Lisboa > 1970 > O nosso camarada João Sacoto (ex-Alf Mil da CCAÇ 617/BCAÇ 619,
Catió,
Ilha do Como e Cachil, 1964/66), com o João Bacar Jaló, cap comando graduado, comandante da 1ª CCmds Africanos. João Sacôto, que foi comandante da TAP; agora reformado, é membro da nossa Tabanca Grande desde 20/11/2011.
Foto: © João Sacôto (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
[Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67. Foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. Foto à abaixo à esquerda, março de 2016, Oitavos, Guincho, Cascais]
Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XIII Parte > Cap VII - Guerra 1: 15 de maio de 1965, op Razia: a mata de Cufar Nalu agora é nossa!... Viva a merda da guerra!... (pp. 43-46)
por Mário Vicente
Sinopse:
(i) Depois de Tavira (CISMI) e de Elvas (BC 8),
(ii) o "Vagabundo" faz o curso de "ranger" em Lamego;
(iii) é mobilizado para a Guiné;
(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra"):
(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;
(vi) chegada a Bissau a 17:
(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;
(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;
(ix) início da atividdae, o primeiro prisioneiro;
(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia).
Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > VII - Guerra 1: 15 de maio de 1965, op Razia: a mata de Cufar Nalu agora é nossa!... Viva a merda da guerra!... (pp. 43-46)
15 de Maio [de 1965]. Há que efectuar a denominada "[op] Razia”. Reforçada com a milícia do João Bacar Jaló em cooperação com as CCAÇ 728 e CCAÇ 764, a CCAÇ 763 [, emblema à direita,] lança-se na operação que tem como objectivo a conquista e destruição do mítico acampamento do PAIGC na mata de Cufar Nalu.
Não seria obra fácil! Forças especiais tinham passado por
Cufar Nalu [, a norte de Cufar, vd. carta de Bedanda] e nada tinham encontrado. Só que o aquartelamento de
Cufar continuava a ser flagelado várias vezes ao dia. As teorias de Nino insufladas aos seus homens, tínhamos pleno conhecimento, eram teorizadas em ideias dos grandes pensadores revolucionários do marxismo, e que apenas uma ínfima parte ou quase a totalidade dos soldados Portugueses não tinha conhecimento, porque para ali foram mandados para cumprir um dever. Na mentalidade do guerrilheiro já existia toda uma endoutrinação revolucionária baseada no marxismo, contra o imperialismo e seus apoiantes.
Enquanto o soldado português cumpria um dever perante a Pátria, mas sujeito a diversas pressões de índole psíquica individual e externa, o guerrilheiro do PAIGC em qualquer lugar que a morte o surpreendesse, seria um grito que procuraria ser ouvido por outro revolucionário que empunharia a sua arma. Eram estas as condições, desconhecidas pela maioria. Sem politica, a CCAÇ 763 ia entrar na mata de Cufar Nalu.
Ocupando posições, a CCAÇ 764 do lado norte na estrada para Bedanda a nascente barrando o caminho de Boche Mende fica a CCAÇ 728, na orla a sul da mata a CCAÇ. 763, inicia a batida tendo como eixo o caminho que conduz à ex-tabanca de Cufar Nalu, com o 3º. Grupo de Combate em primeiro escalão, seguido do 2º. Grupo intercalando com o grupo de Comando e o João Bacar Jaló com o seu pessoal e o 1º. Grupo cobrindo a retaguarda, a CCAÇ [763] começa a progressão lenta e atentamente.
Passados uns momentos pára tudo e ouvem-se vozes na mata vindo em direcção ao Grupo de Combate que seguia em primeiro escalão. Aos segundos de silêncio sucedem-se dois a três minutos de forte tiroteio. A CCAÇ 763 tinha sido desflorada para a guerra. No contacto com o IN é abatido um guerrilheiro e capturada uma pistola metralhadora de 9mm M25 com carregador e munições de origem checa.
A partir deste momento o contacto é contínuo. O crepitar das armas dentro da mata é ensurdecedor, é difícil contactar com o pessoal mas devagar vamos progredindo. Vagabundo sofre aqui uma grande desilusão, a sua secção homens escolhidos a dedo para acompanharem o Ranger, alguns podem já ser despachados: o Tirante, herói do arame farpado, vendedor de jornais e briguento de profissão sendo o terror do aquartelamento, atira com a G3 fora e tenta esconder-se debaixo dos camaradas; o Velhinho refractário, não se consegue mexer e parece uma bola de sebo ao lume a escorrer gordura; o Matacanha apesar da escola do Forte da Graça em Elvas, só tinha habilidade para a faca; o Maçarico coitado derivado ao tamanho, apenas poderia ser aproveitado para mula de carga. Os restantes são dos bons e só há que ter em atenção o homem da bazuca, pois assim que começa a fogachada tem de se segurar até acalmar, não vá atirar com o cano pró lado e ser herói fugindo para a frente, ou ser cobarde fugindo para trás, tudo era possível nos primeiros tiros.
