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sexta-feira, 28 de junho de 2024

Guine 61/74 - P25693: 20º aniversário do nosso blogue (17): Alguns dos melhores postes de sempre (XIII): na noite de 22 de junho de 1968, há 56 anos, Contabane transformou-se no inferno - Parte III: um texto antológico de Carlos Nery (ex-cap mil, CCAÇ 2382, Buba, 1968/70)


Carlos Nery, foto de perfil do
Facebook. Grande ator
da Companhia Maior




1. Texto soberbo, antológico, escrito com garra, raiva e objetividade, do  Carlos Nery Gomes de Araújo, o nosso Carlos Nery, ex-cap mil inf, CCAÇ 2382, Buba, 1968/70. 

Poucos dos comandantes operacionais, com apenas um mês de Guiné,  seriam capazes de vir a público dizer isto, no final de uma ataque devastador de 3 horas, uma experiência brutal para o Carlos Nery, os seus homens e o povo de Contabane :

 "As palavras soam-me tragicamente absurdas, 
sinto na garganta um aperto inenarrável e,
 com as lágrimas de revolta que me queimam a cara — as minhas últimas verdadeiras lágrimas —,
 sinto que muito de mim se perde, 
se perde irremediavelmente".







Noite Longa em Contabane

por Carlos Nery Gomes de Araújo


— Morteiro 60?

— Pronto, meu capitão!

— Lança-granadas?

— Presente!

— Dilagrama?

— Estou aqui!

Olhei os homens à minha frente. Trabalhadores rurais, pescadores, empregados do pequeno comércio ou indústria, estudantes.

— Meter uma bala na câmara!

O ruído das culatras das G3 introduzindo os cartuchos nas câmaras fez-se ouvir, áspero.

— Patilhas em segurança!

Os soldados obedeceram. Recém-chegados à Guiné, pouco familiarizados com as armas recentemente distribuídas, sentíamos os camuflados novos flutuando sobre a pele.

— Está «no ir»!

Procurando aparentar segurança, utilizei a expressão ouvida aos veteranos. O dispositivo desdobrou-se numa sinuosa e reticente «bicha de pirilau».

Passámos além dos homens que faziam rolar grossos troncos de palmeira para cobertura de mais um abrigo de combate ou que desenrolavam arame farpado concluindo uma segunda rede de protecção.

— Aumentar os espaços entre cada dois homens!

— Se houver contacto de fogo, não abrir de rajada! Sempre tiro-a-tiro! Disciplina de fogo!

As ordens passavam agora de homem para homem em voz baixa. Naquele início de comissão resumiam o essencial dos meus conhecimentos de contra-guerrilha. Com menos de um mês de Guiné e escassos dias na região do Forreá tudo nos parecia estranho e assustador. Fiávamo-nos nos conhecimentos de mato dos três caçadores nativos que nos serviam de guias (Caç Nat na documentação operacional).

Contabane, a tabanca fula à nossa guarda, ia ficando para trás.

Acordáramos sentindo o seu frémito de vida. As mulheres no pilão descascando o arroz para as refeições do dia, num ritmo marcado por bater de palmas e cantares, as crianças brincando, a ladainha na escola árabe, as saudações complicadas dos «homens-grandes» que indagavam uns dos outros o bem-estar de todos os familiares e animais domésticos.

Afastávamo-nos pois daquele agregado humano, das mulheres preparando as refeições, tratando dos filhos ou lavando a roupa na fonte, dos homens partindo para o trabalho em lavra próxima ou orando, prostrados no chão, virados para Meca.

Numa larga «pontuada» atravessávamos zonas de capim seco, de denso «mato escuro», enterrávamos as botas de lona nos cursos de água engrossados pelas chuvas que chegavam. Suspendo o movimento da coluna. O pessoal agacha-se no terreno, armas para fora, perscrutando o mato hostil. O calor é pesado. Desarrolham-se cantis, bebem-se curtas goladas. Moscas minúsculas bailam teimosas à nossa volta insistentes nos nossos ouvidos e olhos. O «ladrar» do macaco-cão ouve-se perto.

Vou à frente procurando aperceber-me da forma como é conduzida a coluna.

– Capitão, há aqui perto uma tabanca abandonada, podíamos ir ver...

Encaro o jovem Caçador Nativo. Apercebo-me que não possui, afinal, a experiência que a princípio lhe atribuíra. Sinto-o imaturo. Afinal um adolescente excitado por acompanhar a tropa, envergando camuflado igual e empunhando uma arma.

Uma tabanca abandonada. Não terá merecido a atenção do inimigo? Mas, nesta região para nós desconhecida, há que estabelecer contacto com o real.

– Vamos lá então ver essa tabanca.

******

Durante anos a guerra passara ao largo da região onde estávamos. No Quebo, baptizado pelos portugueses de Aldeia Formosa, residia o Cherno Rachid, chefe espiritual de vasta área que se estendia para lá da fronteira.

O PAIGC, atendendo, certamente, à sua presença, evitara levar ali a guerra. Mas a guerrilha era portadora de uma ideia nova que, como todas as ideias novas, vinha para dividir.

Os tradicionalistas agarrados a hábitos, costumes e cultura ancestrais recebiam-na com indisfarçável reserva. Outros, seduzidos por essa mesma ideia, desapareciam indo engrossar as fileiras do exército revolucionário.

– Isto é uma guerra entre casados e solteiros... Pessoal casado, com casa, com filhos, não pode deixar tudo.

– Rapaz novo pode abandonar... — dir-me-ia Amadu, milícia em Buba.

Mas, ao aceitar armas aos portugueses, os fulas do Forreá comprometeram a imagem de neutralidade até aí existente. O PAIGC, acusando-os, também, de veicular informações para a tropa, abriu então, violentamente, hostilidades contra as populações que haviam aceitado colocar-se em autodefesa.

Perante os ataques a Contabane e Mampatá 
[de 22 de maio e 11 de junho de 1968, respetivamente] e a emboscada a uma viatura em que são «apanhados à mão» vários militares portugueses e passados pelas armas alguns milícias considerados traidores, são deslocados à pressa efectivos para a área.

A companhia cujo comando me fora entregue, interrompeu assim o seu treino operacional em Bula, a norte de Bissau, e foi enviada para o Sul onde rendeu a 5.ª Companhia de Comandos que, na emergência, ali fora colocada dias antes.

Numa curva de mato denso surge-nos o que resta da tabanca. Naquela zona de África nada é perene. Os vestígios deixados pelo homem cedo são engolidos pela natureza estuante.

O colmo, que cobrira as casas, apodreceu, as chuvas desfizeram as paredes de adobe, a vegetação ameaça tudo invadir. Pretendo estabelecer uma meia-lua de segurança e efectuar um reconhecimento cauteloso. De súbito perco o controlo da situação. Os soldados descobrem, à entrada da tabanca, um renque de vegetação donde pendem, abundantes, ananases maduros e sumarentos.  As facas de mato brilham em movimentos rápidos e os bolsos dos camuflados enchem-se da dádiva inesperada.

Sinto o perigo desta quebra de disciplina, mas não tenho tempo para actuar. O rebentamento ecoa surdo e violento. Num ápice estamos cosidos à poeira procurando descobrir se somos alvo de algum ataque.

Ninguém se lembra mais dos ananases, embora alguns os sintam esmagar-se entre os corpos e o chão.

- Capitão! Capitão! — ouço num apelo lancinante.

Procuro descobrir donde vem o chamamento. Caído no caminho de acesso à povoação, rodeado ainda da espessa nuvem negra do rebentamento de uma mina, descubro o jovem Caçador Nativo que me sugerira «ir ver» a tabanca abandonada.

– Acode-me! Capitão, acode-me!

Vejo-o no seu desespero, sem o pé esquerdo, canela transformada em brutal flor de sangue.

– O enfermeiro! 

A ordem percorre os homens ainda de borco. A resposta chega-me a medo.

