sábado, 20 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19123: Memórias de Gabú (José Saúde) (72): Jau, o nosso guia (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série. 

Gabu em memórias 
Jau, o nosso guia 

Era de etnia fula. Sorriso rasgado, afável, extremo companheiro em todos os momentos em que a guerra impunha a ordem, o Jau, o nosso guia, estava sempre disponível para nos orientar pelo interior de um matagal excessivamente intenso onde o capim e os trilhos estreitavam, sendo que o sol quase não penetrava em ramagens superiores rotuladas como freneticamente extensas. 

As memórias que guardo dos escaparates da guerra são de facto imensas. Gabu, tal como as outras regiões, fora chão palmilhado por camaradas que para ali foram drasticamente atirados. Aliás, estas pequenas histórias avulsas que amiúde descrevo fazem integralmente parte da vida de um qualquer enigmático e mui respeitoso camarada que pisou o solo guineense. 

O horizonte, sempre bélico e carregado de expectativa, escondia ao entardecer mais uma noite de intensos pesadelos. Ou, mais uma noitada onde a missão imposta passava pelo montar de uma emboscada. Depois, lá vinha a luta titânica travada no breu e ao largo de um tempo, quiçá infindável, em que as insónias se assumiam como mais fortes em corpos de jovens soldados impossibilitados do calor afetuoso dos seus carinhosos lares. 

Os irrequietos mosquitos, emitindo zumbidos ensurdecedores, davam a volta à cabeça do mais tranquilo camarada. Na época das chuvas as trovoadas pareciam quebrar a linha de um céu onde a noite parecia fazer-se dia. Tal a sonoridade dos temíveis trovões e sobretudo o lampejar da intensidade de raios sucessivos que se abatiam sobre as nossas cabeças. 

Estávamos em África. Solo pátrio do meu camarada Jau. De quando em vez lá me ia soletrando algumas palavras que visavam, creio eu, tranquilizar-me uma vez que o entoar estridente da “filarmónica” não dava folgas. Abrigávamo-nos enrolados em ponches que minimamente nos protegiam das chuvadas. Ele, conhecedor acérrimo de uma realidade que lhe era comum, lá se desfazia em cultos de gáudio. 

O Jau era um homem feito com as vicissitudes da guerrilha. Conhecia os meandros de um conflito virado literalmente para a luta guerreira e onde os ocultos rostos do inimigo causavam estragos. Muito “viajámos” pelo interior das tabancas de Gabu as quais congregavam gentes simples e crianças desprotegidas que encarecidamente reclamavam apenas a paz. 

À memória ocorre-me um interminável número de casos que fizeram parte do nosso quotidiano convívio. Recordo, por exemplo, quando o tempo era de Ramadão. O Jau, fiel aos seus princípios éticos, pedia-me para descansarmos porque o momento requeria a sentimental reza. Respeitava. Virado alegadamente para Meca, lá imaginava a linha do horizonte que o transportava à Terra Santa, orava e a sua alma sentia-se mais leve. 

Quando o jejum impunha rigorosas obrigações, recusava a ração de combate e passava todo o dia a mascar cola. A cola era uma pequena semente de uma planta que se destinava a não sentir a necessidade de uma refeição. Alimentava-se durante a noite, ou seja, após o pôr do sol e antes deste iluminar a ancestralidade da terra. 

Numa sintética abordagem ao conteúdo genérico do respetivo fruto – noz de cola –, sabe-se que este não representando abundância, tinha sim, por outro lado, o condão em condensar uma dimensão social nas sociedades sediadas na costa ocidental de África. 

Especificando o êxtase que o mascar da cola causa (va) no indivíduo, admite-se que o seu estado anímico se torna transcendente, sendo o espaço e o tempo uma espécie de reunião entre o céu e a terra. 

Eis, talvez, o significado primordial que levava o Jau, tal como a plebe, em ocasiões propícias, a mascar o lascivo fruto. Tanto mais que ele, o fruto, sintetizava imagens de mundos sagrados e profanos onde não faltava também o universo oculto que o mesmo envolve. 

A talho de foice, lembro, ainda, um contacto com o IN em que atrevi levantar-me e, numa estonteante correria, procurar granadas do morteiro 60, visando a sua utilização imediata dado que as vozes dos guerrilheiros soavam por perto e o Jau, sabendo a dimensão do perigo, gritava-me: “deite-se furriel que isto é perigoso”. 

Hoje, vergado já ao peso da idade, arremato, despretenciosamente, que o Jau foi um grande amigo e companheiro que muito me ensinou, restando lançar agora o oportuno apelo: camarada, fazes ainda parte, ou não, deste cosmos dos mortais? Ou, fostes, mais um, levado na fatídica enxurrada no pós entrega do território ao novo governo do país que te viu nascer?  


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

Guiné 61/74 - P19122: Os nossos seres, saberes e lazeres (289): Primeiro, Toulouse, a cidade do tijolo, depois Albi (8): Em Pau, com chuva torrencial, à procura de Henrique IV, aqui nascido (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Julho de 2018:

Queridos amigos,
Ai do viajante que não esteja preparado para momentos desconsoladores, desde greves de comboios a chuva inclemente, situações que levam à alteração de planos. Assim aconteceu ao viandante em Pau, viu a cidade e as suas panorâmicas por um canudo, contudo bem se consolou com uma grata memória aos soldados portugueses que morreram em França, e que são chorados, relembrou o filme "A Rainha Margot", de Patrice Chéreau com a interpretação fabulosa de Isabelle Adjani, muitos dos exteriores do filme foram filmados no Convento de Mafra, para que conste e o castelo onde nasceu Henrique Navarra é uma pérola preciosa do estilo Renascentista.
A chuva não para o viandante e ele amanhã regressa a Toulouse, para uma tocante despedida.

Um abraço do
Mário


Primeiro, Toulouse, a cidade do tijolo, depois Albi (8): 
Em Pau, com chuva torrencial, à procura de Henrique IV, aqui nascido

Beja Santos

O que leva o viandante a Pau? Há duas razões de sobra. A primeira tem a ver com as três estrelas de Michelin ao Boulevard des Pyrénées, um vasto terraço que permite desfrutar em dias claros o assombroso panorama que vai do Pic do Midi de Bigorre ao Pic d’Anie, isto para já não falar de nesta varanda se poder igualmente contemplar o gave de Pau, que corre os baixos da cidade, quem a fundou teve a feliz intuição de posicionar a capital do Béarn num ponto que assegura panoramas incontornáveis. A segunda tem a ver com Henrique de Navarra que desde os anos de estudo o viandante esquecera, este Henrique de Navarra nasceu e foi educado aqui, rei protestante, convencionou-se o seu casamento com Margarida de Valois, trama muito trágica que Alexandre Dumas aproveitou para o seu romance “A Rainha Margot” e Patrice Chéreau realizou uma película soberba com Isabelle Adjani na protagonista. Tudo somado, antes de regressar a Toulouse, o viandante quis cuscar a beleza natural e o património desta antiga capital do Béarn, região depois anexada à França.




Tudo correu às avessas, o viandante chega com chuva torrencial, não há transportes, e nisto deu a pensar numa velha imagem de Pau com as suas águas calmas e luzidias e veio cá fora junto de uma eclusa ver passar as águas do gave de Pau em turbilhão e pensou para os seus botões: Nunca te fies com as aparências de uma só imagem, há sempre verso e reverso, toma lá que é para aprenderes.


Vista panorâmica do Pic du Midi de Bigorre ao Pic d’Arie, Pau.

Outra vista panorâmica tirada do Boulevard des Pyrénées, Pau. 

Veja-se uma velha imagem do Boulevard des Pyrénées, atenda-se que o viandante anda com o guia Michelin, onde até se lê que nas montanhas crescem e pastoreiam os rebanhos que dão o leite que depois vai para Roquefort, o queijinho que ele tanto aprecia. Antes de partir, andou a ver imagens na Wikipedia sobre o desfrute panorâmico do Boulevard des Pyrénées, como é que era possível não vir? Uma treta, cai uma cortina de chuva, irritante, está tudo nublado… Nem tudo está perdido, passeia-se na proximidade e é nisto que vem uma rematada surpresa.




