1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Maio de 2016:
Queridos amigos,
Este documento de Albert Memmi não pode ser lido como um panfleto político de um dirigente revolucionário. É uma prosa lúcida, a articulação é perfeita, a análise deslumbra o leitor mais reticente, mesmo o mais incrédulo de que as relações entre colonizador e colonizado são assim tão poderosas como aqui se descrevem, do princípio ao fim. Aqui se desmonta mistificações, sonhos do colonizado em imitar o colonizador, até se chegar ao ponto fulcral em que nos apercebemos que quando se procura suprimir o colonizado, pela força das circunstâncias iria desaparecer a colonização e inclusivamente o colonizador. Trata-se de um ensaio impressionante, obviamente que datado e bastante circunscrito aos países do Norte de África, como a evolução dos acontecimentos veio comprovar.
Leitura que se recomenda a todos o que se interessam por procurar conhecer a essência do que foi o colonialismo e o que separava o colono do assimilado, o que separava o assimilado do nativo e as suas diferentes categorias intercalares. Jamais se perceberá a questão de fundo dos antagonismos e constrangimentos entre guineenses e cabo-verdianos sem entender a dimensão destas categorias.
Um abraço do
Mário
Reler um clássico do colonialismo:
Retrato do colonizado e retrato do colonizador, por Albert Memmi (2)
Beja Santos
Albert Memmi partiu cedo da Tunísia e fez uma promissora carreira universitária em França, é autor de romances, poesia, entrevistas, ensaios, entre outros. Em meados da década de 1950, ainda antes de se ter desencadeado a guerra da Argélia entendeu escrever dois retratos para dimensionar o colonizado e colonizador. Obra de escândalo e aplauso. Acrescia o facto de o autor ter sido detido pelos alemães num campo de trabalho e a sua imagem política era de resistente de esquerda. Deu celeuma as suas considerações sobre o nacionalismo e a esquerda. Os próprios funcionários coloniais se sentiram visados pelas suas considerações no contexto da vida colonial.
A sua escrita é calma, um verdadeiro incentivo ao diálogo. Quando ele diz que o colonialista é a vocação natural do colonizador, não usa palavras de ordem, trabalha com argumentos. Quando ele diz que é corrente opor-se o imigrante ao colonialista que nasceu na colónia, ele desvela como se trata de uma falácia. O imigrante acabará por adotar a doutrina colonialista. Quem nasceu na colónia tem o ambiente familiar, os interesses constituídos, os privilégios recebidos, por natureza o colonialismo restringe a sua liberdade. Quem chega à colónia, forçosamente nela se vai inserir, mas há uma larga franja do grupo colonizador que a tudo se adaptará, ao sistema policial, ao desrespeito pelas culturas nativas: são uns medíocres, aqueles que não têm saída fora daquele contexto colonial e que acabarão por se resignar aos tiques e comportamentos do grupo colonizador, resignam-se ao ramerrão, constituíram a falange da maioria dos homens da colonização.
E chegamos a um dos pontos mais polémicos da obra, em que ele refere abertamente: a situação colonial fabrica colonialistas do mesmo modo como fabrica os colonizados. E di-lo serenamente, a propósito das comparações, inevitáveis a que o colonista procede quando fala da sua pátria:
“O colonialista parece ter esquecido a realidade viva do seu país de origem. Ao longo dos anos, ele esculpiu, por oposição à colónia, um monumento da metrópole tal que a colónia lhe aparece necessariamente vulgar”. O colonialista nunca esquece de referir o calor, a humidade, as cobras, o verde interminável, tem sempre argumentos de contraposição em que a metrópole reúne tudo quanto há de positivo, a própria harmonia dos sítios, o melhor clima, a beleza, etc. O nacionalismo do colonialista tem as suas especificidades. A pátria tolera e protege a sua existência enquanto colonialista. Mas há também a tentação fascista, a máquina administrativa e política da colónia está ao serviço da exploração, funda-se na desigualdade e é garantida pelo autoritarismo das forças policiais, nas cidades e nos lugares mais remotos.