– Não veio...

Com os diabos, se há responsável sou eu! Como foi possível esquecer-me do enfermeiro! Ninguém se atreve, no receio de um campo de minas, a ir junto do ferido. Tenho que ir eu. Agarra-se a mim num desespero. Sinto os seus dedos enclavinhados no meu camuflado.

– Salva-me, capitão!

Puxo do meu penso individual de combate. À distância são-me atirados outros. E não sei — ai, não sei!, não, não sei! — como improviso um torniquete, como ligo aquela ferida absurda, descobrindo o que é o cheiro do sangue e sentindo o seu contacto viscoso e espesso nas mãos.

Uma porta meio queimada e duas G3 improvisam uma maca. Peço pela rádio a evacuação do ferido. Ouço, nítidas, interferências inimigas, na rede, utilizando os nossos indicativos.

Interrompo a comunicação. A tarde cai, os helicópteros não virão a esta hora.

Regressamos, em marcha acelerada, transportando o ferido, carregados de apreensão, no amargo daquele fim de tarde de Junho de 1968.

*******

O inimigo, ultimando a cuidadosa instalação para o ataque que viera fazer, viu ser arredado o cavalo de frisa colocado à entrada de Contabane e sair uma viatura a grande velocidade.

Assistiu ao seu regresso, transportando o ferido que, abandonados os cuidados da progressão a corta-mato, trazíamos pela estrada.

Viu também entrar a tropa apeada. Tudo observou sem se revelar. O planeado não sofria alteração, mesmo quando um alvo inesperado se oferecia a escassas dezenas de metros.

Instalar os canhões em posição de tiro direto, colocar-lhes junto as munições a utilizar, lançar um dispositivo de segurança, não é coisa fácil se se não quer ser pressentido.

Fizeram-no e aguardaram o sinal de iniciar o ataque.

******

Recebêramos, dias antes, a visita de Spínola. Acompanhado do seu séquito, descera dos helicópteros que haviam pousado numa aberta junto do arame farpado.

Camuflado de bom corte, botas de cabedal reluzentes, luvas negras, pingalim e monóculo penetrara na tabanca num passo rápido e decidido. As mulheres da população faziam adejar à sua volta lenços e panos coloridos. Afastou, com aparente desagrado, a manifestação de cortesia.

Vinham ainda longe os tempos da guerra psicológica e das suas tentativas de intervenção política «Por uma Guiné Melhor». Viera falar de guerra, com quem, em princípio, ali estava para a fazer.

Quis ser conduzido ao posto de comando, ser informado da situação. Fez perguntas de que conhecia, certamente, as respostas, tentando avaliar da minha capacidade para assumir a responsabilidade daquela posição tornada subitamente quente.

Por trás dele, Almeida Bruno fazia-me sinais encorajando as minhas respostas certamente pouco satisfatórias.

Carlos Nery (2010).
Nasceu no Funchal em 1933.
Aos 35 anos estava a comandar
um companhia operacional
na Guiné

******

Cumprindo, em tempo de paz, o meu serviço militar obrigatório, voltara a ser
chamado, dez anos depois, para frequentar um curso de comandantes de companhia em Mafra. À medida que a guerra se prolongava, mais escasseavam as «vocações» para a carreira de militar profissional. Nos últimos anos contavam-se pelos dedos de uma só mão o número de inscrições nos cursos das três armas em funcionamento na Academia Militar. Houve, então, que recorrer aos milicianos para assegurar o comando de companhias operacionais.

Abandonada a minha mesa de trabalho num banco da Baixa lisboeta, juntara-me a um grupo  
de «chefes de família», melhor ou pior instalados na vida,  que, não escondendo a suacontrariedade, iam ser preparados «à pressão»  para assumir
 o  comando de homens nas três frentes 
de combate em África.

Estranhamente, os nossos instrutores em Mafra só conheciam a guerra da leitura dos manuais ou dos relatos dos seus camaradas com experiência de combate.

Pertenciam ao curso do filho de um ministro de então e esta «coincidência» garantiu-lhes, durante anos, um estatuto de especialistas de contra-guerrilha sem nunca terem ouvido assobiar uma bala em combate.

Numa casa de colmo transformada em improvisado posto clínico, o enfermeiro dá soro ao ferido. Há que esperar pelo nascer do dia para proceder à evacuação.

– Um homem de cada abrigo vem buscar as terrinas com o jantar para o seu pessoal — ouço-me dizer, numa inspiração que vai poupar muitas vidas.

Tiro o meu dólmen suado e, de tronco nu, encosto a G3 e aceito um prato de sopa onde mergulho a colher.

Subitamente o lusco-fusco acende-se num turbilhão de fogo. De diversas direcções o inimigo abre o ataque com rajadas de bala tracejante apontada aos tetos de colmo seco das casas.

Em segundos o incêndio alastra por toda a tabanca em grossas labaredas crescendo para o negro da noite que desce. Os canhões sem recuo despejam toda a munição sobre nós. A seguir, os morteiros ajustam também o seu fogo.

Consigo atingir a posição do nosso morteiro 81. Abrigados no círculo definido por bidões cheios de terra, uma mulher com um filho de colo, três rapazitos tentando ajudar no manuseamento da arma coletiva, eu e o alferes Mendes Ferreira. Combatentes inexperientes, sem possuir ainda a serenidade que nos permita detetar a zona de instalação inimiga, inclinamos a olho o tubo e vamos introduzindo, uma após outra, as munições de que dispomos.

Encosto-me inadvertidamente ao tubo aquecido e sofro no peito um vergão de fogo.

Próximo, o paiol improvisado, onde depositáramos a dotação de munições da companhia, é atingido. Aos rebentamentos das granadas inimigas, junta-se o barulho indescritível dos cunhetes de cartuchos e de granadas rebentando em girândola infernal. Balas e estilhaços assobiam em todas as direções.

A nossa companheira do refúgio foge com o filho agarrado. Esgotadas as munições de morteiro, não faço nada ali e exponho-me a qualquer granada que possa cair próximo.

– Vou ver se encontro uma G3 e procurar atingir um abrigo de combate.

O alferes fará o mesmo, procurando outro abrigo. Corro para a cozinha de campanha onde vira uma arma encostada a um caldeiro. Agarro-a. Custa-me orientar na confusão em que tudo se transformou, perdidos os pontos de referência a que me habituei.

Abrigados junto de uma parede semidestruída, vislumbro os vultos do jovem guia dessa tarde e do furriel enfermeiro da companhia.

– Então, como está ele? — pergunto.

– Está porreiro, meu capitão, aguenta-se!

Corro, curvado, para o abrigo que me parece mais exposto ao fogo do inimigo, esperando poder ter aí algum controlo do que acontece à minha volta.

O meu vulto iluminado pelo clarão do incêndio é alvejado. Ouço as balas assobiar à minha volta. Enfio-me no abrigo cavado no chão coberto de troncos de palmeira e de terra batida, extensa abertura permitindo a utilização de armas individuais.

Os homens lá dentro reagem de maneiras diversas. Há quem combata, mas há também quem chore ou reze no chão. Vou para a seteira e incito estes últimos a combater também.

– Estamos a pôr balas nos carregadores... — ouço a justificação frouxa.

O espaço em frente, fortemente iluminado pelas chamas do incêndio que lavra nas nossas costas, é varrido pelos nossos olhos assustados. Sinto, mas sinto claramente, os dentes baterem enquanto disparo, dois tiros rápidos e pausa, em resposta aos clarões das armas inimigas, em frente.

Em combate noturno fazer fogo é revelar a nossa posição, é dos livros e facilmente comprovável agora. Por outro lado, no escuro, não se vê o ponto de mira da arma, pelo que não é fácil fazer tiro com um mínimo de precisão. Ah, quem tivesse previsto a situação e posto ali um pingo de tinta branca!

