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domingo, 28 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25786: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (31): Sete vidas (1690-2044)



"Painel de azulejos de oficina de Lisboa, da 1ª metade do século XVIII, existente no Museu da Cidade, Lisboa, onde no primeiro plano aparecem tipos populares a comercializam bens de consumo e, no lado esquerdo é representado o Chafariz de Neptuno, equiparado ao dedicado a Apolo, existente no Terreiro do Paço. O Hospital Real de Todos-os-Santos tinha fachada virada para o Rossio e fora mandado erigir por D. João II em 1492, mas a sua construção só terminou no reinado de D. Manuel I, nos primeiros anos do século seguinte. Edifício de vanguarda na época, acolheu os primeiros internamentos em 1502, com regimento e estatuto de Escola de Medicina e o número de enfermarias foi crescendo ao longo do tempo: 3 (1504), 16 (1520) e 25 (1715). O Hospital Real de Todos-os-Santos foi desactivado na sequência do Terramoto de 1755, ocorrido a 1 de Novembro desse ano, o qual foi responsável pela destruição quase completa da cidade de Lisboa e foi substituído depois pelo Hospital Real de São José, no que restou do colégio de Santo Antão da Companhia de Jesus. (Rui Carita)
Data: circa 1740". 

Foto (e legenda): Fonte:  Museu de Lisboa | Wikimedia Commons (com a devida vénia...)



 Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (31): 

Sete vidas (1690-2044)


O Xavier Oliveira não sabia ainda o que gostaria de ser (e de fazer), desta vez, quando voltasse a ser "menino e moço".

Tinha direito a "sete vidas, como os gatos". Era, afinal, o único "privilégio" que podia dar como  garantido na sua existência terrena. 

Era um "homem de fé". Leia-se, crente.  A igreja a que pertencia (e que tinha um templo com pórtico neoclássico, ali mesmo ao pé da sua casa), reunia os metempsicosistas da cidade. 

Não eram muitos. Um "seita", escarneciam os seus detratores, quando lá passavam ao lado. O pior  ainda era o padre, católico, da sua freguesia, a par do pastor, evangélico, na rua mais abaixo, que tinha um "tabernáculo" num antigo armazém, adaptado para o efeito, a que chamava pomposamente... a "catedral da salvação".  (Todas as religiões são salvíficas; se o não fossem, tinham os templos vazios.)

Acreditava na transmigração da alma, mas dentro da espécie humana, incluindo as várias "raças" que se distinguiam umas das outras por diferentes fenótipos, "os brancos, os pretos, os amarelos, os mestiços"... 

Não, não era "racista". Aliás, bastara-lhe ter sido negro e escravo no séc. XVIII, na época em que finalmente o esclavagismo começou a ser posto em causa pelo capitalismo industrial... (Com a máquina a vapor e a maquinofatura, isto é, a "revolução industrial", os ingleses não precisavam mais de escravos "negros", passavam a ter os próprios escravos "brancos", o "proletariado inglês", os camponeses e os artesãos finalmente "libertos" das velhas amarras da sociedade senhorial...)

Nisso distinguia-se de outras correntes afins, de base teosófica. Não havia o risco de reencarnar numa espécie não-humana, animal ou até vegetal, como defendiam certos animistas. "Só dentro da espécie humana"... Tanto podia ser homem ou mulher,  branco ou preto... Era uma verdadeira lotaria. Não havia escolha. Mas o mecanismo da passagem da alma para um novo corpo ainda estava ("e estaria sempre") por explicar.

Os metempsicosistas eram "criacionistas", opositores da teoria da evolução. A metempsicose operava-se dentro das especificações do programa, definitivo e imutável, da criação da vida e do mundo. Era, de resto, um segredo inviolável, a que a ciência humana nunca poderia aceder, sob pena de usurpação do poder divino, ou pecado da húbris. 

Havia a barreira da espécie, tal como no sexo. A alma humana, no "post mortem", só podia transmigrar para uma forma de vida igual ou superior, um outro corpo humano. 

Xavier Oliveira acreditava que, de geração em geração,  a sua alma, a sua verdadeira identidade, arranjaria  um outro "invólucro", feito de "carne e osso".

Era uma forma de expiação terrena. Só os "puríssimos" , os 100% "limpos", tinham lugar imediato no Éden, após a morte física.

Não, não havia Inferno, tranquilizava-se ele. Não havia essa coisa da condenação eterna, "per saecula saeculorum" ou "ad aeternum", com que o aterrorizaram os padres jesuitas na sua primeira vida, quando  se chamava Fernão Ferro (1690-1721), ou melhor, o "Enjeitado" . (Na verdade, Fernão Ferro fora o seu primeiro nome, de batismo.)

Essa ideia, a do Inferno, só por si,  era uma insulto ao Criador da vida e ao grande Arquiteto do universo, e à Sua infinita sabedoria e  bondade. No passado, tinha frequentado uma loja maçónica, iluminista, de que lhe ficara a poderosa imagem do Arquiteto supremo.

Em resumo, havia sete vidas para os seres humanos se poderem "purificar". Sete vidas, umas mais fáceis, outras mais difíceis, umas mais curtas (como a sua primeira, que não ultrapassara a  trintena de anos), outras mais longas, como a quarta, de 1821 a 1891, em que chegou aos setenta. (Nessa altura, chamavam-lhe Joel de Castro mas também William Smith, Son.)

Sete vidas, mas todas elas imprevisíveis. Uma ideia aterradora ?  Penosa, sem dúvida, mas ao mesmo tempo excitante. Sabia-se do passado mas o futuro era uma verdadeira "black box" ou "caixa preta". Um ser humano podia passar de senhor a servo,  de rico a pobre, de bonito a feio, de bom a mau, de herói a vilão, de branco a preto, e vice-versa. Sem nunca se saber porquê... (O Criador nunca quis dar essa elementar explicação às suas criaturas, e muitas estavam longe de serem verdadeiras obras-primas.)

