram-lhe o exemplo, queriam dar ânimo a quem sofria. Os ladrões não pouparam as instituições diocesanas, assaltaram os contentores com produtos variados de alimentação, materiais de construção destinados às missões, foi um saque quase total.

O autor conta detalhadamente como a Igreja procurou instituir uma ajuda humanitária eficaz. E dá-nos conta da evolução da guerra desde o cessar-fogo assinado em Cabo Verde até ao acordo de paz assinado em Abuja. No decurso das conversações, era argumento dominante da Junta Militar exigir a saída das tropas estrangeiras como condição para um acordo de paz definitivo, a parte fundamental recusava. E a guerra recomeçou em 9 de outubro, novas fugas da população com os sacos às costas. A 10, houve uma marcha pacífica de jovens e adultos desde Bissau até ao aeroporto. A 19, voltaram a vomitar fogo as armas pesadas. A 31, Nino decretou o cessar-fogo unilateral. Por essa altura, já quase todas as forças guineenses do Governo e uma parte significativa dos antigos combatentes se tinha passado para o lado da Junta Militar. Ansumane Mané concordou em respeitar uma trégua de 48 horas para que Nino verificasse a sua proposta de paz. As conversações prosseguiram em Banjul (Gâmbia), onde se deu o primeiro frente-a-frente entre Nino e Ansumane. Segue-se o acordo de paz de Abuja que estipulava a retirada total das tropas estrangeiras da Guiné-Bissau com o envio simultâneo de uma brigada de supervisão de cessar-fogo, a ECOMOG, o braço-armado da CEDEAO. A população começou timidamente a regressar às suas casas.

Segue-se a exposição sobre a evolução da guerra entre o acordo de Abuja até ao acordo de Lomé. Formou-se um Governo de Unidade Nacional e Francisco Fadul foi nomeado Primeiro-Ministro desse Governo. A guerra voltou a 31 de janeiro, pelas 19h30 caiu uma bomba sobre a varanda do refeitório da Cúria Diocesana, por milagre ninguém morreu ou se feriu. Seguem-se meses turbulentos, inesperadamente morre Dom Settimio. E assim se chegou aos acordos de Lomé, em 17 de fevereiro. Ansumane e Nino abraçam-se, há acordo sobre a saída das tropas estrangeiras. E temos agora a evolução da guerra desde este acordo em Lomé até à derrota final do Presidente Nino (período que vai de 17 de fevereiro a 10 de maio).

Com atraso significativo, tomou posse o Governo de Unidade Nacional, saíram as tropas estrangeiras, é publicado o relatório sobre a venda de armas que ilibou Ansumane e responsabilizou, sem margem para equívoco, a clique do Presidente Nino. Em março, começaram a ser desarmadas as tropas dos dois lados. O Conselho de Segurança da ONU aprovou a criação da Missão das Nações Unidas para o Apoio à Reconstrução da Paz na Guiné-Bissau (UNIOGBIS).

Inopinadamente, considerando a Junta Militar que o depósito de armas encontrado no aeroporto era a prova material de que Nino se recusava a aceitar que a sua Guarda Presidencial fosse desarmada recomeçou os bombardeamentos, à tarde as tropas da Junta Militar atacaram e venceram rapidamente os jovens militares (chamados os Aguentas) que defendiam o Palácio Presidencial. Depois de algumas peripécias, Nino pediu asilo político a Portugal, apresentou-se na embaixada portuguesa e assinou a sua rendição incondicional. Terminava a guerra civil e foi escolhido para Presidente da República interino o Presidente da Assembleia Nacional Popular Malam Bacai Sanhá. Tempos depois entrava-se numa nova onda delirante, era eleito como presidente um populista Kumba Yalá. A Guiné voltava a recuar.

Um relatório idóneo, foram acontecimentos que merecessem ser lembrados, compreende-se que um direto protagonista nas conversações, alguém que viveu ao lado de um bispo profundamente estimado pelos diferentes credos religiosos, quisesse deixar o testemunho do que viveu e sentiu.

Imagem icónica, mil vezes repetida, mostra o desaire das forças estrangeiras que vieram apoiar o Presidente Nino
Malam Bacai Sanhá, Presidente da Assembleia Nacional Popular, nomeado Presidente da República interino
Ansumane Mané e João Bernardo Vieira (Nino)
Cena da guerra civil, soldado leva um ferido às costas
Funeral durante a guerra civil
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Nota do editor

Último post da série de 28 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25696: Notas de leitura (1704): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1864 e 1865) (9) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16707: Inquérito 'on line' (82): Quem nunca comeu macaco-cão ? Em 35 respostas (provisórias), mais de metade (60%) diz que nunca comeu ... Só 4 dizem que comeram e gostaram... Outros tantos comeram e não gostaram... O prazo para responder termina em 17/11/2016, às 7h32. Cem respostas, no mínimo, precisa-se!


