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sábado, 20 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25089: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (128): O José Monteiro é o autor dos aerogramas que foram parar ao OLX (Mário Fitas, ex-fur mil, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67)


Fonte: OLX > Anúncio >  2 de janeiro de 2024 > Aerogramas Guerra Colonial África Ultramar Cufar Guiné Bissau cartas | 470 € | Negociável

Descrição: "Cerca de 400 aerogramas e cartas na totalidade, do período da Guerra Colonial. Algumas poucas cartas são trocadas na metrópole. Em bom estado e escritas com uma caligrafia facilmente legível."

O vendedor é um tal Jorge, do Porto, Campanhã. ID: 641692604 | Cliques: 291. O anúncio ainda estava "on line" hoje, ao fim da tarde...

https://www.olx.pt/d/anuncio/aerogramas-guerra-colonial-frica-ultramar-cufar-guin-bissau-car


1. É chocante, caros leitores, ver um maço de aerogramas anunciado para venda "on line", ao desbarato. Foram escritos por uma camarada nosso, José..., ex-1º cabo radiotelegrafista, nº mec 1491/64, CCAÇ 763, "Os Lassas (Cufar, 1965/67), a companhia do nosso camarada Mário Fitas, e que teve um intensa atividade operacional no sul da Guiné. (Tem, de resto, mais de 70 referências no nosso blogue.)" (*)

O nosso camarada Mário Fitas,  ex-fur mil da CCAÇ 763, "Os Lassas (Cufar, 1965/67), escreveu ontem, em comentário, no poste P25081 (*):

"É verdade o José era radiotelegrafista e descreve a operação Razia mais ou menos. Vou tentar entrar em contacto com ele, caso ainda seja vivo e tenha o mesmo telefone. 
Abraços do tamanho do Cumbijã

Mário Fitas | 18 de janeiro de 2024 às 18:01 "


Ontem, de manhã, telefonou-nos, confirmando que o tal José...

(i) é o José Monteiro, seu camarada, dos "Lassas";
(ii) foi de facto 1º cabo radiotelegrafista;
(iii) participaram ambos, de facto, na Op Razia, Cufar Nalu, 15/16 de maio de 1965;
(iv) escrevia muitos aerogramas, tendo tido diversas madrinhas de guerra;
(iv) vive ou vivia no Porto;
(v) já foi a dois ou três convívios anuais da companhia.

O Mário ainda não falou com ele. Sabe,  todavia, que há cerca de 30 anos a sua casa foi assaltada, tendo-lhe sido roubados muitos livros e documentos. É possível que os aerogramas em questão tenham desaparecido nessa altura. Mas é preciso averiguar melhor e confirmar se esse também fazia parte do seu espólio.

2. Coincidência ou não, o anúncio no OLX vinha em nome de um tal Jorge (Silva), do Porto, Campanhã, registado no OLX desde 2017. 

Tem mais de 30 anúncios até agora: o  de maior valor (800 euros) é pedido por um "documento emitido durante o período das Invasões Francesas sendo que o nome de Napoleão ocupa o lugar onde usualmente aparece o nome do Rei de Portugal".

É caso para dizer, mais uma vez, que o "Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande" (**).
Obrigado, Mário Fitas, pelas tuas diligências..

(**) Último poste da série > 16 de agosto de  2023 > Guiné 61/74 - P24556: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (127): A "Rainha de Catió" foi a minha adorada mãe e tinha lugar na primeira fila nas cerimónias oficiais, tanto no tempo do gen Schulz como do gen Spínola (Souleimane Silá, Luxemburgo)

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25085: Operação Razia: sector S3, Catió: conquista da base de Cufar Nalu, 15/16 de maio de 1965, com a participação das CCAÇ 617, 763, 764 e CCAV 703


Foto nº 1 > Regão de Tombali > Sector S (Catió) > Op Razia, 15 de maio de 1965: embarque em NRP


Foto nº 2 > Regão de Tombali > Sector S (Catió) > Op Razia, 16 de maio de 1965: tiro de morteiro 60


Foto nº 3 > Regão de Tombali > Sector S (Catió) > Op Razia, 16 de maio de 1965: objetivo conquistado

Fonte: CECA (2014), pp. 315/316

1. Sobre a Op Razia, no Sector S3 - Catió, temos várias referências no n0sso blogue(*). Traduziu-se numa dura batalha em que  o PAIGC sofreu um grande revés. Transcreve-se um certo do livro da  CECA (2014) sobre a atividade operacional no CTIG (até ao fim do ano de 1966):

(...) " Em 15Mai65, durante a operação Razia, com a participação das CCaç 617, 763, 764 e CCav 703, o lN opôs forte resistência no interior da mata de Cufar Nalu e junto ao acampamento, tendo sofrido vários mortos. 

As NT mantiveram o cerco durante a noite, tendo sido assaltada a base de Cufar Nalu, no dia 16, que acabou por ser destruída, sendo capturados vários sabre-baionetas, granadas de lança-granadas foguete, munições, carregadores, catanas e outro material de guerra. 

As NT verificaram que o lN estava disperso pela mata e empoleirado nas árvores e junto ao acampamento estava instalado em trincheiras e abrigos dispostos na periferia. 

O acampamento dispunha de 3 abrigos enterrados, com seteiras e diversos abrigos individuais. A base era constituída por 10 casas de grandes dimensões e 5 mais pequenas, servindo uma delas de enfermaria; a construção era de pau a pique, com cobertura de zinco, numa lotação total de 200 homens; a densidade da mata dava-lhe uma perfeita dissimulação e tomava muito difícil a sua localização." (...)

Texto e fotos: Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 6º volume:  aspectos da actividade operacionaç Tomo II: Guiné, Livro I. Lisboa: 2014. pp. 314/316.



Capa do livro do nosso camarada de Barcelos, Manuel Luís Lomba,“A Batalha de Cufar Nalu”  (Terras de Faria, Lda. 4755-204 – Faria, Barcelos, 2012). Uma batalha de meses, que começou em 20/21 de dezembro de 1964 (Op Ferro, com forças das
CCaç 617 e 728, CCav 703 e 4ª CCaç).  Ver aqui a  nota de leitura feita pelo Beja Santos.



Guiné > Região de Tombali > Carta de Bedanda (1961) (Escala de1/50 mil) > Posição relativa de  Cufar, Cufar Nalu, Rio Cumbijã, Boche Mende e Bedanda

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016)


2. Comentário do editor LG:

A sinopse feita pela CECA (2014) estaria incompleta. No poste P16512, o nosso camarada Mário Fitas escreve:

(...) "15 de maio [de 1965]. Há que efectuar a denominada "[op] Razia”. Reforçada com a milícia do João Bacar Jaló em cooperação com as CCAÇ 728 e CCAÇ 764, a CCAÇ 763,  lança-se na operação que tem como objectivo a conquista e destruição do mítico acampamento do PAIGC na mata de Cufar Nalu. "(...). 