Os pensamentos sucedem-se, caóticos. E se eles vêm ao arame farpado? Se o ultrapassam nalgum ponto e se se aproximam do abrigo introduzindo-lhe uma granada de mão?

Julgo ver vultos deslocando-se em direcção ao abrigo. Saio de arma em riste. São vacas que correm em pânico entre as duas fiadas de arame, acossadas pelo fogo do combate.

Volto a entrar. Não sei se consigo sorrir do meu susto. O Boiça, sargento da companhia, desloca-se de abrigo para abrigo substituindo comunicações que desapareceram no incêndio e na confusão.

– Há mortos?

– Não, meu capitão. Só alguns feridos... Há abrigos atingidos por morteiradas, mas aguentaram. Quer que transmita algumas instruções?

– Evitem o tiro de rajada. Respondam aos disparos inimigos com séries curtas de dois ou três tiros. E você não ande para aí a expor-se inutilmente.

– É só levar um pouco de ânimo ao pessoal, capitão, e ver se há falta de munições nalgum abrigo.

O perigo da situação residia, efetivamente, em ficar-se sem munições ou encravarem-se as armas se demasiado aquecidas em resultado de uma utilização sem critério.

O aparente enfraquecimento da nossa resposta encoraja uma tentativa de assalto que é repelida pelo aumento de intensidade dos nossos disparos.

A poderosa tempestade africana chegou, subitamente, feita de grossas cordas de água, relâmpagos e trovões assustadores.

O incêndio extingue-se e, agora, só a luz dos relâmpagos permite vislumbrar a faixa de terreno que nos separa dos atacantes. Em breve, a água acumulada no fundo do abrigo atinge os nossos joelhos.

O fogo dos canhões e morteiros suspende-se, finalmente, substituído pelo das armas individuais que redobra de intensidade.

Sinal de retirada, viríamos a saber.

******


Clareia o dia.

Dos abrigos e da mesquita árabe — único edifício de tijolo, cimento e cobertura de zinco — saem militares e elementos da população observando as consequências do ataque.

O incêndio, os impactes dos projéteis inimigos, tudo reduziram a ruínas.

Fatumatá, mulher grande do régulo Sambel 
[foto acima, de 2005] (*),  apoia-se no meu braço e chora em silêncio. Rapazitos vasculham procurando entre as cinzas objetos que satisfaçam a sua cobiça.

Comenta-se a precisão e a violência do ataque, contam-se os impactes dentro do recinto defensivo, avaliam-se os prejuízos materiais.

A preocupação maior, porém, são os nossos feridos. Além do Caçador Nativo, vítima da mina antipessoal acionada na véspera, há mais três soldados feridos com gravidade e três civis atingidos.

O reconhecimento às posições inimigas, surpreendentemente próximas do arame farpado, revela sinais de corpos arrastados e, apesar da chuva abundante que caiu, vestígios de sangue.

******

'Nino', comandante da Frente-Sul, o combatente lendário, cruza a fronteira à frente dos seus homens, terminada mais uma missão.

Encharcados pela chuva, carregando canhões e morteiros, os guerrilheiros sentem, também, a dureza da guerra, dureza traduzida nas baixas sofridas. Uma vez mais tinham tomado a iniciativa, ocupando posições necessariamente mais expostas do que as da tropa instalada defensivamente, e isso tinha o seu preço, também.

******

Estamos isolados em resultado da destruição de todo o material rádio. Por outro lado, o improvisado posto clínico desapareceu, não dispondo nós, sequer, de meios mínimos para primeiros socorros.

Um civil oferece-se para levar uma mensagem ao quartel mais próximo utilizando a sua bicicleta. Não é necessário.

Somos sobrevoados por jatos da Força Aérea e, pouco depois, dois helicópteros pousam na periferia da tabanca.



A então ten enf pqdt Ivone Reis
 (1929-2022),
em Cacine, 12/12/1968. 
Foto: António J. Pereira
da Costa
 (2013)



Envergando o seu camuflado de paraquedista, adianta-se uma mulher:

– Os helicópteros vão levar os feridos ligeiros a Aldeia Formosa, regressando imediatamente para recolher os mais graves que vão comigo para Bissau. Embora tenha ordens para nunca ficar em terra, vou abrir uma exceção e espero aqui com vocês.

Junto das quatro macas alinhadas no cenário desolado, contra o céu azul da manhã, Ivone, a enfermeira paraquedista, é oficiante de um ritual rigoroso. Frascos de sangue vermelho-negro levantam-se ao céu,  facilitando a passagem do seu conteúdo para as veias dos feridos.

Paro junto do soldado Fortuna, atingido na cabeça por um estilhaço de granada que atingira o seu abrigo.

– Para vocês “isto” acabou. Vais voltar para a terra, até é melhor... 
 ouço-me dizer.

Será evacuado para o Hospital Principal em Lisboa. Talvez tenha terminado a guerra para ele. A que preço?

Ajoelho junto do jovem africano, pouso a mão na sua cabeça, enquanto procuro palavras de conforto:

– Vais ser bem tratado, a tropa não te esquece. Vais para o hospital, vais ter um pé novo, ninguém vai notar a diferença.

 
As palavras soam-me tragicamente absurdas, sinto na garganta um aperto inenarrável e, com as lágrimas de revolta que me queimam a cara — as minhas últimas verdadeiras lágrimas —, sinto que muito de mim se perde, se perde irremediavelmente. 

Carlos Nery Gomes de Araújo (**)

In Memórias da Guerra Colonial, volume 2: carne para canhão.
 S/l, Andrómeda Publicações, 1984, 158 pp.


(Revisão / fixação de texto, negritos, para efeitos de publicação deste poste: CV/LG)

__________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 9 de novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7252: (In)citações (18): Branco, na volta! Branco, na volta!, repetia a Fatumatá em 2005... Com a sua morte perde-se um elo de ligação com os portugueses que passaram pelo regulado de Contabane (José Teixeira)

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23938: Notas de leitura (1539): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
É inequívoco que o coronel Luís Cadete não incorre na prosápia de escrever memórias para as candeias da História, o que ele nos lega é uma diversidade de situações que ajudam a iluminar uma importante região da Guiné em guerra, num período que vai de 1966 a 1968. Creio que é a primeira vez que temos uma água-forte de Mejo e a sua importância no chamado corredor de Guileje onde, igualmente, se irá implantar, no final da governação de Schulz, o octógono de Gandembel; dá-nos o conhecimento das etnias ali conviventes, nesta vasta região onde ele fala de Aldeia Formosa, de Fulacunda, de Buba, das operações de reabastecimento e das singularidades do dia-a-dia. Confessa abertamente que nutria um certo desdém por certas chefias, faz brilhar gente valorosa, heróis anónimos, e sabe prender a nossa atenção em descrições manifestamente dolorosas, como veremos mais adiante, com o incêndio de Contabane, não poupa críticas ao então comandante-chefe, Spínola, pelo abandono daquela posição. Ainda há muito mais para dizer. Teimo que este livro merece muito mais do que a curtíssima edição que lhe destinaram.

Um abraço do
Mário



Muita atenção, há aqui páginas que passarão à posteridade, temos Mejo na literatura! (2)

Mário Beja Santos
Coronel Luís Carlos Loureiro Cadete, ontem e hoje

A
obra intitula-se "Noites de Mejo", o autor assina Luís Cadete, viremos a saber que de seu nome completo é Luís Carlos Loureiro Cadete, foi comandante da CCAÇ 1591, a quem também dedicou o livro, conjuntamente com os seus soldados guineenses. Escreveu estas histórias em 2016 e publicou-as em 2022, edição de autor com produção da Âncora Editora. Deu algum trabalho chegar ao livro, que não está no circuito comercial, o que é profundamente de lamentar, há aqui páginas admiráveis, não faltam tiradas bem urdidas de tragicomédia, revelando ternuras da aculturação, a vida dura num dos pontos mais ásperos que a guerra da Guiné ofereceu aos militares portugueses.

