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segunda-feira, 12 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24392: Notas de leitura (1590): Uma obra fundamental por quem se interessa por estudos africanos: "Atlas Histórico de África, da Pré-História aos Nossos Dias", Direcção de François-Xavier Fauvelle e Isabelle Surun; Guerra e Paz Editores, 2020 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Este Atlas Histórico de África para além de ser graficamente irrepreensível apresenta-se como uma ferramenta útil para quem pretenda apurar mais conhecimentos sobre as civilizações do continente africano com base numa matriz cronológica de valor científico. É verdade que há para ali um olhar muito gaulês, passa-se como cão por vinha vindimada sobre a presença portuguesa, e é ainda mais notório o não haver uma referência às explorações portuguesas do século XIX. Mas paciência, o todo é que conta e a informação é pertinente, da Pré-História aos nossos dias. Quem estuda a África não se pode alhear da importância deste Atlas.

Um abraço do
Mário


Uma obra fundamental por quem se interessa por estudos africanos:
Atlas Histórico de África, da Pré-História aos Nossos Dias


Mário Beja Santos

Trata-se de uma edição muito cuidada, graficamente irrepreensível, este Atlas Histórico de África, com direção dos especialistas François-Xavier Fauvelle e Isabelle Surun, Guerra e Paz Editores, 2020, documento apaixonante para os estudiosos de África. Este continente imenso com 2400 línguas faladas aparece muito bem enquadrado em cinco grandes períodos: a África antiga (desde a Pré-História até ao século XV; a África na era moderna (do século XV ao século XVIII), podemos ver os seus grandes reinos e alvorada da presença europeia; a África soberana (século XIX), que irá decorrer após a abolição do tráfico atlântico de escravos e as reconversões económicas africanas; a África sob o domínio colonial, um continente partilhado que irá resistir à presença colonial até à completa descolonização; a África das independências, com a sua teia de contradições e refluxos, a sua enormidade de desafios que aguardam resposta. O tratamento destas matérias é facilitado pela exibição de cem mapas mostram claramente este continente esteve sempre longe de se fechar sobre si próprio, é parte integrante da história da Humanidade.

Na sua diversidade, sabemos hoje não se pode estudar a hominização desconhecendo que ela começou em África, à luz dos conhecimentos atuais, o continente possui um rico mapa de arte rupestre, participou nas dinâmicas do comércio mediterrânico, na Idade Média foram-se robustecendo as suas relações com o mundo islâmico, as suas regiões litorais abriram-se a uma economia atlântica cujo elemento principal era o comércio negreiro. Uma Idade Média onde avultou o Império do Mali, onde foi influente a sociedade suaíli que resultou da cultura bantu e do mundo islâmico.

Mas não nos precipitemos, o leitor interessado é logo atraído pelos berços da Humanidade, pelos testemunhos da arqueologia e da linguística, e logo somos confrontados com a complexidade linguística da Etiópia, temos depois a arte rupestre, prossegue a investigação com África aberta para o Mediterrâneo, ficamos a saber que houve um sistema complexo de escrita, como se escreve: “Grandes zonas de África conheceram e utilizaram sistemas de escrita desde épocas muito antigas que tiveram início primeiro no mundo mediterrânico. Tal como o líbico-berbere, derivado da escrita fenícia, que serviu para gravar tanto inscrições líbicas antigas no Magrebe como o alfabeto tifinague, ainda usado pelos Tuaregues. A escrita etíope mostrou uma extraordinária inventividade, ao acrescentar declinações vocálicas a um alfabeto constituído inicialmente apenas por consoantes, adaptando-o assim a outras línguas e a outras pronúncias. De igual modo o meroítico, utilizado no Sudão, foi adaptado a partir do sistema egípcio para transcrever uma língua que ainda não sabemos decifrar completamente”.

A África do Norte faz parte das primeiras conquistas do Islão, estabeleceram-se rotas comerciais que infletiram em todas as direções até ao centro de África. Refere-se a Núbia e depois o Império do Mali e a Etiópia medieval. Assim chegamos à civilização suaíli, cujo território se estendia da Somália a Moçambique passando pelo Quénia, pela Tanzânia, pelas Comores e pelo Norte de Madagáscar. Estamos chegados à África na era moderna, emergem novos poderes: o Congo e o Monomotapa, na África Central e Austral, o Daomé e Axante, ao longo do Golfo da Guiné, o Songai, entre outros, foi um tempo de enormes recomposições políticas, que vários autores primorosamente sintetizam. E temos o primeiro entreposto europeu fortificado no espaço tropical, S. Jorge da Mina ou Elmina, como temos a Etiópia repartida em duas grandes religiões, o importante reino do Congo que manterá relações com Portugal e o Papado.

Apresenta-se o tráfico negreiro colonial e assim chegamos à África soberana do século XIX, dar-se-á a abolição desse tráfico e reconvertem-se as economias africanas, é o tempo do amendoim, das gomas, do óleo de palma, há senhores da guerra por toda a parte, descreve-se o reino de Madagáscar, o califado de Sokoto, que foi o maior Estado de África no século XIX, estendia-se do Norte da Nigéria aos Camarões. Mostra-se a África do tempo dos exploradores e regista-se o domínio colonial, desde as corridas às colónias à definição de fronteiras, bem como a problemática das formas de povoamento. A I Guerra Mundial, para além das várias batalhas que tiveram lugar no coração do continente africano, levaram muitos soldados a combater na Europa, nomeadamente em França e na Frente Oriental. O resultado não foi despiciendo: a Alemanha perdeu as suas principais colónias, a Grã-Bretanha e a França consolidaram as suas posições, a Bélgica e Portugal não saíram maltratadas. O africano pôde ver a fragilidade do homem branco, era menos invencível do que fazia supor, houve muitas promessas não cumpridas, começaram a germinar os movimentos independentistas.

Retornando ao século XIX, o Atlas dá-nos o quadro das missões cristãs no período colonial, temos depois a evolução das cidades coloniais, segue-se o fenómeno das revoltas anticoloniais e a emergência dos nacionalismos, daí decorre o período do império colonial tardio, que culmina com a descolonização portuguesa e as grandes transformações na África Austral. Nos anos 1960 à atualidade é um capítulo bem elaborado sobre o tempo das independências, as desilusões, a emergência do pan-africanismo, o que representou o fim da Guerra Fria em África, elencam-se as políticas sanitárias, os contrastes de desenvolvimento, realça-se o papel dos investimentos chineses nas infraestruturas, nos têxteis e madeiras exóticas. “Frequentemente financiados pelo endividamento, por vezes têm como garantia as receitas extrativas futuras. Por seu lado, os empregos assim criados e as expropriações ligadas à constituição de grandes domínios rurais alimentam o êxodo rural. Abidjã, Cairo, Joanesburgo, Lagos, Adis-Abeba transformam-se em polos urbanos e regionais dominantes no plano económico, político e cultural. A África em desenvolvimento é também uma África de desigualdades espaciais".

O fim da Guerra Fria saldou-se numa encenação democrática, tudo parecia caminhar para o multipartidarismo e a democracia parlamentar, mas o Estado autoritário e neopatrimonial dá provas de uma grande capacidade de duração, veja-se os casos do Gabão, da Guiné Equatorial, dos Camarões, do Congo-Brazzaville e do Chade. Seja como for, as mobilizações de cidadãos tornaram-se uma realidade, o que não impede que antigos opositores que chegam ao poder reproduzam o sistema que combateram, perpetuando, nomeadamente, o desequilíbrio presidencialista das constituições. Este importante Atlas História de África trata ainda o Apartheid na África Austral, os conflitos e sua resolução na África Central e Oriental e as migrações internas e externas na África. Conclui enfatizando que a África estava e está aberta ao mundo exterior, por essas janelas é bem provável que os quadros de violência, da pobreza, da corrupção e do autoritarismo possam conhecer modificações do quadro da globalização.

Obra do maior interesse, insista-se.

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24381: Notas de leitura (1589): N’Krumah, o líder da unidade africana, o denunciante das tramas do neocolonialismo (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22207: Notas de leitura (1357): "Impérios ao Sol, a luta pelo domínio de África”, por Lawrence James; Edições Saída de Emergência, 2018 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Julho de 2018:

Queridos amigos,
Uma condensação de valor apreciável sobre a constituição de impérios a partir do século XIX, as idiossincrasias, as motivações comerciais, o espírito missionário, os choques entre a França, a Grã-Bretanha e a Alemanha. Foi pena Lawrence James não ter estudado convenientemente o caso português, chega ao cúmulo, na hora da descolonização, de afirmar seraficamente que Portugal lutava em Angola e Moçambique e que o grande ideólogo da luta pela independência das colónias portuguesas era Agostinho Neto. Será lastimável se um especialista não lhe fizer chegar notícia do que significou a Guiné no fim do império.

Um abraço do
Mário


“Impérios ao Sol, A Luta pelo Domínio de África”, por Lawrence James (1)

Beja Santos

Vale a pena destacar os dois primeiros parágrafos do prefácio, para que o leitor saiba o que tem pela frente, trata-se de um autêntico e suculento prato de substância:
“Este livro expõe as transformações ocorridas em África ao longo dos séculos XIX e XX, uma época em que praticamente todo o continente passou a fazer parte dos impérios globais europeus. Trata-se de uma história sobre os conflitos de poder entre nações e entre governantes e governados. A mudança provocou conflitos, pois foi imposta a partir de cima por estrangeiros que a denominavam progresso e afiançavam que este seria uma fonte de proventos para eles e para os seus súbditos africanos. Alguns assentiram, cooperaram com os invasores e alcançaram a prosperidade, outros resistiram. As guerras de conquista e pacificação arrastaram-se por mais de um século, findando apenas com a subjugação da Abissínia pela Itália, em 1936. O conflito foi sempre um fenómeno endémico em África, mas os europeus entraram no continente levando consigo os avanços mais recentes da tecnologia militar. Na fase inicial da conquista, as metralhadoras representavam uma enorme vantagem para as suas forças e, durante as décadas de 1920 e 1930, espanhóis, franceses e italianos mobilizaram bombardeiros, carros de combate e gás mostarda contra marroquinos, líbios e abissínios.
O continente foi arrastado para as duas guerras mundiais que custaram à Alemanha, primeiro, e depois à Itália, as suas colónias. Mais de um milhão de africanos alistaram-se como voluntários ou foram recrutados para combater no Exército, muitos em longínquas frentes de combate. Durante a II Guerra Mundial, os soldados negros das colónias britânicas combateram as tropas japonesas na Birmânia, enquanto argelinos e marroquinos serviram ao lado das forças francesas contra os alemães, em Itália e na Europa Ocidental. Os veteranos regressaram a casa orgulhosos, perplexos e zangados. Fora-lhes dito que arriscavam a sua vida pela liberdade universal e em prol de um mundo melhor, mas a ordem imperial continuava enraizada em África”
.

