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segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26385: Notas de leitura (1764): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,
Este ensaio de Frédéric Mauro tem com aliciante a interpelação que ele faz se houve ou não um paradoxo colonial português. À revelia do que propunha Lenine, Portugal possuiu um império marítimo sem revolução industrial, teve nas mãos a economia de vastos territórios para além das suas possibilidades teóricas, mas não foi um imperialismo como último estádio do capitalismo, por uma razão que escapou a Lenine e aos seus seguidores. O império marítimo português era baseado na política de transporte, da intermediação. Trazia-se pimenta, madeiras exóticas, canela e outras especiarias, em Lisboa fazia-se a troca, comprava-se o que era apreciado no Oriente, nas feitorias africanas, no litoral brasileiro. Quando mudou o modelo capitalista no século XIX, praticamente inexistente o que fora o Império do Oriente, com o Brasil independente, o país lançou-se no terceiro império. A vocação marítima vinha de longe, houve negócios medievais com Inglaterra e os portugueses estavam mais perto da terra nova que os bretões. A marinha chama o comércio, não havendo indústria agarraram-se com ambas as mãos a fixação possível de populações depois da Conferência de Berlim, já não havia comércio negreiro, apostou-se nas potencialidades do cacau, do café, das madeiras, numa primeira fase, na cedência de mão-de-obra para as minas de África do Sul, desenvolvimento das pescas, novas explorações de ouro e diamantes. A lógica descolonizadora deixou perplexa o Estado Novo, enquanto ficava isolado nas relações internacionais, dependente dos interesses de África Austral, havia investimento estrangeiro do mundo ocidental que alimentou a ilusão de que o império estava para durar, esqueceu-se a outra dimensão humana que foi a saturação da guerra sem nenhuma solução política à vista.

Um abraço do
Mário



A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (2)

Mário Beja Santos

Iniciativas Editoriais foi uma editora altamente conceituada dirigida por José Rodrigues Fafe, os temas sociopolíticos foram o seu polo atrativo. Tomou iniciativa de juntar um conjunto de profundos conhecedores da historiografia da colonização portuguesa e pedir-lhes uma apreciação em jeito de balanço. Abriu esta série de recensões Banha de Andrade, a sua intervenção intitula-se Ao fechar a última página da colonização portuguesa. Segue-se Frédéric Mauro, então professor da Universidade de Paris, reputado especialista da temática dos Descobrimentos portugueses. Acicata-nos com uma interrogação: haverá um paradoxo colonial português? E contraria o pensamento leninista, deste modo: 

“Lenine escreveu o imperialismo como último estádio do capitalismo. Ora, a história de Portugal parece insurgir-se contra essa ideia feita. Portugal, país pequeno e fraco, possuiu o maior império marítimo do seu tempo. País sem revolução industrial, teve nas mãos a economia de vastos territórios. Mas antes de explicar este paradoxo, recorde-se que houve, pelo menos, dois impérios coloniais portugueses como houve dois impérios coloniais europeus.”

É usual falar-se do primeiro império colonial ligado à expansão do capitalismo comercial, um império que durou do Renascimento à Revolução Francesa, os seus protagonistas foram Portugal, Espanha, Holanda, Inglaterra e França.

 As colónias espanholas foram sobretudo colónias de povoamento; os portugueses criaram feitorias comerciais no Oriente e colónias de povoamento no Ocidente, tal como os franceses e ingleses. Este primeiro império colonial conheceu duas fases. A primeira, ligado ao impulso comercial e capitalista do fim da Idade Média e do Renascimento, ergue-se sobre as ruínas do império veneziano; com a viagem de Vasco da Gama desviou-se a pimenta indiana das rotas pérsicas para a fazer passar por Lisboa; os espanhóis extraem do subsolo americano os metais preciosos; holandeses e depois os ingleses substituem-se no tráfego do Oriente; no século XVII portugueses e holandeses voltam-se para o Brasil a fim de compensar as perdas sofridas no Oriente; ingleses, franceses e holandeses prosseguem a sua empresa de colonização da América do Norte. Pode-se perguntar se o império português passou por duas fases de colonização ou se não houve diferentes ciclos da economia marítima portuguesa: o império e o ciclo das especiarias, baseado na exploração da Ásia, o império e o ciclo do açúcar do século XVII e da costa brasileira, o império e o ciclo do ouro ligado à colonização do interior do continente americano e à exploração do ouro e dos diamantes na capitania de Minas, depois em Goiás e Mato Grosso – este duplo ciclo brasileiro consolida a presença portuguesa na América.

O segundo império colonial europeu liga-se ao alargamento do que se convencionou chamar o capitalismo industrial que cresceu e se desenvolveu conhecendo as flutuações a curto e longo prazo de todo o sistema capitalista. A expansão europeia que fez nascer o segundo império europeu está ligada à Grande Depressão dos anos 1873-1895 e suscitou a criação de novos territórios coloniais. Os preços dos produtos industriais caíam na Europa, havia que os vender noutros continentes, e daí as emigrações e expatriamentos para povoar o continente americano, a África, a Austrália e a Nova Zelândia. Tudo isso suscitou rivalidades coloniais e estabeleceu-se o entendimento na Conferência de Berlim e organizar a expansão territorial, não a juntado às discórdias que existiam no continente europeu.