O Mário Fitas acrescenta participação da milícia do João Bacar Jaló e da CCAÇ 728, e por outro lado omite a CCAÇ 617.

(...) "Ocupando posições, a CCAÇ 764 do lado norte na estrada para Bedanda a nascente barrando o caminho de Boche Mende fica a CCAÇ 728, na orla a sul da mata a CCAÇ. 763, inicia a batida tendo como eixo o caminho que conduz à ex-tabanca de Cufar Nalu, com o 3.º Grupo de Combate em primeiro escalão, seguido do 2.º Grupo intercalando com o grupo de Comando e o João Bacar Jaló com o seu pessoal e o 1.º Grupo cobrindo a retaguarda, a CCAÇ [763] começa a progressão lenta e atentamente.

"Passados uns momentos pára tudo e ouvem-se vozes na mata vindo em direcção ao Grupo de Combate que seguia em primeiro escalão. Aos segundos de silêncio sucedem-se dois a três minutos de forte tiroteio. A CCAÇ 763 tinha sido desflorada para a guerra. No contacto com o IN é abatido um guerrilheiro e capturada uma pistola metralhadora de 9mm M25 com carregador e munições de origem checa". (...)

Por outro lado, há que ter em conta que estas conquistas de terreno, num guerra de guerrilha e contra-guerrilha, eram sempre "voláteis" e "efémeras"... Já antes em 16Ago64, se tinha realizada a Op Bornal com forças das CCaç 557, 617 e 4.ª CCaç:

(...) " O ln ofereceu resistência à penetração das NT na mata de Cufar Nalu, causando 1 morto e 2 feridos; emboscou 2 GComb da CCaç 557 na estrada Catió-Batambali, próximo do cruzamento de Cufar, quando se procedia à limpeza do itinerário (30 abatizes levantados), tendo sido posto em fuga pela reacção das NT; o ln sofreu 11 mortos, além de outras baixas não estimadas." (CECA, 2014, pág. 266).  

E em 20 e 21Dez64, haverá outra operação, a Op  Ferro, "com forças das CCaç 617 e 728, CCav 703 e 43 CCaç na mata de Cufar Nalú, apoiadas pela FA. O ln flagelou as NT fazendo 3 feridos e sofrendo 2 mortos e 1 prisioneiro; emboscou forças da CCaç 728  na parte sul da mata, causando 5 feridos às NT" (ECA, 214, pp. 267/268).
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Nota do editor:

(*) Vd. postes de:

17 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25081: As mulheres que afinal foram à guerra (21): Cerca de 400 aerogramas estavam ainda esta manhã à venda, ao desbarato, no OLX - Parte I - O remetente era o nosso camarada José..., ex-1º cabo radiotelegrafista, nº mec. 1491/64, CCAÇ 763, "Os Lassas" (Cufar, 1965/67) - II ( e última) parte: As agruras de um operacional de trms no mato: a Op Razia, 15/16 de maio de 1965, relatada a uma jovem correspondente

(...) Amor, o motivo de eu não te ter escrito é o facto, primeiro de ter estado novamente com febres, mas desta vez foi pior que a outra. E a outra razão é motivada por ter que ter ido fazer uma operação especial, à tal mata que já te tinha dito, [aonde ] ainda não se tinha conseguido lá ir entrar, pois os terroristas não o consentiam.

Essa operação demorou vários dias, ou seja, ao certo três dias, os quais todos nós passámos o que só Deus sabe. Mas não interessa agora o cansaço, nem o susto que apanhámos, pois não tivemos um único ferido, nem morto e conseguimos lá entrar.

As balas [choviam] por todos os lados, os morteiros e as bazucas também não se calavam, enfim, isto contado não acreditam 99% do que se passou.

Os tiros que mais medo nos metiam, e que vinham de cima das árvores, e nós não conseguíamos [localizá-los].  Estivemos  assim uma boa hora que para nós  [pareceu] toda a nossa vida, até que o fogo cessou. Depois fomos nós ao ataque, mais tiros para ambos os lados, mas eles não consentiam que se lá [entrasse].

Tivemos, então, que recuar para dar vez da artilharia fazer a sua parte de ataque. Então começaram a cair morteiros e obuses em cima do acampamento inimigo. Por sua vez, os aviões bombardeiros  [T6] começaram a bombardear também. Num curto prazo de 15 minutos a mata começou a arder por todos os lados. Tivemos que esperar que ardesse para voltar novamente ao ataque.

Não fazes uma pequena ideia como é que nós estávamos nessa altura. Mesmo debaixo do fogo, nós andávamos para a frente. Nessa altura, não se pensa em ninguém, só se pensa em frente [?] e nada mais.

Juntamente connosco, estiveram também presentes mais três companhias e a aviação. Estiveram também presentes a equipa de cinema [fotocines] para mandarem depois para a metrópole. Qualquer dia destes deves ler no jornal, até podes ver a partir do dia 17, pois nós entrámos lá no dia 16, altura em que conquistámos a mata. (...)

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Guiné 61/74 - P17258: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XX Parte: Cap XI - Como se Constrói uma Capela... ou o insólito encontro com o carismático capelão Monteiro Gama, do BCAV 490 (Binta e Farim, 1963/65)


Guiné > Região do Cacheu > Binta > O capelão Gama, na capela de Binta, ao tempo do BCAV 490 (1963/65) (*).  [Imagem:  capa do jornal  “Sempre em Frente”,  nº 2, edição do BCAV 490 & Companhias. Revista do arquivo pessoal do JERO].



Guiné > Região de Tombali  > Cufar > A capelão do "São Carlos", em Cufar 


Foto (e legenda): © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67. Do mesmo autor já aqui publicámos, em 2008, em dez postes, o seu fascinante livro "Pami N Dondo, a guerrilheira", ed. de autor, Estoril, 2005, 112 pp.

Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. Foto em baixo, à direita, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais, março de 2016]

Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XVIII Parte > Cap IX - Guerra 2 (pp. 62-66)


por Mário Vicente

Sinopse:

(i) faz a instrução militar em Tavira (CISMI) e Elvas (BC 8),

(ii) tira o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra");

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:

(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):

(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;

(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante militar, pelo "ronco" da Op Saturno;

(xiii) chega a Cufar o "periquito" fur mil Reis, que é devidamente praxado;

(xiv) as primeiras minas, as operações Satan, Trovão e Vindima; recordações do avô materno;

(xv) "Vagabundo" passa a ser conhecido por "Mamadu"; primeira baixa mortal dos Lassas, o sold at inf Marinho: um T6 é atingido por fogo IN, na op Retormo, em setembro de 1965;

(xvi) a lavadeira Miriam, fula, uma das mulheres do srgt de milícias, quer fazer "conversa giro" com o "Vagabundo" e ter um filho dele;

(xvii) depois de umas férias  (... em Bissau), Mamadu regressa a Cufar e á atividade operacional: tem em Catió, um inesperado encontro com o carismático capelão Monteiro Gama...



Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XX Parte: Cap XI:  Como se constrói uma capela (pp. 66-69)


Seca Adegas, pilotando a Dornier, fez-se à pista como que fazendo a aproximação a um grande aeroporto. Suavemente a pequena aeronave DO foi tocando a pista de terra batida, do “Cufar Internacional Airport”. Cemitério de aviões, segundo o comandante da BA 12 em Bissalanca, com entendimento perfeito de causa.

Não seria só por razões mecânicas e de guerra que a pista de Cufar era muito visitada. Constava-se que o óptimo pão ali confeccionado e o bom acolhimento dado por aquele pessoal do mato, também contribuíam para as múltiplas escalas.

Carregada de correio, a avioneta imobilizou-se a uns vinte metros da improvisada porta de armas do aquartelamento de Cufar. Mas, para além do correio, também eram viajantes duas importantes aves que faziam o seu regresso de férias ao mato, os furriéis Carlos Costa e Mamadu, este último sem barbas, com ar evangélico, mais parecia um menino de coro.

Férias em Bissau, sem barbas!?...Por onde andaria este abutre? Com os seus escritos e poemas, cheira a bailaricos e convívios com malta do Liceu Honório Barreto. Bruxos! E não só!... O Tambinha e o Pintainho Teso que contem as histórias de Bissau com a Ju e a mulatinha caboverdeana loira, de olhos verdes.

Aves raras estas! Mas… até que as coisas com eles não funcionavam mal excepto quando à mente lhes vinham recordações das pseudo namoradas e cabeças ornamentadas. Quando isso acontecia, era mais seguro fugir para a mata de Cufar Nalu.

Mamadu desceu da avioneta e, pegando no seu saco, atirou-o para as costas e aos assobios e gritando à malta, desceu o caminho poeirento de terra vermelha, até entrar no edifício onde funcionava a messe de sargentos e também tinha o seu quarto. Ainda mal entrava, já clamava pelo seu impedido Amadu Baldé e pelo Lopez. Estava com sede e tinha saudades do copo de bambu.

No entanto, o regresso ao mato, por conseguinte à guerra, acaba ou começa com tudo! Quem somos nós para determinarmos as linhas que nos são traçadas?

Acontecimentos? Logo toma conhecimento dos últimos e dos primeiros. Infelizmente alguns já sabia. Não valia a pena mexer mais na merda. A emboscada e a morte do Indrissa na estrada de Catió, tudo soubera em Bissau, terra de muito saber, principalmente pelos heróis do papel cuja sabedoria e bélicos actos pelas mesas de restaurantes e bares vão verborreando.

- Estais errados! Meus amigos… a guerra?... é aqui! Sim… aqui no cu de Judas! Aqui no mato é que se canta a missa com três “cleros” como soi dizer-se na minha adorada Planície.

Ainda não tinha acabado de lamber o copo de bambu, e já tinha na frente o colega Ranger alferes Almeida, comandante do seu grupo de combate, alcunhado de “Cabeça de Andorinha” pelo ex-comando eborense Prata que nunca chegou a saber-se porque ali tinha ido parar.
-Conversa séria! - informa Almeida.
-Amanhã vamos a Catió, a nossa missão é fazer a segurança da coluna de reabastecimento e a tua secção vai na frente, o Chico Zé pica a estrada e vai o Prata com o pessoal do Tambinha que, como sabes, só regressa na próxima semana.
-Porra! É pá… vocês estavam à minha espera!
-Nem me é permitido saborear uma noite desta bela Cufar!
-Queres saborear Cufar ou a Miriam? - atirou, jocoso, Almeida.
-Está certo, vou falar com a minha malta e verificar como estão. Já tinha saudades deles.

O alferes voltou atrás e informou Mamadu:
-Cuidado! O teu pessoal tem alinhado constantemente no fado e julgo não estarem bem, mas amanhã levas reforço.

O furriel dirigiu-se ao abrigo dos Vagabundos. Grande alegria pelo regresso do chefe. Mas… as lamentações começaram logo por terem andado a alinhar nas operações e praticamente sempre na frente.
- Assim que o apanharam fora, tem sido uma maravilha, não falhamos uma! -saiu em uníssono das bocas dos militares.

Mamadu ficou triste, e não teve coragem para falar da saída no dia seguinte. À noite passaria novamente pelo abrigo e então falaria sobre o assunto, seria melhor contar algumas histórias de Bissau. Problemas da guerra, regresso do pagode, entrada imediata na escala. Que fazer? Resolver o problema! E assim os Vagabundos só à noite tiveram conhecimento daquela saída.

Madrugada! Artilhado à maneira, boina preta e lenço da mesma cor no pescoço, Mamadu regressa à guerra com os seus Vagabundos em primeiro escalão do grupo de combate. Na frente Amadu, soldado fula do recrutamento nativo, arranca pela picada ladeante da pista de aviação. Após a leve descida que dá acesso à entrada da mata de Cufar Nalu, o andamento começa a abrandar até parar. O preto Amadu não quer andar. O suor corre-lhe em bica, as mãos trémulas mal seguram a G3 e suplicante diz para o furriel:
-A mim não, “furiel”!

Estás fornicado Mamadu! O Amadu era talvez o soldado mais fraquinho dos homens do furriel. Depois da célebre renovação da secção, recebera três soldados do recrutamento local, mas este Amadu estava muito distante da prestação dos seus camaradas.

Mamadu conversa com os seus homens e todos recordam a emboscada da semana passada e mais um voluntário que deixara o vazio da sua presença. Ao furriel, mal ou bem, apenas resta ser rápido na resolução da situação.
-Certo, vocês não querem? Então vão seguir-me!

Mais um disparate! Colocando a G3 no ombro em jeito de cajado, começa a andar entrando no arbustivo túnel da mata que cobria a picada a uns duzentos metros do cruzamento do Cabaceira. Alguns passos dados, Orlando salta para a frente do furriel e diz:
-Não, à frente, como é que comanda isto? Vou eu para a frente e outro que me siga, o meu furriel tome o seu lugar. Nesta merda tanto se morre de pé como deitado. Vamos embora!

Homem valente!... Orlando vai para a frente, seguido do Fumaça. Mamadu toma a terceira posição como sempre, e os Vagabundos reencontram o moral.

A marcha continua com redobrados cuidados, não só pelo perigo de emboscada, mas para dar oportunidade à malta do Chico Zé verificar toda a raiz que picavam.