“Impérios ao Sol, a luta pelo domínio de África”, por Lawrence James, Edições Saída de Emergência, 2018, põe em imenso ecrã as ambiguidades deste conceito de progresso e de missão civilizadora e de ocupação que se forjou a partir de 1830, aproximadamente; desvela uma luta sem quartel para tomar posse de domínios por todo o continente, entre 1882 e 1918, no Egito e no Sudão, na África Austral, no Congo, em combate religioso; assistimos à ascensão dos nacionalismos, a presença de contingentes africanos em duas guerras mundiais para medir as consequências do que se seguiu, aproveitando a boleia da Guerra Fria; e de 1945 a 1990 o continente africano foi mudando de look, todos os povos se encaminharam para a independência; e assim chegamos aos últimos dias da África branca.

Por volta de 1830, a presença europeia em África mudou de slogan, passou-se a falar sistematicamente de missão civilizadora, o que durante séculos colonizadores franceses, espanhóis, holandeses, portugueses e britânicos tinham praticado era tráfico de escravos, criação de entrepostos comerciais e uma certa presença missionária. Um novo modelo capitalista punha tudo em questão, logo em 1807 a Grã-Bretanha proibira o tráfico de escravos e o comércio negreiro declinou. Como o autor observa, a cruzada antiesclavagista empreendida pela Grã-Bretanha coincidiu com o apogeu da Revolução Industrial, entrara-se na euforia das manufaturas, era preciso fazer chegar aos consumidores africanos esses produtos manufaturados, e nada melhor do que falar em progresso, em ciência, em civilização, bons pretextos para viagens científicas e conhecer as riquezas de solo e subsolo, do vastíssimo continente. Novos e velhos impérios passaram a conflituar, não lhes faltava poder expansionista: a Grã-Bretanha queria proteger solidamente a Rota do Cabo, os russos lançavam-se num ambicioso programa expansionista, a França pós-napoleónica suspirava por pôr um pé no Norte de África, começou pela Argélia, o Império Otomano abrangia do Sudeste da Europa à Turquia, Médio Oriente e Norte de África, entrara em desagregação, o Egito, a Tunísia e a Argélia eram Estados praticamente independentes.
Mas estamos numa época em que os conhecimentos sobre a natureza das sociedades africanas situadas nas regiões para lá do Sara, da África Ocidental e da Colónia do Cabo eram pouco mais do que vagos.

As potências com apetites imperiais conheciam a violência endémica africana, o comércio negreiro praticado pelos árabes à cabeça e a própria cultura europeia tinha o que hoje se pode considerar ideias aberrantes sobre os africanos, como o próprio autor observa. Lineu, o naturalista, catalogou o negro como ignorante. O filósofo David Hume pensava que as faculdades intelectuais de um negro se assemelhavam às de um papagaio enquanto John Wesley via nas suas imperfeições a prova da capacidade do homem para a degeneração moral. Estavam espalhados os conceitos de inferioridade africana, muitos deles ligados ao tráfico negreiro: o negro seria devasso, cobarde, indolente, cruel, supersticioso, antropófago. Essas ideias passaram a ser contestadas desde o século XIX, quer pelo romantismo, quer pela religião evangélica. Os românticos defendiam com insistência que o negro tinha sentimentos como o resto da humanidade e os evangélicos acreditavam que a sua conversão ao Cristianismo completaria a sua felicidade.

O autor é detalhado sobre a problemática da escravatura e o tráfico de escravos, concluindo que “A guerra mais ou menos isolada travada pela Grã-Bretanha contra o comércio de escravos alcançou um enorme êxito. Entre 1810 e 1864, a Royal Navy libertou 150 mil escravos. Em 1864, o comércio atlântico encontrava-se em rápido declínio e as operações no Oceano Índico sofreram um duro golpe, embora não fatal. Restava o comércio no interior do continente africano, favorecido pela distância geográfica e pela solidariedade dos regimes locais”. Nesse mesmo século XIX, vão multiplicar-se as missões cristãs, acarretarão tensões de toda a ordem: cismas, caráter concorrencial entre igrejas cristãs, diabolização de comportamentos que deixavam os africanos em fúria, guerra à feitiçaria, embate entre os pregadores cristãos e os islâmicos, a chegada da medicina praticada pelos missionários pondo de parte as técnicas dos curandeiros. O quinino foi mais forte que o curandeirismo, as escolas foram ganhando simpatia, era o triunfo da missão civilizadora enquanto a França conquistava a Argélia, a Grã-Bretanha se apropriava da África do Sul, resolvendo a seu contento a questão bóer e consolidando a supremacia branca enquanto o continente africano era percorrido de lés a lés por exploradores de várias nacionalidades. Lawrence James dá-nos o perfil dos grandes exploradores e as suas idiossincrasias e o retrato de uma das figuras mais ignóbeis do colonialismo, Leopoldo II da Bélgica, exprime-se deste modo:
“O monarca Leopoldo dedicou a sua vida a fazer dinheiro nos territórios ultramarinos. Entreteve-se com alguns projetos nas Ilhas Orientais e na América do Sul, mas em meados da década de 1870 persuadiu-se de que conseguia fazer fortuna em África. Agiu com deslealdade e astúcia, apresentando-se inicialmente como filantropo e patrono da investigação científica. Sob esta máscara, e apoiando-se no seu estatuto régio para conseguir legitimidade, convocou uma conferência, em 1876, para discutir a descolonização da África Central. O resultado foi a criação da Association Internationale Africaine, uma organização de fachada, enganadoramente benévola, que depressa se transformou no Comité d’Études du Haut Congo, investida de uma missão humanitária igualmente falsa”.

Vamos agora entrar na segunda parte do trabalho, a partilha de África, nem tudo será cor-de-rosa.

(Continua)
Leopoldo II da Bélgica
Encontro de Stanley com Livingstone
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22205: Notas de leitura (1356): Lembrando livros do Beja Santos sobre a Guiné (João Crisóstomo, ex-Alf Mil da CCAÇ 1439)

domingo, 12 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19779: Agenda cultural (682): Grande Prémio de Longa Metragem Cidade de Lisboa, IndieLisboa 2019: "De los nombres de las cabras", de Silvia Navarro e Miguel H. Morales, Espanha, 2019, 62': um documentário sobre a extinção dos Gaunches, o povo nativo das Canárias... Pode ser visto no cinema Ideal, Lisboa, quarta-feira, dia 15, às 22h00


Fotograma do filme de "De los nombres de las cabras". Cortesia de IndieLisboa - 16º Festival Internacional de Cinema, Lisboa,2-12 de maio de 2019



JÚRI DA COMPETIÇÃO INTERNACIONAL DE LONGAS METRAGENS
FEATURE FILM INTERNATIONAL COMPETITION JURY

Grande Prémio de Longa Metragem Cidade de Lisboa / Feature Film Grand Prize City of Lisbon
(15.000 Euros)

DE LOS NOMBRES DE LAS CABRAS / ON THE NAMES OF THE GOATS
Silvia Navarro, Miguel G. Morales, Espanha, doc., 2019, 62′

“Pela sua rica e intrincada investigaçao do recente passado colonial pela interaçao com tempos antigos e tradiçoes das Ilhas das Canárias, através de imagens de arquivo escolhidas e montadas com perícia, do som de entrevistas e de uma paisagem sonora imersiva, o júri dá unamimamente o Grande Prémio Longa metragem Cidade de Lisboa ao documentário espanhol De los Nombres de Las Cabras de Miguel G. Morales e Silvia Navarro.”

Sinopse

Guanches é o nome dado ao povo nativo das ilhas Canárias, que vivia ainda na Idade da Pedra quando as ilhas foram ocupadas pelos castelhanos, acabando erradicados em menos de um século. Este hipnótico ensaio, integralmente composto por imagens de arquivo, parte dos registos sonoros de um arqueólogo que, nos anos 1980, recolheu testemunhos junto dos pastores locais com o desejo de conhecer melhor esse povo. Só que a dupla de realizadores desmonta os mitos coloniais do investigador e apresenta o complexo mapa de poderes com o qual se escreve o discurso histórico. Em estreia mundial no IndieLisboa.

Fonte: Indie Lisboa 2019

Este filme pode ser (re)visto quarta-feira, dia 15 de maio, às 22h00, no Cinema Ideal,  rua do Loreto, junto ao Largo Camões, Lisboa, metro Baixa-Chiado.