O monumento aos que caíram pela Pátria é imponente, ergue-se diante do Boulevard des Pyrénées. Quando o viandante se aproxima tem a suprema alegria de ver os seus compatriotas homenageados: Aos soldados portugueses mortos pela França, sereis chorados. E o viandante faz continência e fica igualmente tocado com a lápide aos republicanos espanhóis que procuraram defender a França, a sua pátria de exílio, foram mortos duas vezes, mas saúda-se a sua suprema coragem.





Não vamos aborrecer o leitor com a história do Béarn, a Navarra do Sul dada à Espanha, nem vamos falar de Margarida d’Angoulême, irmã de Francisco I, trouxe o Renascimento para o castelo e as ideias da Reforma. A sua filha, Jeanne d’Albret, que casou com António de Bourbon e desse casamento nasceu Henrique de Navarra, futuro Henrique IV de França, o senhor do édito de Nantes, que consagrou a tolerância religiosa. Aproveitando uma aberta daquela chuva inclemente, o viandante procurou captar a beleza peculiar de uma residência aristocrática de primeiríssima classe, uma bela construção aprofundada pelo estilo renascentista. E andava nisto quando regressou a chuva, o melhor era fazer horas vagabundeando pelo centro da cidade. E é nisto que fica especado com um curioso cabeleireiro, não resistiu, pediu licença à patroa e fotografou uma atmosfera garrida, não se importaria nada de ver a sua cidade de Lisboa pejada de estabelecimentos como este, um festival de luz e cor. E com tanta chuva à volta, preparou-se para aconchegar o estômago, ler a documentação sobre Toulouse, que amanhã fará presença aqui no blogue, e o tema tem a ver com Património da Humanidade.


(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19097: Os nossos seres, saberes e lazeres (288): Primeiro, Toulouse, a cidade do tijolo, depois Albi (7): De Lourdes a Gavarnie, um grande ecrã dos Pirenéus (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19121: Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias (António Graça de Abreu) - XL (e última) Parte: Canal do Suez, Roma e regresso ... "A vida é o que fazemos dela, / As viagens são os viajantes. / O que vemos não é o que vemos / Senão o que somos" (Bernardo Soares / Fernando Pessoa)



Foto nº 4


Foto nº 3


Foto nº 5


Foto nº 1


Foto nº  2


Foto nº  6


Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1.  Úlltimas duas rrónicas da "viagem à volta ao mundo em 100 dias" [3 meses e oito dias], do nosso camarada António Graça de Abreu.

Escritor, poeta, sinólogo, ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com cerca de 220 referências, é casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos, João e Pedro. Vive no concelho de Cascais.

[Foto à direita: Hai Yuan e António Graça de Abreu]



2. Sinopse da série "Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias" (*)

(i) neste cruzeiro à volta do mundo, o nosso camarada e a sua esposa partiram do porto de Barcelona em 1 de setembro de 2016; [não sabemos quanto despenderam, mas o "barco do amor" deve-lhes cobrado uma nota preta: c. 40 mil euros, no mínimo, estimamos nós];

(ii) três semanas depois de o navio italiano "Costa Luminosa", com quase três centenas de metros de comprimento, sair do Mediterrâneo e atravessar o Atlântico, estava no Pacífico, e mais concretamente no Oceano Pacífico, na Costa Rica (21/9/2016) e na Guatemala (24/9/2017), e depois no México (26/9/2017);

(iii) na II etapa da "viagem de volta ao mundo em 100 dias", com um mês de cruzeiro (a primeira parte terá sido "a menos interessante", diz-nos o escritor), o "Costa Luminosa" chega aos EUA, à costa da Califórnia: San Diego e San Pedro (30/9/2016), Long Beach (1/10/2016), Los Angeles (30/9/2016) e São Francisco (3/4/10/2017); no dia 9, está em Honolulu, Hawai, território norte-americano; navega agora em pleno Oceano Pacífico, a caminho da Polinésia, onde há algumas das mais belas ilhas do mundo;

(iv) um mês e meio do início do cruzeiro, em Barcelona, o "Costa Luminosa" atraca no porto de Pago Pago, capital da Samoa Americana, ilha de Tutuila, Polinésia, em 15/10/2016;

(v) seguem-se depois as ilhas Tonga; visita a Auckland, Nova Zelândia, em 20/10/2016; volta pela Austrália: Sidney, a capital, e as Montanhas Azuis (24-26 de outubro de 2016);

(vi) o navio "Costa Luminosa" chega, pela manhã de 29/10/2016, à cidade de Melbourne, Austrália; visita à Austrália Ocidental, enquanto o navio segue depois para Singapura; o Graça de Abreu e a esposa alugam um carro e percorrem grande parte da costa seguindo depois em 8 de novembro, de avião para Singapura, e voltando a "apanhar" o seu barco do amor...

(vii) de 8 a 10 de novembro. o casal está de visita a Singapura, seguindo depois o cruzeiro para Kuala Lumpur, Malásia (11 de novembro); Phuket, Tailândia (12-13 de novembro); Colombo, capital do Sri Lanka ou Ceilão ou Trapobana (segundo os "Lusíadas", de Luís de Camões. I, 1), em 15-16 de novembro. de 2016;

(viii) na III (e última) parte da viagem, Graça de Abreu e a esposa estão, a 17 de novembro de 2016, em Cochim, na Índia, e descobrem a cada passo vestígios da presença portuguesa; a 18, estão em Goa, seguindo depois para Bombaím (20 e 21 de novembro de 2016);

(ix) com 2 meses e 20 dias, depois da Índia, os nossos viajantes estão no Dubai, Emiratos Árabes Unidos, passando por Muscat, e Salah, dois sultanatos de Omã, em datas que já não podemos precisar (, as fotos deixam de ter data e hora...), de qualquer modo já estamos em finais de novembro/ princípios de em dezembro de 2016;

(x) tempo ainda para visitar Petra, na Jordânia, e atravessar os 170 km do canal do Suez (Egito), antes de o "Costa Luminosa" entrar no Mediterrâneo; a viagem irá terminar em Civitavecchia, porto de Roma, antes da chegada do novo ano, 2017.


3. Fim da Viagem de volta ao mundo em 100 dias > Canal do Suezs e Roma > s/d, c. final de dezembro de 2016] (pp. 25-29], da terceira e última Parte, que nos foi enviada em formato pdf]


Canal do Suez, Egipto

Desde Aqaba, o navio enviesou e caiu no mar Vermelho, na imparável subida para o Mediterrâneo e a Europa. Passamos ao lado de Sharm-el-Sheik, situada a estibordo, navegamos junto a Hurghada, escondida a bombordo, lugares de excepção no Egipto turístico agora afectados pelo terrorismo que lhes despovoa as centenas de hotéis onde se alojavam aos milhares as gentes vindas de múltiplas paragens da Europa, em busca do sol, das águas tépidas do mar, da história do Egipto, dos faraós e dos árabes. [Foto nº 1]

Chegado à noite à cidade de Suez para a travessia do Canal, o Costa estaciona atrás de um cruzador norte-americano que, creio, regressa aos States após missão no Golfo Pérsico. Assim que raiar a manhã, avançaremos num comboio de navios durante os 168 quilómetros de águas do Canal do Suez. [Foto nº 2]

O dia começa com nevoeiro, os horizontes estão curtos, envoltos na bruma. Aí vamos no início da travessia que durará até às três da tarde. A névoa levanta e temos este extraordinário Canal para ver e cruzar. Com muito trânsito de navios, em ambas as margens há filas e filas de camiões, e automóveis egípcios, que esperam que a navegação dos grandes barcos diminua para, em pequenos ferries, poderem passar de um lado para o outro do canal.

O Costa segue viagem lentamente como que tacteando as águas. Avançamos de sul para norte e, na margem direita, espraiam-se quase só terras desérticas, num perder de vista por pequenos montes e areais imensos. A margem esquerda foi mais bafejada pela sorte. As águas do rio Nilo, que corre quase paralelo ao Canal, a uns oitenta quilómetros de distância, a poente, foram domadas, encaminhadas e trazidas até estes lugares. Em vários troços são visíveis grandes extensões de terreno verde e fértil. Aqui o camponês, o felah, abre canais de irrigação, trabalha a terra, conta com as águas sagradas do Nilo. E há trigo e legumes, várzeas e pomares, e é necessário dar de comer a milhões e milhões de pessoas. O Egipto tem hoje 83 milhões de habitantes para alimentar, e um vasto território quase todo desértico.  [Foto nº 3]

Impressionante é a segurança montada em ambos os lados do Canal. Ao longo de todas as duas correntezas das margen -- quase 170 quilómetros vezes dois --, foi construído um muro aí com 5 metros de altura, que separa e delimita o curso das águas, com guaritas, soldados e pequenos destacamentos militares. Tudo activo e vigilante diante da quase permanente passagem de navios. Imaginem o que seria um enorme petroleiro ou um navio de cruzeiros como o nosso, ser atacado e incendiado por radicais islâmicos, a partir das margens do Canal do Suez!