São histórias soltas, como diz o autor, “fruto das minhas recordações e de conversas tidas com camaradas em volta da mesa”, e não será por acaso que se cita Eça de Queiroz: “Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia”, isto para recordar que nem sempre estamos em Mejo, saltitamos por vários lugares, aliás a estadia em Mejo não chegou aos 9 meses, e vale a pena recordar que muito mais tarde (1988-1991) Luís Cadete desempenhou funções como Adido de Defesa junto das embaixadas de Portugal em Bissau, Dacar e Conacri.

Privilegio algumas das suas descrições, pelo rigor e luminosidade. Um exemplo:
“É Buba uma quase península nas cabeceiras do Rio Grande de Buba, vasta massa de água salgada que ali chega, em sucessivas e intricadas ramificações, vinda do mar.
Sede do comando do Batalhão, tinha anexa uma tabanca com numerosa população que vivia da pesca e de serviços prestados à tropa ali aquartelada.
Militarmente, estava exposta à observação e ao tiro direto do inimigo, facto assombroso que constituía um violentíssimo pontapé nas normais mais elementares da Tática.”


Não esconde juízos implacáveis a comportamentos de seus superiores, como escreve a propósito da visita do General Schulz a Aldeia Formosa, sai do helicóptero e conversa com a figura grada da população civil, o Cherno Rachide Djaló, este apresenta-se imponente na sua elevada estatura, de balandrau e solidéu imaculadamente brancos, o governador pergunta a esta entidade espiritual o que é que o povo da Aldeia Formosa precisa, Rachide Djaló responde em Fula: “Havia aqui, antes da guerra, um posto sanitário e uma maternidade que foram fechados sem o povo perceber qual a causa. Precisamos muito do posto e da maternidade a funcionarem e precisamos também de escola para os meninos. Queremos que nos mandem professores, mas não padres, porque já temos religião. A tropa desta companhia fez um posto médico na tabanca, com camas da tropa, mas não chega; precisamos de médico. É isto que nós precisamos.”

É igualmente preciso a falar da topografia de Mejo e vizinhança:
“Sobe-se para o planalto a partir da bolanha do lado de Mejo, por uma rampa curta, mas íngreme, que dá acesso a uma reta que desemboca diretamente na pista da tabanca e aquartelamento de Guileje.
Daqui desce-se, suavemente para o entroncamento desta estrada com a que vem de Gadamael Porto e segue para a chamada Ponte do Balana, nome do curso superior do rio Cumbijã, a Norte; do topo da pista oposto a Guileje, que se desenvolve num esporão do planalto, desce-se para as numerosas e labirínticas ramificações do rio Cacine de densa vegetação, a Sul; para Norte, coberto de mato denso, estende-se o planalto cortado pelo Cumbijã do qual se sobe, de novo, para outra zona planáltica onde se situam Contabane, Aldeia Formosa (Quebo) e Mampatá.
À esquerda de quem desce para o cruzamento, a cerca de 300 metros, encontra-se uma nascente onde a Companhia de Guileje se abastecia de água e que também dessedentava grupos de terroristas que por ali passavam.”


As suas memórias, inevitavelmente, também se orientam para aqueles episódios burlescos que mais ou menos quem esteve no mato provou, caso do aparecimento repentino da cobra, a bravura anónima de um bazuqueiro, o desespero de se chegar ao quartel e se descobrir que falta uma secção, o caricato de certas reuniões com o corpo do Estado-Maior, com as suas ninharias e inequívoca falta de conhecimento do terreno, a chegada de um oficial do quadro permanente que vinha confortado com gira-discos e canções da moda, os desastres do fornecimento, em que se pedia x de uma quantidade de carne de vaca e apareceram 50 quilos de queijo flamengo, as teimosias do régulo Sambel Baldé, de Mampatá Bacirgo que não tinha problemas de passar a fronteira e punir quem lhe vinha beliscar a vida no regulado. Histórias muito bem contadas que deliciarão não só os antigos combatentes.

Mas vê-se que o autor tende prescrever águas-fortes de locais por onde passou, e dá-nos informações cuidadas, extremamente úteis para quem vier a fazer a historiografia de todos estes locais por onde a guerra grassou e como cada um se posicionou:
“[Quebo] Região eminentemente Fula há vários séculos, nela pontificava o velho régulo Baró Baldé cujo irmão, Leonel, era professor primário, lecionando na residência a expensas suas. Era também sede do chefe espiritual da nação Fula, o famoso e muito respeitado Cherno Rachide Djaló, homem entendido nas coisas do Corão. Quanto mais não fosse, só por isto, Quebo era terra importante, até do ponto de vista estratégico, na guerra que se travava na Guiné.
Naquela vasta e importante região que se estendia, a Sul do rio Corubal, entre os limites ocidentais do regulado de Mampatá e a fronteira com a República da Guiné, vivia-se, nessa altura, em paz. Dizia-se, lá pelos QG de Bissau, e não só, que essa se situação se devia à presença de tão prestigiada figura, mesmo além-fronteiras, como era o Cherno Rachide Djaló. Dizia-se que atuar na citada região seria prejudicial à estratégia do PAIGC. Ou seja, o Cherno era um dos elementos da estratégia do comandante-chefe para a região. Daí, quiçá, os fracos meios atribuídos. De resto, os quadrilheiros do PAIGC só atuavam, ocasionalmente, no regulado de Cumbijã, mais próximo do rio do mesmo nome, a Sul.

Mas nem todos acreditavam naquela interpretação, e com razão como se viu em finais de 1968, durante o consulado do general Spínola. E os primeiros a não acreditarem naquela interpretação eram os régulos, nomeadamente o de Contabane.
E tinham razão para tal.
Como muito bem sabiam as altas-chefias, porquanto as informações fluíam dos régulos e do Cherno para o comando de Companhia e deste para os escalões superiores, há muito que os terroristas, ao mais alto nível político-militar, rondavam a zona para lá da fronteira, reconhecendo o terreno em busca do melhor sítio para se instalarem.”


O autor, quando necessário, não deixa de referir o horror e os padecimento da guerra, caso daquele furriel B, dotado de espírito de missão que fora apanhado em cheio pela deflagração das granadas e projetado de costas alguns metros de distância: “A calote craniana saltara-lhe da cabeça, deixando entrever a massa encefálica; no trono eviscerado, apenas o coração teimava em pulsar pendurado da aorta; dos braços, apenas os úmeros, descarnados, recordavam terem existido ali os membros superiores, enquanto as artérias femorais, meio desbridadas, esguichavam qual repuxo num filme de terror.”


O capitão Nuno Rubim, nosso confrade, comandante de Companhia em Guileje, 1966
Aldeia Formosa em tempos de guerra, com a pista de aviação ao fundo. Com a devida vénia a José da Mota Vieira
Cherno Rachide, Aldeia Formosa, 1973, festa Fula da matança do carneiro, fotografia do nosso estimado confrade Vasco da Gama, ele está perto dessa grande figura espiritual

(continua)
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Nota do editor

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Último poste da série de 30 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23930: Notas de leitura (1538): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (10) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 27 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22408: Estórias do Zé Teixeira (49): Um dia de festa em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381)

Em mensagem do dia 23 de Julho de 2021, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos mais um dos seus contos, para a sua série "Estórias do Zé Teixeira":

Caros camaradas Luís e Carlos.
Está a chegar o tempo de férias, nada como um alegre conto para desanuviar.

Com votos de muita saúde, abraça-vos o
Zé Teixeira


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UM DIA DE FESTA EM TEMPO DE GUERRA

Naquele princípio de noite de quinta-feira, o alferes notou que algo de anormal estava acontecendo na tabanca. Do Iero, apenas recebera um alegre sorriso, quando o interpelou sobre o que estava acontecendo com a população. As mulheres andavam num algaraviado rodopio, as bajudas passaram a tarde no “cabeleireiro”, apresentando-se com belos e inabituais penteados, os homens, como de costume, tagarelavam animadamente debaixo ao majestático poilão, que o alferes já fora tentado a abater, pois considerava que era um excelente ponto de mira para o inimigo e se ainda não o destruíra foi pelo respeito que lhe merecia aquela simpática gente. A sua frondosa sombra era a sala de honra onde os homens grandes se reuniam e tomavam as decisões importantes para a vida comunitária local, o salão de festas comunitário, a escolinha onde as crianças, sentadas no chão, ouviam o mestre, na sua aprendizagem corânica.