 Neste concerto capitalista, imperial e colonial, Portugal teve um lugar à parte. Participou na partilha de África, socorreu-se de expedições, engrenou na ocupação dos territórios, houve um relativo consenso em Portugal quanto à legitimidade e às obrigações de promover um quadro civilizacional, explorar as riquezas e fomentar o desenvolvimento naquilo que se convencionou chamar o terceiro império.

É neste quadro que Frédéric Mauro procura uma explicação para o paradoxo. Enquanto a reconstrução europeia a seguir à guerra dos Cem Anos não encarou grandes empresas ultramarinas, os portugueses foram movidos pelo génio marítimo, não faltou um sentido de cruzada; o chamado império do açúcar foi um feliz acaso, apareceu ligado ao desenvolvimento de uma nova necessidade do consumidor, trouxe reforço à vocação agrícola, marítima e comercial dos portugueses; e no ciclo do ouro e diamantes a balança comercial portuguesa com o estrangeiro tornou-se superavitária porque a do Brasil com Portugal era favorável ao Brasil. Foi graças ao seu défice com o Brasil que Portugal estava em excedente com o resto do mundo. Foi o ouro brasileiro que provocou a lenta alta de preços do século XVII e, curiosamente, beneficiou da pré-revolução e da revolução industriais em Inglaterra, país que desempenhava um papel privilegiado no comércio português desde o fim da Idade Média. 

A potência industrial inglesa irá tornar-se uma desvantagem para Portugal. A independência do Brasil consagrou e encorajou o esforço inglês para liberalizar o comércio brasileiro. E o resultado foi uma crise dramática da economia portuguesa, contribuiu para a revolução de 1820.

Até ao princípio do século XIX, o poderio português residiu no seu papel económico de intermediário, entre a produção do capitalismo comercial e o mundo tropical. Quando este papel se extinguiu, o país entrou numa via decadente, a alternativa encontrada foram os territórios africanos. Portugal aceitou desempenhar de novo o papel de intermediário, foi entreposto das manufaturas inglesas, francesas, alemãs, belgas ou holandesas para Angola e Moçambique. Finda a Segunda Guerra Mundial, deu-se uma convergência entre as grandes potências ocidentais e os países orbitados por Moscovo: os comunistas viam a descolonização como um meio de substituir a sua influência à da Europa Ocidental; os EUA aspiravam ao domínio económico e político do mundo, procuravam e conseguiram substituir a Grã-Bretanha como tutor e fornecedor de produtos manufaturados, de equipamentos e de capitais.

Nas Nações Unidas soprava o vento da descolonização. E Frédéric Mauro procura concluir este itinerário de análise:

“O paradoxo Portugal decifra-se em que conservou mais tempo as suas colónias, resistiu por mais tempo ao anticolonialismo. As razões deste paradoxo prendem-se à vontade de um governo ditatorial que montara uma estratégia hábil: neutralidade durante a Segunda Guerra Mundial, ingresso na NATO e apoiante da Guerra Fria, propagandista de uma política não-racial, recorrendo à valorização dos territórios, implantando colonos brancos nas regiões mais temperadas, trocando o nome das colónias por províncias ultramarinas e reclamando que nestas etnias diferentes viviam em entendimento perfeito e onde a exploração e a dominação não existiam, mas sim a colaboração e a cooperação. Enquanto muitos países europeus estavam alicerçados na sua vocação continental, Portugal foi essencialmente movido pela sua vocação marítima. 

Mas há outros fatores, há sempre que realçar o papel de Portugal como país de trânsito, de intermediário entre o mundo industrial e as suas próprias colónias. O império português estava integrado num sistema que se servia dele e do qual ele próprio beneficiava. Mas há outra explicação que tem a ver com o processo interno do próprio Portugal. O atraso industrial de Portugal, mantendo a preponderância dos interesses agrários e comerciais, ajudou a manter o salazarismo. O apoio da África do Sul, a existência de um “bloco branco” na região mais temperada de África fizeram o resto".

Frédéric Mauro não quis fazer mais especulações sobre o pós-colonização. Iremos adiante fazer uma breve resenha sobre a colonização portuguesa no sudeste africano, entre 1505 e 1900, pela mão de Eric Axelson, e falaremos mais adiante daquele que terá sido o historiador de língua inglesa que melhor conheceu o império português, Charles Ralph Boxer.


