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terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27564: (In)citações (283): Em louvor dos Postos Escolares Militares e do Cherno Rachide (Cherno Baldé, Bissau)




Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > BCAÇ 2852 (1968/70) e CCAÇ 12 (1969/71) > Visita que o Cherno Rachide fez a Bambadinca, no início de janeiro de 1970... 

Foto do álbum do ex-fur mil at inf Arlindo Roda, da CCAÇ 12 . Sem legenda. Infelizmente as fotos do meu camarada Arlindo Roda não trazem legendas (local, data, etc.)... A personagem central, vestida de branco e "gorro" preto, que parece estar a presidir a uma cerimónia religiosa islâmica, é, seguramente, o Cherno Rachide que eu conheci em Bambadinca nessa altura... 

Recordo-me de as NT lhe terem armado uma tenda, no recinto do quartel de Bambadinca, para ele receber condignamente não só as autoridades locais, civis e militares, como também os seus fieis...  

Ele virá a falecer, em Aldeia Formosa, onde residia, em setembro de 1973. Na altura, o comandante do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) organizou uma coluna de transporte  para os seus fiéis poderem ir prestar-lhe a última homenagem em Aldeia Formosa.

  No meu tempo, o troço Saltinho- Contabane - Aldeia Formosa estava interdito, logo a partir da Ponte do Saltinho, sobre o rio Corubal... O transporte até Aldeia Formosa teria que ter segurança militar.

Foto: © Arlindo Roda (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


 


Cherno Baldé: Nasceu em Fajonquito, setor de Contuboel, região de Bafatá, zona leste  no início dos anos 60. Fula e guineense, aprendeu a ler e a escrever com a NT. Tem formação superior universitária (Kiev e Lisboa). É gestor de projetos, consultor independente. Vive em Bissau. Muçulmano, é casado com uma nalu, cristã. tem 4 filhos. É nosso colaborador permanente para as questões etno-linguísticas.

1. Comentário do Cherno Rachide ao poste P27559 (*)









Antes de tudo, quero saudar o ex-Furriel e Professor Manuel Amaro e expressar a minha gratidao e respeito pelo trabalho realizado, em tempos, ao servico das criançaas da Guiné-Bissau, colmatando assim um vazio e um atraso de muitos séculos, relativamente à educação e formação da nossa juventude rumo à modernidade. 

É importante salientar a grande surpresa que o partido "libertador' teve, logo a seguir à independência, da avalanche de jovens que, literalmente, invadiram os centros urbanos vindos das tabancas (antigos aquartelamentos) para continuação dos estudos, não era nada do que estariam à espera, pois é preciso desmistificar que a guerra do PAIGC  não foi para libertar ninguém, mas de substituir os agentes da administração colonial, aproveitar-se do espólio colonial e continuar a subjugar o resto da população, sobretudo, rural, pobre e não alfabetizada.

Na sequência da visita que fez ao Cherno Rachide a fim de esclarecer um mal entendido, o Manuel Amaro escreveu: 

"Regressei ao Quartel, mas pelo caminho uma dúvida permanecia no meu espírito. Alguma coisa não estava certa. Um chefe religioso, mesmo ali, naquele sítio, naquela situação de guerra, não tem aquele comportamento".

Não sei, ao certo, o que quereria dizer com estas palavras de desabafo, mas gostaria de esclarecer que, de lado a lado, entre o regime colonial português (não confundir com o exército português no terreno constituído principalmente de milicianos mobilizados à força) e a elite muçulmana do território, de maioria Sunita, predominava um relacionamento cordial e de mútuo respeito e colaboração, mas ao mesmo tempo, de mútua desconfiança no campo religioso, pois os dois lados actuavam em campos diametralmente opostos e de guerra fria permanente, mesmo se, no fundo, as diferenças não fossem muito grandes, tendo em conta as suas origens e princípios dogmáticos.