Havia sempre a esperança de se obter uma "melhor condição", de se subir na escala da criação. Mesmo assim , "tinhas que te esforçar por ser melhor", de encarnação em encarnação. Sob pena da alma... se "volatizar".  Havia esse risco. ("Às vezes interrogava-se se valia a pena: por exemplo, ser um bom pobre, um bom escravo, um bom soldado"...).

Era um permanente teatro, com sucessivas recriações, cenários, atores, encenadores, palcos, papéis, guiões. Mas também "brancas e apagões ".  ("De tanto representares, chegavas às vezes a trocar os papéis...")

"A vida era um palco"...  O Xavier não sabia explicar muito bem o processo de purificação. Muito menos a atribuição de papéis. Havia um "deve-e-haver", uma balança para pesar "as boas e as más ações".  Já os antigos egípcios e outros povos tinham essa crença. Mas o que era o bem e o mal ? 

Mas não era isso que o excitava. Estavam-lhe garantidos, em princípio, três ou quatro séculos de transmigrações sucessivas. Estava agora na sexta (renascera em 1945, no final da II Guerra Mundial na Europa). Estava na penúltima vida. Na melhor das hipóteses, na sétima (e última) poderia ainda chegar à alvorada do séc. XXII, seguramente com outro nome que tanto podia ser português, como afro-mandinga ou chinês.

Não estava nada entusiasmado com essa perspetiva, a de chegar ao limiar do séc. XXII.  E, ainda por cima, viver na China. (Não, não era "racista", nem xenófobo, mas também não era "sínico"...)  

E, depois, ainda precisaria de morrer pela sexta vez.  E transmigrar pela sétima. A morte era sempre uma chatice". Nunca se lembra, em todos os aqueles anos, de ter tido uma morte serena, a que no séc. XVIII se chamava uma "boa morte". Reconciliado com Deus e com os homens e com todos os demais seres vivos. 

Nunca ninguém lhe lera o "consentimento informado" do Criador. Nunca morrera em paz. Nem muito menos lúcido. E sempre sozinho. ("Morre-se sempre sozinho, como um cão".) Já morrera de diversas maneiras, todas afinal violentas (por colapso dos órgãos vitais, por causas naturais ou artificiais). Só não morrera de parto, já que nunca fora até então mulher. (Nem gostaria de o ser: não, não era misógino, mas tinha dificuldade em entender as mulheres.)

Agora, aos 70 e muitos anos, estava cansado, confuso, indeciso. Quiçá infeliz. Chegava a pôr a causa a solidez da sua fé. Interrogava-se  como iria morrer desta vez.  Em casa, no hospital, no lar  de idosos, na rua, na autoestrada ?  

De acidente aéreo, não, porque não viajava de avião, a menos que lhe caisse um, em cima do telhado. (E não vivia, de facto, muito longe do aeroporto.) De naufrágio, também não: odiava  o mar, os barcos, e até a maresia... Lembrava-se, ainda hoje, da sua primeira morte em 1721, ao largo das Berlengas. A morte dele, Fernão Ferro, e da sua Lia.  

No campo de batalha, também seria improvável vir a morrer, já não tinha idade para vestir uma farda e empunhar uma espingarda ou uma espada, como na guerra da Patuleia (1846-1847). Ou na Guiné, por onde foi obrigado a passar  um temporada em  1967/69. (Chamavam-lhe,  ironicamente, uma "comissão de serviço".)

O recente tratamento de um  cancro deixara-o de rastos. Passou a cultivar o humor negro.  Tornara-se cáustico, sarcástico. Tinha um cartão de visita em que assinava o nome e por baixo um aviso, a vermelho:  "Radioativo, protésico e parkinsónico"... Percebe-se a reação de repulsa, instintiva, das pessoas quando lhes entregava o cartão...

"Andava preso por arames". O último fora um "pace-maker". E isso "não era mais expiação mas condenação". Cruel. Às vezes parecia querer revoltar-se contra o Criador.   De nada lhe valia. Porque Ele, Criador,  não falava com ele, afinal uma simples criatura. "Não lhe dava troco". Limitava-se a manipular mecanicamente as suas criaturas como se fossem títeres.

Recuou... A ideia em si era blasfema. Húbris. Soberba humana. Penitenciou-se. Pediu perdão. Desceu à terra.  Foi fazer análises clínicas. Os tais "checkups" anuais a que o obrigava a sua seguradora de saúde. Deixou de comer, beber, fumar, fazer sexo. "Tinha saúde,  graças a Deus!", gritava-lhe a médica de família. Ouvia mal e não se adaptava à maldita prótese auditiva que lhe custara os olhos da cara.

 Saúde, doutora ?!

−  Ah, sim, senhor Oliveira. É a competência para saber gerir as suas quatro ou cinco doenças crónicas.

 Quatro ou cinco ?!.. Não sabia que eram tantas... Surdez, diabetes... 

 E por aí fora!... E por aí fora!...

Estava a precisar de um corpo novo. Fizera o testamento vital. Ofereceu o seu corpo à ciência. Era uma boa ação. Tinha horror à ideia de um dia ficar ligado a uma máquina por muito tempo. Como um vegetal.

Tinha uns sacanas de uns amigos que lhe estavam sempre a mandar, por email,  as últimas descobertas da medicina. 

Era hipocondríaco. Tinha medo que se pelava  do cancro do pâncreas. Vários amigos e conhecidos tinham morrido com esse maldito cancro.  Na fase terminal pareciam múmias.

Os médicos procuravam tranquilizá-lo. E, na sua igreja, diziam-lhe os seus irmãos: "Ah!, agora há de chegar a medicina genética que irá substituir a medicina química e ajudar a prevenir muitos dos nossos defeitos de fabrico". 

Ou então:

− Deixa lá, Xavier, vamos rezar para que, para a próxima, tenhas um corpo de atleta!

− Um borracho, ou até uma "barbie", quem sabe?! −  gozavam elas. 

Mas ele não era um otimista por natureza, via a vida como "um mar infestado de corsários e tubarões", uma imagem que o perseguia há séculos.