Estamos a chegar a Port Said, a cidade junto à saída para o Mediterrâneo, burgo fundamental que nasceu e cresceu quando da construção do Canal. Quem por aqui andou, em Novembro de 1869, foi o nosso Eça de Queirós, então com apenas 24 anos, que escreveu para o Diário de Notícias quatro extensas crónicas publicadas em Janeiro de 1870 sobre as “festas” de inauguração do Canal do Suez. Considerou os seus textos “uma narração trivial, um relatório chato” e fala assim da cidade:

“Por uma bela manhã, entrámos em Port Said por entre os dois grandes molhes que se adiantam paralelamente pelo mar, feitos de poderosos blocos de pedra solta. Port Said é uma cidade de indústria e de operários: isto dá-lhe uma especialidade de fisionomia: estaleiros, forjas, serralharias, armazéns de materiais, aparelhos destilatórios. (…) nem edifícios, nem monumentos, nem construções sólidas e sérias: tudo é ligeiro, barato, provisório. A igreja católica é como uma grande barraca: vê-se o céu azul através do seu tecto feito de grandes traves mal unidas. Tudo isto dá a Port Said um aspecto triste.”

Não desembarcámos em Port Said, passámos ao lado do porto e da baía, mas deu para ver que, cento e cinquenta anos após a visita de Eça de Queirós, a cidade cresceu exponencialmente, hoje tem 600 mil habitantes contra os 12 mil existentes na altura da viagem do autor de A Relíquia. 

Em breve, depois de entrar na noite dos séculos, cá regressarei para tomar um chá de menta com o nosso Eça de Queirós, para falarmos do Egipto, dos atribulados tempos actuais e para conversarmos longamente sobre uma das nossas grandes paixões, a China e os Chineses. Não foi Eça quem escreveu no capítulo XVIII de Os Maias: “Os anos vão passando (…) E com os anos, a não ser a China, tudo na terra passa.”


Roma, Itália

Aí está a nossa Europa!

O estreito de Messina, com a ponta da bota da Itália calabresa a dar o pontapé na Sicília e nós a navegar entre.


Mais duas horas ao sabor da ondulação e passamos mesmo ao lado do vulcão Stromboli, um cone perfeitinho a sair do mar e, do lado norte, o fumo permanente das erupções. A ilha e o vulcão, em 1949, foram cenário de filme “Stromboli terra di Dio”, com a Ingrid Bergman, realizado por Roberto Rossellini, então marido da diva sueca. [Foto nº 4]

Chegada a Civitavecchia, porto de Roma. Viagem de uma hora até à “cidade eterna”, por uma auto-estrada a ondular pelos campos do velho Lácio. Chego, saúdo Rómulo e Remo, e não esqueço a mãe loba, estou no coração da Roma dos santos papas, de Júlio César e Constantino, de gentes como Sofia Loren e Federico Fellini. Revisitar Roma, a basílica de São Pedro, a excelência perfeita da Pietá do Miguel Ângelo, logo à entrada, à direita, o esplendor na imensa nave da maior igreja do globo. [Foto nº 5]

Como das outras visitas, não vi o Papa, mas deambular ao acaso por Roma após uma volta ao mundo, após tanto mar e infindáveis terras, tudo criado pelo engenho de Deus e alguma loucura dos homens, concede-nos a excelência de sermos criaturas inventadas pelos deuses, de sermos os homens que ergueram maravilhas como São Pedro, o Museu do Vaticano, com bem menor dimensão, a nossa igreja de Santo António dos Portugueses.[Foto nº 6]

Roma é uma cidade que levo, há muitos anos, suspensa nas pregas do coração, onde regressarei, de certeza, logo no início de uma próxima reencarnação.

Amanhã o Costa conclui a jornada de volta ao mundo, segue de Civitavecchia para Savona, pedaços de mar Mediterrâneo que conhece de cór. Depois, um avião para Lisboa e regressaremos a casa, ao dulcíssimo lar. Foram três meses e oito dias de viagem por oceanos infindos, terras de todos os assombros e magias. Começo a ter saudades da ditosa pátria, do conforto da minha casa, de respirar Portugal.

Recordo palavras de Bernardo Soares, aliás Fernando Pessoa:

A vida é o que fazemos dela,
As viagens são os viajantes.
O que vemos não é o que vemos
Senão o que somos.

António Graça de Abreu

FIM

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Guiné 61/74 - P19120: (De)Caras (121): O ex-padre italiano LIno Bicari foi meu professor em Bafatá, depois da independência, e casou com uma prima minha, Francisca Ulé Baldé, filha do antigo régulo de Sancorlã, Sambel Koio Baldé, fuzilado pelo PAIGC (Cherno Baldé, Bissau)


Guiné-Bissau > s/l >  s/d (c. 1983) > À esquerda, Lino Bicari; à direita, Amilcare Giudici (1941-2008). Foto reproduzida com a devida vénia... Fonte: blogue dos amigos do ex-padre, do PIME,  Amilcare Giudici (1941-2008), teólogo e escritor, defensor das comunidades de base e de uma igreja sem padres para o 3º milénio.


1. Comentário de Cherno Baldé ao poste P19116 (*)

[Foto à esquerda: o nosso colaborador permanente, Cherno Baldé, especialista em questões etnolinguísticas da Guiné-Bissau; tem mais de 170 referências no nosso blogue]


Caros amigos,
Cherno Baldé (n. circa 1960)
estudante universitário em Kiev,
em 1989.   É membro
da nossa Tabanca Grande
desde junho de 2009 (**)

Fui estudante do Ciclo Preparatorio e do Liceu Hoji-Ya-Henda em Bafatá, de 1975 a 1979, onde Lino Bicari, um ex-padre Italiano filiado no partido "libertador", era muito conhecido e estimado. 

Mais tarde, viria a conhecer e casar-se com uma das filhas do antigo régulo de Sancorlã (Sambel Koio Baldé) e minha prima, de nome Francisca Ulé Baldé. 

O Sambel Coio Baldé foi fuzilado pelos esbirros do PAIGC em Bambadinca,  após a independência, destino que teriam mais 4 ou 5 dos seus irmãos, todos eles príncipes de Sancorlã e ex-chefes de milicias do lado português e em defesa do seu chão sagrado. 

O ex-padre Lino é que foi o defensor da tese segundo a qual  a mãe verdadeira de Amílcar Cabral era uma mulher fula do Geba com laços de parentesco com a familia régia de Ganadu (a familia do famoso rei M'bucu ou Umbucu do tempo do tenente Marques Geraldes de Geba). 

Actualmente, vivem em Portugal, mas desconheço se continuam ou não juntos.

Sobre a questão dos Balantas / Brassa:

Segundo as fontes orais a que tivemos acesso, o termo ou etnónimo Brassa vem do termo mandinga Birassu, Brassu, Buraçu ou Braçu,  conforme as fontes em Mandinga ou Fula, Portugués ou Francés, que era a provincia ocidental do reino mandinga de Gabu (ou Kaabu) e que viria a tomar várias formas nas diferentes línguas dos povos que ai viviam antes e após o fim do imperio, na sua grande maioria mandingas, fulas, balantas, djolas, etc.

Assim, toda a zona norte da Guiné e parte da regiao de Casamança, no Senegal, se encontravam dentro desta antiga provincia, com epicentro no corredor de Farim/Mansoa que seria a capital provincial e, donde os Brassas/Balantas sairam para depois se expandirem mais ao sul do pais, até as regioes de Quinara e Tombali.