Frédéric Mauro
Página do livro "De Angola à Contra Costa" desenhos da autoria de Roberto Ivens
A atual cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, na época do Ciclo do Ouro - Vila Rica e era o centro económico da mineração no Brasil colonial

(continua)

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Notas do editor:

Vd. poste de 6 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26355: Notas de leitura (1761): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de10 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26373: Notas de leitura (1763): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (9) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26355: Notas de leitura (1761): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,

É certo que qualquer balanço sobre questões magnas, como é o caso da colonização portuguesa, goza de um período de vida curta, é inúmera a série daqueles que se pronunciam favorável ou desfavoravelmente; e há o caráter histórico da presença portuguesa, estar em Mazagão ou Ceuta foi um processo bem diverso do povoamento da Madeira e dos Açores, e mais diverso foi este povoamento em Cabo Verde. O povoamento conciliou a religião da Igreja Católica e as forças do mercantilismo; a presença portuguesa no Brasil apelou à libertação do índio e aqueles negros que vieram para os engenhos de açúcar conheceram processos de aculturação totalmente distintos daqueles que ocorreram no continente africano. Confesso que lendo hoje este trabalho de Banha de Andrade presumo que o professor e erudito que de algum modo acreditava no sonho ultramarino tem uma boa solidez cultural, aborda questões cruciais e omite outras. Mas tudo isto aparece publicado em novembro de 1975, há colaboração que se sente que está muito bem estruturada, outra ocorreu ao sabor do tempo do convite para escrever. Mas, tanto quanto sei, esta era a primeira sala de conversação de intelectuais de tão diverso ideário que se pronunciavam sobre o que fora a colonização multissecular, obviamente que nenhum deles foi convidado a pronunciar-se quanto às tribulações em que decorreu o processo descolonizador, em toda a sua linha, até àquela data.

Um abraço do
Mário



A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (1)

Mário Beja Santos

Iniciativas Editoriais foi uma editora altamente conceituada dirigida por José Rodrigues Fafe, os temas sociopolíticos foram o seu polo atrativo. Tomou iniciativa de juntar um conjunto de profundos conhecedores da historiografia da colonização portuguesa e pedir-lhes uma apreciação em jeito de balanço. 

Banha de Andrade aparece em primeiro lugar, dele já aqui se falou, pois, num número da Revista Ultramar dedicado à visita do presidente Américo Tomás à Guiné em 1968, ele escreveu uma síntese histórica da colónia, documento que lamentavelmente é pouco citado na bibliografia.

O estudioso elenca um conjunto de períodos para a colonização, faço um reparo do que distingue a colonização africana da brasileira e releva as duas questões maiores, a evangelização e o comércio, em articulação com a estrutura socio-administrativa, muitas vezes decalcada da administração europeia (Governador, Capitão-Geral, Provedor da Fazenda, Ouvidor, Meirinho, Oficiais do Exército, Escrivães, Dioceses, Cabidos, Paróquias, Conventos, Misericórdias, Confrarias) mesmo quando a presença de restringia a núcleos costeiros. 

Foram sucessivas as tentativas para encontrar uma melhor forma de administração: o sistema de Donatorias, acrescentado ao posto e poder do Capitão-mor, nas ilhas da Madeira, Açores, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe, Brasil, Angola, Moçambique (aqui com a designação e estrutura de Prazos, entre os séculos XVII e XIX) e companhias majestáticas, caso das Pombalinas, a da Zambézia, a estas estruturas sucederam-se os governos gerais. Os municípios eram dominados pelos brancos e mestiços, as confrarias agregaram todas as cores, instituiu-se em África a nobreza, com brasões, hábitos de ordens militares e comendas.

E anota um relacionamento peculiar:

“As populações mantinham-se como queriam e os portugueses serviam-se delas, dentro das relações sociais estabelecidas – livres ou escravos, como senhores ou subalternos, civilizando uns (ensino religioso, ofícios, costumes à base da moral) e deixando outros na barbárie. Nesta primeira fase predomina o estatuto das relações humanas, não se pondo o problema da posse da terra pelo indígena.”

Faz seguidamente uma apreciação da presença do negro em Portugal e descreve com detalhe a luta pela dignificação dos ameríndios, relevando o papel do padre António Vieira. Sintetiza este ponto dizendo que predominou uma tensão entre a procura da melhoria da condição humana do indígena e as ambições do mercantilismo, e constata que houve coabitação com o negro, o índio ou o oriental, tudo sem grandes forças bélicas, devido a convite e com oferta de terras por parte dos reis nativos.

A situação altera-se com a ascensão do liberalismo em que se admitia a igualdade de princípio entre todos os homens, processo que ganha um impulso com a abolição da escravatura. O Brasil torna-se independente, a presença portuguesa na Ásia é menor, nasce o Terceiro Império. 

A monarquia constitucional aboliu em todo o território angolano o serviço forçado dos carregadores, no cumprimento da carta constitucional, isto em 1856 e com a Conferência de Berlim a posse de colónias era determinada pela sua ocupação efetiva. Entra em discussão o direito de propriedade, volta a pôr-se na mesa o debate sobre o melhor sistema da administração ultramarina. 

A I República ensaiou prosseguir a política de descentralização, definiu-se o regulamento do trabalho dos indígenas nas colónias portuguesas (o indígena tinha obrigação de prover à sustentação da família cabendo ao estado o direito de o forçar a isso, e se não dispusesse de trabalho para dar aos nativos estes podiam ser obrigados a laborar para particulares, mas sempre nas mesmas condições de qualquer trabalhador livre.