Já passara por muitas situações-limite, subira os degraus do cadafalso  de que fora salvo "in extremis" por uma intempestiva (mas providencial) tempestade de verão com queda de granizo... Conhecera o navio negreiro... Fora escravo, e depois forro... Sobrevivera ao terramoto de Lisboa... Comandara um bando de guerrilha... Lutara em vão contra uma tuberculose... Estivera num presídio por ser objetor de consciência... Fora cangalheiro... 

Enfim, tinha atravessado épocas  conturbadas, raramente conhecera a paz e a liberdade, muito menos o amor, a riqueza ou o poder... ("Nunca quis ter filhos, e se os teve foi sempre por vontade das mulheres que os geraram", numa época em que ainda não havia planeamento familiar, nem a pílula, nem o aborto terapêutico.)

Apetecia-lhe agora viver os últimos anos ( os últimos cinquenta ou até cem, na melhor das hipóteses) metido entre os  claustros e as paredes de granito da cela de um convento medieval onde pouco ou nada se falasse. Como no útero materno, que era opaco e quente e insonoro. Estava farto do ruído do mundo... ("Mas será que não ficaria louco ?!")

Na presente vida, a sexta, fora batizado e crismado pela Santa Madre Igreja Católica, Apostólica, Romana. Tinha na sua "mother board", num cantinho da sua memória, um "chip" com os dados vitais relativos a toda a sua existência, incluindo o assento dos seus nomes ao longo  das diversas reencarnações: Fernão Ferro, Inácio Medina, William Smith, Joel de Castro ou William Smith Son, Rafael Meneses, Xavier Oliveira...

A alma era sempre a mesma, a sua "alma mater", a sua matriz, o seu protótipo, o que  variava era o corpo. "A alma não tem rugas, nem cicatrizes", dizia o o guru dos metempsicosistas, que, no passado,  tinha sido um dos bravos marinheiros  russos, revoltados do couraçado de Potemkine, em 1905.

Xavier Oliveira sabia, por exemplo,que tinha nascido, da última vez, em 1945,  numa aldeia de Vila Nova de Famalicão, no Minho, em Portugal. Era papa em Roma o Pio XII e cardeal patriarca em Lisboa o Dom Manuel Cerejeira.  A este último conhecera-o pessoalmente. E tratava-o com toda a deferência. Era conterrâneo e amigo de infância do seu avô, António Oliveira.

Foi ele que o crismou numa ida a Famalicão nos anos 50. O avô, colega de escola, tratava o Dom Manuel por "Sua Eminência Reverendíssima" enquanto lhe agarrava a mão e lhe beijava o anel. Lembrava-se do seu avô, embevecido, lhe ter repetido várias vezes as  palavras do seu ilustre amigo, um "verdadeiro príncipe da Igreja":

− Ó Manel, deixa-te disso! Dá cá um abraço!

Não há registo destes factos nem eles são de todo relevantes para a história de vida do Xavier Oliveira. Acabou antes da tropa por afastar-se do catolicismo. E da sua família minhota. 

 Lidava mal com o trilogia "pecado, culpa e confissão". Era monstruoso, para um ser humano (queixava-se  ele ao seu confessor)  ter que assumir e expiar os seus muitos pecados mortais, com um registo de mais de 250 anos. Se calhar, até desde os primórdios, desde os seus primitivos antepassados, o Adão e a Eva, os pais da humanidade!

Foi então que se converteu ao metempsicosismo, que "verdadeiramente não era uma religião". E muito menos "proselitista", como  a dos cristais ou a dos muçulmanos. Não adiantava dar essa garantia ao padre católico e ao pastor evangélico, seus vizinhos, que às vezes encontrava na rua e que à viva força o queriam no seu rebanho. ("Afinal, tinham inveja dele e das suas sete vidas.")

Continuava a acreditar em Deus, Criador do universo e de todos os seres vivos e das coisas inertes. Deus,  Criador e Juiz Supremo.

Azar ou não, tinha nascido em 1690, filho bastardo, ao que saberá mais tarde, de uma filha, também ela bastarda,  de um dos "40 conjurados" de 1640. "Neto de bastardo és, filho de bastardo serás", dizia o povo naquele tempo, sarcástico e cruel, nas costas, mas sempre  temente e reverente, na frente, em relação a Deus e aos poderosos.

Esta foi, pelo menos, a história que lhe contaria mais tarde o seu padrinho de batismo, que exercia o mister de barbeiro, na Mouraria, e de barbeiro-sangrador  no Hospital Real de Todos os Santos.

O avô materno de Fernão Ferro (era assim que ele se chamava na primeira encarnação) , segundo se dizia à boca pequena, terá sido um fidalgo da corte, próximo do Dom João IV e da casa de Bragança. ("Quiçá até com laços de sangue com a família real".)

Hoje sabia-se, pelo que escreviam os historiadores da Academia,  que afinal não eram 40 mas 70  os valentes portugueses que puseram o Duque de Bragança  no trono, depois de correrem com os Filipes. 

Mas para o caso também não  interessava nada. Que importava ao Fernão Ferro ter "sangue azul" (ou até "régio") se nem sequer sabia o nome dos seus avós, do pai, da mãe, dos tios, dos primos ?!... (E nesse tempo ainda não se faziam testes de paternidade.)

Ferro não era apelido nobre, mas plebeu. E isso fazia toda a diferença, ser "filho de algo", Ora ele era filho de ninguém...  Nem no "sinal dos expostos" havia qualquer pista  sobre a sua filiação.  Apenas um pedaço de um tecido de seda da China, que só os ricos podiam comprar naquela época. A mãe, biológica, seria uma representante da nova nobreza bragantina ou, talvez antes, filha de algum burguês enriquecido pelo comércio atlântico do açúcar ou dos escravos.

Não fora deixado na roda dos expostos da Misericórdia ou de um dos muitos conventos da cidade, como era habitual, mas numa cestinha, ao ar livre, discretamente deixada na monumental escadaria que dava acesso à fachada principal, manuelina, do Hospital  Real de Todos os Santos. Um sítio (onde hoje é o Rossio) por onde já então  circulava  muito povo.