Partindo deste ponto de vista analitico, na Guiné, os Balantas não seriam os unicos "Birassu" ou "Brassa", pois também entre os fulas existem grupos, pouco conhecidos ou estudados, mas que seriam desta origem histórica, os chamados fulas Birassunka Braçunka (em mandinga: Fulas de Biraçu), com especificidades próprias da língua e cultura ainda hoje existentes, alias muito parecidas com as dos seus históricos vizinhos mandingas e balantas do norte.

Em resumo, quando um Balanta ou Djola ou Fula se identifica a si mesmo como "Brassa" ou "Birassu", isto queria dizer que se identificava com as suas raízes ou origens geográficas, em estreita ligação ao território/reino com o qual, para todos os efeitos, se identifica em relação aos outros. 

Não esquecer que em Africa, os processos de formação das identidades com base em determinados territórios ou estados nação,  iniciados no periodo pré-colonial, foram interrompidos e violentamente substituidos por relações comerciais e outras,  baseadas no tráfico de armas e de seres humanos impostas de fora para dentro ou vice-versa, e que nenhum povo africano, para poder sobreviver, podia ignorar ou dispensar em entre meados do séc. XV e fins do séc. XIX.

Cherno Baldé

19 de outubro de 2018 às 11:55
 
2. Comentários dos leitores:

(i) Antº Rosinha:

O professor Cherno Baldé já nos ensinou mais coisas,  em meia dúzia de comentários, do que aprendemos em 24 meses de comissão na "guerra do Ultramar".

(ii) Tabanca Grande Luís Graça:

É verdade, Rosinha, é sempre com grande prazer, curiosidade, apreço e respeito que lemos os postes e os comentários do nosso professor Cherno Baldé.

Chermo, o Mundo de facto é Pequeno e a nossa Tabanca é... Grande! Não conheço o Lino Bicari mas gostaria ainda de o encontrar em Lisboa... Espero que esteja bem de saúde, com os seus 80 e picos anos. Nos anos 90, em Portugal, esteve ligado à ONGD Oikos. Vejo-o citado como profundo conhecedor da realidade educativa da Guiné-Bissau. 

Gostaria que ele nos pudesse ler, ficando a saber que tem aqui, entre os colaboradores permanentes do nosso blogue, um seu aluno, do tempo do liceu de Bafatá. da segunda metade da década de 1970, e primo da Francisca Ulé Baldé, o hoje dr. Cherno Baldé, um filho da Guiné, quadro superior, que optou, corajosamente, por viver e trabalhar na sua terra.

Prometo ao Cherno que vou tentar descobrir o seu paradeiro (***). 

Mantenhas para o meu irmãozinho Cherno Baldé.

Luís Graça

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(**) Vd. poste de 18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

Guiné 61/74 - P19119: Parabéns a você (1515): Fernando Súcio, ex-Soldado Condutor do Pel Mort 4275 (Guiné, 1972/74) e Rogério Cardoso, ex-Fur Mil Art da CART 643 (Guiné, 1964/66)


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Nota do editor

Último poste da série de 19 de Outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19114: Parabéns a você (1514): Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil Armas Pesadas Inf da CCAÇ 3460 (Guiné, 1971/73)

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19118: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (6): Virgílio Teixeira (ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)


Virgílio Teixeira, aspirante a oficial miliciano, com a especialidade de SAM - Serviço de Administração Militar. Foto para o BI militar. Junho de 1967.


Foto (e legenda): © Diniz Souza e Faro (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Comentário ao poste P19106 (*):

Autor: Virgílio Teixeira (*), ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, set 1967/ ago 69); natural do Porto, vive em Vila do Conde, sendo economista, reformado; tem já cerca de de 90 referências no nosso blogue.

Há casos e casos, e lá vem o meu caso.
Não era rico, nem mais ou menos. Não era filho de General nem de Coronel. 200 contos [, na época,] era uma visão de uma estrela.

E mesmo assim, vou parar a uma coisa que alguns gostam de chamar de 'escritório' no meio do mato. 

Alguém tem de fazer esta função. Quem?  Aqueles que estão habilitados, se alguém tinha de saber alguma coisa e aplicá-la era no SAM - Serviço de Administração Militar.

Porque me calhou a mim? Na especialidade fui um zero, porque não ligava àquilo. Foram as provas físicas e militares, de tiro e aplicação militar que me deram as maiores notas, e assim puder passar o curso do COM [, Curso de Oficiais Milicianos].(**)

Mas tínhamos os psicotécnicos, faziam-se testes, tinha-se o curriculum. E o meu estava acima de qualquer suspeita. Já tinha 12 anos de trabalho em cima, com contribuições para a Segurança Social, a Caixa de Previdência, que muitos nem sabem o que isso é.

Passei pela Escola Comercial, passei pelo Instituto Comercial, estava na Faculdade de Economia [do Porto], que mais era preciso para ir para a minha especialidade?

Podem ser todos burros na tropa, mas não iam desperdiçar um 'quadro' já formado cá fora e mandá-lo para "infante" ou coisa melhor. 


Depois foi coisa de aprendizagem e para quem já tem as bases, não custa nada.

Um menino, vindo do Liceu, muito dificilmente agarrava esta especialidade, era assim tratada tipo elite, não tenho vergonha de o dizer, só tinha uma pessoa a mandar em mim, o meu Chefe, nem o comandante do batalhão me dava ordens.

Agora há outras coisas facilmente explicáveis, e isso já está atrás proferido nas insinuações e bem feitas. O meu Tesoureiro, por exemplo, fazia parelha comigo no CA ], Conselho de Administração], a função dele era ir uma vez por mês a Bissau levantar o p
atacão e distribuir pelas Companhias, nada mais. Trabalhamos dois anos e nas assinaturas nunca notei a designação dele. Eu assinava Virgilio Teixeira e por baixo, Alf Mil do SAM.

Esse cara, de que falei agora, vi nuns documentos passado quase 50 anos, que ele assinava 'Alferes Miliciano de Infantaria'. Fiquei pasmado. Consegui o email dele na Ordem dos Advogados, e perguntei-lhe assim directamente: "Como é que um alferes de infantaria vai para Tesoureiro do Batalhão?"

Ainda aguardo a resposta, e já lá vão uns 3 anos.

Mas ir parar à Guiné já é um grande castigo de Deus, e todos nós, de uma forma ou outra, levamos no pelo por causa disso.
Ainda tenho uma 'micose' qualquer aqui no pé, que trouxe da Guiné, dei por ela em 1969 antes de embarcar, devia ter feito o mesmo tratamento que tinha feito a outra, com tintura de iodo, mas não fiz e cá está. 

Uma lembrança da Guiné, com amor.(***)

Virgilio Teixeira
________________

(**) Vd. postes de:

2 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18704: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XXXIII: Como se faz um alferes miliciano do Serviço de Administração Militar (I)

6 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18715: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XXXIV: Como se faz um alferes miliciano do Serviço de Administração Militar (II)

Guiné 61/74 - P19117: Notas de leitura (1112): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (56) (Mário Beja Santos)

Ruína da antiga filial do BNU e Hotel Turismo

Fotografia de Francisco Nogueira, inserida no livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições tinta-da-china, 2016, com a devida vénia.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Março de 2018:

Queridos amigos,
Tenho para mim que este acervo documental referente ao BNU da Guiné, constante do Arquivo Histórico, onde procedo ao possível levantamento do que pode ser tido como relevante das linhas gerais do processo socioeconómico, político e cultural, permitirá doravante aos investigadores um indispensável olhar sobre o funcionamento económico e financeiro da colónia, a mentalidade dos administradores, os marcos das mudanças, os sinais do desenvolvimento.
Os gerentes, como aqui aparece sublinhado por uma observação do administrador em Lisboa responsável pelo pelouro da Guiné, tinha o estrito dever de relatar as ocorrências pelo seu modo de ver, o governo do Banco precisava de ter informações em primeira mão. É o lado fascinante deste acervo, é o que escapa aos jornais e às briosas tiradas governamentais, pois claro.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (56)