Banha de Andrade é sério conhecedor de todas esta vasta legislação ultramarina, o seu ensaio neste livro abre pistas a quem queira estudar a evolução da legislação ultramarina da monarquia constitucional para a I República e depois para a ditadura, entrara-se agora numa fase da centralização, põe-se acento tónico na ação civilizadora, lembra as esperanças de Marcello Caetano em formar Estados autónomos integrados na pátria, mas o autor não deixa de dizer claramente que a colonização não integrou no quadro da assimilação, e assim se abriu naturalmente o horizonte da independência.

Indo um pouco atrás, ao Acto Colonial e à Carta Orgânica do Império Colonial Português, cita Marcello Caetano em 7 de setembro de 1945: “num só ponto devemos ser rigorosos quanto à separação racial: no respeitante aos cruzamentos familiares ou ocasionais entre pretos e brancos, fonte de perturbações graves na vida social de europeus e indígenas e origem do grave problema do mestiçamento”

O mesmo Marcello Caetano que se pronunciava assim ao Estatuto do Indigenato: 

“Os indígenas são súbitos portugueses, mas sem fazerem parte da nação, quer esta seja considerada como comunidade cultural, quer como associação política dos cidadãos.” 

Mas subitamente, havia que ter toda esta doutrina, o anticolonialismo marchava a passos largos, houve que rever toda a legislação, na lei ficaram abolidas todas as formas de trabalho cumprido, reconhecia-se a igualdade de salário, independentemente do sexo e da religião, e todos passavam a ser cidadãos portugueses.

Em jeito de conclusão, dirá que se torne difícil avaliar toda a dimensão da obra civilizadora dos portugueses. O que se torna óbvio é que essa ação deu consciência da unidade a regiões outrora dispersas. Não pode ser descurada a pacificação de conflitos interétnicos e termina assim:

“Os muitos desmandos da colonização portuguesa constituem, sem eufemismos nem piedade humanitária, o tributo que os povos pagaram, em todos os tempos e em todas a latitudes, quando se deu expansão de povos – para colonizar outros povos ou os largar, ou com o intuito coroado de êxito de integração num só e mesmo país, que o tempo aglutinou para sempre. A respeito da insistência das leis respeitantes ao trabalho e liberdade dos nativos, não deixaremos de frisar que a colonização não se restringiu à boa intenção das disposições legais. Estas, porém, não podem ser ignoradas no ato do julgamento da hora presente, nem sequer menosprezadas, porque ainda hoje, com toda a gama de superioridade de meios de fazer respeitar a autoridade constituída, subsiste por toda a parte o tremendo duelo entre o ideal e a realização. Os propósitos de uma linha correta de colonização, se não traduzem toda a efetividade dela, e, portanto, não cheguem para se gizar o balanço, não deixa de marcar o rumo que tomaria, se se tratasse de homens melhores que os conhecemos.”

Vamos seguidamente dar a palavra a um renomado estudioso francês, Frédéric Mauro, outro professor universitário com significativa obra sobre a colonização portuguesa.


António Alberto Banha de Andrade (1915-1982), professor universitário
Presidente da República pede desculpas pelos erros da colonização
Imagem alegórica à colonização portuguesa
Progressão em Angola pelo exército português durante a Guerra do Ultramar. Imagem retirada do jornal Diário de Notícias, com a devida vénia
As antigas instalações da Sena Sugar Estates. Imagem retirada do jornal Diário de Notícias, com a devida vénia
Igreja indígena na Guiné, anos 1920

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de3 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26342: Notas de leitura (1760): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (8) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25955: Historiografia da Presença Portuguesa em África (443): a história (atribulada) de Bolama, segundo o Padre J.A.V (1938)


 Guiné-Bissau > Bolama > Junho de 2021 > A estátua de Ulysses Grant, "ao luar"...


Guiné-Bissau > Bolama > Junho de 2021 > A estátua de Ulysses Grant, vista de dia... (A estátua original, em bronze,  desapareceu, há uns largos anos; esta da foto é uma réplica... em cimento)



Guiné-Bissau > Bolama > Junho de 2021 > A estátua de Ulysses Grant > Base: inscrição (parcial):    
[...] Grant,   [...]  dente dos 
Estados Unidos da 
América do Norte justo
árbritro na causa de
Bolama    21 - IV-18970

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2021). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]






1. O que sabíamos nós sobre a história da Guiné quando nos mandaram para lá "defender a Pátria" ? Nada, e muito menos desta ou daquela cidade ou vila, como Bolama, Bissau, Bafatá, Bambadinca, Nova Lamego, Tite, Buba, Cacheu, Catió, Teixeira Pinto, etc.

Cinquenta anos depois ainda temos direito a saber algo mais... sobre aquela terra a quem pagámos o  devido "imposto de sangue, suor e lãgrimas"... Por exemplo, sobre a história (atribulada) de Bolama: muitos camaradas passaram por lá, fizeram a  IAO e até foram "saudados" pela "rapaziada do PAIGC com uns foguetões 122 mm, felizmente com fraca pontaria...