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Parque Nacional de Cantanhez > Iemberém > 9 de dezembro de 2009 > 15h50 > Macaco fidalgo vermelho (ou fatango, em crioulo).  Espécie, nome científico: Procolobus badius. Em inglês, western red colobus. É uma espécie ameaçada, fundamentalmemte devido à caça e à desflorestação. (*)

Por esta altura, havia uma jovem bióloga portuguesa, a fazer o seu doutoramento em Inglaterra, com um estudo sobre os babuínos da Guiné-Bissau.Verificamos com muita satisfação, passados quase 8 anos (!),  que a Maria Joana Ferreira da Silva doutorou-se em 2012 e trabalha agora em Portugal, na CIBIO-InBIO, Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos,  Universidade do Porto. Demos lhe em 2009 uma ajudinha para contactos e entrevistas (**),  a par  dos nossos amigos da AD - Acção para o Desenvolvimento, ONG à frente da qual estava o nosso saudoso amigo Pepito (1949-2014)... O nosso blogue cumpre, também  assim, a sua missão como "fonte de informação e conhecimento"...mas também de tomada de consciência dos problemas ecológicos, globais, regionais e locais,,,

Foto: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 4740 (1972/73) > O "Pifas", mascote da companhia...

Foto: © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Em muitos aquartelamentos das NT, durante a guerra colonial, havia animais destes, em cativeiro... Macaco-cão, macaco-kom, uma espécie que nos era familiar...Nome científico: Papio hamadryas papio.

No mato, era,  para as populações e para os guerrilheiros do PAIGC,  uma das principais fontes de proteína animal. As populações sob o nosso controlo, ou que viviam perto dos nossos aquartelamentos e destacamentos, também os caçavam, mais ou menos furtivamente.  Mas era frequente, quando em operações,  avistarmos bandos de 100 ou mais babuínos em estado selvagem nas matas e florestas do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, em finais  dos anos 60 / princípios dos anos 70...

A sua caça chegou a ser proibida pelas autoridades da Guiné-Bissau logo a seguir à independência... Mas foi sol de pouca dura... Nos últimos 30/40, a população guineense de babuínos tem vindo a decrescer dramaticamente, devido à combinação de diversos factores:

(i) mudanças no território devidas às plantações extensivas de caju,  que ocupavam já no início do séc. XXI mais de 2/3 de toda a terra arável da Guiné-Bissau; (ii) a desflorestação ilegal, devido à procura externa de madeira exótiocas (por ex., pau sangue); (iiii) caça intensiva praticada por grupos de militares como forma de compensação extra-salarial; (iv)  crescente procura da carne de macaco-cão e de outros primatas (macaco-fidalgo, etc.), como produto "gourmet",  pelos restaurantes de Bissau e periferia; (v) o uso da pele do babuíno pelos praticantes da medicina popular tradicional; e., por fim , (vi) o tráfico de juvenis para alimentar o mercado interno de animais de estimação.

Fonte: Adapt. de Maria J. Ferreira da Silva,  Catarina Casanova  & Raquel Godinho - On the western fringe of baboon distribution: mitochondrial D-loop diversity of Guinea Baboons (Papio papio Desmarest, 1820) (Primates: Cercopithecidae) in Coastal Guinea-Bissau, western Africa. "Journal of Threatened Taxa" | www.threatenedtaxa.org | 26 June 2013 | 5(10): 4441–4450

 [Consult em 10 de novembro de 2016]. Disponível em:  http://threatenedtaxa.org/ZooPrintJournal/2013/June/o321626vi134441-4450.pdf



I. INQUÉRITO 'ON LINE': 

"NUNCA COMI MACACO-CÃO (BABUÍNO) NA GUINÉ" (***)

Respostas (preliminares) (n=35), às 23h30 de ontem


1. Nunca comi >  21 (60,0%)

2. Comi e não gostei  > 4 (11,4%)

3. Comi e gostei  > 4 (11,4%)

4. Não tenho a certeza se comi  > 6 (17,2%)

Total  > 35 (100,0%) 


O prazo para resposta ao inquérito termina no dia 17/11/2016, 5ª feira, às 7h32.  Esperamos até lá obter 100 ou mais respostas.