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Nota do editor:

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18614: Notas de leitura (1064): Retrato do colonizado e retrato do colonizador, por Albert Memmi; editado por Gallimard (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Maio de 2016:

Queridos amigos,
Este documento de Albert Memmi não pode ser lido como um panfleto político de um dirigente revolucionário. É uma prosa lúcida, a articulação é perfeita, a análise deslumbra o leitor mais reticente, mesmo o mais incrédulo de que as relações entre colonizador e colonizado são assim tão poderosas como aqui se descrevem, do princípio ao fim. Aqui se desmonta mistificações, sonhos do colonizado em imitar o colonizador, até se chegar ao ponto fulcral em que nos apercebemos que quando se procura suprimir o colonizado, pela força das circunstâncias iria desaparecer a colonização e inclusivamente o colonizador. Trata-se de um ensaio impressionante, obviamente que datado e bastante circunscrito aos países do Norte de África, como a evolução dos acontecimentos veio comprovar.
Leitura que se recomenda a todos o que se interessam por procurar conhecer a essência do que foi o colonialismo e o que separava o colono do assimilado, o que separava o assimilado do nativo e as suas diferentes categorias intercalares. Jamais se perceberá a questão de fundo dos antagonismos e constrangimentos entre guineenses e cabo-verdianos sem entender a dimensão destas categorias.

Um abraço do
Mário


Reler um clássico do colonialismo: 
Retrato do colonizado e retrato do colonizador, por Albert Memmi (2)

Beja Santos

Albert Memmi partiu cedo da Tunísia e fez uma promissora carreira universitária em França, é autor de romances, poesia, entrevistas, ensaios, entre outros. Em meados da década de 1950, ainda antes de se ter desencadeado a guerra da Argélia entendeu escrever dois retratos para dimensionar o colonizado e colonizador. Obra de escândalo e aplauso. Acrescia o facto de o autor ter sido detido pelos alemães num campo de trabalho e a sua imagem política era de resistente de esquerda. Deu celeuma as suas considerações sobre o nacionalismo e a esquerda. Os próprios funcionários coloniais se sentiram visados pelas suas considerações no contexto da vida colonial.

A sua escrita é calma, um verdadeiro incentivo ao diálogo. Quando ele diz que o colonialista é a vocação natural do colonizador, não usa palavras de ordem, trabalha com argumentos. Quando ele diz que é corrente opor-se o imigrante ao colonialista que nasceu na colónia, ele desvela como se trata de uma falácia. O imigrante acabará por adotar a doutrina colonialista. Quem nasceu na colónia tem o ambiente familiar, os interesses constituídos, os privilégios recebidos, por natureza o colonialismo restringe a sua liberdade. Quem chega à colónia, forçosamente nela se vai inserir, mas há uma larga franja do grupo colonizador que a tudo se adaptará, ao sistema policial, ao desrespeito pelas culturas nativas: são uns medíocres, aqueles que não têm saída fora daquele contexto colonial e que acabarão por se resignar aos tiques e comportamentos do grupo colonizador, resignam-se ao ramerrão, constituíram a falange da maioria dos homens da colonização.

E chegamos a um dos pontos mais polémicos da obra, em que ele refere abertamente: a situação colonial fabrica colonialistas do mesmo modo como fabrica os colonizados. E di-lo serenamente, a propósito das comparações, inevitáveis a que o colonista procede quando fala da sua pátria: “O colonialista parece ter esquecido a realidade viva do seu país de origem. Ao longo dos anos, ele esculpiu, por oposição à colónia, um monumento da metrópole tal que a colónia lhe aparece necessariamente vulgar”. O colonialista nunca esquece de referir o calor, a humidade, as cobras, o verde interminável, tem sempre argumentos de contraposição em que a metrópole reúne tudo quanto há de positivo, a própria harmonia dos sítios, o melhor clima, a beleza, etc. O nacionalismo do colonialista tem as suas especificidades. A pátria tolera e protege a sua existência enquanto colonialista. Mas há também a tentação fascista, a máquina administrativa e política da colónia está ao serviço da exploração, funda-se na desigualdade e é garantida pelo autoritarismo das forças policiais, nas cidades e nos lugares mais remotos.

Não menos polémico é o que Memmi diz sobre o ressentimento que o colono guarda da metrópole. Diz sem ambiguidade que ao nível da mesma classe o colonialista está mais à direita que o metropolitano. Não tendo os mesmos interesses que o metropolitano, sente-se preterido na colónia. E temos depois o racismo que resume e simboliza a relação fundamental que une o colonialista e o colonizado. O racismo do colonialista é sustentado pela intensidade nas relações coloniais. E diz Memmi que a análise da atitude racista revela-se em três elementos importantes: descobrir e evidenciar as diferenças entre o colonizador e colonizado; valorizar essas diferenças a favor do colonizador e em detrimento do colonizado; e elevar estas diferenças a um nível absoluto. O colonizador encara esta relação com o colonizado como uma categoria definitiva. É neste ponto que Memmi introduz um elemento perturbador: as más relações entre a Igreja e os colonialistas; estes, quando percebem que o religioso (ou o missionário) apela à libertação espiritual do colonizado, tudo fazem para que a religião do colonizador seja encarada como a etapa indispensável da via da assimilação, o que pode levar à contestação, o religioso pode também entrar em confronto com o colonizador pela recusa do paternalismo, propondo direitos humanos, sindicais, sociais e o fim da discriminação.

Vejamos agora o retrato do colonizado. A imagem apresentada pelo colonizador é de que o colonizado é preguiçoso, é ladrão, despido de valores, esbanjador, sanguinário, acriançado. Assim sendo, há que o vigiar, segui-lo de perto, dar-lhe os valores metropolitanos, os mesmos feriados que há na metrópole, fazê-lo estudar a história da metrópole, sujeitá-lo a muitas provas antes de lhe dar o estatuto assimilado. Perante esta couraça de imposições, só resta ao colonizado encontrar refúgio num conjunto de valores que são os da família, os princípios do clã, assim se impede a amnésia cultural imposta pelo colonizador que pretende demolir a memória do colonizado.

O autor questiona se nos apercebemos porque é que o colonizado possui uma literatura viva rudimentar. Há a língua oficial em que escreve o escritor assimilado e há a realidade dos outros idiomas em que os colonizados sem entendem. O escritor assimilado, por muito que goste da língua que recebeu do colonizador, tem quase sempre a impressão que escreve para um auditório de surdos. E sobre este assunto Memmi profere um juízo radical: a literatura colonizada de língua europeia parece destinada a morrer cedo. O colonizado procura mudar de condição mudando de pele, isto é casando com a branca ou com a mestiça, aderindo aos costumes, à indumentária, à alimentação, ao tipo de arquitetura do colonizador, procura captar-lhe os princípios e valores. É nesse contexto de inclusão, que passa por desfrisar o cabelo, descolorir a pele, o uso de bijuteria, rejeitando o artesanato secular, que o colonizado julga que encontrou a porta aberta para a assimilação. É um quadro idílico em que se esquece que a condição colonial só pode mudar com a supressão da relação colonial.

E assim chegamos a alguns dos postulados mais polémicos do trabalho de Memmi: a verificação de que só resta ao colonizado revoltar-se, que a libertação do colonizado se deve fazer pela reconquista de si e de uma dignidade autónoma. Mas há ambiguidades desta afirmação de si: devido ao processo de exclusão, o colonizado aceita-se como diferente, a sua originalidade é definida pelo colonizador. Na conclusão da obra, Memmi dá como demonstrado que o colonizador é uma doença do europeu, que o papel de colonizador de esquerda é insustentável, que a negação dos direitos do colonizado preparam a revolta e o quadro revolucionário, neste se operará a liquidação da colonização. É na reconquista das suas dimensões que o ex-colonizado se irá tornar num homem como os outros, assim se tornará num homem livre com as ditas e desditas de todos os homens de todos os continentes.

Libertação colonial: assim como não há colonizadores de esquerda, a esquerda europeia passa a desconfiar daquele nacionalismo que em caso algum tem a ver com a sua prática ideológica, tal como ele a conhece no seu país de origem.
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Nota do editor

Poste anterior de 30 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18582: Notas de leitura (1062): Retrato do colonizado e retrato do colonizador, por Albert Memmi; editado por Gallimard (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 4 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18602: Notas de leitura (1063): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (33) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 30 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18582: Notas de leitura (1062): Retrato do colonizado e retrato do colonizador, por Albert Memmi; editado por Gallimard (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Maio de 2016:

Queridos amigos,
Já tinha ouvido falar da obra no contexto dos grandes documentos que acompanharam a ascensão da luta anticolonial, mas nunca encontrei estes ensaios de Albert Memmi. Dei por ele num escaparate numa livraria de Bruxelas, foi atraído pela imagem, parecia-me uma reprodução de um quadro de Joaquim Rodrigo, e era mesmo. O preço também era convidativo, imagine-se um livro recém saído ao preço de 5 euros! E depois foi ler de uma empreitada e voltar a ler para digerir melhor.
Jean-Paul Sartre diz que no livro está o fundamental do colonialismo, do colono e do oprimido e em rigor não está. É um trabalho de meados da década de 1950, de alguém que se quer compreender melhor a si próprio, um tunisino a fazer carreira universitária em França, preso pelos homens, assumidamente inserido na cultura francesa. Nem tudo foi assim entre colonizados e colonizadores, ditará o conhecimento histórico posterior. Mas os grandes pilares dos comportamentos, e a relação fundamental do que condiciona o colonizador e colonizado pode ler-se aqui, com todo o rigor e seriedade.
Um documento cuja leitura se recomenda a toda a gente.

Um abraço do
Mário


Reler um clássico do colonialismo: 
Retrato do colonizado e retrato do colonizador, por Albert Memmi (1) 

Beja Santos 

A conceituada editora Gallimard acaba de reeditar uma das obras mais relevantes da década de 1950 no tocante ao debate sobre o colonialismo, o "Retrato do colonizado e o retrato do colonizador", de Albert Memmi, professor honorário da Universidade de Paris, nascido em Tunes, conheceu os campos de trabalho na ocupação alemã.