Não admira, por isso, que nos primeiros tempos tenha sido criado no Hospital, na "Casa dos Enjeitados". Na capela foi logo batizado pelo capelão. ( "Não fora morrer de repente o anjnho".)

O padrinho de ocasião foi o barbeiro-sangrador que a essa hora e dia estava de serviço. Acabou por se afeiçoar à pobre criança a quem foi dado, por caridade,  o seu apelido, Ferro.  Fernão Ferro foi, pois, o seu nome cristão.

Mas a afeição pelo miúdo ( "um rapaz macho, perfeitinho, ruivo e de olho esverdeado", o que também não era habitual na Lisboa desse tempo) não seria inteiramente desinteressada. 

Recolhida a criança na "Casa dos Enjeitados" e na sequência do seu batismo, o barbeiro recebeu, uns dias depois, a visita de um criado, que ele conhecia de vista, de uma família rica da vizinhança. 

Veio-lhe fazer um "trato sigiloso": recebia, em espécie e em géneros, uma "certa maquia anual"  para cuidar e educar, na sua casa, o "menino"... No Hospital,  era certo e sabido, era maior o risco de adoecer e morrer. O Hospital era um "locus infectus"...

Não tinha, o Fernão Ferro, aos vinte anos, grandes memórias da sua primeira infância. Terá tido uma ama de leite,de fartos peitos, possivelmente negra, fornecida pela Misericórdia de Lisboa, que administrava o Hospital, desde os anos 1560. Fora isso, viveu, desde cedo, na casa do seu padrinho de batismo e pai adotivo. Mas gostava de ir brincar no logradouro do Hospital, com os filhos da criadagem.

A família do  barbeiro Ferrão  tinha uma casa térrea, modesta mas relativamente ampla, com quintal, horta, laranjeiras e limoeiros,  já fora da cerca fernandina, para os lados da Graça.

Talvez o barbeiro-sangrador fosse de origem mourisca ou judia sefardita. Já o pai e o avô  tinham sido figuras populares na Mouraria,  herdando o mesmo ofício e sendo pagos pelo Hospital pelas "sangrias". Também iam a casa de gente de bem, a pedido do físico (médico) ou  do cirurgião. 

Em casa, tinha o Fernão uma escrava, negra,  filha e neta de escravos, que, além das lides domésticas, cuidava do "Enjeitado". Esse labéu ficou-lhe para o resto da vida. Constava do assento de batismo. Nunca conseguiria fazer a sua "árvore genealógica" por causa da sua condição de "exposto", filho de pai e mãe incógnitos.

O Fernão Ferro teve sorte, mesmo assim, em chegar aos trinta.

Como ele, havia centenas de crianças em Lisboa, a maior das quais não não conseguia franquear  a gigantesca barreira dos cinco anos. Era altíssima a mortalidade infantil (neonatal e abaixo dos 5 anos de idade).

Mas um dia o Ferrão partiu na carreira da Índia como cirurgião. Era o seu estágio final, depois de um ano de teoria e prática na escola do Hospital. Já não era novo para semelhante aventura... Podia demorar dois anos a regressar a casa... ("Vá-se lá saber as razões por que um homem deixa o seu doce lar para ir trabalhar para tão longe!"...)

Por volta de 1710, com 20 anos, o Fernão Ferro, depois de ter feito o Colégio de Santo Antão, que era dos jesuítas, acabou por ir tirar, na Universidade de Coimbra, o curso de medicina. O antigo barbeiro-sangrador, e seu padrinho, agora cirurgião, se não rico, pelo menos remediado, mandava-lhe dinheiro da Índia através da Misericórdia de Lisboa que funcionava, nessa época, como  uma espécie de agência bancária.

O Fernão Ferro, se tivesse feito cânones ou leis, teria tido por certo  outras perspetivas de futuro: o funcionalismo régio, a diplomacia, o alto clero... Mas faltou-lhe alguém que o tivesse aconselhado melhor e orientado os seus passos na vida. O padrinho estava longe, trabalhava agora no Hospital de Goa. Já não voltaria, de resto,  a ver mais o afilhado nem a sua  família de sangue. Morreria, aos quarenta anos, de "morbo gálico", ou seja, de sífilis. Era o que constava na nota necrológica que  chegara ao Fernão Ferro com a sua última mesada.

A sua primeira vida também irá ser breve. Fernão Ferro morrerá aos trinta anos, em 1721, já médico (físico) formado por Coimbra, fazendo jus ao provérbio popular que dizia: "aos trinta anos,  quem não é louco é médico".

Teve uma "morte inglória" (como se todas as mortes não fossem, afinal, "inglórias"!) quando  vinha de barco para Lisboa, e foi apanhado por uma tempestade ao largo das Berlengas. 

Trazia com ele uma negra da Senegâmbia, "linda de morrer, da côr de âmbar", que lhe custara uma pequena fortuna.  Era a amante de um cónego da Sé ("que já estava com os pés para a cova")... O bispo obrigou-o a desembaraçar-se da escrava, por causa do "público e notório escândalo de mancebia". 

Para o Fernão Ferro, a Lia "valia ouro", na cama, na cozinha, nas lides domésticas, nas confidências (... e no amor, por que não ?, não amaria ninguém mais na vida como aquela negra dengosa).  O cónego, ao batizá-la,  tinha-lhe posto um nome bíblico, Lia.

Na segunda vida, entre 1721 e 1782, ainda foi negro e escravo de um mercador cristão-novo, de apelido  Medina, em Cabo Verde, que em Lisboa tivera problemas com o Tribunal do Santo Ofício. (Talvez por delação, o que era habitual, de um vizinho, cristão-velho,  a quem emprestara dinheiros a juros.)

Nunca chegará a saber, ao certo, as razões por que o seu amo lhe deu a  carta de alforria. Terá escapado assim ao seu cruel destino que era, seguramente, no Novo Mundo, um engenho de açúcar ou uma mina de ouro no Brasil, quando o Medina o arrematou num leilão, a um "negreiro" de passagem pela ilha de Santiago. (Dizia-se que o navio levava excesso de carga, correndo o risco de naufragar em caso de tempestade tropical.  Em Cabo Verde o esclavagista aligeirou a carga.)

