sexta-feira, 28 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25696: Notas de leitura (1704): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1864 e 1865) (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
Não deixa de causar perplexidade, quando se lê o Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde e da Costa de Guiné nesta época, o abismo que separa os atos administrativos e a realidade que se vivia naquele enclave no continente africano. É certo que o Governador Geral se confrontava com as terríveis fomes cabo-verdianas, e também as epidemias, o Boletim Official refere dádivas e manifestações de solidariedade. Não que em certos discursos não se deixava mencionar "as mortíferas paragens da Guiné" e a incapacidade em recursos para impedir os desmandos do gentio, tratado como traiçoeiro e selvagem. O contraste em ler o Boletim Official e ler a História da Guiné de René Pélissier, que começa exatamente em 1841, não pode deixar de nos provocar um certo choque, no Boletim Official não há qualquer menção a Ziguinchor e ao cerco montado deliberadamente pelas autoridades francesas, enquanto Honório Pereira Barreto esteve ativo, pelo menos sabia-se que os seus alarmes e advertências chegavam a Santiago e também a Lisboa; aqui e acolá há uma referência aos escravos libertos, mas a escravatura não desaparecera, os britânicos apresavam navios destinados às Américas; Pélissier fala nas perturbações, por exemplo em Geba, no Rio Grande de Buba, não há qualquer primeira menção no Boletim Official. Isto serve para alertar o leitor de que a documentação emanada de Cabo Verde sobre a Costa da Guiné é mais do que insuficiente para entender o que naquele exato momento ali se passava.

Um abraço do
Mário


Suplemento do Boletim Oficial de 21 de janeiro de 1862, dá-se a notícia do falecimento do Infante D. João, como já se dera a notícia dos falecimentos da rainha D. Estefânia e do seu marido, o rei D. Pedro V


Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Oficial do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1864 e 1865) (9)


Mário Beja Santos

O que mais me surpreende, ao vaguear, página a página pelo Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde e Costa de Guiné, é a total ausência de menções ao cerco em torno do enclave, a sul pela Grã-Bretanha, a norte pela França, esta já não esconde que nos quer afastar da orla do rio Casamansa, aquele comércio deverá pertencer-lhes em exclusivo; mas também não há menção às sublevações e insurreições nas praças e presídios, só indiretamente como podemos encontrar na alocução de despedida do ex-Governador Geral, Carlos Augusto Franco. Enfim, a Costa da Guiné é uma questão subsidiária, o foco do Governo Geral está nas fomes e epidemias, como se pode ler no n.º 14 de 16 de abril de 1864, há manifestações de solidariedade com os afligidos, nomeadamente na ilha da Brava, houve donativos da Guiné. Mas voltemos a falar no ex-Governador Geral Carlos Augusto Franco, houve manifestação de homenagem e no Suplemento de 23 de abril do Boletim n.º 15, convém ler o seguinte extrato:
“Velando pela regularidade da Administração Geral, e tratando de regulamentá-la na parte em que o precisava, quando motivos extraordinários e a dignidade nacional me levaram às mortíferas paragens da Guiné Portuguesa.
Desacatos ao pundonor português, e vilipêndios à nação, se encontravam a cada instante na parte dos gentios que estavam em guerra connosco; guerra traiçoeira, guerra de selvagens, que para os castigar como o deviam ser não era nas forças da província nem com os diminutíssimos recursos estranhos que me foram mandados.”
O ex-Governador concluirá que se fez a paz, estabeleceu-se a tranquilidade, retomou-se o comércio no rio Geba. Paz precária, como sabemos.

Temos agora matéria no Boletim n.º 22 de 11 de junho. Trata-se de uma portaria, com o seguinte teor: “Determinando que, com os indigentes que voluntariamente se prestaram a seguir para a Guiné Portuguesa, e para ali foram transportados por conta do Estado, se estabeleça, ponta do Rio Grande de Bolola uma colónia com as condições que se consagram.” É também aprovado o contrato celebrado entre o Governador da Praça de Cacheu, o Capitão do Batalhão de Artilharia de 1.ª Linha desta Província, Joaquim Alberto Marques, e o régulo de Ilia, de onde se vê haver o mesmo régulo cedido à coroa aquela aldeia. Passando para o Boletim n.º 40, de 29 de outubro, temos o ofício do Governador da Guiné, Major José Xavier Crato, para o Governador Geral, José Guedes de Carvalho e Menezes:
“Tenho a distinta honra de comunicar a Vossa Excelência que no distrito da Guiné reina sossego não tendo mesmo havido questão alguma com os Balantas, que parece conservarem-se pacíficos. Houve algumas tentativas de roubos na povoação, que foram pressentidas pela polícia noturna. O estado alimentício, se não abundante, é pelo menos regular, e não se sente falta e esperam-se boas colheitas de arroz, milho e mancarra, tendo-a havido de purga já em maior escala que o ano findo. O estado sanitário é quase normal, havendo em Cacheu alguns casos benignos de bexigas. Foram pelo facultativo marcados os dias de quartas-feiras e sábados para vacinar quem a isso se queira sujeitar. O comércio está frouxo, por faltarem sortimentos, devido talvez à continuação da guerra na América.”