Estes dois ensaios foram escritos antes da guerra da Argélia, procuravam descrever a fisionomia e a conduta do colonizador e do colonizado, passar a pente fino o que os unia. Os seus postulados eram rigorosos e concluía-se que não havia saída para a colonização, tudo passaria pela independência dos colonizados. Tratava-se de uma solução que muitos consideravam radical, houve até muita boa gente de esquerda que duvidou de que tal seria viável. Depois os acontecimentos precipitaram-se na Argélia e por toda a África, e o que Albert Memmi descrevia revelava-se mais do que premonitório. A obra de Memmi é hoje estudada nas faculdades africanas. Gente de todo o mundo identificou-se com estes escritos, e uma firmação ficou lendária: “A colonização fabrica colonizados do mesmo modo que fabrica os colonizadores”.

As edições sucederam-se. Em 1966, Memmi preparou para uma nova edição um longo prefácio. Recordou que tinha escrito um romance “A estátua de sal”, a história de um casamento misto, que culminava num rotundo insucesso. O autor constatava que o mundo sobre o qual escrevia era o da colonização e para compreender os insucessos da sua prosa era preciso compreender o colonizador e o colonizado. Ele, um tunisino e também um colonizado. A sua vida não fora fácil na Sorbonne. E foi assim que se lançou num inventário na condição de colonizado para se compreender e identificar o seu lugar no meio dos outros homens. Acabou por concluir que todos os colonizados e todos os oprimidos se assemelham. Em vários pontos do globo explodiam contestações, reclamavam-se direitos humanos: havia as independências asiáticas, os norte-americanos negros reivindicavam direitos e leis não discriminatórias, o Norte de África reclamava a sua independência, de uma ponta à outra. Outras verificações ocupavam-lhe o espírito: o viver quotidiano do colonizador e do colonizado em que a humilhação do colonizado não é meramente económica, mesmo o mais pobre do colonizador considerava-se superior ao colonizado, isto ditava o privilégio colonial. Memmi considerava igualmente que a psicanálise tal como o marxismo não dispunham de formulação teórica e equipamento prático para explicar todos os sentimentos, todos os sofrimentos da relação entre o colonizador e o colonizado. E assumia corajosamente a sua identidade: um indígena, próximo da cultura muçulmana e igualmente apaixonado por muitos traços da cultura francesa; do que via e do que sentia, estava em querer que o retrato do colonizador em parte do seu. Enquanto autor, pedia ao leitor que não tratasse este livro como um objeto de escândalo, mas que fosse crítico para os dois retratos apresentados, tendo em mente que este livro poderia ser útil quer para o colonizador quer para o colonizado.

É nesta edição que se inclui um artigo que Jean-Paul Sartre escrevera em Les Temps Modernes, ao tempo uma das mais conceituadas revistas de produção ideológica. O Prémio Nobel da Literatura procura enquadrar a máquina colonial que começara a ser construída no fim do II Império e se aperfeiçoara na III República: a colónia vende barato as suas matérias-primas, compra caro à metrópole os produtos manufaturados. O subproletariado agrícola colonial não pode contar com qualquer apoio dos europeus. E dava um exemplo concreto: o rendimento médio de um francês na Argélia era 10 vezes superior ao de um muçulmano. Não o surpreendia as manifestações de violência dos oprimidos, até porque o colonialismo manifestamente recusava os direitos humanos a que submetera por violência. E desta constatação partia para a análise da obra, reconhecendo as verdades avançados pelo autor: não há nem bons nem maus colonos, há colonialistas. O colono autoabsolve-se, é predominantemente conservador; quanto maior fora dimensão do subproletariado mais será a subexploração. O sistema colonial é uma forma em movimento perpétuo, nascida em meados do século XIX e que irá produzir a sua própria destruição, não havia que ter ilusões sobre o destino da Argélia.

Entramos agora no retrato do colonizador, os mitos sobre a sua imagem. O que acima de tudo distingue o colonizador é a casta dos seus privilégios, a relação frutuosa que estabeleceu com os seus negócios, os benefícios que extrai do estatuto de adquiriu, o reconhecimento que o sistema colonial lhe oferece. Em caso algum ele vê a legitimidade no acervo das leis que o servem e que acabam por o tornar um usurpador. Observa que há várias mistificações na colonização, colonizados por um lado colonizadores por outro com diferentes fisionomias de grupos humanos. Pode haver candidatos à assimilação, pode haver assimilados de fresca data, a comunidade europeia pode ter negociantes de várias nacionalidades.

É de questionar se existe um colonizador de boa vontade, aquele que se assume como respeitador tanto dos direitos humanos e que até se compadece com a condição dos mendigos, das crianças subalimentadas, daqueles que exibem pela rua as suas horríveis doenças tropicais, e que se indignam e que procuram ajudar os grupos carenciados. De um modo geral, essa corrente de protesto é considerada como romantismo humanitarista pelas pessoas da colónia, a pessoa de boa vontade acabará por se integrar na corrente principal do colonizador, converte-se, e para esbater as contradições fará o reconhecimento que há outros costumes, que o colonizado precisa de tempo para se incorporar noutra onda de civilização – são estes os colonizadores de boa vontade. Memmi observa que simplesmente não se pode viver toda a vida a olhar candidamente o pitoresco, o colonizador não pode renunciar a criar um qualquer tipo de identificação com o colonizado. É no âmbito desta análise que Memmi faz uma longa e polémica leitura do quadro do nacionalismo africano e como é que este é encarado pelos homens da esquerda e, o que é mais grave é que uns e outros acabam na prática, por serem escolhidos do movimento de libertação colonial: assim como não há colonizadores de esquerda, a esquerda europeia passa a desconfiar daquele nacionalismo que em caso algum tem a ver com a sua prática ideológica, tal como ele a conhece no seu país de origem.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18568: Notas de leitura (1061): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (32) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 12 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18406: Notas de leitura (1048): “A History of Postcolonial Lusophone Africa”, autor principal Patrick Chabal, com participações de David Birmingham, Joshua Forrest, Malyn Newitt, Gerhard Seibert e Elisa Silva Andrade, Hurst & Company; Londres, 2002 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2016:

Queridos amigos,
Apresentado em 2002 como a primeira investigação histórica abrangente sobre a África Lusófona pós-colonial, a cuidada investigação de Patrick Chabal e a sua equipa é um documento que requer a nossa atenção dado o seu rigor em dois pontos capitais. A construção da Nação-Estado nestes cinco países e uma descrição altamente documentada do processo político, económico e social de cada um deles (no caso vertente da Guiné-Bissau o seu autor foi Joshua Forrest, um autor credenciado e com diferentes e reputados estudos sobre o país).
Continuo a não perceber como é que não houve um editor para uma obra que teria seguramente encontrado milhares e milhares de leitores, desde os estudiosos ao grande público.

Um abraço do
Mário


A História da África Lusófona Pós-colonial:
Uma investigação de leitura obrigatória (2)

Beja Santos

“A History of Postcolonial Lusophone Africa” tem como autor principal Patrick Chabal, nome cimeiro da investigação dos movimentos revolucionários e das repúblicas africanas lusófonas, e conta com a comparticipação de investigadores de grande qualidade, como é o caso de David Birmingham, Joshua Forrest, Malyn Newitt, Gerhard Seibert e Elisa Silva Andrade, Hurst & Company, Londres, 2002.

Os regimes das cinco antigas colónias portuguesas de África seguiram caminhos distintos, uns gozaram da integridade nacional outros foram confrontados com guerras civis mas apresentaram afinidades com comportamentos já lamentavelmente conhecidos em quase todos os outros países africanos: autoritarismo e clientelismo dentro do sistema político; inabilidade do Estado para implementar um modelo minimamente harmonioso de desenvolvimento e que contasse com a confiança dos cidadãos; declínio gradual da economia que levou ao exacerbamento das questões do poder na cúspide dirigente. Também nesse contexto haverá que ter em conta a desmotivação das populações com os fracassos económicos, o desligamento entre os partidos únicos e os grupos étnicos, os programas de ajustamento estrutural que veio a significar o fim da mania das grandezas; e, no seu termo, a queda do Muro de Berlim que relançou a discussão dos processos de transição para o multipartidarismo e consagração da economia do mercado.

Os autores detalham com rigor os diferentes processos de transição económica e relevam as dificuldades suplementares vividas em Angola e Moçambique, devastados por guerras aparentemente sem fim à vista. Só a natureza desta investigação justifica a leitura deste livro.

A segunda parte do trabalho assenta em estudos estanques dos cinco países. Competiu a Joshua Forrest a investigação sobre a Guiné-Bissau. O investigador começa por chamar à atenção de como a independência da Guiné-Bissau foi saudada em África e noutros cantos do mundos, traduzia um sucesso militar e estratégico do PAIGC, resultava também do modo como Amílcar Cabral pusera a Guiné-Bissau no mapa internacional e das lutas revolucionárias, fora naquele território que emergira o embrião do MFA, da evolução que passara a ter a guerra a partir de 1973 concluíra-se da inevitabilidade de derrubar o governo e proceder à descolonização. Mas de 1974 a 2000 o PAIGC revelou-se incapaz de realizar os seus objetivos nomeadamente na construção do Estado e do desenvolvimento económico. As suas escolhas beneficiaram elites, caso dos ponteiros que criaram riqueza à custa de financiamentos que não foram restituídos aos cofres do Estado. Veio a demonstrar-se que o PAIGC e a direção política de Luís Cabral não dispunham de uma visão clara sobre as transformações que eram imperativas na administração. O falhanço da industrialização acelerada comprometeu todo o sistema financeiro, a dívida externa passou a ser um garrote; e o partido único que fora uma coqueluche revolucionária dividiu-se em frações, os tecnocratas passaram a ignorar as promessas de Cabral, os heróis do passado foram esquecidos, a despeito do nome de alguns aparecerem nas ruas e em certas instituições. Parecia que a economia estava ao serviço dos habitantes de Bissau. O partido-Estado isolou-se, cometeu erros palmares, caso da revisão constitucional concluída em Novembro de 1980, que deu munição letal aos guineenses contra as elites cabo-verdianas. A seguir, Nino Vieira repetiu em grande estilo os métodos autocráticos que criticou a Luís Cabral e fracionou ainda mais o PAIGC.