Cristão-novo,  amigo dos jesuitas,  o Medina acabou por se estabelecer no Norte de África, em Tânger onde prosperou  como importador de lanifícios ingleses e de tapetes orientais (nomeadamente otomanos e persas).

O agora Inácio, de seu nome (talvez em homenagem ao outro, Loyola), acabou por morrer de varíola aos 60 anos, no ano  em que  viria também a cair em desgraça o marquês de Pombal. (Ironia: a escassos anos do médico rural inglês Edward Jenner ter descoberto o princípio da imunização, neste caso, contra a varíola, a doença que mais vítimas terá feito em toda a história da humanidade.)

Trinta anos antes trabalhava num barco de cabotagem, ancorado no mar da Palha, no estuário do Tejo, em Lisboa.  Às 9 e tal  da manhã de sábado, do dia 1 de novembro de 1755, foi engolido por uma vaga enorme. Valeu-lhe, literalmente,  uma providencial "tábua de salvação".

 Exausto,  despejado pela violência do tsunami,  acabou por ir dar à praia da Trafaria. Foram dias pavorosos que lhe deram a exata dimensão da precariedade da vida terrena.  

Da margem esquerda do rio, submergido em destroços de toda a ordem (cadáveres, mastros e velame de navios, troncos de árvore, etc.), viu Lisboa arrasada e a arder, durante dias e dias.  Não sobrara nada: o opulento paço real, a patriarcal, a casa das Índias, os conventos,  as igrejas,  as casas dos nobres e dos ricos comerciantes, nada, a quem um náufrago, como ele, pudesse pedir um pão por caridade. 

Passou dias e dias a deambular pelas praias à cata de comida e de trapos com que se pudesse cobrir. Sobreviveu. E foi face ao atroz egoísmo  que atacou os sobreviventes daquele cataclismo, que o Inácio Medina  decidiu inscrever-se numa leva de soldados da fortuna para ir combater na guerra dos Sete Anos (1756-1763). Ao fim de uma marcha forçada até Montemor o Novo, foi riscado da lista de pré. Afinal, aos trinta e quatro anos já era velho.

Há um hiato na sua "fita do tempo". Não sabe, por exemplo, como chegou ao Porto, ao serviço de um  mercador de vinhos, inglês. Por pouco escapou ao cadafalso em fevereiro de 1756. Foi um dos milhares de amotinados contra a Companhia Geral de Agricultura do Alto Douro. Também andou  aos gritos, "Viva o Rei, Viva o Povo, Morra a Companhia, Morra!"

Não  sabe porquê, talvez pelo ambiente de contestação à política pombalina que se vivia nas tabernas do Porto e que ele frequentava, na Ribeira, e também por influência da colónia inglesa com quem ele convivia.

Como falava  razoavelmente  inglês, não foi difícil passar por súbdito britânico, apesar da cor da sua pele, com o falso nome de William Smith. Ficou grato ao seu amo  inglês, para o resto da vida: foi ele que o resgatou das masmorras pombalinas...

Não se estranha, por isso, cinquenta anos depois, ver um tal William Smith, Son,  como intérprete no seio do comando do estado-maior das tropas luso-britânicas aquando da batalha do Vimeiro, em 1807.

Ainda trabalhou na construção das Linhas de Torres e assistiu à retirada das últimas  tropas napoleónicas, em novembro de 1810. Acabou por se sentir  mais britânico do que português e, por volta de 1825, ano da sua morte,  pouco ou nada entendia já do que se estava a passar  no seu país, à beira de um guerra civil. Morreria cego. Talvez providencialmente. ("Deus escrevia direito por linhas tortas".)

Ainda fizera "alguns fretes" aos ingleses como ter de testemunhar  a morte infamante do general Gomes Freire de Andrade no forte Julião da Barra, em 1817.. Suprema humilhação  para um grande militar e patriota, um "mártir da Pátria"!... Por enforcamento!...

"O sabor a sangue quente e o cheiro acre da pólvora" talvez ajudem a explicar por que na sua quarta vida (1825-1891),  ele tenha querido abraçar a carreira das armas e, na revolta da Patuleia (1846-1847), tenha acabado por  comandar um dos bandos  da guerrilha miguelista, sob as ordens  do general escocês MacDonell...  Tão mercenário como ele, afinal. E foi nessa reencarnação que ele mais sujou as mãos "com o  sangue de gente tão portuguesa, tão patriótica e tão boa, afinal, ou até melhor do que ele"...

Não gostava de falar desse tempo... Foi talvez o dinheiro e a "vã glória de mandar" que o terão motivado a seguir a causa dos "legitimistas". Ignorante sobre os acontecimentos passados (a guerra civil de 1828-1834, na verdade uma "guerra duplamente fratricida"), acreditava que desta vez fosse o dele o  partido dos vencedores. 

Nunca chegara a conhecer pessoalmente o  Senhor Rei Dom Miguel, exilado em Viena depois do Tratado de Évora Monte, em 1834, ainda ele era uma criança de nove anos.  Mas no Minho, onde vivia,  falava-se muito de vários sósias  que, explorando a boa-fé do povo, se faziam passar pelo rei, "regressado para resgatar o trono à usurpadora da sobrinha e dos Cabrais"...

Vivia na casa de um abade, com grosso cabedal e farto passal, a quem tratava por sobrinho (as más línguas diziam que era filho). A revolução liberal e sobretudo o triunfo dos "mata-frades" (!) vieram impossibilitar o desejo do tio de ver o Joel de Castro abraçar a carreira eclesiástica. 

Aos vinte e um anos, sem rumo certo na vida, acabou por "andar à traulitada" na revolta da Maria da Fonte, que começou ali mesmo, no concelho vizinho de Póvoa de Lanhoso. Era um bom jogador de pau, bem apessoado, e tinha as costas quentes... Com "gosto por mulheres, jogo e vinho", como o descreveu o seu amigo Camilo, numa das suas novelas... Não admira por isso que passado uns escassos meses se tenha envolvido, por vontade do tio (mas também por paixão sua), na revolta da Patuleia.  