Sem problemas até Catió, Mamadu junta a sua malta na esplanada do Zé Siriano para com umas cervejas frescas comemorar o seu regresso.

Viaturas carregadas, há que almoçar e preparar o regresso a Cufar e que será de viatura até Priame, tabanca fula com alguns mandingas a dois quilómetros de Catió. Aqui uma pequena paragem para o Chico Zé dizer adeus à Fanta, bajuda mandinga, escultura de ébano, depois fazer o mesmo que de manhã em sentido inverso. Mas!... Há sempre um mas, na porra desta guerra. Seguia para Cufar um padre, não o do Batalhão, mas outro que ninguém sabia o porquê do seu passeio. Tudo normal, só que o Almeida, comandante do grupo de combate, se aproxima de Mamadu e lhe comunica:
-O padre que levamos para Cufar quer ir na frente, portanto vai contigo!
-Comigo!? Estás maluco! Nunca… andamos aqui a brincar ou quê? Então tu sabes os problemas que tive de manhã com a minha malta, pelo que aconteceu a semana passada, e queres que leve um homem sem armas, a servir de carne para canhão? Não… estou quase, mas ainda não estou louco. Porque é que o sacana do padre não vai sentadinho numa viatura? Almeida, desculpa lá, mas não me fodas mais os miolos!

Almeida compreende o problema, mas é peremptório:
-O padre faz questão de ir na frente!

O furriel fica com a mosca.
-Está bem!... Albarde-se o burro à vontade do dono, onde está o sacana? O gajo que venha para a frente!

Por este motivo, Mamadu tem de fazer uma redisposição na segurança da sua secção e não vá o diabo tecê-las, chama o Sesimbra e ordena-lhe:
-Vai um padre connosco, é teu, em qualquer situação não o podes abandonar, se houver merda preocupa-te apenas com o padre. Tens de protegê-lo nem que o metas debaixo de ti. Se me morre aqui o padre ou é ferido, é uma bronca do caraças!

Aparece o padre. Cabelo a branquear, homem pequeno e magrinho, cara um pouco enfezada pronunciando para além de certa idade os efeitos de uma dura vivência nesta linda, mas inóspita terra tropical. O que andará esta ave de arribação a fazer por estas paragens? Enquanto cogita, o furriel continua a observação da fisionomia e postura do padre. O homem apenas trazia um bornal pendurado do ombro esquerdo e na mão direita caída, rolava uma dezena. 


Mamadu fixou e regredindo, verificou ser perfeitamente igual à que existiria em casa de seus pais, recordação de quando era escuteiro e percorria caminhos da Igreja. Sacode a cabeça e, tentando afastar o passado,lastima interiormente.
-Droga para esta merda toda.  agora que teria de estar concentrado na porcaria da guerra, vem a anti-guerra!... Que porra de vida a minha, há que esquecer! Pessoal toca a andar olhos e ouvidos bem abertos.

É reatado o regresso com tudo a correr bem até à lala que dá acesso à leve subida para o Cabaceira, cruzamento de Camaiupa da estrada Catió-Cobumba, desviando para o aquartelamento de Cufar e tabancas de Cantone, Mato Farroba, Iusse e Impungueda. Almeida comandante do grupo de combate transmite pela rádio que há problemas com a carga de uma viatura, o material mal acomodado pelo que a coluna tem de parar.
-Fo…!

Ia sair, mas o furriel ficou a meio notando a presença do padre. Ali não poderia ser. Ajeita o rádio banana, e transmite com “Águia Dois”:
-Estou mesmo na baixa da lala, vou subir até ponto cruz e montar dispositivo. Escuto!?
-O.K., Vagabundo! Correcto! Vou informar outras terras!

Mamadu sobe com os seus homens e o padre até ao cruzamento de Camaiupa local altamente perigoso e sujeito a emboscadas. Todos os cuidados e sentidos são poucos para fazer a aproximação até chegar às posições. E o padre a martelar os miolos do desgraçado furriel. Sem problemas o pessoal é posicionado em emboscada, o Ferreira com a MG 42 é colocado no enfiamento da estrada de Cobumba,  ficando a seu lado o Amadu como remuniciador, Olindo com a bazuca fica no canto oposto, acompanhado do Maçarico de forma a ter ângulos mais disponíveis. O cabo Cigarra fica com mais três a cobrirem a ponta da mata de Cufar Nalu, Orlando, o Félix e o Fumaça avançam um pouco já na estrada de Cufar, o Sesimbra com o padre e dois soldados da milícia do João [Bakar Jaló]ficam entre estes dois grupos. A secção do Chico Zé que vinha picando a estrada, fica emboscada no capinzal.

Dispositivo montado, o furriel,  embora já conhecedor da mata e da estrada,  vai verificar em pormenor o posicionamento do grupo do padre. Aí olha bem para o homem que assim pequenino, lhe faz recordar seu avô. Com um ar malicioso e sorridente, o padre olha para Mamadu e diz-lhe baixinho:
-Comandante, vai uma cervejinha?

O furriel estupefacto olha firme para o padre e pensa:
- Este gajo está-me a gozar!?...Que é que esta espécie de ave rara quererá?

Surpresa!... O padre abre o bornal calmamente, e, retirando uma cerveja, tira-lhe a cápsula e oferece a Mamadu, fazendo o mesmo com o soldado Sesimbra.
-Porra!... Estamos nas bodas de Canaã da Galileia?

Em fim de tarde, com aquela pressão toda e o calor a sufocar, aquela cerveja era de morte, autêntica dádiva do céu. Abençoado padre!... Como passaste de chato para bem vindo!

Ordem de Águia dois para avançar.Reorganizada a coluna, o furriel aproximou-se do padre. Bom homem! Não pelas cervejas mas principalmente pelo entendimento da vida e até uma certa comunhão de ideias. Naqueles quatro quilómetros de andamento falaram de tudo um pouco. A guerra e todos os seus dramas, África a sua beleza encantos e misérias, do Papa João XXIII, dos tempos em que Mamadu tinha sido escuteiro e não ter sido missionário ou mesmo padre, quem sabe? Por causa de uma mulher. Que encanto de saber e cultura tinha aquele homem pequenino!...

O furriel ficou passado com a convivência com aquele homem, nos dias que passou no aquartelamento. Embora sabendo que no comando, principalmente às refeições as conversas, não eram as mais simpáticas para com o padre, pois a todo o momento se falava do Marquês de Pombal e dos Távoras, com pleno conhecimento da Companhia de Jesus a que o padre pertencia.

Mas algo de anormal aconteceu com a sua estadia naquele fim do mundo e que deu origem à construção da capela de Cufar.

O que foi!?... Não há entendimento humano para isso!