Beja Santos

No acervo documental avulso existente no Arquivo Histórico do BNU não há qualquer referência a 1948, em 1949 aparecem dois documentos que se podem revelar úteis. O primeiro relaciona-se com a situação da praça, presume-se que esteja assinado por Virgolino Pimenta, é dirigido ao governador do BNU em 23 de fevereiro, dele extraímos elementos com inegável expressão:
“Tem sido exagerado o movimento de letras protestadas, vindas do exterior.
São dois os factores a contribuir para tal.
O primeiro resulta de que, antigamente, só poucas firmas importavam e vendiam depois, ao pequeno comércio. De há tempo a esta parte, todo o comerciante, grande ou pequeno, se arvorou em importador.
O segundo, talvez o pior, é que as firmas vendedoras, da Metrópole, ou por falta de compradores ou por outra qualquer razão, põem a vender na Guiné, a torto e a direito, parecendo nem olhar à dimensão da cidade ou à garantia dos compradores. Assim, os de cá compraram em demasia e os de lá venderam com enorme exagero. Entre todos, excedeu-se imenso a firma dessa praça Coelho e Castro & Alves, cujas vendas para esta colónia foram a uns quinze mil contos, senão mais, no ano passado.
O volume dos negócios, na colónia, ficou aquém do volume das importações. O resultado foi o comércio estar abarrotado de mercadorias mas, não as vendendo com a desejada pressa, não realizou os fundos para pagar os seus encargos.
Chovem os protestos; as prorrogações; as conversões das letras em livranças, que outra coisa não representa senão delongas nos prazos de pagamento, etc. É justo dizer-se que, salvo pequenas excepções, todos procuram pagar.”

E conclui que a colónia está saturada de mercadorias, impõe-se, para segurança do Banco, reduzir na Metrópole o desconto de letras sob a Guiné. Aliás, observa igualmente o gerente, o Banco deve evitar encargos em novas e grandes remessas de mercadorias por uma razão essencialmente logística:
“A Alfândega não tem armazéns. Já estão em plena rua milhares de contos de fazendas que os que as encomendaram não levantam. As chuvas vêm em Maio e parte destas e de outras que vierem ficarão expostas à chuva e daí resultarão prejuízos que não vale a pena salientar”.

E passa a expor o que se passa com os negócios no tempo presente:
“Decorre a campanha da mancarra com relativa calma. O comércio exportador combina os preços de compra, tendo assegurado o preço de venda, na Metrópole. Bom sistema, que terminou a louca concorrência antiga. No entanto, os processos passados deram lugar a desconfianças presentes e os exportadores, para firmarem a sua honestidade de processos, tomaram entre si o compromisso de pagarem uma multa de cem contos, se algum for apanhado em desrespeito do que foi ajustado. Escolheram o gerente do Banco para depositário de cinco cheques de cem contos cada que constituem a garantia. Tem havido respeito pelos preços. Mas o que se não sabe – ou antes, se diz que se não sabe – é que pode haver alguns que, de facto não desrespeitem esses preços mas em conluio com vendedores podem oferecer facilidades de transporte, de pagamentos, etc., que vão, no fim, causar melhor preço.
Não se deve esquecer que isto aqui, nessa matéria é a Guiné. A Société Commerciale Africaine nem quis entrar em acordo de preços e entrou a comprar a mancarra por preço elevadíssimo, indo oferecer mais dinheiro aos clientes das outras casas. Isto produziu uma perturbação tremenda. O comerciante pequeno, vende uma casa a comprar tão caro, entendeu que as outras tinham que ir para aquele preço. E retraiu-se. Os que venderam aquela casa mais caro puderam comprar mais caro que os outros compradores pagavam ao indígena. E o indígena, passou a exigir de todos aquele mais alto preço e, como o não obtinha, não vendia a mancarra. Foi um alarme enorme e uma paralisação geral de negócios. Felizmente que aquela casa estrangeira não tinha recursos de armazéns e embarcações para um grande volume de compra da mancarra, pelo que parou a sua estranha e condenável atitude logo que comprou o que queria.

Quanto à campanha do arroz, decorre naturalmente, tendo-se chegado a um bom acordo quanto a preços e quanto a tabelas relativas ao preço do arroz a vender pelos industriais de descasque.

Para terminar, uma referência à existência de moeda estranha, na colónia.
Há cerca de 4 meses, pelas informações que procurámos, existiam uns 50 milhões de francos senegaleses na Guiné. A maior parte em mãos de comerciantes libaneses das regiões fronteiriças, sobretudo dos lados de Bafatá e Gabú. Tirando couros do Senegal, nada nos vem senão ouro em pó, trazido por indígenas de lá.
Rarearam as vindas desse ouro, devido a qualquer medida das autoridades francesas e os possuidores de francos estavam em grave embaraço. Porém, de há três meses a esta parte, tornou a aparecer o ouro”.

E dá conta minuciosamente dos valores de troca, terminando a sua exposição sobre a citação da praça nos seguintes termos:
“O indígena do Senegal, onde tudo falta, traz ouro e leva fazendas que deixaram lucro na Alfândega. Talvez seja esta uma razão por que nenhuma autoridade combate tal modo de negociar. Terminando, apraz-nos fazer uma referência à Sociedade Comercial Ultramarina. Está fazendo óptimo negócio dentro da máxima prudência. Os lucros de 1947 foram bons. Os de 1948 já se podem anunciar, serão melhores. Os do ano corrente, pelo que já se esboça e pelo que já se apurou, vão, talvez, duplicar”.

O segundo documento tem a ver com o relatório de entrega da gerência da filial de Bissau por Virgolino Pimenta ao novo gerente, Clarence Abílio do Quental Mendes, estamos em 15 de agosto de 1949. A prosa, incontestavelmente, saiu do punho de Virgolino Pimenta:
“Quase sem excepção, e contrariando o hábito antigo, raro é o comerciante da colónia que não se arvorou em importador directo, mesmo sem posses para se manter em tal posição. O pequeno comerciante, regra geral, tem pouco ou nenhum capital. Estabeleceu-se, auxiliado pelas casas maiores que lhe forneceram fazendas a crédito, geralmente, obrigando-se a pagar com produtos da agricultura.
Na altura da intensificação das chamadas campanhas dos produtos, tal ajuda foi ampliada com dinheiro. Assim, estava estabelecido um roulement de auxílio de fazendas e dinheiro de contra produtos.
Tudo corria dentro de uma normalidade só alterada quando a moral do beneficiado falhava ou uma má administração de negócios a perturbava.
Como consequência imediata da última guerra, este sistema modificou-se. O pequeno comerciante, não repudiou os auxílios atrás referidos e entrou a importar directamente. Era encargo superior às suas forças o obrigar-se a pagamentos, em prazos certos, das letras relativas às importações que fazia. As suas dívidas ao comércio maior tinham prazos de arrumação. Mas havia sempre transigências.
Protelavam-se liquidações, por vezes, de um ano para o outro mas essas demoras, por assim dizer, não apareciam à vista.
Não assim quanto às liquidações das suas importações directas porque, vencidas e não pagas as letras relativas, surgiam as más posições, avolumando-se o protesto. Apareceu a situação que está trazendo a nu os maus pagadores. Mas o procedimento descrito não trouxe só má posição aos pequenos. Trouxe-a aos maiores também. Entre eles: A. V. d’Oliveira & Cª., Aly Souleiman & Cª., António Romenos Dieb, António da Silva Gouveia, Lda., Barbosas & Ctª., Compagnie Française de l’Afrique Occidentale, Luiz António de Oliveira, Mário Lima, Nouvelle Société Commerciale Africaine, Nunes & Irmão, Sociedade Comercial Ultramarina e Société Commerciale de l’Ouest Africain. Todos eles faziam as suas importações contando com as necessidades próprias e as daqueles de quem eram, praticamente, fornecedores.
Tirando a Sociedade Comercial Ultramarina, que se abastece com precaução, não acumulando grandes stocks de fazendas, todos os outros foram apanhados, por assim dizer, de surpresa pois, chegada a altura de abastecer os seus clientes viram que estes se tinham abastecido directamente, quase todos. Surgiu assim o exagero de stocks de fazendas na colónia.
A colónia inundou-se de fazendas e nesta situação surgiu simultaneamente o abastecimento de fazendas ao Senegal e à Gâmbia, consequência imediata dos benefícios que o chamado Plano Marshall lhes trouxe. Fechou-se assim, quase de repente, a venda das nossas fazendas para aquelas colónias. Ao mesmo tempo, o nosso indígena, cujo poder de compra está muito aumentado devido às altas cotações de produtos, retraiu-se em comprar. As mercadorias não se vendem. As letras relativas deixaram de ser pagas. Os vendedores metropolitanos estão alarmados porque não lhes pagam o que forneceram.
Tudo somado, as casas grandes deixarão de ter dinheiro em caixa e as pequenas muito menos".