II. Seleção de comentários dos nossos leitores:


(i) Henrique Cerqueira (****)

Eu nunca comi macaco-cão, mas experimentei comer macaco doutra espécie (o mais avermelhado) que pelos vistos era vegetariano [ fatango, em crioulo, macaco fidalgo vermelho, vd. foto acima].

A sua carne depois de cozinhada tinha o aspecto da carne de gazela e sabor idêntico a carne de mato. Não era mau de todo e como a fome de carne era muita até se safava. O pior era quando se via o animal após ter sido chamuscado para queimar o pêlo como se faz ao porco.É que parecia uma criança autêntica.

Mas a minha experiência gastronómica também passou por comer calau ou urubu que os civis chamavam de pato da bolanha. Quando chegavam ao nosso poder já vinham devidamente esfolados e sem alguns apêndices que os identificavam . E assim sendo a fomeca apertava, o paladar não era mau e as cervejas (basucas) empurravam muito bem o repasto.

Outro dos petiscos muito apreciados  eram o porco espinho do mato e o papa formigas.Que em Bissorã apreciam com alguma frequência à venda pelos civis.
Só não experimentei comer cobra e rato do mato porque para mim eram mesmo repugnantes, mas para os meus soldados africanos [, da CCAÇ 13,] era um petisco de tal ordem que,.  mesmo que estivéssemos em missões,  eles quebravam todo o silêncio e entravam numa euforia tal que toda a segurança que tivéssemos montada ficava desde logo comprometida.

Foram experiências interessantes e às vezes até de recurso.

(ii) José Nascimento (****)


Mesmo tendo passado alguma fomimha, nunca comi carne de macaco, mas houve alguns elementos do meu pelotão [, CART 2520, Xime e Quinhamel, 1969/70, ] que comeram, não sei em que condições. 

Pelo Mato de Cão passei por lá uma vez, fiz o percurso entre Bambadinca (atravessei o Geba) e o Enxalé. Deve ter sido em Abril-Maio de 1970. Não vimos vivalma, só tabancas abandonadas.

(iii) José Nunes (****) 


Aquando da montagem eléctrica da Carpintaria Escola de Cumura, comia na Missão de Padres Italianos.

Um dia ao almoço veio para a mesa umas travessas com aves,pois muita alimentação era feita à base de caça, patos,  galinhas do mato... Como não sou amante de aves esperei que viesse algo mais, então surgiu uma travessa com carne,  uns "bifinhos" jeitosos, e o rapaz aviou-se... Ao dar a primeira dentada, pensei, estes "italianos" são mesmo malucos,  temperar a carne com açúcar....

Lá fui mordiscando, quando do topo da mesa o Padre Settimio me diz: "desculpa,  não sei se gosta de macaco ?!"... Já não consegui comer mais...

Depois da independência,  D. Settimio Ferrazzeta veio a ser o 1º  bispo da Guiné. Passei momentos inesquecíveis nesta Missão que na altura abrigava todos os leprosos da Guiné, as "pastas" eram feitas na Missão e como eram deliciosas!


 (iv) Artur Conceição (*****)


(...) Comi macaco em Bissau num restaurante que tinha essa especialidade, e que ficava localizado numa rua em frente aos Correios, para o lado do Forte da Amura, uma ligeira subida do lado esquerdo. 

O nome 'cabrito pé da rocha'  para mim é novidade (...).

(...) Eu comi porque me garantiram que era macaco fidalgo, porque. sem tal garantia, o macaco cão penso que não seria capaz de comer, sendo que uma das razões era exactamente o contacto que tinha com eles, o macaco cão.

Para além de macaco fidalgo confeccionado em restaurante, e que já não posso dizer se gostei ou não, comi também gazela, uma ou duas vezes, javali, várias vezes, águia e raposa uma vez. Cobra... embora digam que é um petisco, penso que era mais fácil comer capim. (...) 

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Notas do editor:


(**) 13 de janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3734: Fauna & flora (8): O estudo do Papio hamadryas papio (Maria Joana Ferreira Silva)

(...) O meu projecto de doutoramento tem três principais objectivos: (i) Determinar o estatuto de conservação dos babuínos da Guiné na Guiné-Bissau. (...); (ii) Investigação de aspectos socio-ecológicos (...); (iii) Investigação da história demográfica passada (...)