Eu, pessoalmente, pertencente à comunidade muçulmana por nascença, só fui admitido a continuar na escola portuguesa porque um Marabu mandinga (chefe religioso), amigo do meu pai, garantiu que não havia qualquer incompatibilidade entre a confissão muçulmana (religião) e a escola portuguesa (conhecimento técnico-profissional) desde que não incluisse a doutrinação (catequese) cristã.

Tambem, é preciso dizer, sem ambiguidades que, a política e a preferência portuguesa nas suas colónias era claramente a favor da doutrinação religiosa e a assimilação social e cultural, mas ainda assim era preciso ter os meios, a capacidade e a disponibilidade para o realizar no terreno.

Quanto a uma eventual ligação e "duplo jogo" com a guerrilha, eu não acredito de todo, tendo em conta a forte ligação com o poder colonial através dos seus representantes na província que era pública e conhecida de todos,  especialmente com o gen Spinola, mas também, mesmo que houvesse eventuais contatos com o PAIGC, seria um sinal da sua importância enquanto chefe religioso, cuja influência ia para além das fronteiras da Guiné (dita portuguesa). 

O reconhecimento da sua importância e inteligência intelectual dão-lhe a liberdade, mesmo que condicionada, de viver no seu tempo e espaço, feito de mudanças radicais, de violência e de guerras permanentes e a sua, relativamente, curta longevidade reflecte o fardo social e a enorme pressão psicológica a que estavam submetidos, actuando entre duas frentes irreconciliáveis e um misto de guerra política e religiosa. 

De certa forma, a realidade política da Guiné ainda carrega essas dualidades e ambivalências que não foram resolvidas com a independência, pelo contrário, agudizaram-se no meio da proliferação da miséria e do obscurantismo em que o país mergulhou,  fruto da má gestão e incúria dos sucessivos governos responsáveis pela governação e gestão do país. (**)

Cherno AB

segunda-feira, 22 de dezembro de 2025 às 11:09:42 WET 

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)


2. Comentário do editor LG:

O Cherno Rachide era imã ou califa ? Qual a distinção ?

(i) Califa (do árabe "khalīfa", sucessor): 

Originalmente, refere-se ao líder político e religioso da comunidade muçulmana ("ummah"), após a morte do Profeta Maomé.  Tradicionalmente, o califa é considerado o "sucessor do profeta Maomé", não como profeta, mas  na liderança  da comunidade.

A sua função principal é governar, aplicar a lei islâmica ("sharia") e proteger e expandir o Islão. É uma figura mais associada ao Islão sunita.

O califado teve grande importância histórica (Omíadas, Abássidas, Otomanos), mas não existe oficialmente hoje (vd. No passado Califa de Bagdade, Califa de Córdova). 

Em contextos locais, como na África Ocidental, o termo pode ser usado para designar um líder espiritual ou político de uma comunidade islâmica, muitas vezes com autoridade sobre uma região ou grupo étnico.

Na Guiné-Bissau, califa era um título atribuído a líderes religiosos e políticos influentes, como Cherno Rachid Jaló, que exercia autoridade sobre uma vasta área e população (Quebo-Forreá, incluindo parte da Guiné-Conacri e Senegal).


(ii) Imã (do árabe "imām", líder, guia): 

É o líder religioso que conduz a oração na mesquita e pode também ser uma referência espiritual para a comunidade. O imã não tem necessariamente poder político, embora em alguns contextos possa exercer influência social e moral.

No caso de Cherno Rachid Jaló, ele era chamado de califa porque era um líder espiritual e político, com autoridade sobre uma região e população, não apenas um guia religioso. O título reflete a sua influência e poder, que iam além do domínio religioso, abrangendo também a dimensão social e política.

No Islão xiita, o imã tem um significado muito mais profundo: é um líder religioso supremo, considerado escolhido por Deus; possui autoridade espiritual infalível (segundo a doutrina xiita); os xiitas reconhecem uma linha específica de imãs, descendentes de Ali (genro de Maomé).