O abade, "corcunda" dos quatro costados (e com um ódio visceral aos "malhados")  confiou o seu querido sobrinho ao general miguelista, que por sua vez lhe entregou o comando de um dos seus bandos de guerrilha. 

Sem o saber esteve ao lado do Zé do Telhado, algumas vezes  (e contra, noutras).  Os setembristas ou "patuleias", da Junta Revolucionária do Porto, reuniam-se sob o estandarte do visconde Sá da Bandeira, na luta contra os cartistas , do partido dos Cabrais. Os "patuleias" fizeram alianças "contra natura" com os miguelistas ou "legitimistas", em Valpaços e outros combates. Mas na retirada para o Porto, através do rio Douro, combateram-se, uns e outros, ferozmente, impiedosamente, em Porto Antigo, já em terras de Cinfães...

Aqui o Joel de Castro adotou o nome de William Smith, Son. Foi ferido, em combate. E aprendeu à sua custa a amarga verdade: que numa guerra civil, não há valores, princípios, bandeiras, família, amigos, camaradas... Nem honra nem glória. Muito menos compaixão. A traição, a lisonja, o oportunismo e o " salve-se quem puder" são moeda corrente... 

Soube mais tarde do destino cruel que foi reservado ao Zé do Telhado, preso na Cadeia da Relação do Porto e desterrado para Angola. Ouvira falar dele, muitas vezes, e dos seus feitos em combate (e depois como chefe de salteadores).  Mas nunca o chegaria a conhecer pessoalmente, aliás com muita pena sua... 

Felizmente  Joel de Castro soube arrepiar caminho a tempo e levar uma vida honesta até ao fim dos seus dias. Morreu sem honra nem glória. Um ano  depois do Ultimato Inglês.

Do Rafael Meneses, de origem goesa (1891-1945),  também não há muito que contar.  Católico, monárquico, alegadamente descendente de vice-.reis da Índia,  apoiou a Ditadura Militar e depois o Estado Novo. Fez carreira na administração colonial em Moçambique. Morreu de tuberculose, em Lisboa,  no final da licença graciosa a que tinha direito. Já de nada lhe valeria a recente descoberta da penicilina, 

Mais de cento e tal anos depois do Ultimato Inglês, não aceitaram, em 1965,  o Xavier Oliveira como "objetor de consciência". Na cerimónia de juramento de bandeira, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, recusou-se a levantar o braço e a abrir a boca, em plena formatura. Ficou "petrificado" a ouvir os outros soldados-cadetes a "jurar defender a Pátria até à última gota do seu sangue".

O seu comportamento, insólito, desalinhado, de lesa-pátria, gerou logo algum sururu entre a assistência mais próxima,  constituída por familiares dos recrutas e demais povo anónimo.  Alguns, mais exaltados, acabaram por chamar a atenção do oficial de dia que foi logo a correr para sanar o incidente. Com firmeza e descrição,  deu-lhe ordem de prisão,  levando-o rapidamente para fora da formatura. 

Foi tratado, de maneira humilhante, como "testemunha de Jeová". Passou pelo presídio militar para cumprir  a pena de prisão a que fora condenado pelo Tribunal Militar, até ser amnistiado  aquando da visita do papa Paulo VI a Fátima, em 13 de maio de 1967. 

Riram-se dele, os juízes militares, quando lhes disse que era metempsicosista, não tendo nada a ver com as testemunhas de Jeová.

– Metempsi... quê ?

– ...psicosistametempsicosista, aquele que acredita na transmigração das almas  – esclareceu o Xavier.

Não tiveram, suas excelências,  a mínima curiosidade em saber algo mais sobre a a crença do Xavier... Havia mais sentenças a lavrar nesse dia, pelo que,  sem mais delongas,  passaram ao caso seguinte, a de um tipo, desertor, que fora apanhado na fronteira de Vilar Formoso quando tentava fugir, "a salto", para fora do país...

Xavier Oliveira foi amnistiado parcialmente dos seus crimes militares, mas não se livrou da tropa. Acabou por aceitar repetir o juramento de bandeira e ir para o ultramar, não como alferes miliciano, mas como simples soldado básico. Nãoi era o primeiro nem seria o último.

Na Guiné, um capelão mais "porreiro", acabou por aproveitá-lo como "sacristão", mesmo sabendo que ele, embora batizado, não era católico praticante. Calou-se. Aceitou a canga que lhe puseram em cima, como de outras vezes. Só queria que chegasse o fim daquele pesadelo, por volta de meados de 1969 (pelas suas contas). 

De resto, ninguém mais o queria para nada, nem para descascar batatas ou ir à lenha.  "Até parecia que tinha lepra". Toda a gente o rejeitava logo que ele abria a boca para dizer que estava na sexta reencarnação e tinha nascido em 1690. Alguns persignavam-se, julgando estar em frente de um fantasma. Outros chegaram a querer mandá-lo para a psiquiatria. "O gajo é doido varrido!"...

Àparte  alguns ataques e flagelações  a que esteve sujeito o seu aquartelamento no sul da Guiné, nunca pegou na G3 que lhe estava distribuída. Fazia gala em dizer que não sabia usá-la nem muito menos desmontá-la e montá-la. Devolveu-a ao quarteleiro. 

Quando o inimigo atacava, ele atirava-se para as valas e esperava que a tempestade (em geral, breve) passasse. Infelizmente houve quem tombasse a seu lado. E,  enquanto não chegava o cangalheiro de  Bissau para soldar o caixão de chumbo, era preciso limpar,  preparar e vestir condignamente o cadáver. 

Foi-lhe atribuída mais essa tarefa. A princípio custou-lhe muito. Chegou a vomitar ao ver tripas de fora e membros decepados. Mas depois tornou-se banal o que antes era macabro. E até chamava "presuntos" aos cadáveres dos seus pobres camaradas.