O nosso colaborador permanente Mário Beja Santos (uma das pessoas que em Portugal mais sabe sobre a historiografia da presença portuguesa na Guiné) tem escrito imenso sobre estes temas, e nomeadamemnte sobre Bolama. 

Isso não nos impede de publicar aqui um apontamento com "uma resenha histórica" de Bolama, escrita por um padre, de que só conhecemos as iniciais (Pe. A. J. D.). O artigo faz parte do nº único do jornal "Sport Lisboa e Bolama", novembro de 1938 (pp. 1, 6 e 7 de 12). É um artigo de divulgação, já com quase 90 anos, escrito por um missionário (que seguramente tinha uma grande amor àquela terra).

Recorde-se que Bolama foi elevada à categoria de cidade, com a República, em 1913. O seu plano urbano também tem a marca da época. E foi a capital da antiga Guiné Portuguesa até 1941 (portanto, ao longo de escassas sete décadas). 

O século XIX (e sobretudo o período entre 1830 e 1870) é marcado pela  disputa, npor vezes violenta.  em relação à soberania da ilha, entre portugueses.  ingleses e ilhéus. 

Correu-se até o  risco até de cair num conflito militar entre as duas potências coloniais, se bem que "velhos aliados",  o que terá sido  evitado  graças à iniciativa de  António José de Ávila (Horta, Ilha do Faial, Açores,  1807 — Lisboa, 1881) (futuro Duque de Ávila e Bolama), que pediu a intervenção de Ulysses S. Grant, presidente dos Estados Unidos, a favor de Portugal,  

 Os bolamenses erigiram-lhe uma estátua, em homenagem à sua justa arbitragem  a favor de Portugal. Infelizmemnte, há uns anos atrás a estátua (ou parte da estátua), em bronze, desapareceu...Em total decadència, a Bolama de hoje parece não saber ou poder conseguir tomar contar dos vivos, quanto mais dos mortos...

Hoje é também uma ilha de fantasmas. onde por certo por lá pára ainda a alma errante do Caetano José Nozolini (ilha do Fogo, Cabo Verde, 1800 — Bissau, 1850), grande esclavagista cabo-verdiano de origem italiana... Mas também o Bento José Nogueira, o Bevaer, o Nozolini, o Honórito Barreto,  o  Grant e tantos outros, sem esquecer os régulos bijagós e biafadas.




Jornal-programa (sic) editado pelo "Sport Lisboa e Bolama", novembro de 1938. Composto e impresso pela Imprensa Nacional da Guiné, Bolama. Nº de páginas: 12 (doze).Visado pela Comissão de Censura,


Fonte: Câmara Municipal de Lisboa > Hemeroteca Digital >  Sport Lisboa e Bolama, novembro de 1938 (com a devida vénia).
































(Seleção, introdução, recortes, revisão / fixação de texto: LG)


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Nota do editor:


segunda-feira, 12 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24392: Notas de leitura (1590): Uma obra fundamental por quem se interessa por estudos africanos: "Atlas Histórico de África, da Pré-História aos Nossos Dias", Direcção de François-Xavier Fauvelle e Isabelle Surun; Guerra e Paz Editores, 2020 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Este Atlas Histórico de África para além de ser graficamente irrepreensível apresenta-se como uma ferramenta útil para quem pretenda apurar mais conhecimentos sobre as civilizações do continente africano com base numa matriz cronológica de valor científico. É verdade que há para ali um olhar muito gaulês, passa-se como cão por vinha vindimada sobre a presença portuguesa, e é ainda mais notório o não haver uma referência às explorações portuguesas do século XIX. Mas paciência, o todo é que conta e a informação é pertinente, da Pré-História aos nossos dias. Quem estuda a África não se pode alhear da importância deste Atlas.

Um abraço do
Mário


Uma obra fundamental por quem se interessa por estudos africanos:
Atlas Histórico de África, da Pré-História aos Nossos Dias


Mário Beja Santos

Trata-se de uma edição muito cuidada, graficamente irrepreensível, este Atlas Histórico de África, com direção dos especialistas François-Xavier Fauvelle e Isabelle Surun, Guerra e Paz Editores, 2020, documento apaixonante para os estudiosos de África. Este continente imenso com 2400 línguas faladas aparece muito bem enquadrado em cinco grandes períodos: a África antiga (desde a Pré-História até ao século XV; a África na era moderna (do século XV ao século XVIII), podemos ver os seus grandes reinos e alvorada da presença europeia; a África soberana (século XIX), que irá decorrer após a abolição do tráfico atlântico de escravos e as reconversões económicas africanas; a África sob o domínio colonial, um continente partilhado que irá resistir à presença colonial até à completa descolonização; a África das independências, com a sua teia de contradições e refluxos, a sua enormidade de desafios que aguardam resposta. O tratamento destas matérias é facilitado pela exibição de cem mapas mostram claramente este continente esteve sempre longe de se fechar sobre si próprio, é parte integrante da história da Humanidade.