Voltando um pouco atrás, a 23 de abril, Boletim n.º 15, bem curiosa é a Portaria n.º 85, aqui se reproduz o que determina o Governador Geral:
“Havendo-me a comissão governativa da Guiné Portuguesa, por ocasião de me dar conhecimento do incêndio que teve lugar na Praça de Cacheu, nas casas de Luís Xavier Monteiro, participado não só os bons serviços que em tal desastre prestara o respetivo Governador Interino, o Capitão do Batalhão de Artilharia desta província, Joaquim Alberto Marques, como também a muito valiosa cooperação que para extinguir o mesmo incêndio e evitar que se propagasse pelos demais prédios vizinhos, proporcionaram os diversos habitantes daquela Praça, constantes da relação que fazendo parte desta portaria baixa-assinada pelo secretário deste Governo Geral: tendo como dignos de verdadeiro apreço os sobreditos serviços; hei por conveniente determinar que a mencionada missão governativa da Guiné Portuguesa louve, em meu nome, o Governador da Praça de Cacheu pela forma como se houve naquele calamitoso acontecimento, e ordene a este, preste iguais louvores, e por igual motivo, aos indivíduos designados na referida relação. As autoridades e demais pessoas a quem o conhecimento da presente competir, assim o tenham entendido e cumpram. E segue-se a relação dos indivíduos que prestaram os referidos serviços no incêndio das casas de Luís Xavier Monteiro, lista que inclui o pároco, vários comerciantes, o Diretor da Alfândega de Cacheu, um conjunto de militares, o juiz dos Grumetes, vários guineenses, dizendo explicitamente Dombá, Mandinga, Joaquim, Manjaco, António, Gentio e Baiote, idem.”

E assim entramos no ano de 1865, chamou-me à atenção o Boletim n.º 15 de 18 de abril, trata-se da Portaria n.º 96 assinada pelo Governador Geral José Guedes de Carvalho e Menezes: “Atendendo a que o soldado do Batalhão de Artilharia desta Província, Domingos Cabral, tendo sido mutilado em campanha de guerra com os gentios da Guiné, foi deliberado pela Junta Militar de Saúde em 27 do mês próximo passado ser dado como incapaz do serviço; hei por conveniente determinar que a recebida passe à classe de veteranos.”

Escrevinho estas notas na altura em que fui informado da morte do historiador francês René Pélissier, que se dedicou à historiografia colonial portuguesa, ao mais alto nível, legando um acervo de investigações de primeiríssima classe. No tocante à Guiné, a sua História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936, Editorial Estampa, dois volumes, 2001 e 1997 respetivamente, é de referência. O que o Boletim Official não nos dá notícia, aparece bastante claro no estudo de Pélissier: um tráfico de escravos quase oficial, a guerra de Bissau de 1844, um espaço colonial onde as potências estrangeiras se movimentam à vontade. E Pélissier refere com detalhe os acontecimentos na bacia do Casamansa, as permanentes altercações em Bolor, Cacheu, Farim, a ilha de Bissau, Fá, Geba, Rio Grande de Buba, o estado da questão de Bolama, a menção do Gabu e das guerras Fulas-Mandingas que o devastam, Pélissier admite que a grande batalha de Kansala data de 1864. Há aqui um conflito entre realmente o que se passava no terreno e a diminuta importância que era conferida pelo Governo Geral.
E vamos continuar.

(continua)
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Notas do editor:

Vd. post anterior de 21 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25668: Notas de leitura (1702): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1860 a 1864) (8) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 24 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25680: Notas de leitura (1703): O Ministro do Ultramar na Guiné, março de 1970, Horácio Caio fala na vitória (Mário Beja Santos)

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