Ao apreciar esta azáfama deixou-se invadir por um sentimento de felicidade. A sua tabanca estava viva e ativa. Adorava aquela gente, o seu calor humano, os sorrisos que recebia e lhe preenchiam a alma. Havia um inimigo por perto que a todo o momento podia surgir e quebrar aquela harmonia, pelo que se decidiu a visitar, ao cair do sol, todos os abrigos e postos de sentinela e recomendar aos seus homens uma especial atenção para a noite que se aproximava.  

Como era seu hábito ficava uns minutos largos numa silenciosa cavaqueira com cada militar em serviço de vigia e proteção, pelo que recolheu ao seu leito, um pouca tardiamente, depois de se refrescar à moda fula, com umas latadas de água colhida no bidon que tinha à porta da casa.

Sexta-feira, manhã cedo, foi acordado por uma voz feminina que o chamava docemente. "Aferes! Alferes, vem, quero falar contigo!"

Não reconheceu a voz de quem o estava a chamar. Olhou para o relógio, eram sete horas. Voltou-se para o outro lado e deixou-se ficar decumbente a saborear a manhã que se avizinhava bem cálida. Mas a voz insistiu; "Alferes! alferes vem falar comigo! Sou a Djubae, a mãe do Adulai, o teu menino."

Levantou-se célere, enfaixou-se na toalha de banho e abriu a porta. Habitava uma casa típica local que lhe fora cedida pelo Iero. As paredes em cana entrançada recobertas de barro vermelho, encaixavam-se num chão térreo cobertas de palha de capim, que ladeava a casa até a um metro do chão providenciando ao espaço interior uma agradável frescura. Inclinou-se para passar a umbreira da porta e deparou com a Djubae toda aperaltada, com bonito vestido que lhe realçava a juventude e a beleza, com um lenço de seda pura na cabeça.

 Impulsivamente deixou-se espreguiçar enquanto o pensamento lhe devolvia o que tinha apreciado na tarde anterior e pensou: "A festa vai continuar… que se passará com esta gente, meu Deus!?"

- Alferes, o Adulai vem convidar-te para a sua festa!
- Que festa?  - questionou, esfregando os olhos ensonados a precisar de uma chapada de água fresca para acordar.
- Hoje, a tabanca tem festa grande. Allah, louvada seja Ele, deu o dom da vida ao meu menino. Vem visitar-nos o grande Cherno Rachid para fazer oração a Allah o misericordioso, louvado seja Ele.  
Queremos que venhas à festa do Adulai -  disse, num ato repentino como que a despejar um recado que lhe avassalava o coração e se atrofiava na garganta.
- Hum! mas… O Cherno Rachid vem cá e vocês não me informaram para eu criar condições de segurança. Vou ter uma conversinha com o Iero!
- Tem calma, alferes, o Aldje Cherno Rachid pode viajar por toda a Guiné sem risco de vida. É muito respeitado, até pelos bandidos que estão no mato. É um escolhido de Allah e só Allah é Deus protetor e misericordioso - disse calmamente, enquanto pegava na mão do alferes e a encostava ao seu coração.
- Djubae! Djubae! Faltavas tu para prenderes ainda mais o meu coração a esta terra maravilhosa, a esta gente de coração puro, que não merece a pouca sorte a que está votada. Maldita seja a puta da guerra! - vociferou aturdido pelo mavioso convite que acabara de receber. 

Uma lágrima libertou-se do seu coração e escorregou-lhe pela face duramente queimada pelo agreste sol africano. Lágrima que a Djubae recolheu religiosamente na manga do seu vestido domingueiro.
- Vai, disse meigamente o alferes, beijando ternamente a mão da Djubae. Eu não demoro. Quero alimentar-me do vosso júbilo, da vossa enorme vontade de viver. Vai, minha querida!

…E chegou a hora da festa, chamemos-lhe de batizado, para melhor compreendermos o grande significado que tem, para este povo, a entrada na comunidade de uma nova vida.

Em tempo de guerra, não é aconselhável usar o “bombolom” ou os “tam tam” para fazer o aviso e lançar o convite para a festa. Todavia, a tabanca enchera-se de caras que o alferes Barbosa não se lembrava de ter visto por ali. Os homens da terra e das tabancas vizinhas, vestidos de longa batina branca, com a cabeça coberta, solenemente sentados à sombra do poilão aguardavam a chegada do idolatrado Cherno Rachid, emblemático líder religioso a quem toda a Guiné muçulmana independentemente da opção político-militar, se curvava em respeito pelos seus profundos conhecimentos corânicos e pela sua forma de ser e estar no quotidiano da vida. Esta forma de viver tornara-o no homem de Deus mais respeitado em toda a Guiné e até países limítrofes, a quem o Governador da Província se inclinava com respeito e ousava consultar sobre os grandes problemas. Pelas mesmas razões era respeitado pelo bureau político da PAIGC e considerado intocável, pelo que se movia em paz pelas meandrosas picadas da Guiné, sem correr riscos de vida.

As mulheres grandes, aformoseadas nos seus trajes típicos, linguarejavam ruidosamente, sempre com o olho fixo na picada de onde surgiria o homem de Deus, enquanto a juventude se divertia a seu modo aguardando o momento mais solene.

O alferes José Barbosa sentado em lugar de honra no meio dos homens, ao lado do felizardo pai do Adulai, ouvia as conversas em linguagem crioula sobre o passado, o presente e o futuro da Guiné, tentando, nos seus parcos conhecimentos linguísticos locais, compreender de que falavam. O sentimento que tivera de se sentir a mais naquele meio desvanecera-se rapidamente. Sentia-se envolvido por um ambiente de bem-estar. Era como se fosse um filho da terra. Um estranho filho da terra.

Ao verem ao longe, no carreiro, a onda branca com o séquito do clérigo, gerou-se um alvoroço espontâneo. 

Dois jovens, engalanados com os mais belos trajes e pinturas guerreiras pelo corpo, munidos de estridentes assobios e braceletes musicais, agarraram os seus tambores, o djembé e o bougarabou, e prepararam-se para iniciar a festa.

Quatro bajudas entre elas a Binta, aproximaram-se dos pilões e tomaram nos macetes, colocando-se em posição de começar a ação de pilar do arroz.
 
O artista convidado afinava o Kora, um instrumento musical feito de madeira ou bambu com ranhuras transversais e uma caixa de ressonância obtida de uma cabaça partida ao meio. Instrumento de origem mandinga que gera uma musicalidade divinal, o que vai dar mais vida à festa do Adulai.
 
O recém-nascido vestido apenas com o fato que a natureza divina lhe dera, é colocado no colo do avô, que tira do bolso uma farpa acastanhada de vidro, arrancada, talvez, de uma inútil garrafa de cerveja. 

-O açougueiro segura,pelo pescoço, o carneiro que vai ser sacrificado em honra do glorioso, o senhor supremo do Universo, louvado seja Ele. Uma naifa afiada na mão espera pacientemente.
 
A mulherada faz então uma longa roda que envolve todo este ambiente, fechado num silêncio espontâneo e expectante. Convidativo à meditação sobre o valor de uma vida. Uma vida humana que nasceu para ser feliz. Merece ser feliz.

O Califa, depois de ser cumprimentado religiosamente pelos presentes, entra no recinto, abre os braços aos céus e começa a orar.