Quando o Padre pequenino, Homem Grande foi acompanhado à avioneta que o levaria a outras paragens, pelo próprio Carlos, Mamadu mais baralhado ficou quando o padre lhe segredou:
-Comandante, vão ter aqui uma capela!

Atónito o furriel questionou:
- Mas, padre, o que é isso de me chamar comandante e como aconteceu isto da capela?
- Comandante, é que o meu amigo é guerrilheiro, não “anti”! A Capela só Deus sabe!

O Padre partiu e todos nos sentimos mais pobres. Mamadu ficou boquiaberto quando Carlos mandou edificar a Capela e recordou Shakespeare: “Há mais mistérios entre o Céu e a Terra do que sonha a nossa vã filosofia”.

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(...) Convivi com o capelão do batalhão de infantaria, a que pertenci, o padre Gama. O primeiro nome já não o recordo. Tinha, na altura, o posto de tenente, o que me leva a pensar que terá pertencido, anteriormente, a outras unidades.

Era um homem bom. Chamavam-lhe 'pardal espantado'. A alcunha vinha-lhe do facto de passar os seu dias a correr de um lado para o outro, de destacamento para destacamento, de companhia para companhia, movido pelo desejo de a todos ajudar um pouco.

Muitas vezes era incompreendido, até indesejado por alguns, pois tinha coragem para denunciar
os abusos, quando os presenciava.

Era um homem desprendido dos bens materiais, e levava uma vida humilde. (...)


Vd. também postes de:

3 de setemebro de 2008 > Guiné 63/74 - P3164: Em busca de... (37): Capelão Gama, do BCAV 490 (Teresa de Seabra)

(...) Olá, estive em Farim em 1964-1965, onde meu Pai era o Administrador do Concelho e conheci muita gente do Batalhão 490..

Morando no Estoril, há 3 anos soube que o Tenente Coronel Cavaleiro se encontrava no Lar em Oeiras. Em 1966, em Lisboa, reencontrei-o e a várias pessoas daí, conhecendo as respectivas famílias. Mas perdi o rasto do padre Gama, capelão do Batalhão, quando foi para o Brasil, lá para 1974.

Já estive em Bissau a matar saudades - fui como Professora, que sou, e devo estar viva graças ao 'Nino' Vieira que me mandou regressar a Portugal à custa da Guiné-Bissau.

Deram-me 6 meses de vida, por causa de um vírus tropical apanhado em Bubaque, mas... já estive em Macau e por meio mundo e... cá estou eu.

Será que o Padre Gama ainda é vivo??? Estava muito doente, em 1974-5, no Brasil, depois de ido de Angola.(...)



(...) E chega o momento de desvendar quem era o Director «Constante», o Editor «Constâncio» e o Redactor «Constantino».

Foi o lendário Capelão Padre Monteiro da Gama que, atrevemo-nos a dizer, foi um dos grandes homens do seu tempo na Guiné.

Neste momento tão especial do nosso blogue aqui fica também a nossa humilde homenagem à sua memória.

Num tempo em que tanto se fala dos problemas da Imprensa e dos jornalistas e da promiscuidade e jogos interesses que “moram” junto do Poder, sabe-nos bem recordar pessoas como o Padre Gama! (...)



domingo, 6 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16688: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XIV Parte: Cap VII: Guerra I: O PAIGC passa a alcunhar-nos de "Lassas" (as abelhas que só são agressivas, quando as chateiam)



Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) >  Os Lassas cambando um rio


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > Os Lassas na abertura da estrada Cufar-Cobumba.

Fotos (e legendas): © Mário Fitas   (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



[Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67. Foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. Foto à abaixo à esquerda, março de 2016, Oitavos, Guincho, Cascais]




Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XIII Parte > Cap VII - Guerra 1:  Os "lassas", alcunha que lhes é dada pelo PAIGC... (pp. 46-48)

por Mário Vicente 

 Sinopse:


(i) Depois de Tavira (CISMI) e de Elvas (BC 8),

(ii) o "Vagabundo" faz o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra"):

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:

(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix)  início da atividdae, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):

(xi) a malta  CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN.



Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XIV Parte > VII - Guerra 1:   Os "lassas", alcunha que lhes é dada pelo PAIGC... (pp. 46-48)
  
 
Vagabundo estava extenuado, precisava beber qualquer coisa e dormir um pouco para atenuar o cansaço físico e psíquico em que se encontrava. Foi ao abrigo, deixou arma e cartucheiras e pegando num cobertor, rumou ao bar, bebeu uma garrafa de água e levou uma cerveja que foi bebendo até à parte nova do aquartelamento em construção. Esticou a manta no chão, debaixo de um cajueiro junto ao futuro abrigo da sua secção e quase de imediato adormeceu. Deve ter acontecido o mesmo com toda a gente porque duas horas e tal passadas quando acordou, o silêncio era total. Cufar parecia terra fantas­ma abandonada. Levantou-se e desceu até ao abrigo de novo, para aí deixar o cobertor. Encontrou o Orlando limpando a sua arma e a dele. Vagabundo ajudou um pouco na tarefa, mas a cabeça ainda continuava muito oca, pelo que disse ao soldado:
– Olha! Vou tomar um banho. Acaba com isso e vai até à messe para bebermos qualquer coisa!

Pegou na toalha e dirigiu-se para os chuveiros. Meteu-se vestido debaixo de água e assim foi retirando a lama que ainda enchia o camuflado. Lavou as botas de lona e só depois se despiu e tomou o seu duche quente. O calor fazia a água quase ferver, nos bidões dos chuveiros. Sim, porque esse luxo tinham aqueles desgraçados, água sempre quentinha. Calçou as botas mesmo molhadas, enrolou a toalha ao corpo e dirigiu-se para o abrigo onde vestiu uns cal­ções e uma camisa de caqui. Orlando esperava pelo furriel, os dois encaminharam-se para o improvisado bar. Quando subi­am os degraus da velha fábrica de descasque de arroz, ouviram um tiro mesmo nas suas costas. Viraram-se rapidamente, mas não viram ninguém. O tiro partira de certeza, do abrigo em frente! Correram para lá. A meio do caminho, surgiu do abrigo o Barreirense. Muito pálido, abrindo os braços qual Cristo crucifi­cado, começou a gritar:
– Estou morto! estou morto!
– É pá, o que é que foi que aconteceu?– perguntou-lhe Orlando.
– Estou morto! Estou morto!

Era única e simplesmente o que saía da sua boca. Pegaram nele, sentaram-no nos degraus e a malta começou a rodeá-lo querendo saber o que estava acontecendo, mas o amigo Barreirense, nada mais dizia para além de que estava morto. Vagabundo, mirando bem o lívido soldado, não vislumbrou qualquer sinal de feri­mento ou coisa parecida. O furriel pegou-lhe no braço, abanou-o com rigidez e gritou-lhe:
– Porra! Barreirense,  que merda é esta? Se nem ferido estás, como podes estar morto?! ..
Escorrendo suor por todos os poros, o soldado olhou para Vaga­bundo e, num sussurro, que foi aumentando, começou:
– Estou vivo? Eu estou vivo, meu furriel?
– Sim! Pelo menos respiras e falas. O que é que tens, homem?