E deixa no relatório a situação das notas e de caixa, é um relato muito bem elaborado:
“As notas da Emissão Teixeira Pinto são de qualidade inferior às da antiga ‘Emissão Chamiço’ sobretudo nos tipos de Esc. 20$00 e inferiores, razão porque a sua duração não será tão grande como foi a daquelas. Temos, no entanto, uma reserva apreciável. Mas se o indígena continuar a amealhar é assunto que pode causar apreensões pois não haverá notas que cheguem.
O movimento da caixa tem dois ciclos.
Um começa na altura do fim do ano, quando principia a campanha da mancarra e como esta quase se conjuga com a do arroz os levantamentos atingem proporções consideráveis, aumentando-se a circulação a uma altura que atinge o limite legalmente fixado. Receio que, pelas circunstâncias atrás apontadas, este limite não chegue, na próxima campanha.
O segundo ciclo do movimento de caixa é regulado pelo início da cobrança do imposto indígena.
À medida que vai sendo cobrado, vão sendo feitos os respectivos depósitos pelas autoridades competentes, o que influi bastante na baixa do montante de circulação. Por vezes, convém solicitar que estas entregas sejam feitas sem demora, por dois motivos. Primeiro, o de fazer baixar a circulação e reverter à caixa as notas que nos fazem falta. Segundo, evitar que as administrações guardem avultadas quantias e as tragam de uma só vez pois isso traz graves complicações ao serviço de caixa, cujo tesoureiro levará dias e dias a contar só o dinheiro dessas elevadas entregas e não pode dar expediente ao restante serviço a seu cargo.
É por vezes difícil conseguir-se isto porque é agradável aos funcionários do mato, que trazem o dinheiro, permanecer em Bissau, ganhando ajudas de custo”.

E assim chegamos à década de 1950 que culminará com o chamado massacre do Pidjiquiti, objeto do importante documento enviado em 5 de agosto de 1959 com o título “Acontecimentos anormais”. Vai começar uma documentação preciosíssima de pré-anúncio da luta armada, até 1964 o gerente enviará informações fundamentais que em certos pontos reveem considerações sobre o evoluir dos acontecimentos. Reforça o nosso ponto de vista de que os gerentes do BNU desde longa data têm luz verde para relatar tudo aquilo que pode ir mais longe do que as informações oficiais, quase sempre censuradas.
Veja-se o que em 15 de julho de 1959 o responsável pela administração do BNU envia à gerência em Bissau:
“Vem-se verificando que nem sempre os senhores gerentes têm o cuidado de informar o governo do Banco das ocorrências de certa montra que se dão na área da sua Dependência.
Queremos acreditar que em muito isso é devido à convicção de que o ocorrido não é de maior interesse.
Estamos atravessando uma época de evolução satisfatória mas também de convolução perturbadora pelo que temos de acompanhar de muito perto tudo quanto se passa nas nossas províncias ultramarinas.
Nestes termos, ainda que a um senhor gerente pareça que determinado facto não deve interessar-nos, convém dar-nos dele imediato conhecimento mais ou menos detalhado, enfim, consoante a importância que o ocorrido lhe possa mostrar.”

(Continua)

Imagem retirada do livro “Uma Apoteose – duas visitas – uma despedida”, 1953.

Receção ao Subsecretário do Ultramar, Raul Ventura, na sua visita à Guiné, na Praça Teixeira Pinto, Bissau

Imagem retirada do livro “Uma Apoteose – duas visitas – uma despedida”, 1953.
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Notas do editor:

Poste anterior de 12 de Outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19094: Notas de leitura (1108): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (55) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 19 de Outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19116: Notas de leitura (1111): Salvatore Cammilleri, missionário siciliano do PIME, expulso da Guiné em 1973 por ordem de Spínola, autor de "A identidade cultural dos balantas" (Lisboa, 2010, tr. do italiano: Lino Bicari e Maria Fernanda Dâmaso) - Parte I (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P19116: Notas de leitura (1111): Salvatore Cammilleri, missionário siciliano do PIME, expulso da Guiné em 1973 por ordem de Spínola, autor de "A identidade cultural dos balantas" (Lisboa, 2010, tr. do italiano: Lino Bicari e Maria Fernanda Dâmaso) - Parte I (Luís Graça)

Capa do livro de Cammilleri, Salvatore - A identidade cultural do povo balanta.

Lisboa: Edições Colibri; Edições FASPEBI,  2010, 110 pp.,  ilustrado. (Tradução do italiano:  Lino Bicari e Maria Fernanda Dâmaso).


1. O autor, padre católico, missionário, do PIME (Pontifício Instituto para as Missões Estrangeiras, fundado em Itália em 1850), nasceu na Sicília, em 1939. Aos 29 anos foi para a antiga província portuguesa da Guiné (, hoje República da Guiné-Bissau). Estava-se então em plena guerra colonial e a Igreja Católica procurava adaptar-se aos novos tempos, e à nova geopolítica do mundo, com o Concílio Vaticano II (1962-1965) e com o Papa Paulo VI (1963-1978).

As relações do PIME (ou de alguns dos seus missionários)  com as autoridades portuguesas da Guiné  nunca foram pacíficas… E em 1973, o autor terá tido problemas com a polícia política e as autoridades militares, acabando por ser expulso do território por ordem de Spínola. O que se pode ler na contracapa do livro: Salvatore Cammilleri escolheu um dos lados do conflito, o que o levou a “colaborar com o difícil processo de libertação do país” (sic).

Já anteriormente, no princípio da guerra, tinham sido expulsos dois missionários italianos do PIME: o Mário Faccioli (1922-2015), que estava em Catió; e o António Grillo (1925-2014), que estava em Bambadinca (*)

O Salvatore Cammilleri regressou em 1975, depois da independência. E é neste período, já com 36 anos, que terá decidido tornar-se “etnólogo”, passando a dedicar mais tempo ao estudo da cultura dos balantas, grupo étnico com o qual mais conviveu e trabalhou, nomeadamente em Tite, na região de Quínara, ao mesmo tempo que aqui desenvolvia atividades na área da saúde, incluindo a “construção de um hospital”. 

Vinte anos depois, em 1995, apresenta na Universidade de Génova o trabalho final da sua licenciatura (em filosofia, presumimos),   com o título “Essere Alante, essere Anin” (Ser Homem, ser Mulher). Foi feita, em livro,  a publicação parcial desse trabalho final de licenciatura apresentada na Universidade de Génova (Faculdade de Filosofia), no ano académico de 1994-95:  “Identità culturale dell’uomo africano atraverso i riti d’iniziazione presso il popolo 'Brasa', Guinea Bissau – Africa Occidentale". (O termo "tese" é para os doutoramentos; o termo "dissertação" é para os mestrados, dois graus académicos que correspondem hoje ao III e II Ciclos de Bolonha, respetivamente.)

O livro está traduzido e editado em português: Cammilleri, Salvatore - A identidade cultural do povo balanta. Lisboa: Edições Colibri; Edições FASPEBI,  2010, 110 pp.,  ilustrado, ISBN: 9789896890377, brochado, preço de capa: 8,00 €. (Tradução do italiano:  Lino Bicari e Maria Fernanda Dâmaso).

O livro está dividido em 4 partes, sendo a I, "o contexto histórico", e a II, "a situação económica e social", de resto as menos originais e menos interessantes. As partes III e IV é que têm a ver com o essencial do estudo, que não é filosófico mas etnográfico:  A integração social  da mulher e do homem,  balantas (pp. 37-98), segundo os respetivos ritos e etapas de iniciação. A obra é ilustradas com 20 fotos a cores.