Depois desta primeira experiência, ficará determinado que o Velhinho vai para a cozinha descascar batatas, bela troca! Veio o Orlando, Vagabundo ganhou aqui um ou o melhor soldado da sua secção; o Matacanha passou a ajudante do padeiro para amassar a farinha, e o Tirante coitado, ficará a aguardar o regresso à Metrópole para no Júlio de Matos dele tentarem fazer qualquer coisa, pois nunca mais deixou de estar embriagado, e, agora com o focinho sempre partido pois toda a gente lhe malha, de herói passou a bombo da festa.
Guiné > Região de Tombali > Carta de Bedanda (1961) (Escala de1/50 mil) > Posição relativa de I Cufar, Cufar Nalu, Rio Cumbijã, Boche Mende e Bedanda
Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016)
Deixemos as tristezas e voltemos à malta que aos poucos vai progredindo na mata em contacto contínuo. Tendo como referência o estreito carreiro, pois já nos apercebemos pelos envolvimentos e forma de nos flagelar que nos querem retirar dessa orientação que não há dúvidas nos levará ao local desejado. Progredindo em contacto permanente, a meio da tarde certificamo-nos, estarmos muito próximo do acampamento pelo que se pede o apoio da artilharia e da Força Aérea com as coordenadas precisas.
Agora sim, com os rebentamentos das granadas dos obuses e os roquetes dos T6 parece estarmos no dia do juízo final, ecoando por toda a mata mais parece tornado descarregando sobre a selva. Os elementos estão em guerra com a Natureza. Verificamos que o efeito prático da artilharia e dos T6 será mais psicológico do que físico, pois agora já se apercebe a situação do acampamento, protegido por altos poilões, árvores enormíssimas cujas copas dificultam a penetração das granadas e que rebentam por cima. O acesso ao acampamento é extremamente difícil! A vegetação de natureza espinhosa e densa, dificulta extremamente a progressão e o pequeno carreiro, tornou-se agora num enfiamento apenas arbustivo que deve ir dar a algo nada agradável.
A noite começa a aproximar-se e aqui ela cai rapidamente, o assalto ao acampamento no anoitecer pode ser um suicídio. Há ordens de tomar posições para pernoitar e se efectuar o assalto de madrugada. A CCAÇ dispõe-se em meia lua em frente do acampamento. Vagabundo distribui o seu pessoal para a pernoita e como o Maçarico ainda não está bem entrosado, manda-o preparar um abrigo para os dois por detrás de uma enorme mafumeira, árvore com três a quatro metros de diâmetro. Pobre do Maçarico! Olhando para o monstro da árvore chama a atenção para Vagabundo:
– Mas. meu furriel, esta árvore está bichosa!
Nem uma granada de obus rebentava aquela fortaleza. Coitado, por causa disto lá era gozado de quando em vez com “a árvore bichosa”.
Durante a noite ouvem-se sons de movimentação no acampamento e vozes sussurrantes. Será que estarão a preparar a defesa até às últimas consequências? Errado! Pela madrugada as bazucas em força, fazem um chuveiro de granadas. A CCAÇ apoiada pela milícia do João Bacar lança um ataque cerrado ao acampamento que se encontrava deserto, pois durante a noite os guerrilheiros tinham abandonado as suas posições. Montada a segurança, não fosse numa variação sermos surpreendidos com algum ataque IN, procedeu-se à busca e destruição de instalações e abrigos alguns cobertos de chapas de zinco que possivelmente seriam da fábrica de descasque de arroz.
[Foto à esquerda: João Bacar Jaló, cap comando graduado, c. 1970]
Para além do guerrilheiro abatido no carreiro, presume-se que tenham havido mais baixas por parte do PAIGC, dadas as poças de sangue e material ensanguentado encontrado nos abrigos e espaldares. Verificamos que de facto para além de extraordinariamente bem camuflado não seria um acampamento mas sim uma fortaleza. Ficou sempre no ar, a forma como se teriam retirado os guerrilheiros, sem serem detectados pelas forças em acção.