(***) Último poste da série > 4 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16684: Inquérito 'on line' (81): a avaliar pelo total de respostas (n=91), só uma minoria (15%) refere a existência de casos de deserção (n=15) na sua unidade (companhia ou equivalente)... Menos de metade do que terá ocorrido na metróple (=34)... Impossível saber se há casos repetidos... A nossa estimativa, grosseira, é de 500 casos de deserção em toda a guerra: 2/3 na metrópole, 1/3 no TO da Guiné

(****) Vd. poste de 10 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16706: De Cufar a Mato Cão, histórias de Luís Mourato Oliveira, o último cmdt do Pel Caç Nat 52 (2) - Experiências gastronómicas (Parte II): Restaurante do Mato Cão: sugestões de canibalismo, bom pão e melhor... macaco cão no forno com batatas!


segunda-feira, 12 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13131: Notas de leitura (589): "Os Frades Menores de Veneza na Guiné-Bissau: 50 anos de história para recordar (1955-2005)", por Fabio Longo (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Novembro de 2013:

Queridos amigos,
Trata-se de um relato inspirado na bondade e dedicação ilimitada de franciscanos italianos implantados na Guiné desde 1955. É um relato tocante, pelo que se constrói e a seguir se vê destruído, basta uma guerra civil.
Estão aqui páginas de ouro da vida missionária de uma Guiné que deploravelmente foi esquecida durante séculos, isto sem deixar o reparo de que o clima era adverso para trabalho em profundidade, que é propósito básico do missionário.
Obra rica nas ilustrações, desvela igualmente almas esplendorosas como a de Settimio Ferrazzetta, sepultado na Catedral de Bissau.

Um abraço do
Mário


Os Frades Menores de Veneza na Guiné-Bissau: 50 anos de história para recordar (1955-2005)

Beja Santos

É um registo tocante, por vezes a roçar o épico, desvelam-se aqui santos, gente mais compassiva é difícil de imaginar que estes franciscanos vénetos que aportaram à Guiné Portuguesa em 1955 e aqui têm operado maravilhas em prol do desenvolvimento humano e das convicções cristãs. O autor da narrativa chama-se Fábio Longo que trabalhou a documentação recolhida pelo Padre Rino Furlato, arquivista da diocese de Bissau. O autor destaca vários objetivos para esta publicação, penso que o mais carregado de intensão é o último, onde ele escreve que pretende dar o conhecimento de como permanece intacto o ideal evangélico de S. Francisco de Assis: o amor e o cuidado dos homens mais infelizes e abandonados, os leprosos e os mais pobres entre os pobres do mundo, afinal o que fizeram os Frades Menores vénetos desde 1955 na Guiné: Padre Settimio Ferrazzetta, Frade Giuseppe Andreatt, Frade Epifanio Cardin, seguidos depois por muitos outros, religiosos, religiosas e leigos.

Começa por apresentar a Guiné-Bissau em termos geográfico-históricos, sumaria a evangelização da Guiné-Bissau que, diga-se em abono da verdade, é paupérrima e coroada de insucessos. Pela Guiné andaram franciscanos em 1973, a supressão das ordens religiosas em Portugal, em 1834, deitou por terra o esforço missionário destes frades que evangelizaram em Farim, Geba e Ziguinchor. Os missionários franciscanos portugueses regressaram em 1932, desembarcaram em Bolama e alcançaram Cacheu, logo perceberam que tudo tinha voltado à estaca zero. No seu primeiro relatório apelaram a pelo menos 20/25 sacerdotes, dada a impossibilidade dos franciscanos portugueses corresponderem ao pedido apelou-se ao Instituto Pontifício para as Missões Estrangeiras, de Milão, que aceitou enviar um primeiro grupo de sacerdotes e um irmão leigo, em 1947, data da primeira chegada de missionários não-portugueses. Nesta época já vigoram os princípios missionários combonianos (com origem em Dom Daniele Comboni): formação de catequistas, uma das bases da evangelização; seminários diocesanos e casas de noviciado, enfim, preparar no local os servidores religiosos que atuaram no local.

