quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19110: Bibliografia de uma guerra (94): “Tu não viste nada em Angola”, por Francisco Marcelo Curto; Centelha, 1983 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Agosto de 2016:

Queridos amigos,
Recordo perfeitamente o que se escrevia, via e dizia nesses agitados meses de 1961, sobre Angola. Os artigos falavam de epopeia, visitei na Sociedade de Geografia de Lisboa uma exposição com corpos retalhados, na rádio falava Ferreira da Costa, os textos de Horácio Caio eram homéricos, nascera a lenda de Nambuangongo.
Acontece que este livro de Francisco Marcelo Curto, publicado em 1983 dá-nos uma outra visão dos acontecimentos. Como sempre, temos ali os militares desenrascados, as chuvas tropicais, voluntários que morrem como tordos, execuções, o fantasma do racismo e do colonialismo são descritos com mestria.
Pasma como este relato de Marcelo Curto permanece esquecido.

Um abraço do
Mário   


Quando a guerra, toda ela, dava pelo nome de Angola (2)

Beja Santos

Estamos em Novembro de 1961, Francisco Marcelo Curto e os seus homens continuam em Nova Caipemba, vão-se habituando ao local:
“Três salas, cozinha e um bom alpendre. Agora é só paredes, o telhado são os cacos e os barrotes meio caídos. Vivo e durmo no que foi a cozinha. Os soldados taparam esta parte da casa como puderam (zinco) e os sargentos estenderam panos de tenda para se protegerem do sol e da chuva”.
O livro de Francisco Marcelo Curto “Tu não viste nada em Angola”, Centelha, 1983, é uma surpresa, um vigoroso relato memorial, páginas de diário e textos que são impressivas águas-fortes sobre pessoas, situações, até o sentido da guerra. Surpreende a franqueza, as notas íntimas, as revelações sobre a sensualidade, a crueza com que se descrevem destemperos provocados por aquela onda de terror: “Trouxe para Nova Caipemba vinte e tal bailundos que apodreciam na fazenda de São José porque não chegava o transporte para a terra deles. Não comiam porque se lhes acabara a fuba e o peixe seco e os brancos diziam que não gostavam da nossa comida. Ora! Devoraram o arroz com chouriço em três tempos”. Começam as quezílias entre militares: “O Carvoeiro – o meu radiotelegrafista – embriagado, tentou bater no Marques. A custo segurámo-lo e conseguimos acalmá-lo. Hoje veio pedir desculpa ao Marques”.
Para quem combateu na Guiné, a descrição destas operações não tem qualquer paralelo com o que se experimentou: “Há alguns dias que fomos à serra da Cananga. Os voluntários já estão habituados no alto da subida. Encosta íngreme onde nos arrastamos a escorregar na lama. Os voluntários vivem debaixo da terra a perscrutar a mata que se estende para lá de algumas árvores que deitaram abaixo para fazer campo de tiro. Centenas de metros de uma vala para cobrir um homem a correr meio dobrado. Tratava-se de explorar a serra. A desconhecida catedral, bombardeada pela artilharia, pela aviação, onde os negros viviam à vontade, onde nenhum homem branco tinha subido alguma vez. Tratava-se de avançar até uma sanzala”. Há derrame de sangue, uma mulher presa e a filha é trazida pela tropa. As operações repetem-se, os acidentes também. A notícia da morte de voluntários é recorrente. Mas no quartel de Nova Caipemba a vida é muito monótona.

Estamos em Abril de 1962, a crise académica está a caminho: “Um amigo escreveu-me de Lisboa. As coisas agitam-se na Universidade”. E a seguir vão para Quipedro. Dá-nos uma imagem dos brancos da região, onde pululam comerciantes: “As faces deles. O ar coçado da pele, o olhar em frincha ou vítreo, de cerveja ou aguardente. Os magros chupados, prestes a desaparecer, atravessam a rua para beber ou pedem-nos para ir com eles à fazenda, os gordos, como o Rodrigues que emborca cerveja uma hora depois do almoço; o Rodrigues fala quicongo com precisão, faz contas dos sacos de café que vão sendo carregados, gosta de oferecer fruta à tropa, é respeitoso e empaludado crónico, contrasta com a mulher que arrasta a sua gravidez pela larga casa do patrão do marido (…) O Crispim, meio gordo, vesgo, ambicioso e malandro. O melhor dele são os discos de 78 com velhos fados de Coimbra”. Voltamos à menina capturada na operação: “Maria, a miudita que recolhemos na serra da Cananga, continua connosco. Vive ora com os soldados, ora com os sargentos e os oficiais. O Telmo comprou-lhe um vestido, o alferes Fonseca uns sapatos que a Maria não consegue usar. Faz recados e parece ter esquecido a mãe. Tem medo dos aviões. Logo que ouve o ruído de algum por cima da sua cabeça, corre a abrigar-se debaixo de qualquer coisa”.

