REFLEXÃO ENTRE DOIS COPOS DE TINTOL
adão cruz
Caros amigos, já tenho escrito algumas reflexões referindo o vinho como estimulante da criatividade, pois ao contrário do que por aí se divulga, dizendo que o vinho é pior do que o tabaco e é o causador de sete cancros (!), ao fim de uma longa vida e de uma grande experiência profissional nunca de tal me dei conta. Além disso, um ou dois copinhos funcionam como uma espécie de analgésico ou anestésico, ainda que ligeiro, contra a dor causada pela barbárie e a crueldade de um mundo que começa a não ter razão de existir.
Almocei na Taberna do Doutor. “Doutor” refere-se à minha pessoa, por amizade e gentileza do meu amigo Zé Carlos, dono do restaurante. Entre dois copos de tintol, falámos de várias coisas. Ao ver entrar para o quarto de banho uma daquelas mulheres que dos sapatos ao cabelo, tendo o rabo de permeio, enquadram o tipo curvilíneo da exibição meramente física, falámos de sexo e do mais importante órgão sexual, o cérebro. Também falámos de amor, de simpatia e empatia, conceitos neurobiológicos bem diferentes. E a conversa desenrolou-se por aí fora, a sério e a brincar. Entretanto, o meu amigo recebeu um telefonema e começou a falar das suas vidas ao telefone. Foi aqui que entrei no segundo copo e a minha reflexão mudou de rumo.
Nesta idade, começo a caminhar à margem da vida, vivendo cada vez menos a vida exterior e cada vez mais a vida interior, ou por outras palavras, vivendo cada vez mais interiormente o sofrimento dos outros, dos desgraçados povos deste terrífico mundo.
Nunca tive nem tenho a presunção de ser o que quer que seja, além de ser Eu. Penso que sou Eu, apenas Eu, e que sempre procurei na vida dar a este Eu seriedade e autenticidade. Contudo, pensando bem, eu não sou eu, eu não sou só eu, sou eu e o outro, eu e os outros.
A vida é tanto mais vida quanto mais entrelaçada estiver com as malhas das outras vidas, com a poesia, a arte e o sonho de viver em feliz comunidade, melhor dizendo, entre as malhas do sentimento, porque é de sentimentos que se trata, do ponto de vista subjectivo, objectivo, científico e neurobiológico. O rio da nossa vida, da vida de todos nós tem todo o direito de nascer, correr mais fundo ou menos fundo, entre margens mais apertadas ou menos apertadas, até se alargar num estuário, de braços abertos, em plena liberdade, esquecendo as margens e sussurrando baixinho, quando é afagado pela brisa dolente e poética do fim da tarde, à entrada do mar.
Mais um gole, e a reflexão continuou. Uma reflexão que nada tem de profundo, mas que bate fundo ao reduzir-nos à nossa essência, de raízes bem assentes na vida, que devia gerar caules e flores distintas, mais ou menos delicadas e perfumadas, o que infelizmente nem sempre acontece.
Mais um gole, e a reflexão continuou. Uma reflexão que nada tem de profundo, mas que bate fundo ao reduzir-nos à nossa essência, de raízes bem assentes na vida, que devia gerar caules e flores distintas, mais ou menos delicadas e perfumadas, o que infelizmente nem sempre acontece.
Falámos de mulheres, de trajes, de comportamentos, do culto do corpo acima de tudo, de vidas e outras coisas. Estas conversas de taberna não ficam atrás de palestras e debates no que respeita ao seu sentido pedagógico. As memórias da vida permitem-nos reconhecer nestas reflexões entre dois copos uma maior sintonia entre o sentimento e a sua materialização. Sobretudo, a materialização do sentimento da felicidade, muito difícil de acontecer na maioria das vidas, ao contrário do que se pensa.
A verdadeira felicidade não é só ter a barriga cheia, ou a vida lustrosa tantas vezes vazia, ou a vida cheia… tantas vezes de nada. Por isso, eu penso que poucos seres humanos conseguem ultrapassar aquela fronteira para além da qual se encontra o sol radioso da felicidade, a qual só existe na verdadeira fruição estética da vida humana.
Assim sendo, escoei o copinho e vim até casa estender-me ao comprido, tendo apenas o tecto como horizonte.
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Nota do editor
Último post da série de 18 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27438: (in)citações (281): Os deuses também erram (Manuel Barros Castro, ex-Fur Mil Enfermeiro)
Assim sendo, escoei o copinho e vim até casa estender-me ao comprido, tendo apenas o tecto como horizonte.
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Nota do editor
Último post da série de 18 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27438: (in)citações (281): Os deuses também erram (Manuel Barros Castro, ex-Fur Mil Enfermeiro)


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