Momento mágico para os olhos e coração do alferes que vê soltarem-se as mãos das bajudas, dos tocadores de batuque, das mulheres, de toda a gente, até do velho avô que começa a rapar com o vidro da gasta garrafa de cerveja, o cabelo negro do bebé Adulai, enquanto o carneiro dá o seu ultimo mééé´!.

O início da festa que irrompe ritmadamente ao som do bater do pilão, dos toques e assobios dos tamborileiros, acompanhados por dezenas de mãos a baterem palmas, com os corpos a gingarem num frenesim e as vozes num harmonioso coro de louvor a Allah, o Criador. Não faltou o acender da fogueira com a panela devidamente colocada pelas ágeis mãos das cozinheiras de serviço. Tudo, num simultâneo festejar da vida do Adulai.

A sonoridade do macete a bater no pilão, alimentado pela cantilena mais linda, que o alferes jamais ouvira, ritmada pelo bater de palmas das suas jovens manobradoras numa cadência alucinante, com os seios, o mais belo símbolo da sua feminilidade, a acompanharem o bailado, revolvendo-se majestaticamente nos seus bronzeados corpos a pingar longas gotas de suor. Um espetáculo divinal, a que aqueles sons arrancados vigorosamente do fundo dos tambores, alimentados pela musicalidade do korá, com o seu toque especial, davam vida e cuja mensagem não conseguia interpretar. 

Tudo isto transporta o alferes Barbosa ao seu Portugal, à sua terra, o Minho das desfolhadas, dos bailaricos animados pela viola e pela concertina, das cantigas ao desafio, deixando-o por momentos perdido na saudade que o devorava.

Procurou o olhar da Binta, mas não o encontrou. Queria suavizar a dor que lhe ia na alma, lado a lado com a alegria de estar ali, a viver com o seu povo (assim o considerava) uma festa tão linda. Precisava de esquecer, nem que fosse por momentos, a sua aldeia natal, nos braços da mulher africana que lhe prendera o coração.

A Binta sentia-se aturdida. Faltava-lhe o seu Braima, que tantas vezes animara festas como esta. Agredia o pilão com raiva desmedida, enfiada dentro dela, cantando sem nexo. O seu coração bailava longe dali. Como ela adorava tê-lo por perto, para lhe transmitir num olhar sereno todo o afeto que lhe enchia a alma. Talvez não estivesse distante assim, pensou, tentando consolar-se. As boas notícias voam rapidamente… perdeu-se no ritmo da festa e continuou a cantarolar, olhando de través para o alferes de quem gostava, mas não se prendia de amores. A vida continuava, mesmo com seu o Braima escondido na mata, não a podia perder.

E assim se passou a manhã, enquanto as mulheres e bajudas davam o seu passo de dança típica e se libertavam dos maus irãs, os homens alinhavam em conversas soltas, até que chegou a hora do almoço. Homens a um lado, mulheres a outro, algumas com as suas crianças. Grandes bacias cheias de arroz e pedaços de cabrito envolvidos em saboroso molho de chavéu, são espalhadas no recinto.

 Aninhados no chão, depois de lavarem as mãos, os convidados banqueteiam-se calmamente conversando de tudo e nada, porque o importante é viver o momento.

Para o alferes reservaram uma pequena bacia de arroz, com a melhor tranche de cabrito e uma colher, que o Barbosa recusou preferindo aninhar-se junto do Iero e partilhar do almoço comum, para alegria dos presentes que o acolheram com um rasgado sorriso de contentamento.

A tarde foi serena. Alguma música e muita conversa. Os visitantes aproveitaram para, em convívio, trocarem ideias, recordarem velhos tempos, projetarem o futuro.

E foram partindo discretamente antes que o sol se escondesse para além da mata

A chegou a noite. Voltou o silêncio. Voltaram os medos.

O Alferes foi ter com os seus homens. Em cada posto de sentinela uns olhos vigilantes espreitavam o futuro.

Sábado seria um novo dia.

Zé Teixeira

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE DEZEMBRO DE 2018 > Guiné 61/74 - P19325: Estórias do Zé Teixeira (48): "Um Novo Natal" (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15556: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (50): Na minha língua materna, o fula, não existe a expressão "Feliz Natal"... Mas felizmente que a Guiné-Bissau é um país de tolerância religiosa, em que as duas religiões monoteístas, Islamismo e Cristianismo, coexistem bem com o animismo


Guiné-Bissau > Bissau >  2004 > Festa do Tabaski (ou do carneiro) (em árabe, Aïd el- Kebir ou Aïd el-Adha) > O nosso grã-tabanqueiro Cherno Baldé com os seus 4 filhos...  A festa do Tabaski (designação corrente nos países de forte tradição muçulmana da África ocidental)  é, a seguir à festa do fim do Ramadão, a mais importante do Islamismo, equivalente ao Natal cristão. A data é variável, em 2015, foi a 24 de setembro.

"Segundo o Islamismo, o filho herdeiro de Abraão foi Ismael e não Isaac. Esta festa é a comemoração do Livramento, do filho de Abraão que foi substituído por um cordeiro no momento exato em que seu pai iria sacrificá-lo, em obediência ao Senhor. Esta providência divina livrando (segundo o Islão) a Ismael, pai da nação árabe e antepassado do profeta, é lembrada anualmente por todo o povo muçulmano, como a Festa do Sacrifício ou a Festa do Cordeiro." (Fonte: Ordidja)

Foto: © Cherno Baldé (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legenda: LG]



Guiné-Bissau > Região de Bissau > Tabatô > 28 de Novembro de 2009 > A cerimónia do Tabaski... em que pela primeira vez participaram três europeus, não-muçulmanos, duas portuguesas e um espanhol... Uma das portuguesas foi a Catarina Meireles, médica, antiga aluna do nosso editor Luís Graça e amiga do nosso grã-tabanqueiro João Graça... Nesta foto temos uma vista geral da assembleia, durante a cerimónia do Tabaski, na aldeia mandinga de Tabatô, a escassos 10 km de Bafatá, na estrada Bafatá-Gabu. É a terra do nosso grã-tabanqueiro Mamadu Baio, ator e músico. (*)

Foto: © Catarina Meireles (2010). Todos os direitos reservados[Edição e legenda: LG]


1. Mensagem, de 29 do corrente, do nosso amigo  Cherno Baldé em resposta a um pedido do nosso editor ("Eh!, Cherno Baldé, aí em Bissau, bom dia!... Como se diz 'Feliz Natal'  na tua língua, em fula ?") (**)

Bom dia, amigo Luis! Que a paz esteja contigo e que tenhas um feliz Natal junto a familia.

Na minha lingua materna (Pullar), não existe a expressão "feliz Natal" porque o Natal é uma invenção recente, histórica e religiosamente falando, pois fosse mais antigo seria aceite e incorporado nas festividades religiosas muçulmanas porque o Profeta Mohamed sempre se via como o Profeta da continuidade das duas grandes religiões monoteistas anteriores e não enveredou pela ruptura, mesmo se os 'Surats' chamados de Medina são muito críticos em relação aos Cristãos e sobretudo aos Judeus que a habitavam e que estavam relutantes em o reconhecer como verdadeiro profeta e acima de tudo unificador.

Mas, ser Guineense significa, de uma certa forma, situar-se um pouco no meio das duas religiões e sobretudo solidarizar-se com os irmãos das outras confissões o que, penso eu,  representa uma particularidade específica da Guiné-Bissau, país onde a maioria muçulmana nunca esteve em confronto com a minoria cristã e onde os adeptos das religioes monoteístas nunca estiveram muito afastados das práticas e cultos animistas.

Esta convivência pacífica, em parte, é uma herançaa e resultou da prática colonial que ao mesmo tempo que promovia a religião cristã no seio dos povos do litoral animista e anti-colonial, era obrigada a colaborar com os muçulmanos por força da sua moderação e aliança no seio do "pacto colonial".

Já deixei os meus contactos para um possível encontro com o João Martel e a Ana Maria Gala [, voluntários na Missão da Cumura].