As operações prosseguem, agora vão à mata do Quimisangue, não faltarão tiros, convém não esquecer que se está relativamente perto de Nambuangongo. Nas longas colunas, há viaturas de civis que dão o triste pio, quando o alferes sugere que se descarregue a carga, o proprietário responde apoplético que ali ninguém mexe, ela não ficará ali na picada, os turras irão queimá-la, como efetivamente irá acontecer, no regresso estava toda queimada, fumegava ainda, aqui e além. As colunas, sejam de abastecimento ou com intuitos militares, revelam-se um suplício, com descidas e subidas.

Estamos em Junho de 1962, Marcelo Curto anota no diário: “Cheguei de Negage no Dornier que procura terreno como cegonha hesitante. No Dornier que me trouxe vinham os últimos frescos: couves, carne. Bananas… Já não posso ver bananas”. Em Agosto, um acontecimento dramático, a morte de Paulo, aliás o livro será dedicado à memória de Paulo de Freitas Barros. Mas continua a estafadeira das operações, a coluna a subir a encosta, a verificar todos os vestígios de passagem, os carreiros batidos, a procurar linhas de água. O alferes aproveita as colunas e as viagens para conversar com os brancos, conhecê-los. É o caso de Raul, de que o autor nos deixa uma imagem impressiva:
“Beirão, viera para Angola ainda novo, com conhecimentos de mecânica de automóveis. Tinha-se empregado em várias casas, aperfeiçoando os seus conhecimentos. Hoje era um mecânico especializado na afinação de motores. Por que era hoje motorista que fazia fretes?
- Um sócio que me cavou com a massa. A oficina teve que fechar. Ficou-me só esta camioneta. Faço fretes e ganho a vida assim.
Por que não aquecera o lugar nas casas onde estivera?
E justiças e mais injustiças. Encarregados que não percebiam patavina de motores a quererem que eu fizesse o trabalho de certa maneira. Sobre os ajudantes da sua camioneta também fala da sua pouca lealdade. Que se vão embora quando calha”.

Tenho lido muitas obras que acabam abruptamente, esta é mais uma. Narra acontecimentos entre 1961 e 1963, são notas pessoais, registos de diário, páginas avulsas. O termo da obra respeita uma visita do Bispo de Malange. À frente vem o administrador falar com o senhor capitão, vem acompanhado do intendente que conta ao auditório o seu método económico de matar pretos, que usou no Uíge:
“- É claro que tínhamos que ser enérgicos… As munições tinham de ser poupadas. Havia que arranjar solução para os criminosos assassinos da nossa gente!
Aí, a solução final, o gueto de Varsóvia, os campos de exterminação!
- … as lagartas do Caterpillar, depois de fazer o buraco, voltava a passar-lhes por cima e depois a pá empurrava-os para a cova…
Fiquei suspenso, cara virada para as palavras.
- Claro que no início houve excessos lamentáveis, lamentáveis mas necessários.
- … mas a nossa educação, os nossos princípios cristãos, onde ficaram senhor intendente?
O tipo olha-me, é o bispo que responde:
Quem pode atirar a primeira pedra?”.

Um registo poderoso, e mais uma vez me questiono como é possível que um relato destes, seguramente um dos primeiros escritos por um oficial miliciano português no início da guerra de Angola permanece no limbo.
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Notas do editor

Último poste da série de 10 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19087: Bibliografia de uma guerra (93): “Tu não viste nada em Angola”, por Francisco Marcelo Curto; Centelha, 1983 (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

E claro grande BS, como em todos os relatos dos "excessos de 1961 em Angola", também este livro e este autor termina como todos os outros com o "poupar de munições", usando caterpilares, mas como outros autores, sempre por ouvir falar a terceiros... até parece que nesse tempo havia caterpilares a cada esquina.

Claro que naquele tempo e posteriormente ouviram-se coisas mais extraordinárias de poupanças de munições, tais como pegar turras num avião e lança-los no mar.

Aqui poupava-se balas, tempo, e os pilotos ainda somavam horas de vôo.

Que 61, 62 e 63 foram anos muito complicados, é absolutamente inegável, mas o maior problema foi a falta de preparação mais elementar de toda a tropa, desde os generais, 1 ou dois ou 3? até aos soldados que tinham feito um ou dois tiros nas carreiras de tiro, tal como eu próprio.

Um pente de mauser, 3 balas de parabellum, 5 balas de FBP.

Tinha sido a minha despesa em munições como recruta e CSM em Nova Lisboa uns meses antes do terrorismo.

Quando os camuflados chegaram em "Angola e em força" como este autor, surpreenderam pela bela farda, mas a preparação militar era mais ou menos a minha.

Mas a maior surpresa, para mim, foi um capitão acusar-me na minha cara de furriel, que ele estava ali, porque eu e todos os brancos em Angola, tinhamos andado a tratar mal os pretos.

A preparação desse capitão era mais apurada que a minha, mas pouco mais.