Não havia eletricidade, muito menos câmaras frigoríficas. A casa mortuária era a acanhada capela do quartel. Os corpos entravam rapidamente em putrefacção. E o cheiro, nauseabundo, tornava o ar irrespirável. Quando o médico do batalhão estava na sede do batalhão, usava uma mistura de formol e fenol para preservar os cadáveres. O sacana do capelão furtava-se a esta tarefa que não cabia no seu múnus espiritual. Limitava-se a dizer as suas rezas, aspergir o corpo com água benta e fugir o mais rápido possível da  capela.

No fim, o Xavier até acabou, com justiça , por  ter um  louvor,  dado  pelo seu comandante de batalhão, um bom homem.

A sua sétima e última reencarnação tornou-se, entretanto, um incógnita angustiante. Mas  foi uma cigana, quem lhe leu a sina, pegando-lhe na mão direita. 

Tinha ele vinte anos, em 2044. E por ela soube alguns dos eventos mais dramáticos do seu hipotético futuro:

 (i) não chegaria ao séc. XXII (o que o deixou mais aliviado); 

(ii) a linha da vida não era muito legível no que respeitava  a futuras complicações de saúde; 

(iii) tinha uma linha do coração curta, com tendências monogâmicas, mas iria ter um grande amor (o que o deixou intrigado); 

(iv) a linha da cabeça era bem definida, mostrando determinação e lucidez (o que ele interpretou como um bom augúrio); 

e por fim, (v) a linha do destino também não era bem percetível... 

Desistiu de saber mais, quando a cigana pronunciou o topónimo "Cansalá"...Soou uma campainha na sua cabeça... Tinha lido em tempos um conto sobre o fim do império do Gabu e o suicídio coletivo dos seus defensores mandingas ante o cerco, em 1867, do poderoso exército  de Alfa Molo Balde, fula do Futa Djalon.

Cansalá era, de certo modo, a "pass-word", para uma terrível premonição sobre  o futuro da humanidade, que,  tal como ele, trazia ao peito, uma "bomba-relógio" em contagem decrescente...  

O seu atávico, secular, pessimismo veio ao de cima... Teve uma terrível crise existencial... E de fé. Pôs tudo em causa, os seus trezentos e muitos anos de vidas, afinal, todas elas absurdas... 

E numa bela noite de verão, de 2044,  foi até ao alto da praia de Paimogo (onde ele desembarcara, de um vaso de guerra,  com um pequeno grupo de ingleses, em agosto de 1807), perscrutou o vasto mar do Cerco, disse adeus às Berlengas, saudou o farol do cabo Carvoeiro e as traineiras que andavam à pesca da sardinha,  grafitou com "spray" a palavra "Cansalá" nas paredes do forte setecentista de Paimogo,  ligou os faróis do automóvel,  pôs um cêdê com a nona sinfonia de Beethoven, reclinou-se no assento do condutor, fez uma incisão , com um xis-ato,  na pele da zona peitoral, arrancou o "pace-maker",  e deixou-se entrar por aquela noite negra e eterna, que nunca mais teria madrugada... 

Foi a sua singela despedida da Terra da Alegria, como diria o poeta Ruy Belo se fosse vivo, e se ainda passasse o verão, como era seu costume, ali na praia, ao lado, da Consolação...

© Luís Graça (2024). Todos os direitos reservados.

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Nota do editor:

Último poste da série > 18 de junho de  2024 > Guiné 61/74 - P25653: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (30): Caminheiros

sábado, 20 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16405: Manuscrito(s) (Luís Graça) (92): Praia do Caniçal: memórias











Lourinhã > Praia do Caniçal > 5 de agosto de 2010 > Memória(s)



Fotos (e texto): © Luís Graça(2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Praia do Caniçal:

aqui gostaria de deixar a minha caixa preta,

antes de trepar


pela tua árvore genealógica, 

como o salmão,


até ao paleolítico superior,

pelo leito dos rios que sobem, secos,

pelo interior do planeta,


até às grandes fossas marinhas.



Luís Graça (2004)


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Nota do editor:

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16398: Manuscrito(s) (Luís Graça) (91): A ilha da praia do Caniçal...

A ilha da praia do Caniçal…


por Luís Graça





Chita,
em  homenagem 
aos nossos 40 anos de casados (1976-2016),
e ao teu aniversário natalício,
duas efemérides que ocorrem
no "nosso querido mês de agosto"…

Uma vida em comum
com os seus montes e vales,
as suas ilhas e mares,
os seus cabos das tormentas
e das boas esperanças,
os seus encantos e desencantos,
amores e desamores,
e dois filhos,
uma Joana e um João,
que são afinal as flores mais lindas do nosso jardim.

Hoje
só posso oferecer-te rosas,
meu amor,
vermelhas,
em celebração da vida e do amor.
Nunca te ofereci outras flores,
senão rosas,
vermelhas.
Espero que gostes deste poema
sobre (a ilha d)a praia do Caniçal
onde demos o nosso primeiro beijo, lembras-te ?

Teu, (e)terno amante e amado, Nhicas.


Praia do Caniçal…
Poderia ser a minha ilha,
afinal, aqui tão perto,
poderia ser a minha ilha,
sim, senhor,
se eu quisesse ser egoísta,
se eu pudesse, outrossim,
ter uma ilha só para mim,
registada em meu nome pessoal,
depois de  me ter perdido  na vida,  
e de ter sido achado por ti, algures no deserto!


A mais exclusiva das ilhas,
com muitas milhas em redor,
pintadas de azul marinho,
até perder de vista,
“ad nauseam”.


Não, não nasci,
nem gostaria de ter nascido numa ilha.
Se eu lá tivesse nascido, não duvido,
o sítio perderia todo o encantamento,
que é coisa que  está justamente ligada ao mistério.
Não, não quereria
nenhuma ilha como berço
e muito menos o oceano Atlântico
como cemitério.


Mas, confesso,
gostaria de ter tido um ilha,
só para mim,
como se eu fosse o Robinson Crusoé
do século XXI,
náufrago
apátrida,
sem lar nem  terra,
errático,
proscrito,
ex-veterano da guerra da Guiné
ou de outra qualquer guerra.