 Na apresentação (pp. 7/8),  o autor faz duas prevenções ou levanta duas questões pertinentes:  (i) o que é ser "estrangeiro";  e (ii) o povo "brasa" e os seus segredos.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Nhabijões > 1970 > Luta balanta, entre dois "blufos", presenciada por militares destacados para protecção do reordenamento (à esquerda, o furriel miliciano Luís Manuel da Graça Henriques, da CCAÇ 12, de calções, tronco nu e óculos escuros, hoje editor deste blogue e autor desta nota de leitura)... Ao fundo, a nova tabanca, reordenada... Nhabijões deve ter sido o maior ou um dos maiores reordenamentos jamais feitos no tempo de Spínola. Foi um duro golpe para o PAIGC. Os reordenamentos são do tempo do BCAÇ 2852 (1968/70) e BART 2917 (1970/72)... Uma equipa (técnica) da CCAÇ 12 foi destacada o reordenamento. 

Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-Fur Mil At Inf, Op Esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


De resto, esses são sempre os constrangimentos (ou inibições) dos etnólogos: eu sou estrangeiro. mas quero conhecer-te, a ti e ao teu grupo; pertenço à cultura europeia ocidental (e, podia acrescentar: "sou homem, padre, católico, missionário, e os meus pares querem evangelizar-te", já que a religião católica é proselitista como a religião muçulmana e outras).  Por outro lado, o dono da casa que me acolhe, "vive  zelosamente a sua identidade cultural africana" (p. 7). Numa situação de "observação participante",  é impossível não comunicar, e não passar os valores de um e de outro grupo...

Põe-se aqui um questão ética, deontológica, até mesmo epistemológica: pode um cientista social fazer investigação independente, "ao mesmo tempo" que desempenha outros papéis sociais ou socioprofissionais ? Por exemplo, ser missionário, médico, arquiteto, gestor hospitalar, administrador, militar... Salvador Cammilleri é pároco de Tite, está a construir e a gerir um hospital, é admirador do povo balanta e...etnólogo (ou etnógrafo).

O caso não é virgem: António Carreira, o maior etnólogo (ou etnógrafo) da Guiné, era administrador colonial e depois administrador da Casa Gouveia (e a quem., de resto, é imputada a responsabilidade, pelo menos moral, do "massacre do Pigiguiti, ou Pindjiguiti, como se diz hoje em crioulo, no dia 3 de agosto de 1959, acontecimento habilmente explorado "a posteriori" pelo futuro PAIGC).

A resposta não é fácil. A verdade é que Salvatore Cammilleri acumulou ao longo de mais de 2 dezenas de anos um precioso conhecimento empírico da língua e dos usos e costumes do povo balanta, por quem tem uma especial predileção. De resto, o mesmo se passou com os padres Mário Faccioli, em Catió, e António Grillo, em Bambadinca, que sempre tiveram uma "relação especial" como os balantas.

A explicação pode ser esta: no grupo das etnias "animistas", os balantas serão, provavelmente, os mais "recetivos" à mensagem do cristianismo; por outro lado, os missionários católicos terão mais dificuldade em lidar com as populações que já são historicamente muçulmanas, como é o caso dos fulas e dos mandingas.

Na nota introdutória, o autor também evoca o "tornado histórico" (invasões, migrações, viagens, contactos com outros povos e religiões, esclavagismo, colonialismo, guerra colonial, guerra civil, imperialismo...) aque foi sujeito o continente africano, e em particular o território da Guiné (hoje bem mais pequeno do que no passado). Apesar disso, "a cultura africana em geral e a urasa [, balanta,] em particular tem resistido e conservado a sua identidade tradicional" (p. 7).

Infelizmente, não estamos tão seguros disso... De qualquer modo, o autor coloca-se na perspectiva mais etnográfica do que sociológica. Ficamos sem saber até que ponto  vai hoje a resistência do povo "brasa" à "aculturação" imposta do exterior, com o êxodo rural, a urbanização, a diáspora, a economia mercantil e a globalização (a par da cristianização e islamização de algumas minorias balantas).

O dilema do autor, que não é um académico, revela a sua "convição" de que "só a partir do conhecimento de um povo como tal, pode nascer outro projeto de confronto, de diálogo e de intervenção a seu favor" (p. 8).  O encontro de duas culturas tem um duplo risco; cair no erro de uma "exaltante superioridade" ou deixar-se  arrastar por uma "resignação interesseira".

Utilizando a metodologia da investigação etnológica, a "pesquisa no terreno", a observação participante, o objeto de estudo do autor foi "o sistema educativo em ação do povo brasa, isto é, das classes de idade e dos rituais de iniciação", e a partir dái "definir o perfil do homem e da mulher adultos", tal como são moldados pela "tradição ancestral" (p. 8).

O risco do autor é o de considerar o pov so brasa como "o bom selvagem", na esteira de resto de Amílcar Cabral... [Para ele, os balantas representavam a sociedade horizontal, tendencialmemte igualitária, "sem estratificação", embora gerontrática... No outro extermos, estavam os fulas, "sociedade semi-feudal" e, para mais, historicamente aliada dos colonialistas. Entre os balantas, era o  conselho dos anciãos da aldeia (ou de um conjunto de aldeias, em geral ribeirinhas e próximas) que tomava as decisões relativas à vida comunitária. A propriedade da terra era da aldeia.  Cada família recebia uma parcela para trabalhar. Os instrumentos de produção, por sua vez, pertenciam à família ou ao indivíduo. O balanta era monógamo, dizia Amílcar Cabral,, apesar de 'fortes tendências para a poligamia' (sic). A mulher teria mais liberdade e estatuto na aldeia balanta do que entre os fulas.  O que Cabral parecia omitir ou não valoirizar, nos seus escritos,  eram os seus rituais de passagem, a cultura da virilidade (o culto do "macho"), a conflitualidade com vizinhos, o tribalismo, o uso e o abuso do consumo do “vinho de palma” e das suas eventuais consequências (v.g., saúde mental, violência doméstica, comportamentos antissociais.] (**)

O "outro lado da lua dos balantas" também é ignorado por Salvatore Cammilleri que, algo estranhamente, faz questão de ocultar, nesta edição portuguesa (não conhecemos a italiana), certos pormenores da cultura brasa, por mor dos anciãos que os querem continuar a manter "secretos" aos olhos dos vizinhos e dos estrangeiros.

Por outro lado,  vejo que o autor, homem, padre católico, italiano, siciliano,  não se sente tão à vontade a falar da mulher balanta / brasa, daí o  recurso à colaboração da irmã missionária Maristella  De Marchi (p. 40).

O trabalho de campo foi feito na setor de Tite, em cinco aglomerados populacionais a seguir discriminados (entre parêntesis o número de famílias entrevistadas): Tite, centro urbano (4); Foia, a norte (8), Flak ndekte, a leste (6), Tite ni hãn, a oeste (6), e Bissassima, a oeste (8). Total de famílias: 32.

O autor faz questão de referir que todas as pessoas que foram os seus informantes privilegiados são adultos, anciãos, "em nada influenciados nem pela atividade escolar do Estado, nem pelas religiões importadas, Islão e Cristianismo" (p. 40)... As entrevistas foram gravadas e em parte traduzidas e transcritas em "língua crioula", com a ajuda de "alguns jovens iniciados", citados na p. 40. O que também é revelador das dificukdades e obstáculos com que se depara a investigação etnológica de grupos e populações sem escrita-

O autor tem, na p. 9, uma "nota linguística" sobre o modo como procedeu na transcrição dos fonemas da língua brasa: utilizou os signos gráficos da língua italiana e, complementarmente,  os símbolos do alfabeto internacional (sempre que não havia correspondência entre o italiano e o brasa)...E , como todas as línguas, há alguns sons especiais na língua balanta: por ex.,  N'h e n'h ("Consoante dupla: nasal velar e fricativa velar [h]") (p. 11): N'hala é o ser supremo, o deus criador, a origem de todos os seres... (p.99), embora o vocábulo seja polissémico, significando também a abóboda celeste,  o lugar da fecundidade donde vem a chuva, esposa de N'hala (...); é ainda a casa de N'hala (...); os conceitos de sorte, sucesso, destino dos homens e dos acontecimentos (...); razão universal ou justificação última de toda a realidade existente" (pp. 99/100).

Como dissemos a edição portuguesa tem a colaboração dos tradutores Lino Bicari e Maria Fernanda Dâmaso (que, pela nota publicada no final, pp. 105/106, parecem-nos ser especialistas em linguística e etnologia, de qualquer modo profundos conhecedores do crioulo, da história e da cultura da Guiné-Bissau).