Joshua Forrest centra a sua atenção sobre as reformas económicas e os graves erros praticados na política agrária, era como se estivesse a praticar totalmente o oposto que fora preconizado por Amílcar Cabral. Assim que se passou do coletivismo à abertura económica expandiram-se as propriedades designadas por pontas, foram estes novos agricultores os grandes beneficiários do programa de ajustamento estrutural que conduziram ao descalabro financeiro. Quando se chegou à década de 1990 agravara-se a dependência externa e a corrupção era larvar, como uma mancha de óleo alastrara por todos os ministérios. À procura de uma solução mágica, Nino Vieira procurou intensificar as relações com a França e a francofonia, integrou à pressa a Guiné na zona económica da África Ocidental, abandonou-se o peso em substituição do franco CFA. Joshua Forrest detalha como precocemente o PAIGC perdeu o controlo político do Estado, os governadores ignoravam os comités de tabanca e os meios rurais vivam desfasados da condução política de Bissau. Emergiram idiossincrasias ocultistas e espíritos de seita, o autor ilustra com movimentos operados entre Balantas, Manjacos, nomeadamente nas regiões do Oio, do Cacheu, Tombali e Catió, estes poderes obscuros foram progressivamente afrontando e corroendo a construção do Estado pós-colonial.

O isolamento do regime foi rastilho para cimentar o regime despótico de Nino Vieira, são sucessivas as ondas de golpes (ou a sua invenção), deposição de amigos de ontem transformados em inimigos públicos, a corrupção chegou ao negócio das armas e das drogas, um regime caótico entra em deliquescência e desagua num conflito que levou ao afastamento de Nino Vieira e à ascensão de uma Junta Militar – assim se invertiam aparatosamente as instituições do regime em que a soberania assentava no decisor político. Joshua Forrest descreve o conflito no interior do PAIGC para a abertura democrática, as eleições de 1994 deixavam saber que o partido-Estado já não era o que fora, Nino Vieira confrontara-se com um novo demagogo, Kumba Yalá, e ganhará as eleições presidenciais por uma unha negra, com a agravante de constar que à custa de fraudes eleitorais. Como os governos não dispunham de manobra para resolver os problemas de fundo, Nino Vieira ia substituindo os primeiros-ministros, agravando as animosidades que depois se estenderam à esfera militar, antes do conflito de 1998-1999 os combatentes da liberdade da pátria publicaram um manifesto profundamente crítico com o estado dissoluto do regime.

Em jeito de conclusão, Joshua Forrest recapitula as questões primordiais deste quarto de século da independência da Guiné-Bissau: a contradição entre o pensamento de Cabral e a prática política que se seguiu; disseca as sucessivas crises envolvendo a fragilidade do Estado, a incapacidade de se dispor de uma administração eficaz, o regresso do animismo comprovando a ausência do partido-Estado na trama social; a despeito do desfasamento entre o regime e as aspirações populares sobreleva o fenómeno espantoso e mal explicado do suporte popular a Nino Vieira, um césar que pontificou 19 anos a fio; e para além dos erros de política económica é também importante observar que o governo se alheou da vida local e permitiu o regresso insidioso das instituições políticas pré-coloniais.

Não esquecer que este importantíssimo livro na segunda parte também carateriza os processos de Angola, Moçambique, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe.

É leitura obrigatória para quem pretenda dispor de uma grande angular sobre os primeiros 30 anos da história das cinco antigas colónias portuguesas em África.
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Notas do editor

Poste anterior de 5 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18381: Notas de leitura (1046): “A History of Postcolonial Lusophone Africa”, autor principal Patrick Chabal, com participações de David Birmingham, Joshua Forrest, Malyn Newitt, Gerhard Seibert e Elisa Silva Andrade, Hurst & Company; Londres, 2002 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18395: Notas de leitura (1047): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (25) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17815: Notas de leitura (1000): “A França contra África”, por Mongo Beti; Editorial Caminho, 2000 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Março de 2016:

Queridos amigos,

Foi uma grande surpresa conhecer este patriota camaronense, fez a sua longa vida de professor em França e voltou ao país muitas décadas depois. É uma poderosa água-forte da África francófona pós-independente e as subtis cumplicidades e conivências com o poder e os partidos políticos franceses.
Escrito num período de transição, a seguir à Guerra Fria, encontramos aqui situações análogas às que temos identificado na Guiné-Bissau: a decrepitude das infraestruturas, o mandarinato dos governantes e de quem circula à sua volta; o lixo por todo o lado, a degradação do ensino e a perda do sentido do Estado.

Livro primorosamente escrito, uma denúncia corajosa que nos dilata o horizonte e faz perceber por onde passam os porquês da inércia em que permanece a África negra.

Um abraço do
Mário


Há alguma analogia possível entre os Camarões e a Guiné-Bissau? (2)

Beja Santos

O título deste texto pode parecer surpreendente, o que é que há de comum entre os Camarões e a Guiné-Bissau. Continuando a falar do livro “A França contra a África”, de Mongo Beti [foto à direita], Editorial Caminho 2000, os Camarões estendem-se por 470 mil quilómetros quadrados, tinham à data da redação do livro 12 milhões de habitantes, é a República francófona proporcionalmente mais povoada da África Central, tem recursos como o café e o cacau e o petróleo. Estamos a falar de um país que depois da independência viveu em ditadura, com uma feroz polícia política e um círculo privado de gente abastada à volta do ditador. Mongo Beti desvela a degradação do país a diferentes níveis, a progressiva inação das infraestruturas e dos serviços públicos, mostra um desemprego galopante, a falta de liberdade de expressão, um sistema universitário inoperante.

Assim como os polícias são tentados a transformarem-se em bandidos, a fraude e o contrabando são outras duas pestes e diz sem hesitações: “O país está mergulhado numa atmosfera fétida de fraudes e falsificações que o asfixiam lenta mas seguramente. É como um apocalipse rastejante”. O petróleo foi para os países africanos francófonos uma maldição, a população jamais foi ouvida e não há ilusões entre a aliança das companhias francesas como a Total e a Elf-Aquitane e os ditadores. O regime nega-se a prestar contas, nem mesmo ao Banco Mundial e ao FMI. Os lucros das petrolíferas são entregues ao ditador, que os desbarata alegremente. O fenómeno da gestão do petróleo na África francófona tem muito a ver com a Guerra Fria, o Ocidente e particularmente a França olharam para esta região como um domínio neocolonial, e o autor vai mais longe: “O destino do petróleo africano é o de assegurar a independência energética da França, não de proporcionar a felicidade dos africanos, para os quais mais valia que ele não existisse”.

A seguir Mongo Beti fala-nos dos bancos falidos devido a gestão danosa, empréstimos à claque do regime, que em muitíssimos casos não honrou os seus compromissos. A banca francesa lá está para endireitar as contas. Quando, em 1990, num discurso célebre, François Mitterand anunciou que chegara a hora de instituir as liberdades e regimes democráticos no continente africano, houve maquilhagens a que se aliaram as autoridades francesas, os partidos da direita e da esquerda mostraram-se favoráveis à continuação do ditador no poder. Os franceses estabeleceram desde a independência um relacionamento com a claque fiel do regime, assiste-se a uma dança de cadeira, a classe dirigente, totalmente inapta para a inovação vive exclusivamente preocupada em defender os exorbitantes privilégios acumulados durante mais de 30 anos, Paris e os partidos políticos assobiam para o lado.

A corrupção dá por diferentes nomes, quem quer emprego tem que mostrar fidelidade ao partido único e ao seu chefe em suma, terá de se corromper, deixar de se preocupar com essas questões da integridade do caráter. E pertencer à claque é ter acesso às benesses do petróleo e dos apoios pecuniários que são escandalosamente desviados dos projetos destinados ao desenvolvimento para os bolsos destes pequenos mandarins tão descarados que exibem sem dificuldade os valores do seu parque automóvel. A democracia continua a ser um simulacro, o regime pode inclusivamente mandar espancar e torturar os seus opositores. De um modo geral, na Costa do Marfim, no Togo, no Congo, nos Camarões, na República Centro Africana, os aliados de Paris lançaram os seus exércitos tribais para um braço de ferro, travando os processos de democratização. Mais adiante, o autor recorda-nos que a ditadura camaronesa, tal como a ditadura no Haiti, oferece a observador todos os sinais de uma máfia. Não há nada de semelhante nos Camarões onde os dirigentes são provenientes de todas as etnias nacionais. É um clã muito pequeno que se apoia no exército, desprovido de quaisquer escrúpulos, reinando pelo terror, pela mentira, pela corrupção.

As eleições presidenciais, como se previa, foram falsificadas e o ditador Paul Biya submeteu o seu adversário vitorioso. Era uma era de esperança, tinha-se desmoronado a URSS, tudo levava a crer que o continente negro ia ser subtraído ao esquecimento. Contudo, a África negra continuou subjugada à tutela de Paris. Como numa autêntica profissão de fé, no termo do seu relato Mongo Beti insiste que a África pode desenvolver-se se tiver a coragem de combater as três pragas que a afligem: a marginalização da aldeia, o regresso e a boa gestão dos recursos humanos e o fim do colonialismo paternalista que se apoia no centralismo sem nenhuma relação com a tradição e as exigências do progresso. E há outros desafios pela frente: extirpar o cancro da corrupção, devolver aos camaroneses a propriedade da sua pátria e fazer com que eles tenham o sentimento de serem os seus gestores. E a ajuda estrangeira.