Na sua diversidade, sabemos hoje não se pode estudar a hominização desconhecendo que ela começou em África, à luz dos conhecimentos atuais, o continente possui um rico mapa de arte rupestre, participou nas dinâmicas do comércio mediterrânico, na Idade Média foram-se robustecendo as suas relações com o mundo islâmico, as suas regiões litorais abriram-se a uma economia atlântica cujo elemento principal era o comércio negreiro. Uma Idade Média onde avultou o Império do Mali, onde foi influente a sociedade suaíli que resultou da cultura bantu e do mundo islâmico.

Mas não nos precipitemos, o leitor interessado é logo atraído pelos berços da Humanidade, pelos testemunhos da arqueologia e da linguística, e logo somos confrontados com a complexidade linguística da Etiópia, temos depois a arte rupestre, prossegue a investigação com África aberta para o Mediterrâneo, ficamos a saber que houve um sistema complexo de escrita, como se escreve: “Grandes zonas de África conheceram e utilizaram sistemas de escrita desde épocas muito antigas que tiveram início primeiro no mundo mediterrânico. Tal como o líbico-berbere, derivado da escrita fenícia, que serviu para gravar tanto inscrições líbicas antigas no Magrebe como o alfabeto tifinague, ainda usado pelos Tuaregues. A escrita etíope mostrou uma extraordinária inventividade, ao acrescentar declinações vocálicas a um alfabeto constituído inicialmente apenas por consoantes, adaptando-o assim a outras línguas e a outras pronúncias. De igual modo o meroítico, utilizado no Sudão, foi adaptado a partir do sistema egípcio para transcrever uma língua que ainda não sabemos decifrar completamente”.

A África do Norte faz parte das primeiras conquistas do Islão, estabeleceram-se rotas comerciais que infletiram em todas as direções até ao centro de África. Refere-se a Núbia e depois o Império do Mali e a Etiópia medieval. Assim chegamos à civilização suaíli, cujo território se estendia da Somália a Moçambique passando pelo Quénia, pela Tanzânia, pelas Comores e pelo Norte de Madagáscar. Estamos chegados à África na era moderna, emergem novos poderes: o Congo e o Monomotapa, na África Central e Austral, o Daomé e Axante, ao longo do Golfo da Guiné, o Songai, entre outros, foi um tempo de enormes recomposições políticas, que vários autores primorosamente sintetizam. E temos o primeiro entreposto europeu fortificado no espaço tropical, S. Jorge da Mina ou Elmina, como temos a Etiópia repartida em duas grandes religiões, o importante reino do Congo que manterá relações com Portugal e o Papado.

Apresenta-se o tráfico negreiro colonial e assim chegamos à África soberana do século XIX, dar-se-á a abolição desse tráfico e reconvertem-se as economias africanas, é o tempo do amendoim, das gomas, do óleo de palma, há senhores da guerra por toda a parte, descreve-se o reino de Madagáscar, o califado de Sokoto, que foi o maior Estado de África no século XIX, estendia-se do Norte da Nigéria aos Camarões. Mostra-se a África do tempo dos exploradores e regista-se o domínio colonial, desde as corridas às colónias à definição de fronteiras, bem como a problemática das formas de povoamento. A I Guerra Mundial, para além das várias batalhas que tiveram lugar no coração do continente africano, levaram muitos soldados a combater na Europa, nomeadamente em França e na Frente Oriental. O resultado não foi despiciendo: a Alemanha perdeu as suas principais colónias, a Grã-Bretanha e a França consolidaram as suas posições, a Bélgica e Portugal não saíram maltratadas. O africano pôde ver a fragilidade do homem branco, era menos invencível do que fazia supor, houve muitas promessas não cumpridas, começaram a germinar os movimentos independentistas.

Retornando ao século XIX, o Atlas dá-nos o quadro das missões cristãs no período colonial, temos depois a evolução das cidades coloniais, segue-se o fenómeno das revoltas anticoloniais e a emergência dos nacionalismos, daí decorre o período do império colonial tardio, que culmina com a descolonização portuguesa e as grandes transformações na África Austral. Nos anos 1960 à atualidade é um capítulo bem elaborado sobre o tempo das independências, as desilusões, a emergência do pan-africanismo, o que representou o fim da Guerra Fria em África, elencam-se as políticas sanitárias, os contrastes de desenvolvimento, realça-se o papel dos investimentos chineses nas infraestruturas, nos têxteis e madeiras exóticas. “Frequentemente financiados pelo endividamento, por vezes têm como garantia as receitas extrativas futuras. Por seu lado, os empregos assim criados e as expropriações ligadas à constituição de grandes domínios rurais alimentam o êxodo rural. Abidjã, Cairo, Joanesburgo, Lagos, Adis-Abeba transformam-se em polos urbanos e regionais dominantes no plano económico, político e cultural. A África em desenvolvimento é também uma África de desigualdades espaciais".

