Foto: © Arlindo Roda (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Na sequência da visita que fez ao Cherno Rachide a fim de esclarecer um mal entendido, o Manuel Amaro escreveu:
Não sei, ao certo, o que quereria dizer com estas palavras de desabafo, mas gostaria de esclarecer que, de lado a lado, entre o regime colonial português (não confundir com o exército português no terreno constituído principalmente de milicianos mobilizados à força) e a elite muçulmana do território, de maioria Sunita, predominava um relacionamento cordial e de mútuo respeito e colaboração, mas ao mesmo tempo, de mútua desconfiança no campo religioso, pois os dois lados actuavam em campos diametralmente opostos e de guerra fria permanente, mesmo se, no fundo, as diferenças não fossem muito grandes, tendo em conta as suas origens e princípios dogmáticos.
Eu, pessoalmente, pertencente à comunidade muçulmana por nascença, só fui admitido a continuar na escola portuguesa porque um Marabu mandinga (chefe religioso), amigo do meu pai, garantiu que não havia qualquer incompatibilidade entre a confissão muçulmana (religião) e a escola portuguesa (conhecimento técnico-profissional) desde que não incluisse a doutrinação (catequese) cristã.
Tambem, é preciso dizer, sem ambiguidades que, a política e a preferência portuguesa nas suas colónias era claramente a favor da doutrinação religiosa e a assimilação social e cultural, mas ainda assim era preciso ter os meios, a capacidade e a disponibilidade para o realizar no terreno.
Quanto a uma eventual ligação e "duplo jogo" com a guerrilha, eu não acredito de todo, tendo em conta a forte ligação com o poder colonial através dos seus representantes na província que era pública e conhecida de todos, especialmente com o gen Spinola, mas também, mesmo que houvesse eventuais contatos com o PAIGC, seria um sinal da sua importância enquanto chefe religioso, cuja influência ia para além das fronteiras da Guiné (dita portuguesa).
Cherno AB
segunda-feira, 22 de dezembro de 2025 às 11:09:42 WET
2. Comentário do editor LG:
O Cherno Rachide era imã ou califa ? Qual a distinção ?
(i) Califa (do árabe "khalīfa", sucessor):
(ii) Imã (do árabe "imām", líder, guia):
No caso de Cherno Rachid Jaló, ele era chamado de califa porque era um líder espiritual e político, com autoridade sobre uma região e população, não apenas um guia religioso. O título reflete a sua influência e poder, que iam além do domínio religioso, abrangendo também a dimensão social e política.
No Islão xiita, o imã tem um significado muito mais profundo: é um líder religioso supremo, considerado escolhido por Deus; possui autoridade espiritual infalível (segundo a doutrina xiita); os xiitas reconhecem uma linha específica de imãs, descendentes de Ali (genro de Maomé).
Sobre as correntes do Islão que predominam na Guiné-Bissau / África Ocidental, vd. poste P23362 (***), também da autoria do Cherno Badé.
As confrarias sunitas são, com mais propriedade, chamadas sufis ("ṭuruq", singular "ṭarīqa"). Trata-se de ordens religiosas místicas que existem dentro do Islão sunita (embora também haja sufis xiitas, em menor número).
São comunidades espirituais organizadas em torno de um mestre religioso ("sheikh" ou "shaykh"), cujo objetivo principal é a aproximação espiritual a Deus (Alá): a purificação interior; o exercício da piedade, disciplina e devoção.
O sufismo representa a dimensão mística do Islão, focada na experiência interior da fé, mais do que apenas no cumprimento formal da lei religiosa.
Cada confraria segue um caminho espiritual específico ("ṭarīqa"); a relação entre mestre e discípulo é central; praticam o "dhikr" (recordação de Deus), que pode incluir: repetição de nomes divinos; orações rítmicas; canto, música ou movimentos corporais (dependendo da ordem); valorizam a ascese, a humildade e o amor divino.
_________________
Notas do editor LG:
(*) Vd. poste de 22 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27559: Não-estórias de guerra (6): O Cherno Rachide que eu conheci (Manuel Amaro, ex-fur mil enf, CCAÇ 2615 / BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Fomosa e Nhala, 1969/71)
(**) Último poste da série > 14 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27528: (in)citações (282): Reflexão entre dois copos de tintol (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)
(***) Vd. poste de 18 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23362: (Ex)citaçõs (410): O islão na Guiné-Bissau, país laico e tolerante: correntes moderadas e radicais (Cherno Baldé, Bissau)
(...) Se nos anos 60/70 os mais cotados representantes eram, em grande maioria, da etnia fula (ver Futa-Fula) que professavam a corrente Sunita da Tidjania, bem moderada, com ligações às correntes religiosas do Magreb e do Egipto (escolas islâmicas de Fez e do Cairo, nomeadamente Universidade de Al-Qarawiyyin e Al-Azhar) que formavam os nossos estudantes em matéria islâmica, actualmente a etnia mandinga/biafada apoderou-se da iniciativa do proselitismo religioso com ligações ao movimento Salafista - Wahabita do Médio Oriente (países do Golfo liderados por Qatar e Arábia Saudita) beneficiando de importantes fundos (doações) para esse efeito.
Durante os últimos anos houve uma espécie de braço de ferro das duas correntes pela liderança das comunidades em Bissau e nas principais cidades do interior, com destaque no Norte e Leste do país, mas, pelos vistos a nova corrente está a levar a melhor e com isso, também, a presença cada vez maior de jovens discípulos desta corrente é Salafista-Wahabita nas mesquitas também por eles construidas tanto nos subúrbios da capital como no resto do país.
Apesar de tudo, ainda não passa de um fenómeno novo e pouco expressivo, tendo em conta a resistência das correntes mais antigas e tradicionais (Tidjania e Quadryya) na região Oeste africana. (...).
A confraria Xiita (com ligações ao Irão) não tem muitos adeptos na nossa subregião (África do Oeste) e mesmo a nivel do continente é pouco expressivo. Mas, eu não falei desta corrente religiosa e sim da competição dentro da corrente Sunita, onde existem orientações moderadas (mais antigas) e outras mais radicais (Salafistas / Wahabitas) originárias do Médio Oriente cuja influência é cada vez mais sentida nas comunidades muçulmanas do país e da subregião. (...)

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