Não menos polémico é o que Memmi diz sobre o ressentimento que o colono guarda da metrópole. Diz sem ambiguidade que ao nível da mesma classe o colonialista está mais à direita que o metropolitano. Não tendo os mesmos interesses que o metropolitano, sente-se preterido na colónia. E temos depois o racismo que resume e simboliza a relação fundamental que une o colonialista e o colonizado. O racismo do colonialista é sustentado pela intensidade nas relações coloniais. E diz Memmi que a análise da atitude racista revela-se em três elementos importantes: descobrir e evidenciar as diferenças entre o colonizador e colonizado; valorizar essas diferenças a favor do colonizador e em detrimento do colonizado; e elevar estas diferenças a um nível absoluto. O colonizador encara esta relação com o colonizado como uma categoria definitiva. É neste ponto que Memmi introduz um elemento perturbador: as más relações entre a Igreja e os colonialistas; estes, quando percebem que o religioso (ou o missionário) apela à libertação espiritual do colonizado, tudo fazem para que a religião do colonizador seja encarada como a etapa indispensável da via da assimilação, o que pode levar à contestação, o religioso pode também entrar em confronto com o colonizador pela recusa do paternalismo, propondo direitos humanos, sindicais, sociais e o fim da discriminação.
Vejamos agora o retrato do colonizado. A imagem apresentada pelo colonizador é de que o colonizado é preguiçoso, é ladrão, despido de valores, esbanjador, sanguinário, acriançado. Assim sendo, há que o vigiar, segui-lo de perto, dar-lhe os valores metropolitanos, os mesmos feriados que há na metrópole, fazê-lo estudar a história da metrópole, sujeitá-lo a muitas provas antes de lhe dar o estatuto assimilado. Perante esta couraça de imposições, só resta ao colonizado encontrar refúgio num conjunto de valores que são os da família, os princípios do clã, assim se impede a amnésia cultural imposta pelo colonizador que pretende demolir a memória do colonizado.
O autor questiona se nos apercebemos porque é que o colonizado possui uma literatura viva rudimentar. Há a língua oficial em que escreve o escritor assimilado e há a realidade dos outros idiomas em que os colonizados sem entendem. O escritor assimilado, por muito que goste da língua que recebeu do colonizador, tem quase sempre a impressão que escreve para um auditório de surdos. E sobre este assunto Memmi profere um juízo radical: a literatura colonizada de língua europeia parece destinada a morrer cedo. O colonizado procura mudar de condição mudando de pele, isto é casando com a branca ou com a mestiça, aderindo aos costumes, à indumentária, à alimentação, ao tipo de arquitetura do colonizador, procura captar-lhe os princípios e valores. É nesse contexto de inclusão, que passa por desfrisar o cabelo, descolorir a pele, o uso de bijuteria, rejeitando o artesanato secular, que o colonizado julga que encontrou a porta aberta para a assimilação. É um quadro idílico em que se esquece que a condição colonial só pode mudar com a supressão da relação colonial.
E assim chegamos a alguns dos postulados mais polémicos do trabalho de Memmi: a verificação de que só resta ao colonizado revoltar-se, que a libertação do colonizado se deve fazer pela reconquista de si e de uma dignidade autónoma. Mas há ambiguidades desta afirmação de si: devido ao processo de exclusão, o colonizado aceita-se como diferente, a sua originalidade é definida pelo colonizador.
Na conclusão da obra, Memmi dá como demonstrado que o colonizador é uma doença do europeu, que o papel de colonizador de esquerda é insustentável, que a negação dos direitos do colonizado preparam a revolta e o quadro revolucionário, neste se operará a liquidação da colonização. É na reconquista das suas dimensões que o ex-colonizado se irá tornar num homem como os outros, assim se tornará num homem livre com as ditas e desditas de todos os homens de todos os continentes.
Libertação colonial: assim como não há colonizadores de esquerda, a esquerda europeia passa a desconfiar daquele nacionalismo que em caso algum tem a ver com a sua prática ideológica, tal como ele a conhece no seu país de origem.
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Nota do editor
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retrato do colonizador, por Albert Memmi; editado por Gallimard (1)
(Mário Beja Santos)
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