Quase meia companhia rodeava já o soldado Barreirense. Entre­tanto já alguém tinha trazido um copo de água que Barreirense bebeu, babando-se todo. Após ingerir parte da água, virou-se novamente para o furriel, e então contou:
–Ai que eu ia-me matando, meu furriel!... Estava lim­pando a arma e quando fui mirar o cano, ainda não tinha acerta­do o olho, a G3 disparou sem eu saber como!

Teve sorte o Barreirense, pois limpar uma arma sem verificar primeiro se havia algum projéctil dentro da câmara, é noventa por cento de hipótese de acidente.

Agora já toda a gente ria, incluindo o próprio, com a sua figura de Cristo andante, gritando que estava morto.
–Vá, vamos lá beber uma cerveja à conta da tua morte! – disse o furriel puxan­do o soldado pelo braço.
– Meu furriel, eu não bebo cerveja que não gosto, mas bebo um copo de vinho, e eu é que pago já que estou vivo!
– Não, eu é que convidei – ripostou  Vagabundo.

Era interessante este rapaz, Barreirense de alcunha. Latoeiro de profissão, percorria todo o Alentejo arranjando alguidares, pa­nelas rotas, pondo pingos ou fundos. Por vezes lá falava das ter­ras do concelho de Elvas e costumava brincar com Vagabundo dizendo:
– O meu furriel é malandro, tem a escola toda, aprendeu na Colónia! ...

Mais tarde o Barreirense tomou-se o vaqueiro da companhia, cuidadoso lá seguia, G3 às costas com o seu gado para junto da lagoa, onde o pasto era farto.

À noite, já refeitos e já com etílicas vaporizações de whisky e cerveja, a malta festejou então a vitória em Cufar Nalu. Chico Zé, António Pedro, Jata, Vagabundo e o Artilheiro, um homem da guitarra, cantaram os seus fadinhos de Coimbra. Chico Zé adorava:
“Do Penedo até à Lapa
Foi Coimbra os meus amores.”


Conheciam-se-lhe alguns fados mas este de Coimbra, devia ser secreto. Enfim, todos teriam os seus e algum seria sempre secreto.
Em termos operacionais a CCAÇ  não parava: patrulha­mentos, golpes de mão, controle da população a sul... Ainda se saboreava a vitória de Cufar Nalu e já na semana seguinte se volta a desbravar caminho, ao colaborar na desobstrução da estrada de Bedanda, escoltando uma coluna auto para o efeito. Até às dez da manhã já se tinham retirado mais de trinta abatises, e tudo árvores de grande porte. Enquanto continua a desobstrução da estrada, agora a escolta é feita por outra compa­nhia, a Companhia recebe a missão de se deslocar para a região de Cabolol que deveria reconhecer. Foi aqui em Cabolol, conti­nuação do corredor de Guilege por onde o PAIGC fazia o seu abastecimento para o interior, que a CCAÇ. se comportou heroi­camente, mas também onde levou nos cornos até dizer chega. Se a oportunidade não nos faltar, havemos de contar algumas histórias tristes e outras alegres também, desta merda de Ca­bolol.

Seguindo a missão recebida, a CCAÇ. dirige-se para a tabanca de Cabolol Balanta, encontrando-a deserta. Como norma qualquer povoação que fosse encontrada deserta era destruída. Quando se procedia à destruição, a CCAÇ foi atacada, mas a pronta reacção e envolvimento da malta, moralmente bem e já com um entrosamento razoável, pôs o IN em fuga. 

Daqui rumou para Cabolol Lande onde, da mesma forma a povoação se encontrava deserta. Novamente atacados quando se efectuava o ritual da destruição, IN posto em fuga, Carlos cheirou-lhe a "bate e foge" para diversão, pelo que ordenou pela rádio para redobrada atenção, pois os grupos que nos perseguiam e chateavam podiam estar unicamente a fazer diversão. Atingiu no alvo. Quando preparávamos a retirada, da mata ao lado, foi do bom e do bonito: até armas pesadas e RPG2 metia. Lá se pediu o apoio da força Aérea e só depois da intervenção dos velhotes T6, é que se conseguiu calar a banda, contra atacar e desalojar o IN. A operação foi interrompida, dado o número de abatises ser enorme e a impossibilidade da desobstrução em tempo útil.

Por informações recebidas, a CCAÇ 763 será conhecida no PAIGC com a alcunha de “Lassas”. Pelo que se veio a saber, “lassa” será uma espécie de abelha existente na Guiné que,  não sendo molestada, não provoca problemas, mas se for atacada é terri­velmente perigosa,  ficando enraivecida. 

Esta alcunha resultaria, portanto, da actuação da Companhia, pois quando chegava a uma tabanca, em que a população estivesse e não fugisse, não haveria problemas, pois falava-se com essa gente e tentava-se resol­ver os problemas que houvesse. Se, caso contrário,  a população fugisse e abandonasse as suas moranças, as mesmas eram literal­mente destruídas. Pelo que ficou a partir deste momento a CCAÇ crismada como "Lassas".

Continua-se a patrulhar Cufar Nalu e agora Boche Mende também. Faz-se nomadização e temos informações que o IN está a obrigar as populações a dirigirem-se para a região de Cabolol, mais a norte. Solicita-se uma equipa administrativa de Catió para proceder ao recenseamento das tabancas controla­das. Este recenseamento é útil pois, através dele, conseguimos a identificação de alguns cooperantes e guerrilheiros pertencentes ao ex-bando de Cufar Nalu. É imperioso não largarmos este controlo, já que sabemos haver gente infiltrada na população. Em Iusse, o chefe de tabanca desaparece, fuga ou rapto? Na mesma tabanca Suza na Mone, dado como desertor do PAIGC, é abatido ao fugir à aproximação de um grupo de combate que fazia a tentativa da sua recuperação. Num golpe de mão a Fantone, é feita prisioneira Dite na Baque, a mulher chefe do Partido. O PAIGC sabe que não facilitamos e isso é muito importante.

Nesta altura o moral é de tal ordem que nos deslocamos às tabancas controladas de jeep com apenas dois ou três ele­mentos e vamos a Catió sem descer das viaturas e sem seguran­ça. É necessário todavia, não entrar em euforia, a guerrilha não é para brincar e deve ter-se mais cuidado para não haver surpre­sas.