O fim da Guerra Fria saldou-se numa encenação democrática, tudo parecia caminhar para o multipartidarismo e a democracia parlamentar, mas o Estado autoritário e neopatrimonial dá provas de uma grande capacidade de duração, veja-se os casos do Gabão, da Guiné Equatorial, dos Camarões, do Congo-Brazzaville e do Chade. Seja como for, as mobilizações de cidadãos tornaram-se uma realidade, o que não impede que antigos opositores que chegam ao poder reproduzam o sistema que combateram, perpetuando, nomeadamente, o desequilíbrio presidencialista das constituições. Este importante Atlas História de África trata ainda o Apartheid na África Austral, os conflitos e sua resolução na África Central e Oriental e as migrações internas e externas na África. Conclui enfatizando que a África estava e está aberta ao mundo exterior, por essas janelas é bem provável que os quadros de violência, da pobreza, da corrupção e do autoritarismo possam conhecer modificações do quadro da globalização.

Obra do maior interesse, insista-se.

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24381: Notas de leitura (1589): N’Krumah, o líder da unidade africana, o denunciante das tramas do neocolonialismo (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22207: Notas de leitura (1357): "Impérios ao Sol, a luta pelo domínio de África”, por Lawrence James; Edições Saída de Emergência, 2018 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Julho de 2018:

Queridos amigos,
Uma condensação de valor apreciável sobre a constituição de impérios a partir do século XIX, as idiossincrasias, as motivações comerciais, o espírito missionário, os choques entre a França, a Grã-Bretanha e a Alemanha. Foi pena Lawrence James não ter estudado convenientemente o caso português, chega ao cúmulo, na hora da descolonização, de afirmar seraficamente que Portugal lutava em Angola e Moçambique e que o grande ideólogo da luta pela independência das colónias portuguesas era Agostinho Neto. Será lastimável se um especialista não lhe fizer chegar notícia do que significou a Guiné no fim do império.

Um abraço do
Mário


“Impérios ao Sol, A Luta pelo Domínio de África”, por Lawrence James (1)

Beja Santos

Vale a pena destacar os dois primeiros parágrafos do prefácio, para que o leitor saiba o que tem pela frente, trata-se de um autêntico e suculento prato de substância:
“Este livro expõe as transformações ocorridas em África ao longo dos séculos XIX e XX, uma época em que praticamente todo o continente passou a fazer parte dos impérios globais europeus. Trata-se de uma história sobre os conflitos de poder entre nações e entre governantes e governados. A mudança provocou conflitos, pois foi imposta a partir de cima por estrangeiros que a denominavam progresso e afiançavam que este seria uma fonte de proventos para eles e para os seus súbditos africanos. Alguns assentiram, cooperaram com os invasores e alcançaram a prosperidade, outros resistiram. As guerras de conquista e pacificação arrastaram-se por mais de um século, findando apenas com a subjugação da Abissínia pela Itália, em 1936. O conflito foi sempre um fenómeno endémico em África, mas os europeus entraram no continente levando consigo os avanços mais recentes da tecnologia militar. Na fase inicial da conquista, as metralhadoras representavam uma enorme vantagem para as suas forças e, durante as décadas de 1920 e 1930, espanhóis, franceses e italianos mobilizaram bombardeiros, carros de combate e gás mostarda contra marroquinos, líbios e abissínios.
O continente foi arrastado para as duas guerras mundiais que custaram à Alemanha, primeiro, e depois à Itália, as suas colónias. Mais de um milhão de africanos alistaram-se como voluntários ou foram recrutados para combater no Exército, muitos em longínquas frentes de combate. Durante a II Guerra Mundial, os soldados negros das colónias britânicas combateram as tropas japonesas na Birmânia, enquanto argelinos e marroquinos serviram ao lado das forças francesas contra os alemães, em Itália e na Europa Ocidental. Os veteranos regressaram a casa orgulhosos, perplexos e zangados. Fora-lhes dito que arriscavam a sua vida pela liberdade universal e em prol de um mundo melhor, mas a ordem imperial continuava enraizada em África”
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“Impérios ao Sol, a luta pelo domínio de África”, por Lawrence James, Edições Saída de Emergência, 2018, põe em imenso ecrã as ambiguidades deste conceito de progresso e de missão civilizadora e de ocupação que se forjou a partir de 1830, aproximadamente; desvela uma luta sem quartel para tomar posse de domínios por todo o continente, entre 1882 e 1918, no Egito e no Sudão, na África Austral, no Congo, em combate religioso; assistimos à ascensão dos nacionalismos, a presença de contingentes africanos em duas guerras mundiais para medir as consequências do que se seguiu, aproveitando a boleia da Guerra Fria; e de 1945 a 1990 o continente africano foi mudando de look, todos os povos se encaminharam para a independência; e assim chegamos aos últimos dias da África branca.