O que há então de analogia com o país lusófono encravado no amplo espaço da francofonia africana? A mesma incapacidade na perceção da soberania nacional, no desenho de projetos estratégicos e na definição do desígnio que deixa inerte o tribalismo e as suas tentações. Um regime democrático onde os seus órgãos se respeitem sem colisões; um planeamento das infraestruturas, uma implementação do serviço público num processo de comunicação permanente entre as comunidades aldeãs e os respetivos núcleos populacionais. E por aí adiante.

Não há neocolonialismo na Guiné-Bissau, o que existe é ingovernabilidade, a incapacidade do Estado se afirmar, estabelecer projetos credíveis à cooperação internacional, agir no combate à corrupção e banir as clientelas que se movimentam em torno dos dirigentes, famílias, gente da mesma etnia que quer abocanhar umas migalhas na mesa do orçamento. 

Aí são nítidas as similitudes entre os Camarões e a Guiné-Bissau, não é o espectro da ditadura que apoquenta a classe política, é a sua indisponibilidade para o sentido do Estado, para o estabelecimento de acordos entre os parceiros políticos, sociais e económicos, dando assim esperanças ao levantamento e ao respeito pelo Estado. 

Foi bom ter lido Mongo Beti e sentir que há cidadãos empenhados em contribuir para o bom nome da sua pátria.
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Notas do editor

Poste anterior de 25 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17796: Notas de leitura (998): “A França contra África”, por Mongo Beti; Editorial Caminho, 2000 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 29 de setembro de 2017 Guiné 61/74 - P17807: Notas de leitura (999): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (2) (Mário Beja Santos)

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17022: Lembrete (20): O lançamento do livro de João Freire, "A Colonização Portuguesa da Guiné: 1880-1960", é na Biblioteca Central da Marinha, em Belém (com entrada pela portal principal do mosteiro dos Jerónimos), nesta 4ª feira, dia 8, às 18h. Apresentadores: cmdt Luís Costa Correia e antropólogo Eduardo Costa Dias




1. Lembrete de João Freire, meu antigo colega do ISCTE-IUL,  e antigo oficial da marinha, autor de "A colonização portuguesa da Guiné: 1880-1960" (*):

Data: quarta-feira, 1 de Fevereiro de 2017 23:30

Assunto: livro Guiné

Teria gosto na vossa presença na sessão de lançamento do meu livro A Colonização Portuguesa da Guiné 1880-1960 que terá lugar na 

Biblioteca Central de Marinha (com entrada pela porta principal do mosteiro dos Jerónimos).

Serão apresentadores da obra: (i)  o comandante Luís Costa Correia; e (ii)  o antropólogo Eduardo Costa Dias, professor do ISCTE-IUL.(**)

João Freire
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 31 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17009: Agenda cultural (539): Lançamento do livro "A Colonização Portuguesa da Guiné", do prof João Freire, sociólogo (Lisboa, Comissão Cultural de Marinha, 2017), em Belém, na Biblioteca Central da Marinha, no próximo dia 8, 4ª feira, às 18h.

(**) Último poste da série > 6 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16806: Lembrete (19): Lançamento do livro "História(s) da Guiné-Bissau - Da luta de libertação aos nossos dias", da autoria do nosso camarada Mário Beja Santos, hoje, pelas 18 horas, no Auditório da Associação Nacional das Farmácias, em Lisboa

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P17009: Agenda cultural (539): Lançamento do livro "A Colonização Portuguesa da Guiné", do prof João Freire, sociólogo (Lisboa, Comissão Cultural de Marinha, 2017), em Belém, na Biblioteca Central da Marinha, no próximo dia 8, 4ª feira, às 18h



Capa e contracapa do livro do prof João Freire A Colonização Portuguesa da Guiné, edição da Comissão Cultural de Marinha, 2017.


1. Convite


No próximo dia 8 (4ª Feira) às 18h, terá lugar em Belém a sessão de lançamento do meu livro A Colonização Portuguesa da Guiné, pela Comissão Cultural de Marinha.

Serão apresentadores da obra o comandante Luís Costa Correia e o antropólogo Eduardo Costa Dias, professor do ISCTE-IUL.

Teria gosto e honra na vossa presença.

João Freire


2. Nota do editor

Comissão Cultural da Marinha, com sede em Belém, Lisboa,  tem página no Facebook

Notas sobre autor:

João [Carlos de Oliveira  Moreira] Freire

A, História administrativa/biográfica/familiar

João Freire, nasceu a 5 de novembro de 1942, emLisboa;  por influência familiar, mas também por escolha própria, entrou para o Colégio Militar de Lisboa, onde permaneceu como interno por sete anos.

Em 1960 entrou na Escola Naval. Guarda -marinha (da nova reforma) em 1964, aperfeiçoando-se em artilharia, onde foi oficial de guarnição no N.R.P "SAGRES", "CORTE REAL", "FAIAL", e "ÁLVARES CABRAL (Moçambique, 1966-1968)", expulso por deserção em 1968.

Amnistiado e passado à Reserva em 1974. Operário industrial metalúrgico entre 1970 e 1976 em França. Carreira universitária em Portugal. no ISCTE.

Em 1988 fez o Doutoramento em Sociologia, agregado, pelo ISCTE (1994). Domínio científico: sociologia (especialidade de sociologia do trabalho).

Publicou, entre outros livros; Anarquistas e Operários (1992), Sociologia do Trabalho: Uma Introdução (1993 e 2002), Homens em Fundo Azul Marinho (2003), Pessoa Comum no seu Tempo (2007), Economia e Sociedade (2008), A Marinha e o Poder Político em Portugal (2010), Moçambique Há Um Século Visto pelos Colonizadores (2009, compil.), Elementos de Cultura Militar (2011), Olhares Europeus sobre Angola (2011, compil.), Do Controlo do Mar ao Controlo da Terra (2013), Crónicas de um Tempo Sombrio (2013), Portugal Face à Guerra em 1914-1915 (2014), Sociologia do Trabalho: Um Aprofundamento (2014, com R. Rego e C. Rodrigues), Crónicas Desassom 2bradas e Ensaios Sócio-Lógicos (2015) e A Colonização Portuguesa da Guiné 1880-1960 (2017).


B. Outras Actividades


Campeão nacional de esgrima em 1965 e representante português nas Universidades de 1961, 1963 e 1965, e nos Campeonatos do mundo de 1965 e da Europa (veteranos) em 2008.

Fundador e director da Revista "A Ideia", 1974, co-fundador da secção portuguesa da Amnistia Internacional em 1981. Sócio correspondente do Clube Militar Naval (proposto por 32 sócios e aprovado por unanimidade e aclamação em assembleia geral realizada a 27 de Fevereiro de 2004). Mais de vinte livros e perto de centena e meia de artigos publicados em revistas científicas.

C. Prémios, Louvores e Condecorações:

- 1 louvor militar (Moçambique, 1966);

- 1º Prémio do 1º Certamen Internacional del Ateneu Enciclopedic Popular de Barcelona em 1983;

- Professor emérito do ISCTE (IUL) em 2008.

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segunda-feira, 9 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16070: (In)citações (90): Colonização versus descolonização - fenómeno de aculturações inter-raciais (José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71) com data de 1 de Maio de 2016:

Colonização versus descolonização - fenómeno de aculturações inter-raciais

Sobre o comentário ao post 16028

Olá Luís, bom dia!
Lá vieste tu desassossegar-me, coisa que agradeço.

De facto, as minhas leituras predominantes incidem sobre a África desde o período da colonização, que teve inicio por alturas do sec. XIX com as grandes viagens de exploração e de interesses científicos e antropológicos, com destaque para a geografia, a agricultura e a mineralogia. A civilização, como é sabido, tem evoluído por impulsos de domínio de umas civilizações sobre outras, e a Europa não escapou a esse modelo mutacional, de que Portugal é exemplo. Tenho reflectido e desenvolvido algumas ideias com conclusões empíricas sobre a matéria.

Em África houve colonialismo, como antes tinha havido na Europa, com grandes áreas e populações que se alternavam em regimes colonizadores sobre outros, e lhes conferiam maior riqueza de conhecimentos também por via do cruzamento de raças, e inter-acção humanística, designadamente a paternidade.

Referes as vítimas dos "ismos", e eu subscrevo.Os "ismos" no meu entender são a constatação de formas de domínio, de que podem ou não resultar impulsos socialmente evolutivos ou de regressão bárbara. Normalmente não registam estagnação. Assim, porque é que um Deus de uma religião há-de ser melhor que outro de outra? Porque é que as religiões vão alterando as suas catequeses à evolução dos interesses sociais em diferentes grupos da humanidade? Por que é que o capitalismo há-de ser melhor que o fascismo ou o comunismo, se os modelos abrigarem exploração de classes com os seus cortejos de dificuldades, sempre subordinados a cliques autocráticas e plutocráticas? Por isso estou de acordo com as tuas interrogações.

O processo colonizador não pode ser visto como o modelo da escravatura, porque hoje temos grandes nações que cresceram e desenvolveram-se pela integração de escravos, e hoje são excelentes exemplos de miscigenação e progresso. O processo colonizador poderá ser, então, um processo de desenvolvimento e de enriquecimento pela valorização das sociedades, que passará por fases até à equiparação de deveres e direitos entre os concidadãos. Assim, colonialismo não é pejorativo.

A descolonização das colónias africanas resultou de uma enormidade de crimes, conforme razões já invocadas noutras ocasiões, crimes que aos olhos dos militares a quem se exige consciência permanente: desde logo, o crime de traição, por razões óbvias e amplamente referidas; depois, o crime de lesa-pátria, uma Pátria que não podia alterar as estruturas num clique, como se constata e confirma com múltiplos exemplo; e finalmente, o crime contra a humanidade, tendo em conta os muitos milhares de assassinatos que se verificaram, e qualquer líder militar consciente (para que servem os altos estudos militares?) tem obrigação de levar em conta no desencadear de uma acção, com perspectivas mais do que presumíveis, pois quebrado o cimento da nacionalidade, revitalizar-se-ia a questão tribal, por um lado, e a questão do domínio, por outro, tanto mais que as potências da guerra-fria não deixariam de aproveitar a lacuna, e potenciariam os seus campos de experiências bélicas sem saírem chamuscadas, enquanto alargariam as áreas de influência. Assim, os responsáveis pela vergonhosa descolonização, que abandonaram os povos e os territórios por razões de traição ou saudades das famílias na metrópole, devem ser julgados, à semelhança do que aconteceu com os responsáveis dos crimes étnicos da Sérvia. É queda brutalidade há responsáveis por acção e omissão.