Robinson Crusoé
ou outro pobre diabo,
em busca de uma ilha,
porto de abrigo
ou tábua de salvação,
e a quem tivesse saído o Euromilhões
por um bambúrrio da sorte
ou tivesse sido nomeado
presidente do Goldman Saque Saque Saque,
por um dia,
por um um simples bug informático.


Não sei se há ilhas dessas
à venda,
ao desbarato,
aqui à porta,
na feira da ladra
ou da bolsa vazia de valores de Lisboa,
no meu país
que é Portugal
ou no que resta dele.
Yes, Portugal, my  Lord,
Portugal,
sítio, para quem não sabe,
que fica na ponta mais acidental da Europa.


Uma ilha rigorosamente exclusiva
e vigiada,
concentracionária,
com arame farpado
e neblinas matinais,
por causa dos meus medos irracionais,
a sul do cabo Carvoeiro,
e com um arco-íris grafitado
a anunciar a borrasca que aí vem,
para desencorajar os intrusos,
afastar os mirones,
intimidar os candidatos a refugiados,
ah!, uma tabuleta a (con)dizer,
um gigantesco outdoor,
em português, gente com fama de cortês,
em inglês, língua de corsário,
em alemão, a vingança dos godos e visigodos,
em árabe, por causa dos mártires de todos os islões,
em chinês, mandarim,
com muitos cifrões:
“Propriedade privada.
Cuidado com o cão
E com o tubarão.
Perímetro de segurança armadilhado”.


Para quê, ó estúpido,
tanto medo securitário ?
Haverá sempre um chinês
que não sabe mandarim,
ou um árabe analfabeto
ou um português,
xico-esperto,
tetraneto
dos grandes descobridores
dos mares e ilhas por achar,
e com a mania de espreitar
pelo buraco da fechadura do vizinho.
Ficarás deveras constrangido
quando ouvires a notícia de pobres diabos
eletrocutados
nas fronteiras de Schengen!
Virão da África subsariana
e o único árabe que terão aprendido
será o das tabuinhas das madraças
de contrafação.


Mas, que importa ?
Viva o cinismo, a ideologia dominante
deste tempo global!
Se eu fosse um milionário,
excêntrico,
idiota,
suicidário,
teria à minha direita, a norte,
o polo,
e mais ligeiramente, ao lado,
a estrela,
polar.
E o esplendor,
já não de Portugal,
mas de um dos seus últimos recantos,
a praia de Paimogo,
atapetada de algas,
e, sob a a areia, diamantes,
rubis, topázios, esmeraldas,
com sorte o forte,
setecentista,
com os seus soldadinhos de chumbo
e os seus canhões de bronze,
de pólvora seca e longo alcance.


Com engenho e arte
faria parte
do meu condomínio
a enseada,
sereníssima,
nas tardes de fim de verão da minha civilização,
mais a velha rampa dos contrabandistas,
e dos mariscadores
e das tropas luso-britânicas
que aqui hão de desembarcar
no verão quente de 1808
e que na batalha do Vimeiro
se hão de cobrir de glória.


Pensando bem,
e tal como o Robinson Crusoé,
preferiria uma ilha sem história,
sem as brumas da memória,
sem qualquer inquietante peugada humana.
E, tanto quanto a minha geografia consente,
ao longe, em frente,
as Berlengas,
que, em dias de nevoeiro,
não são de ninguém,
ou são de quem as achar,
à deriva,
em alto mar…
Poderiam ser minhas,
por usucapião, ou não ?!


Sim, as Berlengas,
ali, quase ao alcance da tua mão,
que o teu braço,
diriam depois os teus inimigos,
seria tão comprido
como o abraço
com que se enforcam
os violadores da lei e da ordem.
Mas, para que é que tu, cretino,
querias ter mais uma ilha,
ao lado de outra ilha,
e às tantas um arquipélago,
uma metrópole,
um império ?
Terias, que chatice, pagar IMI,
de um extenso areal
do domínio público marítimo
e, nas marés vivas de setembro,
rodear-te de altas falésias,
caídas a pique.


E, imagina, que muda o governador
do reino d’aquém e d’além mar,
e que na sua fúria iconoclasta,
própria dos ex-proletários,
contra os milionários,
excêntricos,
idiotas,
suicidários,
acionava o princípio da retroatividade
da lei e da ordem ?


Diz o mapa do tesouro
que a ilha está datada
do tempo do jurássico superior
E foi cemitério de dinossauros,
corsários
e cetáceos.
Cento cinquenta milhões de anos!,
mas o que é isso, afinal,
na escala geocronológica
da tua galáxia,
da qual nem sequer sabes o nome,
só sabes que foi o pedacinho de universo
que te coube em sorte.


Sim, pensando bem,
para que quereria eu
uma enseada,
mesmo que sereníssima,
e, depois do sol posto,
a magia do luar de agosto ?
A insularidade é solidão,
e a solidão não se partilha,


Respondendo à minha consciência crítica,
para que quereria eu, de facto,
um forte militar
e um pelotão de milícias
com os seus bacamartes e arcabuzes ?
Só para brincar às guerras
do tempo em que Portugal
era ainda um país de brandos costumes,
no século das luzes.


Fica aqui desde já a minha declaração
de conflito de interesses
e, outra,  de objetor de consciência.
Não tenho licença de uso e porte de armas,
não gosto de brincar às guerras,
já fiz uma e não gostei,
e os seus fantasmas nunca os exorcizei.
Mais:
nunca achei a violência lúdica,
nem sexy,
nem muito menos romântica,
qualquer que seja a sua bandeira,
branca, negra ou vermelha,
A violência sempre foi uma má parteira
da história.


E, depois,
o que faria eu,
com o meu metro e setenta e dois de altura,
com uma ilha…  só para mim ?
Sem ti, meu amor?
Sem vocês, meus queridos ?
Sem todos nós e os nossos amigos ?
A insularidade não é só solidão,
é lonjura,
é amargura.




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Nota do editor:

Último poste da série > 14 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16389: Manuscrito(s) (Luís Graça) (90): Praia de Paimogo da minha infância