Por volta de 1830, a presença europeia em África mudou de slogan, passou-se a falar sistematicamente de missão civilizadora, o que durante séculos colonizadores franceses, espanhóis, holandeses, portugueses e britânicos tinham praticado era tráfico de escravos, criação de entrepostos comerciais e uma certa presença missionária. Um novo modelo capitalista punha tudo em questão, logo em 1807 a Grã-Bretanha proibira o tráfico de escravos e o comércio negreiro declinou. Como o autor observa, a cruzada antiesclavagista empreendida pela Grã-Bretanha coincidiu com o apogeu da Revolução Industrial, entrara-se na euforia das manufaturas, era preciso fazer chegar aos consumidores africanos esses produtos manufaturados, e nada melhor do que falar em progresso, em ciência, em civilização, bons pretextos para viagens científicas e conhecer as riquezas de solo e subsolo, do vastíssimo continente. Novos e velhos impérios passaram a conflituar, não lhes faltava poder expansionista: a Grã-Bretanha queria proteger solidamente a Rota do Cabo, os russos lançavam-se num ambicioso programa expansionista, a França pós-napoleónica suspirava por pôr um pé no Norte de África, começou pela Argélia, o Império Otomano abrangia do Sudeste da Europa à Turquia, Médio Oriente e Norte de África, entrara em desagregação, o Egito, a Tunísia e a Argélia eram Estados praticamente independentes.
Mas estamos numa época em que os conhecimentos sobre a natureza das sociedades africanas situadas nas regiões para lá do Sara, da África Ocidental e da Colónia do Cabo eram pouco mais do que vagos.

As potências com apetites imperiais conheciam a violência endémica africana, o comércio negreiro praticado pelos árabes à cabeça e a própria cultura europeia tinha o que hoje se pode considerar ideias aberrantes sobre os africanos, como o próprio autor observa. Lineu, o naturalista, catalogou o negro como ignorante. O filósofo David Hume pensava que as faculdades intelectuais de um negro se assemelhavam às de um papagaio enquanto John Wesley via nas suas imperfeições a prova da capacidade do homem para a degeneração moral. Estavam espalhados os conceitos de inferioridade africana, muitos deles ligados ao tráfico negreiro: o negro seria devasso, cobarde, indolente, cruel, supersticioso, antropófago. Essas ideias passaram a ser contestadas desde o século XIX, quer pelo romantismo, quer pela religião evangélica. Os românticos defendiam com insistência que o negro tinha sentimentos como o resto da humanidade e os evangélicos acreditavam que a sua conversão ao Cristianismo completaria a sua felicidade.

O autor é detalhado sobre a problemática da escravatura e o tráfico de escravos, concluindo que “A guerra mais ou menos isolada travada pela Grã-Bretanha contra o comércio de escravos alcançou um enorme êxito. Entre 1810 e 1864, a Royal Navy libertou 150 mil escravos. Em 1864, o comércio atlântico encontrava-se em rápido declínio e as operações no Oceano Índico sofreram um duro golpe, embora não fatal. Restava o comércio no interior do continente africano, favorecido pela distância geográfica e pela solidariedade dos regimes locais”. Nesse mesmo século XIX, vão multiplicar-se as missões cristãs, acarretarão tensões de toda a ordem: cismas, caráter concorrencial entre igrejas cristãs, diabolização de comportamentos que deixavam os africanos em fúria, guerra à feitiçaria, embate entre os pregadores cristãos e os islâmicos, a chegada da medicina praticada pelos missionários pondo de parte as técnicas dos curandeiros. O quinino foi mais forte que o curandeirismo, as escolas foram ganhando simpatia, era o triunfo da missão civilizadora enquanto a França conquistava a Argélia, a Grã-Bretanha se apropriava da África do Sul, resolvendo a seu contento a questão bóer e consolidando a supremacia branca enquanto o continente africano era percorrido de lés a lés por exploradores de várias nacionalidades. Lawrence James dá-nos o perfil dos grandes exploradores e as suas idiossincrasias e o retrato de uma das figuras mais ignóbeis do colonialismo, Leopoldo II da Bélgica, exprime-se deste modo:
“O monarca Leopoldo dedicou a sua vida a fazer dinheiro nos territórios ultramarinos. Entreteve-se com alguns projetos nas Ilhas Orientais e na América do Sul, mas em meados da década de 1870 persuadiu-se de que conseguia fazer fortuna em África. Agiu com deslealdade e astúcia, apresentando-se inicialmente como filantropo e patrono da investigação científica. Sob esta máscara, e apoiando-se no seu estatuto régio para conseguir legitimidade, convocou uma conferência, em 1876, para discutir a descolonização da África Central. O resultado foi a criação da Association Internationale Africaine, uma organização de fachada, enganadoramente benévola, que depressa se transformou no Comité d’Études du Haut Congo, investida de uma missão humanitária igualmente falsa”.

Vamos agora entrar na segunda parte do trabalho, a partilha de África, nem tudo será cor-de-rosa.

(Continua)
Leopoldo II da Bélgica
Encontro de Stanley com Livingstone
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22205: Notas de leitura (1356): Lembrando livros do Beja Santos sobre a Guiné (João Crisóstomo, ex-Alf Mil da CCAÇ 1439)