Numa primeira leitura, achamos que a tradução podia ser um pouco  mais cuidada, num ponto ou noutro, a começar pelo etnónimo "brasa" [que em português também já vi grafado como "braza" ou como "brassa", mas não constam ainda, estes três vocábulos, nos nossos dicionários: Priberam, Houaiss; noutras línguas já vi grafado como "brasa" (em francês) e "brassa" (em inglês)].  Enfim, outros casos de etnónimos, escreve-se biafada e beafada, manjaco e manjak...

A tradução segue o novo ortográfico. A edição portuguesa tem o apoio financeiro da Fondazione PIME ONLUS.


2. Numa pesquisa pela Net, descobrimos que Lino Bicari é um ex-padre, italiano, missionário do PIME que no início dos anos 70 descobriu outra vocação, levado pelo romantismo revolucionário de Che Guevara e Camilo Torres (também ele ex-padre).   Nascido em 1936, aos 23 anos,   Lino Bicaria aderiu à guerrilha do PAIGC e é o único estrangeiro que tem o estatuto de combatente da liberdade da Pátria. Viveu 23 anos na Guiné-Bissau. Radicou-se em Lisboa em 1990. Dele disse o jornalista João Paulo Guerra, no jornal Público,  de 24 de setembro de 1990:

(...) Não é um homem desiludido, mas um homem amargo quer hoje, à margem da Igreja e do Estado da Guiné-Bissau, continua, no entanto, a afirmar-se religioso e militante do PAIGC." (...)

É a primeira vez que ouço falar no nome deste Camilo Torres italiano (que, apesar de tudo, não acabou tragicamente como Che Guevara e Camilo Torres)... Fui saber mais, socorrendo-se da entrevista com ele, feita pelo João Paulo Guerra ("Crónica dos feitos da Guiné: A última missão do padre Lino").

(...) "O padre Lino Bicari chegou à Guiné em Maio de 1967. Tinha 31 anos, um curso teológico e formação em medicina tropical, em psicopedagogia e didáctica e etnologia. De passagem por Lisboa, meteu na bagagem curso rápidos de língua portuguesa e administração colonial e, como todos os missionários destinados às colónias portuguesas, assinou compromissos renunciando aos seus direitos como cidadão italiano e submetendo-se às leis e tribunais portugueses, à Concordata, ao Acordo e ao Estatuto missionários.

Na Guiné vivia-se o quarto ano de guerra e Lino Bicari foi colocado em Bafatá, a cidade natal de Amílcar Cabral. A guerra, para ele como para os outros missionários, significava ouvir tiros Ao longe e viver num centro populacional sob controlo militar, de onde só podia ausentar-se à luz do dia.

(..) Foi em Itália, onde se deslocou em 1972 no âmbito de um programa de apoio ao Terceiro Mundo, que o padre Lino Bicari conheceu José Turpin, dirigente do PAIGC e, por seu intermédio, trocou correspondência com Amílcar Cabral. Quando tomou a decisão da sua vida, resolvendo trabalhar com o PAIGC, a Secretaria de Estado do Vaticano sentiu-se embaraçada. Não disse que sim, nem que não, e acabou por consentir, pedindo-lhe apenas que, formalmente, se desligasse do [Pontifício] Instituto para as Missões Estrangeiras [PIME]

(...) "No final de 1973, proclamado já o Estado da Guiné-Bissau, Lino Bicari entrou de novo no território. Mas, dessa vez, não levava o visto de Lisboa nem as guias de marcha do colonialismo missionário. Entrou através da fronteira com a Guiné-Conakry, numa ambulância da Cruz Vermelha e foi instalado pelo PAIGC na região de Boé, a sul de Madina, como responsável pelo Hospital Regional. 'Não era uma base de guerrilha mas uma zona totalmente libertada, defendida por forças armadas locais e, dada a sua configuração geográfica, de difícil acesso às tropas portuguesas', recorda Bicari." (...).

Mas voltemos ao nosso amigo do povo Balanta / Brasa, Salvatore Cammilleri (, apelido comum na Sicília) (***). E, já agora, porquê balanta, porquê brasa ?  São dois etnónimos curiosos que merecem uma explicação mais detalhada, na II parte da nossa nota de leitura. (****)

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


22 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14065: (Ex)citações (256): Eu gostava de saber um pouco mais sobre esse missionário italiano, o padre António Grillo (1925-2014), que tinha um especial carinho pelos balantas de Samba Silate (e era respeitado por eles) (A. M. Sucena Rodrigues, ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972-74)

(**)  Vd. poste de 30 de junho de 2008 > Guiné 63/74 - P3000: Bibliografia (28): Amílcar Cabral: nada mais prático do que uma boa teoria (Luís Graça)

(***) Vd. também poste de 13 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10258: Notas de leitura (391): A Identidade Cultural do Povo Balanta, de Padre Salvatori Cammilleri (Mário Beja Santos)

(****) Último poste da série > 15 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19104: Notas de leitura (1110): Os oficiais milicianos paraquedistas da FAP, volume I: os que combateram em África (1955-1974)- Um trabalho sério, rigoroso e honesto de mais de 2 anos, de José da Fonseca Barbosa, em homenagem a uma geração de portugueses que ajudaram a escrever algumas das mais belas páginas de sacrifício e abnegação da nossa história contemporânea (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72)

Guiné 61/74 - P19115: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (5): José Diniz Carneiro de Souza e Faro, ex-fur mil art, 7.º Pel Art (Cameconde, Piche, Pelundo e Binar, 1968/70)


Guiné > Região de Tombali  > Cameconde > 1969 > Oficiais e sargentos: o primeiro da esquerda é o José Diniz Sousa e Faro, fur mil art, do 7º Pel Art;  à sua direita, em primeiro plano, o alferes médico; sentado à direita deste, o J. A. F. Chaves e depois o R. Carvalho, de costas: de pé, na outra ponta da mesa, o J. Lopes.  Cameconde era a guarnição militar portuguesa mais a sul, na região de Quitafine, na estrada fronteiriça Quebo-Cacine..

Foto de cronologia da página do Facebook do Dinis Souza e Faro, que nasceu em Goa, em 21 de dezembro de 1945. Vive em Carcavelos. É membro da Magnífica Tabanca da Linha e da Tabanca Grande.

Foto (e legenda): © Diniz Souza e Faro (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Comentário ao poste P19106 (*)

Autor: José Diniz Carneiro de Souza e Faro, ex-fur mil art, 7.º Pel Art (Cameconde, Piche, Pelundo e Binar, 1968/70) (*)

Ter uma "cunha" não é sinónimo de boa vida, no meu caso concreto na Tropa. Eis o meu Fado:

Os meus familiares, quer maternos, quer paternos,  são militares e uma mãe que se preze zela pela sua cria.

Em Abril de 67 estou na Recruta, no CSM [Curso de Sargentos Milicianos], nas Caldas da Raínha. Passado uma semana sou chamado ao Cmdt da 5ªCompª, onde sou informado que o meu primo Capitão pede ao seu camarada para ser exigente comigo para que possa honrar a tradição da Família... Era uma forma subtil de "Cunha". 


Pois bem, o efeito foi ao contrário passei a ser perseguido, pelo Alferes e pelos Cabos Milicianos. Era tudo a dobrar.
Fui para a especialidade de Artilharia de Campanha que na altura ninguém sabia o que era. Junho de 67 Vendas Novas. 

As dificuldades era iguais para todos, pois os Oficiais do Comando responsáveis pelo curso não faziam distinções. No meu pelotão de obuses havia de tudo, ricos, remediados e pobres. Mas eram os pobres que recebiam bons enchidos das suas terras.

Em Abril de 68 fui mobilizado para a Guiné, não disse nada a ninguém. Num jantar, um outro primo, Major, que estava Caxias nos Serviços Mecanográficos,  perguntou-me se gostava da especialidade e que poderia ficar descansado que se fosse para o Ultramar iria para uma cidade. 

A minha resposta foi curta e grossa. Então vá dizer isso ao Governador da Guiné que requisitou os Artilheiros e os Obuses todos. É provável que a cunha tenha funcionado pois fui e vim sem nenhumas mazelas e uma mão cheia de camaradas para o resto da vida, sobretudo os: Os Bandalhos, Magnífica Tabanca da Linha e Tabanca Grande. 

Forte abraço para todos. (***)

J.D.S.FARO
68/70.
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