Um Grupo de Combate reforçado da 4ª CCAÇ, companhia de nativos de Bedanda, pernoitou no ex-acampamento, para evitar a sua reocupação. Mas não voltará a existir mais nada, por agora a mata de Cufar Nalu fica da CCAÇ 763 e o dia 15 de Maio será o dia oficial da Companhia.
Pelas mesas dos cafés de Bissau, os homens de Cufar foram cantados com grande espanto, pois havia pouco tempo os comandos de Brá tinham percorrido toda a mata e nada tinham encontrado.
Está começada a guerra. Agora taco a taco, vamo-nos perseguir uns aos outros, ferindo ou matando conforme cada um puder. Viva a “Merda da Guerra”! Quem chegar em condições ao seu pedaço de terra, que tenha a coragem de contar tudo o que aqui se passa e sofre!... Vagabundo durante anos pensou muito nos outros de tal maneira que se esqueceu de si. Não sabe para onde vai nem o que faz, só sabe que nada sabe.
Abandonam o conquistado (abandonado) acampamento, seguindo o trilho por onde se teria inteligentemente escapulido a malta do PAIGC, num zig-zag de carreiro que mais parecia labirinto, onde por vezes as curvas em redondo voltam ao mesmo sítio, técnica de visualização à distância, sentindo-se a perfeita arte da guerrilha.
Chegamos à orla da mata, mesmo juntinho ao rio Manterunga [, afluente do Rio Cumbijã], precisamente onde o IN fazia a sua carreira de tiro para o nosso aquartelamento. Metemos pela bolanha e rumamos a casa. Cansados, suados, com a fome e sede já a apertar, agora que o sol já alto queimava e do cantil já não escorria gota de água, Vagabundo, seguindo o conselho do tenente Obstetra, o nosso amigo médico, meteu a mão ao bolso, sacou o frasquinho de whisky e levando-o à boca, bochechou, deitando fora o líquido que deixou a boca grossa, mas atenuou o sentir da sede. Há coisas que parecem loucas, mas dão resultado e o furriel mais uma vez confirmou sentindo a pressão do desejo da água mais aliviado. O pensamento, mais uma vez desprendeu-se e voou, deixando de sentir o esforço das pernas a tirarem os pés da lama num “ploff, ploff” de água e lama saltando pela lingueta das botas de lona.
Gostaria tanto que as coisas fossem diferentes!... Não se sentia bem ali e recordava a mulher que o faz sentir perdido.
Não pára de raciocinar se poderia ter feito mais alguma coisa!?...Eis-me aqui em confusão deguerra com a convicção que é muito fácil ser corajoso, quando não se tem nada a perder, mas não posso arrastá-la comigo nesta lama… Também não quero morrer e não a ver. Nada faz sentido ao estar longe e não estar com ela! Não quero acordar e não saber se a voltarei a ver!... Estou farto de saudades dela e tão pouco sei se ela me recorda. Totalmente dilacerado, quero que ela me una de novo! Psíquica situação esta adoração por essa mulher. É doce sentir nos lábios o acre sabor dos seus beijos que nunca tive…
Como pode um homem ter tanto medo da rejeição daquilo que mais deseja, ficando inerte, imolando-se mentalmente só com medo de ter pela frente a hipótese do não?!... Cobardia? Defesa de não ter força para a rejeição? Será?... A dúvida do que é, onde está! Mais grave: que símbolo sou eu no seu eu!?...
Contornando a mata de Cufar Novo, agora levantando poeira leve e fina dos arrastantes pés, pisando terra de capim queimado, a cabeça da coluna está próxima do arame farpado e da entrada Porta de Armas virada para a pista, antigo portão da quinta do sr. Camacho.
Os que ficaram estão concentrados à entrada. Cerqueira com o seu grupo em primeiro escalão conforme saíram são os primeiros a chegar, esperam e não entram. Carlos, Paolo e João serão os primeiros a fazê-lo. Nesse momento a malta do Almeida vira as G3 para o ar e saem rajadas de vitória gravando nos céus de que o dia 15 de Maio será para todo o sempre um símbolo para terras de Cufar e da CCAÇ 763.
Timidamente primeiro, depois em forte salva, olhos humedecidos, os que tinham ficado aplaudem os seus companheiros e trocam-se sem palavras apertados e solidários abraços. A mata de Cufar Nalu era nossa.
(Continua)
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Nota do editor:
Último poste da série > 6 de agosto de 2016 >
Guiné 63/74 - P16362: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XII Parte: Cap VII: Guerra I: O nosso primeiro prisioneiro, o Calaboço