Posso estar a exagerar nos conceitos e avaliações, mas há que denunciar a trapaça do MFA, que só tinha intenção de servir o interesse dos oficiais que o integravam, incluindo a ambição de Spínola, qual padrinho manhoso para atingir o poder, e em conjunto transformaram Portugal num peão do xadrez político das potências, onde ainda permanece, agora sob o pomposo regime da "democracia" com votos equiparados a cheques em branco.

Na medida em que temos cá um historiador activo, e muitos com dedicado interesse pela História, pode acontecer que alguém traga ciência (as fontes e a interpretação histórica), onde eu apresento o que podem classificar de palpites, mas façam-no com abordagens sistematizadas e livres de preconceitos, mostrando conhecer as diferenças culturais da cultura prosélita.

Não devo acabar sem prestar homenagem aos que deram de si à Pátria, e de expressar admiração, por todos os que foram violentados e ficaram sem familiares, amigos e bens, mas que mantiveram a serenidade sem ódio na reconstituição das suas vidas.

Abraços fraternos
JD
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de abril de 2016 Guiné 63/74 - P16028: (In)citações (89): Reflexão sobre a oportunidade (a falta dela) decorrente do MFA (José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679)

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15045: Como Tudo Aconteceu (Manuel Vaz, ex-Alf Mil da CCAÇ 798): Parte IV - A Guiné: O Parente pobre da Colonização Portuguesa

1. Parte IV do trabalho "Como Tudo Aconteceu", da autoria do nosso camarada Manuel Vaz (ex-Alf Mil da CCAÇ 798, Gadamael Porto, 1965/67), enviado ao nosso Blogue em 18 de Agosto de 2015:


COMO TUDO ACONTECEU

PARTE IV

A GUINÉ: O PARENTE POBRE DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA


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Nota do editor

Poste anterior da série de 18 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15017: Como Tudo Aconteceu (Manuel Vaz, ex-Alf Mil da CCAÇ 798): Parte III - A Guiné do Século XV e meados do Século XVI

sábado, 13 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14742: (Ex)citações (281): Sexo em tempo de guerra... O ponto de vista de um ex-capelão (Mário S. de Oliveira)

1. Mensagem de Mário de Oliveira, nosso grã-tabanqueiro,  mais conhecido como Padre Mário da Lixa), é um  dos nososs conhecidos capelães que fizeram a guerra colonial  devido aos seus problemas com o Exército, a PIDE/DGS e a hierarquia da Igreja [, foto atual à direita].

Foi alf mil capelão, CCS/BCAÇ 1912, Mansoa, entre novembro de 1967 e em março 1968; vive no concelho de Felgueiras; foi jornalista e  autor de vasta obra de reflexão espiritual e teológica. O seu último, "Fátima, S.A." mereveu destaque no "Expresso". (*)

De: Mario de Oliveira

Data: 5 de junho de 2015 às 20:57

Assunto: (Ex)citações...

Oh raio...o "pessoal" afina logo á primeira, se calhar sem aprofundar bem o simbolismo da questão. Aqui, no meu ponto, ninguém tem que se envergonhar de nada porque...era a própria política "colonialista" de uma "colonização manca"​ - falta de efetivos humanos para colonizar - que incentivava a interligação do homem branco com a mulher africana, na intenção de que (segundo D. Carlos e outros), o novo ser vivo que acaso viesse ao mundo dessa "interligação" passasse a ser o chefe de posto/cipaio/fiscal/chefe de a, b, c, dependências governamentais, para colmatar a falta de "minhotos, transmontanos, beirões (como eu), tudo na procura de "popular" os locais onde acaso tivessem assentado pé.

Ironicamente, a interligação, não comtemplava a interligação entre "a mulher branca" e o africano. Aqui, é que assenta o fulcro da questão.

No aspeto pessoal de cada quem, cada um dos intervenientes terá que ter na sua consciência a sua ligação com as africanas. Houve e há muitos que o fizeram "honestamente" por se terem assimilado-convivido com as mulheres africana em questão e, a estes, só e de louvar porque constituíram uma família.

Mas, não duvido absolutamente nada, que outros o fizeram por necessidade fisiológica e, quiçá, de uma forma pouco respeitosa. Cada um que tenha o seu descargo de consciência mas envergonhar-se...seria errado. Arrepender-se talvez fosse mais aconselhável. (**)


Abraço a todos.

Máio S. de Oliveira

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Notas do editor:

(*)  Sobre o último livbro,m "Fátima", o nosso camarada escreveu-nos o seguinte, em mensagem de 5 do corrente:

Olá, camarada Luís Graça:
Tomo a liberdade de te fazer chegar esta informação:

A PROPÓSITO DE FÁTIMA S.A.

Saiu em meados de Maio 2015 e, até agora, só eu já despachei pelos CTT quase 200 exemplares para outras tantas pessoas que se me dirigiram interessadas na sua aquisição. A 2.ª edição sai agora, na 2ª semana de Junho. Até o grupo Leya já se rendeu ao Livro e faz encomendas à pequena Editora do Livro, Seda Publicações.

Na minha qualidade de presbítero-jornalista, "viajei" por dentro dos Documentos oficiais disponibilizados pelo Santuário de Fátima e pude ficar a conhecer todo o “segredo” de Fátima, desde 1917 até aos nossos dias. O resultado desta minha investigação é este Livro de 288 pgs, 14 capítulos

Cada exemplar fica por 17€ + 2,35€ de portes de correio. Poderei suportar os portes, se assim entenderem. Enviem-me o v/ endereço postal e o Livro vai ter a vossa casa, autografado por mim. Depois, fazem a transferência bancária para o NIB da m/ conta-reforma: 0007 0000 0077 5184 2312 3. 

Os meus direitos de Autor são integralmente para o Barracão de Cultura. Espero as v/ encomendas. Não se arrependerão. 

O meu abraço, Mário.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7917: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (13): Emigração para as Colónias, só com Carta de Chamada







Fotos de: Luis Graça, 2010. (Com a devida vénia ao autor, Manuel Botelho,  o artista plástico português, nascido em 1950,  que mais se tem interessado pela guerra colonial e que já tem utilizado materiais do nosso blogue)...

Título da obra: "Matchbox: Portugal is not a small country" [ O autor ter-se-á inspirado em material cartográfico, publicado sob o título Portugal não é um país pequeno em Lisboa, s/d,  pelo Secretariado da Propaganda Nacional,  sob a direcção literária de Henrique  Galvão (1895-1970). Mapa a cor, com 55 x 38 cm, escala circa  1:13000000. No canto inferior direito contém a seguinte legenda: "Superfícies do Império Colonial Português comparadas com as dos principais países da Europa"].


 
Esta obra do pintor, arquitecto e professor de belas artes Manuel Botelho,  neto do grande pintor Carlos Botelho (1899-1982), esteve exposta em Res Publica 1910 e 2010 face a face. Exposição organizada pelo CAM/FCG [, Centro de Arte Moderna / Fundação Calouste Gulbenkian] em parceria com a Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República. Piso 0 e 01 do edifício central da sede da Fundação e jardim. Lisboa, 8 de Outubro de 2010 a 16 de Janeiro de 2011. Curadoria: Helena de Freitas e Leonor Nazaré.  (LG).




1. Mais um pensamento do nosso Mais Velho António Rosinha, enviado em mensagem do dia 7 de Março de 2011:


Caderno de notas de um Mais Velho (13) > Emigração para as colónias e a "Carta de Chamada" . Por que Salazar não deixou "europeizar" em força as colónias?


A Carta de Chamada  consistia em um termo de responsabilidade assinado por um comerciante ou um funcionário público residente na colónia, a responsabilizar-se por um candidato à emigração, o que fazia que muita gente que,  não tendo familiares ou amigos para assinar essa carta, desistia e ia para a América ou Brasil onde tinha parentes que o mandavam ir.


Escreve-se tanto sobre Salazar, muitas coisas não passam mesmo de deduções de quem escreve, pois o homem nunca se abriu muito, que podemos perguntar a nós mesmos, e falava-se efectivamente, porque Salazar viu tanta gente ir para o Brasil e EUA, nos anos 50, e não encaminhou essa gente para Angola, Guiné e Moçambique.


Exceptuando os militares ou funcionários em comissão de serviço, ou deportados para o Tarrafal, Salazar só deixava ir par as colónias, colonos, selecionados, ou emigrantes com carta de chamada como se fossem para o estrangeiro.


Isto nos anos 50 do outro século, no imediatamente antes da guerra do ultramar, ou seja, já estavam em marcha as independências francófonas e anglófonas, e Agostinho Neto, Amílcar, Luandino Vieira, etc. já tinham ideias formadas.


Havia várias dificuldades para se emigrar para as colónias portuguesas, até que apareceu a guerra do ultramar em 1961, acabando a maioria das complicações. A partir dessa data já não era preciso ter um familiar em Angola para o mandar ir.


Não recorrendo a documentos, falando apenas de casos popularmente conhecidos ou propalados, houve casos como o Zé do Telhado [, 1818-1875,] que foi para Angola como degredado [em 1861] e, recorro a este exemplo, porque foi um processo usado pela Justiça durante séculos para punir criminosos e simultaneamente ajudar à colonização por portugueses.