Para si e a todos os editores, assim como todos os restantes Régulos, Almamis, Conselheiros e Djargas da Tabanca Grande os meus votos de um bom e excelente novo ano, cheio de prosperidade, saúde e longa vida.

Um abraço amigo de muita saudade desde Bissau (Guiné-Bissau).
Cherno A. Baldé, Chico de Fajonquito

PS - Sobre o que disse antes, queria acrescentar o facto amplamente conhecido de que o venerando Cherno Rachid de Quebo (Aldeia Formosa) era um dos mais bem escutados Conselheiros do gen Spínola durante todo o período que esteve na Guiné como Governador e Com-Chefe da Provincia e, certamente os dois se terão influenciado mutuamente, facto que vem reforcar a tese da convivência pacífica.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 8 de julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6695: Memória dos lugares (89): Bafatá, Tabatô, Tabaski 2009: Não há preto nem branco, somos todos irmãos, disse a Fátima de Portugal numa cadeia de união... (Catarina Meireles)

 (**) Último poste da série > 1 de agosto de 2015 >  Guiné 63/74 - P14956: Relativamente ao desaparecimento do Alferes Leite, trata-se de um caso do qual ouvi falar desde a minha infância (Cherno Baldé)

domingo, 11 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14138: História do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (António Duarte): Parte XX: setembro de 1973: (i) declaração unilateral da independência; (ii) início do Ramadão: o Islão como forte barreira antissubversiva; (iii) propostos como candidatos a peregrinação a Meca os régulos do Xime e Badora; (iv) morte do Cherno Racide, e AldeiaFormosa





Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) >  Julgo que  estas imagens têm alguma coisa a ver com a visita que o Cherno Rachide fez a Bambadinca, no meu/nosso tempo (c. 1970)...Infelizmente as fotos do meu camarada Arlindo Roda não trazem legenda (nem data)... ... A personagem central, vestida de branco e "gorro" preto, que parece estar a presidir a uma cerimónia religiosa islâmica,  pode muito bem ser o Cherno Rachide que eu conheci em Bambadinca... 

Recordo-me de as NT lhe terem armado uma tenda, no recinto do quartel de Bambadinca, para ele receber condignamente não só as autoridades locais, civis e militares, como também os seus fieis...  Ele virá a falecer, em Aldeia Formosa, em setembro de 1973. O Cmnd do BART 3873 organizou uma coluna de transporte (!) para os seus fiéis poderem ir prestar-lhe a última homenagem em Aldeia Formosa!,,,  No meu tempo, o troço Saltinho-Aldeia Formosa estava interdito... 



Fotos: © Arlindo Roda (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: LG]


1. Continuação da publicação da História do BART 3873 (que esteve colocado na zona leste, no Setor L1, Bambadinca, 1972/74), a partir de cópia digitalizada da História da Unidade, em formato pdf, gentilmente disponibilizada pelo António Duarte (*)

[António Duarte, ex-fur mil da CART 3493, a Companhia do BART 3873, que esteve em Mansambo, Fá Mandinga, Cobumba e Bissau, 1972-1974; foi transferido para a CCAC 12 (em novembro de 1972, e não como voluntário, como por lapso incialmente indicamos); economista, bancário reformado, formador; foto atual à esquerda].


O destaque do mês de setembro de 1973 (pp. 67/69) vai para:

(i) declaração unilateral, por parte do IN, da independência da Guiné-Bissau, "ato político que não teve eco no seio da população controlada pelas NT";

 (ii)  início do Ramadão: o Islão como forte barreira antissubversiva;

(iii) propostos como candidatos à peregrinação a Meca os régulos do Xime e Badora [, Mamadu Bonco Sanhá, tenente de 2ª linha];

(iv) morte do Cherno Rachide, de Aldeia Formosa
















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Nota do editor:

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13822: (In)citações (71): Djarama (obrigado) a este "santástico" blogue por nos proporcionar um espaço de diálogo e de (re)encontro entre o passado, o presente e o futuro (Djuli Sal, neto do Cherno Rachide Djaló)


1. Comentário, de hoje (*), do nosso leitor, Djuli Sal, neto do Cherno Rachide [Djaló], do Quebo (ex-Aldeia Formosa), que morreu em 1973 ) (**):

[De acordo com o seu perfil no Google +,  "trabalhou em DGCI, fequentou a Universidade Colinas de Boe/Washinton State Uviversity; vive em Hafia,Bissau] [foto à esquerda]

Grato pela adopçao do termo "SANTÁSTICO" (*), agradeço a vossa amabilidade.

Ao meu ver,  este blog representa um veículo de divulgaçaã e contextualização da rica história da Guiné-Bissau.

Aos mais velhos proporciona uma autêntica nostalgia... Para os mais novos (como é o meu caso) é um meio de aprendizagem e de reencontro com as nossas verdadeiras raízes... 

E a todos faculta uma outra face da história, com possibilidades de fazer comparação com o passado recente e o presente, com intuito de projetar um futuro melhor... Um futuro liberto dos erros do passado, através de um novo raiar de sol da esperança de dias melhores rumo ao tão falado desenvolvimento do pais.

Mas para que tudo isso aconteça, os herdeiros da pátria do Cabral têm que enveredar pelo verdadeiro diálogo, perdão e reconciliação entre todos.

O meu obrigado do fundo do coração vai para a direção deste blog, por nos ter proporcionado um espaço de diálogo e encontro com a nossa histria.´

Djarama  (***)
Djuli Sal
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 21 de abril de  2011 > Guiné 63/74 - P8149: (Ex)citações (138): Sou o neto do Cherno Rachide (Djuli Sal)

(...) Olá, amigos, estou muito grato por esse santástico trabalho realizado por essa equipa de emprendedores que conseguiram reavivar a esperança de um povo esquecido no tempo.... o povo de Quebo (ex-Aldeia Formosa).

Sou neto do Tcherno Rachid Djaló [assinalado na foto, em rectângulo verde, tendo atrás, enquadrado por rectângulo a vermelho, o Cap Mil Vasco da Gama, Aldeia Formosa, Janeiro de 1973 ], e estou muito contente por essa iniciativa.(...) 


(...) O termo santástico deve ser lido como santo e fantástico (...)


(**) Al-Hajj Cherno Rachid Djaló parece ser a designação correta... Cito o especialista Francisco Proença de Garcia, oficial superior do exército português [, autor de  Guiné-Bissau 1963-1974: Os movimentos independentistas, o Islao e o poder português / Francisco Miguel Gouveia Pinto Proença Garcia. -Porto, 1996. -  (Texto policopiado) 283 f. : il. ; 30 cm. - Bibliografia, f. 268-283. - Tese de mestrado em Relaçoes Internacionais, Universidade  Portucalense, 1996]. Está disponível no sítio Triplov.com

(...) "Os dignitários islâmicos mais proeminentes eram Al-Hajj Cherno Rachid Djaló (futa-fula) de Aldeia Formosa (rebaptizada Quebo, após a independência), o Xerife Secuna Haydara (de linhagem xerifina) de Ingoré e, em Cambor, o Al-Hajj Cherno Mamagari Djaló (futa-fula).

(,,,) Sabe-se que foi disponibilizada uma verba de 200 mil dólares pela Presidência do Conselho de Estado para custear as despesas com a peregrinação a Meca para diversas personalidades destacadas da Comunidade. Na Guiné-Bissau, assim como em toda a África Ocidental, realiza-se a designada “peregrinação por procuração”, ou seja, emerge de uma comunidade um elemento para efectuar a peregrinação. Este elemento executa a peregrinação e obtem, na viagem, a bênção para toda aquela comunidade que suporta as despesas de tão honrosa missão. A comunidade em questão encarrega-se da família do peregrino, enquanto ele está ausente. O valor da peregrinação também envolve este procedimento. Se, por outro lado, o grupo social não realizar aquele esforço, podemos dizer que a peregrinação é afectada.