A chegada dos três primeiros franciscanos a bordo do Ana Mafalda, a sua preparação em Bor e depois a sua ida para a Cumura, junto à leprosaria dão conta da atividade que aqui se desenrolará, em torno de uma aldeia habitada pela etnia Papel. O que ali existia era uma aldeia com 18 palhotas, terra batida, todas sem água e sem luz, habitadas por 205 leprosos, desfigurados no rosto, corroídos na pele e na carne, mutilados nos membros, sem mãos, sem dedos, com os pés totalmente deformados, alguns com os braços e o corpo carregados de feridas nauseabundas. É nesta atmosfera de pobreza extrema e de morbilidade intensa que os franciscanos começam a sua ação. Settimio Ferrazzetta escreve em julho de 1955: “Era a primeira vez que via uma leprosaria. Esta primeira visita lançou-me um pouco o pavor na alma, não pela sensação de me encontrar defronte à terrível doença, não pelo medo de me infetar, mas pelo ambiente em que vivem estes pobres leprosos”. Lançam-se ao trabalho, assistem e medicam diariamente os doentes, procedem ao exame bacteriológico e clínico, distribuem géneros alimentícios, dão catequese. Depois começam a chegar reforços. Em 1966, é criada a Missão Católica de Cumura, chegam os donativos, são postos de pé novos pavilhões, arejados, com leitos de ferro, colchões, lençóis e redes mosquiteiras. Settimio Ferrazzetta escreve em 1970, a propósito dos leprosos convertidos: “É algo de comovente ver estes pobres infelizes rezar: o terço não desliza bem em suas mãos, porque… perderam os dedos, por isso querem terços de grãos muito grossos! Pobrezinhos! Mas numa fé profunda e vivida encontraram a resignação cristã. É muito fácil encontrar leprosos no nosso hospital que dizem: O bom Deus é para todos, eu sofro, mas Ele o sabe, amanhã me pagará os meus sofrimentos, amanhã Deus me dará as minhas mãos e os meus pés, o meu corpo será belo como o corpo dos outros, e eu viverei feliz na eternidade”.

O trabalho é insano, constroem-se casas, jardins para os filhos dos leprosos, presta-se assistência aos pobres, a guerra de 1998-1999 agravou as condições de vida dos guineenses, a ajuda das Missões intensificou-se, procuram oferecer comida, vestuário, sabão, o indispensável. Como o Estado já não pode responder às necessidades básicas, os franciscanos constroem um hospital-maternidade, abrem-se postos de socorro, a atividade assistencial alastra. O livro elenca a edificação de igrejas e capelas na Cumura, em Bor, Prábis, em Cumura-Papel. O reconhecimento das gentes é cada vez maior, são tratados como os pais. O primeiro batismo foi administrado a um adolescente em fim de vida na leprosaria, crescem as conversões, aumentam os catequistas, as escolas de Cumura ganham notoriedade até se transformarem em complexo escolar. A partir dos anos 1970, Settimio Ferrazzetta começa a enviar para Portugal e Itália alguns jovens guineenses com a finalidade de formar gente preparada para favorecer o progresso social e cultural do país. Infelizmente, poucos voltaram à Guiné-Bissau, defraudando as esperanças neles depositadas pelos missionários. A promoção social, na lógica missionária é a de “não dar um peixe sem ensinar a pescar”, assim surgem a carpintaria e a oficina mecânica.

Conta-se a infausta Missão de Bolama, encetada em 1956 e interrompida em 1962 por razões do início dos focos independentistas, os padres foram afastados. De igual modo são descritas as missões de Brá, de Nhoma, de Safim, que foram profundamente afetadas pela guerra civil. Pelo adiante são descritas com mais pormenor as missões de Quinhamel e de Blom e, por último a Missão de Caboxanque, na região de Tombali.

A narrativa desnuda-nos a alma santa de Settimio Ferrazzetta, primeiro bispo da Guiné-Bissau, sacerdote da paz e do diálogo, prosélito e evangelizador, a ele, tanto como a Cumura, ficam associadas iniciativas como os seminaristas que mandou estudar filosofia e teologia no Senegal enquanto não se construiu o seminário diocesano em Bissau, depois a construção do seminário maior e casa de formação para aspirantes a irmãs guineenses. Morre imprevistamente mal tinha regressado à Guiné, em janeiro de 1999, deixou consternada toda a Guiné, fora, nesses tempos duríssimos da guerra civil uma figura eloquente da mediação e da tentativa da resolução pacífica da contenda entre Nino Vieira e a Junta Militar. A narrativa prossegue apresentando outros frades que acompanharam Settimio Ferrazzetta desde a primeira hora aquelas que já partiram deste mundo. É dado igualmente destaque à Ordem Franciscana Secular na Guiné-Bissau, aos muitos voluntários que dão a sua generosidade ao serviço dos guineenses, merece destaque Vittorio Romano Bicego, um antigo sargento do Corpo dos Alpinos, depois empregado nos lanifícios, que se dedicou de alma e coração à construção de missões em Tite, Ingoré e Bendanda e na região de Tombali criou uma propriedade agrícola modelo chamada “São Francisco da Floresta”.

Enfim, um documento acerca da exaltação do amor de vultos excecionais que têm doado a sua vida à Guiné.
Para que conste.
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de Maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13119: Notas de leitura (587): "Um Sorriso para a Democracia na Guiné-Bissau", por Onofre dos Santos (Mário Beja Santos)