(Continua)
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Nota do editor:

Últimos postes da série > 22 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16512: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XIII Parte: Cap VII: Guerra I: 15 de maio de 1965, op Razia: a mata de Cufar Nalu agora é nossa!... Viva a merda da guerra!...

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16512: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XIII Parte: Cap VII: Guerra I: 15 de maio de 1965, op Razia: a mata de Cufar Nalu agora é nossa!... Viva a merda da guerra!...


Lisboa > 1970 > O nosso camarada João Sacoto (ex-Alf Mil da CCAÇ 617/BCAÇ 619,Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66), com o João Bacar Jaló, cap comando graduado,  comandante da 1ª CCmds Africanos. João Sacôto, que foi comandante da TAP; agora reformado, é membro da nossa Tabanca Grande desde 20/11/2011.

Foto: © João Sacôto  (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



[Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67. Foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. Foto à abaixo à esquerda, março de 2016, Oitavos, Guincho, Cascais]




Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XIII Parte > Cap VII - Guerra 1: 15 de maio de 1965, op Razia: a mata de Cufar Nalu agora é nossa!... Viva a merda da guerra!... (pp. 43-46)

por Mário Vicente 

 Sinopse:


(i) Depois de Tavira (CISMI) e de Elvas (BC 8),

(ii) o "Vagabundo" faz o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra"):

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:

(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix)  início da atividdae, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia).



Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > VII - Guerra 1:  15 de maio de 1965, op Razia: a mata de Cufar Nalu agora é nossa!... Viva a merda da guerra!... (pp. 43-46)

15 de Maio [de 1965]. Há que efectuar a denominada "[op] Razia”. Reforçada com a milícia do João Bacar Jaló em cooperação com as CCAÇ 728 e CCAÇ 764, a CCAÇ 763 [, emblema à direita,] lança-se na operação que tem como objectivo a conquista e destruição do mítico acampamento do PAIGC na mata de Cufar Nalu.

Não seria obra fácil! Forças especiais tinham passado por Cufar Nalu  [, a norte de Cufar, vd. carta de Bedanda] e nada tinham encontrado. Só que o aquartelamento de Cufar continuava a ser flagelado várias vezes ao dia. As teorias de Nino insufladas aos seus homens, tínhamos pleno conhecimento, eram teorizadas em ideias dos grandes pensadores revolucionários do marxismo, e que apenas uma ínfima parte ou quase a totalidade dos soldados Portugueses não tinha conhecimento, porque para ali foram mandados para cumprir um dever. Na mentalidade do guerrilheiro já existia toda uma endoutrinação revolucionária baseada no marxismo, contra o imperialismo e seus apoiantes.

Enquanto o soldado português cumpria um dever perante a Pátria, mas sujeito a diversas pressões de índole psíquica individual e externa, o guerrilheiro do PAIGC em qualquer lugar que a morte o surpreendesse, seria um grito que procuraria ser ouvido por outro revolucionário que empunharia a sua arma. Eram estas as condições, desconhecidas pela maioria. Sem politica, a CCAÇ 763 ia entrar na mata de Cufar Nalu.

Ocupando posições, a CCAÇ 764 do lado norte na estrada para Bedanda a nascente barrando o caminho de Boche Mende fica a CCAÇ 728, na orla a sul da mata a CCAÇ. 763, inicia a batida tendo como eixo o caminho que conduz à ex-tabanca de Cufar Nalu, com o 3º. Grupo de Combate em primeiro escalão, seguido do 2º. Grupo intercalando com o grupo de Comando e o João Bacar Jaló com o seu pessoal e o 1º. Grupo cobrindo a retaguarda, a CCAÇ [763] começa a progressão lenta e atentamente. 

Passados uns momentos pára tudo e ouvem-se vozes na mata vindo em direcção ao Grupo de Combate que seguia em primeiro escalão. Aos segundos de silêncio sucedem-se dois a três minutos de forte tiroteio. A CCAÇ 763 tinha sido desflorada para a guerra. No contacto com o IN é abatido um guerrilheiro e capturada uma pistola metralhadora de 9mm M25 com carregador e munições de origem checa. 

A partir deste momento o contacto é contínuo. O crepitar das armas dentro da mata é ensurdecedor, é difícil contactar com o pessoal mas devagar vamos progredindo. Vagabundo sofre aqui uma grande desilusão, a sua secção homens escolhidos a dedo para acompanharem o Ranger, alguns podem já ser despachados: o Tirante, herói do arame farpado, vendedor de jornais e briguento de profissão sendo o terror do aquartelamento, atira com a G3 fora e tenta esconder-se debaixo dos camaradas; o Velhinho refractário, não se consegue mexer e parece uma bola de sebo ao lume a escorrer gordura; o Matacanha apesar da escola do Forte da Graça em Elvas, só tinha habilidade para a faca; o Maçarico coitado derivado ao tamanho, apenas poderia ser aproveitado para mula de carga. Os restantes são dos bons e só há que ter em atenção o homem da bazuca, pois assim que começa a fogachada tem de se segurar até acalmar, não vá atirar com o cano pró lado e ser herói fugindo para a frente, ou ser cobarde fugindo para trás, tudo era possível nos primeiros tiros. 

Depois desta primeira experiência, ficará determinado que o Velhinho vai para a cozinha descascar batatas, bela troca! Veio o Orlando, Vagabundo ganhou aqui um ou o melhor soldado da sua secção; o Matacanha passou a ajudante do padeiro para amassar a farinha, e o Tirante coitado, ficará a aguardar o regresso à Metrópole para no Júlio de Matos dele tentarem fazer qualquer coisa, pois nunca mais deixou de estar embriagado, e, agora com o focinho sempre partido pois toda a gente lhe malha, de herói passou a bombo da festa.


Guiné > Região de Tombali > Carta de Bedanda (1961) (Escala de1/50 mil) > Posição relativa de I Cufar, Cufar Nalu, Rio Cumbijã, Boche Mende e Bedanda

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016)


Deixemos as tristezas e voltemos à malta que aos poucos vai progredindo na mata em contacto contínuo. Tendo como referência o estreito carreiro, pois já nos apercebemos pelos envolvimentos e forma de nos flagelar que nos querem retirar dessa orientação que não há dúvidas nos levará ao local desejado. Progredindo em contacto permanente, a meio da tarde certificamo-nos, estarmos muito próximo do acampamento pelo que se pede o apoio da artilharia e da Força Aérea com as coordenadas precisas.

Agora sim, com os rebentamentos das granadas dos obuses e os roquetes dos T6 parece estarmos no dia do juízo final, ecoando por toda a mata mais parece tornado descarregando sobre a selva. Os elementos estão em guerra com a Natureza. Verificamos que o efeito prático da artilharia e dos T6 será mais psicológico do que físico, pois agora já se apercebe a situação do acampamento, protegido por altos poilões, árvores enormíssimas cujas copas dificultam a penetração das granadas e que rebentam por cima. O acesso ao acampamento é extremamente difícil! A vegetação de natureza espinhosa e densa, dificulta extremamente a progressão e o pequeno carreiro, tornou-se agora num enfiamento apenas arbustivo que deve ir dar a algo nada agradável.