Ainda durante a chamada 1.ª República, foram pensados uns colonatos em Angola para serem enviados colonos brancos para esses lugares, portanto era uma maneira de se emigrar com a família para as colónias por convite, ou aliciamento, ou como quisermos interpretar esse processo.


Salazar também usou esse processo do colonato, mas no caso de Angola não foi muito numerosa essa emigração, como às vezes se ouve em certos escritos, e no caso da Guiné, penso que nem existiu essa prática. Em Angola havia o colonato da Cela no planalto central e Capelongo junto do Cunene, os que verdadeiramente chegavam a formar uma pequena vila rural portuguesa.


Quem foi muito apologista da emigração branca para Angola, de uma maneira maciça, foi o célebre anti-salazarista General Norton de Matos [, 1867-1955], muito conhecedor de Angola devido aos anos passados lá como governador e outras atividades políticas dedicadas ao ultramar.


Sobre Norton de Matos, fundador da cidade de Nova Lisboa (Huambo),  em Angola, diziam muitos africanistas angolanos que tinha ele uma visão de desenvolvimento para as colónias, que,  a ser seguida a política dele, transformava Portugal e as suas colónias numa grande potência económica.


Alguns mais entusiastas por Angola, até imaginavam uma capital portuguesa em Nova Lisboa.


Mas, diziam os africanistas e antisalazaristas, que o Salazar atrofiava as ideias dos portugueses empreendedores, usando processos e burocracias atrasadas.


E aí, aparece a burocracia da CARTA DE CHAMADA, da qual Salazar não abria mão. Acompanhada de outras burocracias como vacinas, registo criminal e três contos e quinhentos por cabeça, para viajar de porão. Não sei se crianças, normalmente muitas, pagavam por igual.


Para evitar a burocracia da Carta de Chamada havia uma solução, era pagar as viagens de ida e volta, com direito a receber a devolução das viagens de regresso, quando passassem seis meses ou um ano, conforme as informações sobre a adaptação à nova terra.


Também era dispensada a Carta de Chamada, a quem casasse por procuração com um residente nas colónias. Foi um meio usado com muita frequência.


Quem era a favor de uma forte ocupação branca das colónias, principalmente Angola, condenava a política de Salazar em que este se contradizia, em que ao mesmo tempo que dizia que era tudo Portugal, e ao mesmo tempo tinha que haver a tal carta de chamada.


Também se dizia que Salazar não deixava colonizar e desenvolver fortemente Angola, por medo de os brancos fazerem como os da Africa do Sul, isto é, abandonar o "pobre rectângulo".


Já se ouvia antes da guerra bocas como aquela em que Angola valia a pena, mas a Guiné e Cabo Verde era só prejuízo, e outras coisas deste género. Mas não era o Salazar que dizia isso, antes pelo contrário, o que transparecia era que nem um centímetro quadrado era para ceder.


Isto eram conversas à mesa do café, sem medo da PIDE, à vontade, em toda a Angola, menos nuns certos cafés da baixa de Luanda onde circulavam uns tantos popularíssimos inspectores da dita policia, conhecidos de todos os frequentadores habituais. Em Luanda, toda a gente se conhecia, não sei explicar como, mas era assim mesmo.


Penso que PIDE tinha instalações apenas em Luanda, no resto de Angola nunca ouvi falar, a não ser depois de 1961.


Antes de a guerra começar, já era conhecido o petróleo de Angola, os diamantes, o algodão, o café, o cobre etc, e aquilo que hoje ouvimos sobre o que as riquezas angolanas estão a fazer, desde ter mantido uma guerra de quase 30 anos, e hoje dá trabalho a milhares de chineses, brasileiros e portugueses, pergunta-se muita gente, porque Salazar não criou riqueza, desenvolveu, ocupou... com aquela riqueza toda à mão de semear.


Mas ninguém que escreve sobre Salazar tenta outra explicação para o impedimento de um grande povoamento europeu, que não fosse o medo de perder o controle e haver uma independência.


E, porque depois de tantos anos que passaram, sabendo que Salazar não fazia nada sem ser tudo bem pensado, não será de imaginar que haveria naquela cabeça certezas bem desastrosas, com as piores consequências de uma qualquer independência, havendo uma enorme ocupação europeia?


Para já, tenho a dizer que conhecendo a Guiné como conhecemos, em que a capital era numa ilha, Bolama, e cidades com direito a esse nome era Bissau e Bafatá, bem diminutas, todos consideramos que Portugal nunca fez grande colonização, nem asfalto, nem escolas, mas apenas uns postos administrativos espalhados em grandes áreas.


Se alguém pusesse em dúvida o nosso direito a considerar a Guiné, colónia portuguesa, não sabemos num caso de conflito, se não aconteceria o mesmo como Goa e depois com Timor.


Mas se a Guiné estava naquele atraso em 1963 que todos conhecem, talvez leiam pela primeira vez, mas Angola, proporcionalmente estava várias vezes mais "isenta" de qualquer colonização. Isto vi eu, porque conheço exaustivamente as duas ex-colónias. Para isso, não tive tempo de viajar para lá de Olivença, pelo que não me considero europeísta.


Para dar um exemplo dessa falta de colonização, refiro a quantidade de asfalto em Angola em 1961: havia asfalto nas principais ruas das principais cidades; mas nas estradas, viajava-se em asfalto de Luanda a Catete, aproximadamente 70Km, entre Benguela e Lobito, 20Km, um troço experimental de asfalto de 30Km, entre Lucala e Camabatela, e acabou.


O resto eram picadas e jangadas, ou seja, como exemplo ir de Lisboa a Paris, (de Luanda ao Cazombo) íamos de asfalto até Pegões, daí em frente preparávamo-nos com alimentação, roupa, combustível para semanas em tempo seco, e para meses em tempo de chuva até chegar a Paris.


Qualquer colonização europeia que se encontrasse no caminho não passava de comerciantes isolados ou chefes de posto, sem comunicação rádio, e se tivessem um jeep Willys, era um luxo.


Quando se chegava a uma capital de distrito ou a uma missão católica ou protestante, aproveitava-se para reabastecer combustíveis gerais e actualizar novidades.


Como Salazar sabia melhor que ninguém que de 1933, quando fica com as rédeas do poder na mão, até 1961 não tinha ocupado nem desenvolvido as colónias (Uns anos antes de Salazar, Lisboa não acendia as luzes em Lisboa por falta de dinheiro para o carvão que vinha da Inglatera). Salazar sabia também que dando muita visibilidade às riquezas angolanas ficava sem "passada" para acompanhar os ventos da história, que era mais tufões do que vento.


Ninguém tinha o mais pequeno respeito pela "nossa missão colonizadora", e desde os tripulantes de barcos nórdicos até aos americanos que aportavam em Luanda a carregar café, algodão, etc, dia e noite os guindastes em movimento, achavam escandaloso, ridículo, e com uns brandys no bucho perguntavam-nos na cara se não tínhamos vergonha de ser tão pequenos e pobres, e explorar aquela terra tão grande e rica.


Hoje vemos os americanos a gozar com a compra dos submarinos pelo tal de Portas e vemos o que se passa hoje com os nossos europeístas a serem gozados em Berlim e Bruxelas por causa dos orçamentos, porque tal como antes, hoje também queremos dar passadas maiores que as nossas pernas, e todos acham que é um descaramento querermos ser do clube dos grandes.


Podemos hoje conjecturar que as dificuldades portuguesas de há 50 anos eram historicamente das mais complicadas dos nossos 800 anos, (os 800 anos foram lembrados em Berlim, recentemente à Frau Merkel) e que Salazar usou de muitas manhas para atingir os fins.


E podemos conjecturar que,  graças à Carta de Chamada, provavelmente no 25 de Abril houve um número inferior a um milhão de portugueses retornados. O que seria se não fosse essa Carta que Salazar cuidadosamente exigia?


Será que Salazar não previa um fim de império? É que os estudiosos portugueses falam sempre do que Salazar nos obrigava a enfrentar: emigração, manter as colónias, manter uma agricultura arcaica e uma pesca controlada pelo Tenreiro, uma indústria insignificante, etc. e uns direitos sociais miseráveis, mas esses estudiosos já estão a tempo de escrever que há muitas dúvidas hoje, qual o perigo de darmos passadas maiores que as nossas pernas.


E esses estudiosos de Salazar já estão a tempo de escrever que a ditadura ganhava vida com as dificuldades que lhe eram criadas com casos como as revoltas nas colónias, o assalto ao Santa Maria por Henrique Galvão e, até quando Humberto Delgado foi assassinado, a ditadura aproveitou para espalhar que a oposição (os do contra, como se dizia), é que o atraiçoou e o conduziu a uma cilada.


Escreve-se sempre que estes casos "abanavam os alicerces da ditadura" mas não era essa a sensação, e hoje vemos que Salazar cai da cadeira em 1968 e apenas em 1974 se dá o "o fim do império e da ditadura".


Não estou com isto a armar-me em salazarista, mas considero que o papel de Salazar no que toca ao assunto colonial, que ele também herda de uma maneira muito complicada, não é analisada de uma maneira isenta de preconceitos, nem os que apoiam nem os que condenam o Botas.


E, aquilo que hoje é dado como ponto assente sobre o pensamento de Salazar, que estava ultrapassado e isolado internacionalmente, é fácil de mostrar o contrário.


Termino para dizer que o homem que assinou a minha CARTA de CHAMADA para eu emigrar para Angola, foi assassinado no Norte de Angola nos massacres da UPA.


O Norte de Angola, zona cafeeira, podia considerar-se provavelmente que era a única área verdadeiramente colonizada com missões, escolas e uma economia cafeeira importante.


Um abraço e desejo boa disposição aos editores para continuarem com ânimo


Anº Rosinha
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Nota de CV:


Vd. último poste da série de 8 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7744: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (12): Os guineenses apenas assumem o idioma português como língua oficial