A peregrinação desempenha um importante papel político, uma vez que une muçulmanos de todo o mundo. Ao regressarem, os peregrinos são portadores do título honorífico de “Al-Hajj” (peregrino), o qual confere um estatuto aristocrático no plano sócio-religioso. De acordo com o Supintrep nº.11, entre 1959 e 1972, sob o patrocínio do Governo da antiga Província Portuguesa, visitaram Meca 230 peregrinos.(...)

(***) Último poste da série > 24 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13795: (In)citações (70): África meteu-se-nos debaixo da pele (Juvenal Amado)

segunda-feira, 18 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11272: Notas de leitura (466): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Dezembro de 2012:

Queridos amigos,
Estamos quase a chegar ao fim desta coletânea de textos sobre a história dos Mandingas, suas lendas e canções, no fundo reproduz-se um conjunto de textos que foram editados pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa.
E esta canção de Cherno Rachide é uma pequena joia de que a Guiné se deve orgulhar.

Um abraço do
Mário


A canção de Cherno Rachide

Beja Santos

Foi minha primeira intenção limitar este pequeno trabalho às 15 lendas que antecedem. Elas tentam esclarecer algumas facetas da mentalidade dos povos Fula e Mandinga na época das lutas tribais.

O símbolo mais válido dessa época era o “judeu”, o trovar que cantava o heroísmo, a valentia e a fidelidade, ao mesmo tempo que vituperava a traição, a cobardia e a fraqueza.
O trovador, na véspera das batalhas, tocava as canções dedicadas a cada um dos guerreiros, convidando-os a declararem as proezas que se propunham cometer no dia seguinte. No momento dos combates, elogiava os intemeratos e insultava os indecisos, sempre tocando, sempre cantando, e levava assim os combatentes à morte, quase diríamos alegremente, arrebatando-os e enlouquecendo-os.

Os tempos mudaram.

O “judeu” cedeu o seu lugar ao educador e, como se trata de povos islamizados, em que a religião domina todos os aspetos da vida das sociedades, o económico como o político, o social como o educativo, o educador é simultaneamente o teólogo.

Se procura dar uma ideia da mentalidade antiga, dominada pelo trovador, é natural que pretenda agora mostrar a mentalidade nova, plasmada pelo “cherno”, o Fula, ou pelo “caramó” Mandinga.

Por isso achei necessário reproduzir aqui um artigo intitulado “A canção de Cherno Rachide”, que publiquei em 10 de Dezembro de 1961, num simpático jornalzinho de Bissau, “O Arauto”.

Ei-lo:

- “Tive há dias ocasião de conhecer uma das mais interessantes personalidades africanas desta Província. O meu colega de Fulacunda falara-me em termos de muito interesse de um educador Fula cuja fama e influência, dizia ele, seriam imensas em todo o Sul da Guiné portuguesa e muito para além da nossa fronteira.

Fomos a Aldeia Formosa, onde reside Cherno Rachide, o nosso homem, e confesso que no primeiro contacto ele me desconcertou.
No físico não tem nada da debilidade ascética de certos letrados muçulmanos nem da obesidade de alguns outros, originada aquela nos exagerados jejuns e esta por uma vida demasiado sedentária. Ele, pelo contrário, tem mais o aspeto do trabalhador manual. Robusto sem ser gordo, realiza o equilíbrio de uma mente sã habitando um corpo são.
Nas maneiras e no vestuário, foge igualmente à regra.

Nenhuma pose nas atitudes nem presunção no trajar. A longa cabaia era já bastante usada e enquanto durou a nossa conversa manteve-se descalço. Aliás, preparava-se para ir com os seus alunos cultivar o campo que os sustenta a todos. Este facto mostra que não se entrega a um marabutismo parasitário, que é algo corrente. Dias depois, disse-me em Empada um saracolé nada pronto a elogiar os Fulas que o Cherno, contra a opinião dos seus familiares, que o desejariam ver confinado ao ensino religioso e literário, persiste em trabalhar pessoalmente a terra para que os alunos nunca tenham a falsa noção de que o labor físico é degradante e só é nobre a atividade intelectual.

Nos primeiros momentos da conversa, sente-se que Cherno Rachide se entrega cautelosamente a estudar as intenções e o caráter do seu interlocutor. Depois de ganhar certa confiança, anima-se e é então extraordinariamente vivo e simpático.
Mostrou conhecimentos profundos da história e da etnografia dos povos sudaneses e citou muitas das suas máximas favoritas.
Uma delas explica a reserva que habitualmente usa ao fazer um novo conhecimento.

Há três coisas – diz ele – de que um homem reto se arrepende imediatamente: praticar uma ação indigna, dar consideração a quem não a merece e conversar com um tolo.

Quando nos despedimos, manifestei-lhe o desejo de levar comigo, e como recordação da nossa conversa, algumas conversas por si escritas sobre o tema que preferisse.
Recebeu com visível satisfação o meu pedido e escreveu em carateres árabes (o que é vulgar entre Fulas e Mandigas) e em língua árabe (o que já não é comum) a letra de uma canção que compôs para os seus alunos.

É esta canção que vou reproduzir e peço ao leitor desculpa de o fazer em maus versos. Há, porém, uma razão que me leva a cometer semelhante imprudência.
A composição de Cherno Rachide tem ritmo na língua original e eu gostaria que ele, ao ouvi-la ler, notasse também na versão portuguesa alguma musicalidade.

Esperando que esta boa intenção me absolva inteiramente de meter foice numa seara que nunca foi minha, aqui deixo a canção:

Filhos amados, vosso pai Rachide
Uma regra de vida vos vai dar
Segui-a com rigor e não tereis
Nada que lastimar.

Raparigas, sabei que um homem espera
Encontrar na mulher três qualidades:
Respeito aos seus segredos, ao seu leito
E a todas as vontades.

A vós, rapazes, dou-vos um conselho
Que todo o sábio para si tomou
De outro, ainda mais sábio, Logomane,
Que outrora assim falou:

— Deves ter fé em Deus que tudo vê
E tudo pode acerca dos mortais
Trabalha com ardor e serás útil
A ti e aos demais.

— Estuda e elevarás a tua alma
Que os livros bons te podem ensinar
Muitas coisas formosas deste mundo
E a Deus agradar

— A palavra, o alimento e o sono
Como remédio deverás tomar:
O bastante p’ra que o corpo não sofra
Mas sem nunca abusar.

— A boca é uma e as orelhas duas
Isso te indica como proceder
Usa o ouvido mais do que o falar
E saberás viver.

— Em três partes o estômago divide
P’ra comida só uma reservar
As outras hão de ser bem necessárias
P’ra água e para o ar.

— A noite é grande e não deve ser gasta,
Do sol-posto à manhã, toda a dormir,
Destina parte dela à oração
Terás feliz porvir

— Deves casar p’ra nunca cobiçares
Mulher de outro. Não nego, o casamento
Traz desgosto profundo.
Mas se a fêmea procuras fora dele,
Em vez desse desgosto terás dois.
Neste e noutro mundo.

Meus filhos, quem seguir estes conselhos
No decurso da vida há de contar
Satisfações a esmo.
E maiores triunfos que o atleta
Que vença toda a gente nos torneios,
Pois vence-se a si mesmo.

Esta canção entoada diariamente pelos seus alunos define Cherno Rachide, o homem que se confessa profundamente grato ao governo da Província por haver possibilitado a realização do sonho da sua vida: a peregrinação a Meca.

Como português e como cristão, só me regozijo que lhe tenhamos dado tal alegria”

Bilhete postal da era colonial, mostra os pais de Braima Galissá

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Nota do editor:

Vd. postes anteriores da série de:

1 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11174: Notas de leitura (460): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (1) (Mário Beja Santos)

4 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11190: Notas de leitura (461): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (2) (Mário Beja Santos)
e
15 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11255: Notas de leitura (465): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (3) (Mário Beja Santos)