A noite começa a aproximar-se e aqui ela cai rapidamente, o assalto ao acampamento no anoitecer pode ser um suicídio. Há ordens de tomar posições para pernoitar e se efectuar o assalto de madrugada. A CCAÇ dispõe-se em meia lua em frente do acampamento. Vagabundo distribui o seu pessoal para a pernoita e como o Maçarico ainda não está bem entrosado, manda-o preparar um abrigo para os dois por detrás de uma enorme mafumeira, árvore com três a quatro metros de diâmetro. Pobre do Maçarico! Olhando para o monstro da árvore chama a atenção para Vagabundo:
– Mas. meu furriel, esta árvore está bichosa!

Nem uma granada de obus rebentava aquela fortaleza. Coitado, por causa disto lá era gozado de quando em vez com “a árvore bichosa”.

Durante a noite ouvem-se sons de movimentação no acampamento e vozes sussurrantes. Será que estarão a preparar a defesa até às últimas consequências? Errado! Pela madrugada as bazucas em força, fazem um chuveiro de granadas. A CCAÇ  apoiada pela milícia do João Bacar lança um ataque cerrado ao acampamento que se encontrava deserto, pois durante a noite os guerrilheiros tinham abandonado as suas posições. Montada a segurança, não fosse numa variação sermos surpreendidos com algum ataque IN, procedeu-se à busca e destruição de instalações e abrigos alguns cobertos de chapas de zinco que possivelmente seriam da fábrica de descasque de arroz.

[Foto à esquerda: João Bacar Jaló, cap comando graduado, c. 1970]


Para além do guerrilheiro abatido no carreiro, presume-se que tenham havido mais baixas por parte do PAIGC, dadas as poças de sangue e material ensanguentado encontrado nos abrigos e espaldares. Verificamos que de facto para além de extraordinariamente bem camuflado não seria um acampamento mas sim uma fortaleza. Ficou sempre no ar, a forma como se teriam retirado os guerrilheiros, sem serem detectados pelas forças em acção. 

Um Grupo de Combate reforçado da 4ª CCAÇ, companhia de nativos de Bedanda, pernoitou no ex-acampamento, para evitar a sua reocupação. Mas não voltará a existir mais nada, por agora a mata de Cufar Nalu fica da CCAÇ 763 e o dia 15 de Maio será o dia oficial da Companhia.

Pelas mesas dos cafés de Bissau, os homens de Cufar foram cantados com grande espanto, pois havia pouco tempo os comandos de Brá tinham percorrido toda a mata e nada tinham encontrado. 

Está começada a guerra. Agora taco a taco, vamo-nos perseguir uns aos outros, ferindo ou matando conforme cada um puder. Viva a “Merda da Guerra”! Quem chegar em condições ao seu pedaço de terra, que tenha a coragem de contar tudo o que aqui se passa e sofre!... Vagabundo durante anos pensou muito nos outros de tal maneira que se esqueceu de si. Não sabe para onde vai nem o que faz, só sabe que nada sabe.

Abandonam o conquistado (abandonado) acampamento, seguindo o trilho por onde se teria inteligentemente escapulido a malta do PAIGC, num zig-zag de carreiro que mais parecia labirinto, onde por vezes as curvas em redondo voltam ao mesmo sítio, técnica de visualização à distância, sentindo-se a perfeita arte da guerrilha.

Chegamos à orla da mata, mesmo juntinho ao rio Manterunga [, afluente do Rio Cumbijã], precisamente onde o IN fazia a sua carreira de tiro para o nosso aquartelamento. Metemos pela bolanha e rumamos a casa. Cansados, suados, com a fome e sede já a apertar, agora que o sol já alto queimava e do cantil já não escorria gota de água, Vagabundo, seguindo o conselho do tenente Obstetra, o nosso amigo médico, meteu a mão ao bolso, sacou o frasquinho de whisky e levando-o à boca, bochechou, deitando fora o líquido que deixou a boca grossa, mas atenuou o sentir da sede. Há coisas que parecem loucas, mas dão resultado e o furriel mais uma vez confirmou sentindo a pressão do desejo da água mais aliviado. O pensamento, mais uma vez desprendeu-se e voou, deixando de sentir o esforço das pernas a tirarem os pés da lama num “ploff, ploff” de água e lama saltando pela lingueta das botas de lona.
Gostaria tanto que as coisas fossem diferentes!... Não se sentia bem ali e recordava a mulher que o faz sentir perdido.

N
ão pára de raciocinar se poderia ter feito mais alguma coisa!?...Eis-me aqui em confusão deguerra com a convicção que é muito fácil ser corajoso, quando não se tem nada a perder, mas não posso arrastá-la comigo nesta lama… Também não quero morrer e não a ver. Nada faz sentido ao estar longe e não estar com ela! Não quero acordar e não saber se a voltarei a ver!... Estou farto de saudades dela e tão pouco sei se ela me recorda. Totalmente dilacerado, quero que ela me una de novo! Psíquica situação esta adoração por essa mulher. É doce sentir nos lábios o acre sabor dos seus beijos que nunca tive…

Como pode um homem ter tanto medo da rejeição daquilo que mais deseja, ficando inerte, imolando-se mentalmente só com medo de ter pela frente a hipótese do não?!... Cobardia? Defesa de não ter força para a rejeição? Será?... A dúvida do que é, onde está! Mais grave: que símbolo sou eu no seu eu!?...

Contornando a mata de Cufar Novo, agora levantando poeira leve e fina dos arrastantes pés, pisando terra de capim queimado, a cabeça da coluna está próxima do arame farpado e da entrada Porta de Armas virada para a pista, antigo portão da quinta do sr. Camacho.

Os que ficaram estão concentrados à entrada. Cerqueira com o seu grupo em primeiro escalão conforme saíram são os primeiros a chegar, esperam e não entram. Carlos, Paolo e João serão os primeiros a fazê-lo. Nesse momento a malta do Almeida vira as G3 para o ar e saem rajadas de vitória gravando nos céus de que o dia 15 de Maio será para todo o sempre um símbolo para terras de Cufar e da CCAÇ 763.

Timidamente primeiro, depois em forte salva, olhos humedecidos, os que tinham ficado aplaudem os seus companheiros e trocam-se sem palavras apertados e solidários abraços. A mata de Cufar Nalu era nossa.

(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16362: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XII Parte: Cap VII: Guerra I: O nosso primeiro prisioneiro, o Calaboço