Sobre as correntes do Islão que predominam na Guiné-Bissau / África Ocidental, vd. poste P23362 (***), também da autoria do Cherno Badé.

Acrescente-se ainda  que  no islão sunita da Guiné-Bissau, há 2 comfrarias:  (i) a confraria quadriyya,  seguido pela maior parte dos mandingas e biafadas  da Guiné,  tem o seu centro de influência em Jabicunda, a sul de Contuboel, região de Bafatá;  (ii) a outra é a confraria tidjania,. seguida pela maior parte dos fulas.

As confrarias sunitas são, com mais propriedade, chamadas  sufis ("ṭuruq", singular "ṭarīqa"). Trata-se de ordens religiosas místicas que existem dentro do Islão sunita (embora também haja sufis xiitas, em menor número).

São comunidades espirituais organizadas em torno de um mestre religioso ("sheikh" ou "shaykh"), cujo objetivo principal é a aproximação espiritual a Deus (Alá): a purificação interior; o exercício da piedade, disciplina e devoção.

O sufismo representa a dimensão mística do Islão, focada na experiência interior da fé, mais do que apenas no cumprimento formal da lei religiosa.

Cada confraria segue um caminho espiritual específico ("ṭarīqa"); a relação entre mestre e discípulo é central; praticam o "dhikr" (recordação de Deus), que pode incluir: repetição de nomes divinos; orações rítmicas; canto, música ou movimentos corporais (dependendo da ordem); valorizam a ascese, a humildade e o amor divino.

A confraria Qadiriyya é uma das mais importantes e antigas, difundida no Médio Oriente e África.

_________________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 22 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27559: Não-estórias de guerra (6): O Cherno Rachide que eu conheci (Manuel Amaro, ex-fur mil enf, CCAÇ 2615 / BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Fomosa e Nhala, 1969/71)


(**) Último poste da série > 14 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27528: (in)citações (282): Reflexão entre dois copos de tintol (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

(***) Vd. poste de 18 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23362: (Ex)citaçõs (410): O islão na Guiné-Bissau, país laico e tolerante: correntes moderadas e radicais (Cherno Baldé, Bissau)

(...) Se nos anos 60/70 os mais cotados representantes eram, em grande maioria, da etnia fula (ver Futa-Fula) que professavam a corrente Sunita da Tidjania, bem moderada, com ligações às correntes religiosas do Magreb e do Egipto (escolas islâmicas de Fez e do Cairo, nomeadamente Universidade de Al-Qarawiyyin e Al-Azhar) que formavam os nossos estudantes em matéria islâmica, actualmente a etnia mandinga/biafada apoderou-se da iniciativa do proselitismo religioso com ligações ao movimento Salafista - Wahabita do Médio Oriente (países do Golfo liderados por Qatar e Arábia Saudita) beneficiando de importantes fundos (doações) para esse efeito.

Durante os últimos anos houve uma espécie de braço de ferro das duas correntes pela liderança das comunidades em Bissau e nas principais cidades do interior, com destaque no Norte e Leste do país, mas, pelos vistos a nova corrente está a levar a melhor e com isso, também, a presença cada vez maior de jovens discípulos desta corrente é Salafista-Wahabita nas mesquitas também por eles construidas tanto nos subúrbios da capital como no resto do país.

Apesar de tudo, ainda não passa de um fenómeno novo e pouco expressivo, tendo em conta a resistência das correntes mais antigas e tradicionais (Tidjania e Quadryya) na região Oeste africana. (...).

A confraria Xiita (com ligações ao Irão) não tem muitos adeptos na nossa subregião (África do Oeste) e mesmo a nivel do continente é pouco expressivo. Mas, eu não falei desta corrente religiosa e sim da competição dentro da corrente Sunita, onde existem orientações moderadas (mais antigas) e outras mais radicais (Salafistas / Wahabitas) originárias do Médio Oriente cuja influência é cada vez mais sentida nas comunidades muçulmanas do país e da subregião. (...)










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