Definição de ajuda humanitária
A ajuda oficial sueca foi a pedido do PAIGC, e ao longo dos
anos, quase exclusivamente prestada sob a forma de ajuda em géneros. Não incluiu bcomponentes importantes de ajuda técnica, actividades de projectos nem dinheiro (110).
Uma
vez que não havia uma representação da ASDI em Conacri, as negociações anuais da
ajuda realizavam-se sobretudo em Estocolmo. Amílcar Cabral tinha um interesse muito
particular nos debates, nos quais participava pessoalmente e, a princípio, chefiava ele
mesmo as sucessivas delegações do PAIGC.
Stig Lövgren recordaria mais tarde a forma como
Cabral vinha a Estocolmo. Alojava-se num hotel com um nome falso,
por razões de segurança e trabalhava connosco, na ASDI, para fazer uma lista de bens,
de mercadorias, equipamentos, etc. de que o movimento necessitava.
Era um procedimento
muito simples e nada controverso porque, na altura, a lista incluía apenas alimentos,
medicamentos, equipamento escolar e hospitalar e coisas desse género. [...] Amílcar Cabral participava de
uma forma muito activa neste tipo de trabalho minucioso. Achava que era um trabalho no
qual ele tinha de participar. Nós não levantávamos grandes questões quanto àquilo de que diziam
precisar. Afinal, os fundos atribuídos nessa época não eram muito avultados e Curt
Ström, a pessoa oficialmente encarregueda ASDI, achava que não devíamos levantar grandes
questões (111).
Uma vez finalizada a lista de produtos, a ASDI funcionava
como uma organizadora de concursos públicos para o PAIGC, convidando diferentes
fornecedores a apresentar propostas, tanto na Suécia como a nível internacional. O representante
do PAIGC na Suécia participava amiúde neste trabalho. Uma vez encontrado o
fornecedor, a ASDI pagava a mercadoria e organizava o seu envio para Conacri (112).
Era importante que a ajuda não fosse vista como apoio à luta
militar. No caso do PAIGC, essa destrinça não era nada óbvia. A parte mais
importante da ajuda ia para as zonas libertadas no interior da Guiné-Bissau, onde a
população participava numa guerra.
Tanto os combatentes pela liberdade quanto os aldeões
beneficiavam das escolas, clínicas de saúde e armazéns do povo que o PAIGC tinha em
funcionamento e que, de forma importante, eram fornecidos com ajuda sueca.
Para além
disso, a posição da ASDI não lhe permitia fazer visitas regulares às zonas libertadas nem
verificar se os utilizadores finais eram militares ou civis (113). A linha divisória entre ajuda
”humanitária” e ajuda ”militar” era traçada à medida que as listas de mercadorias eram
elaboradas. O principal critério era o do carácter da mercadoria. No início, este princípio
levou a reflexões que roçavam o absurdo a saber, por exemplo, se archotes de encaixe (114) ou
um determinado tipo de botas (115) podiam ser considerados material militar ou não.
Stig Lövgren deu um bom exemplo deste tipo de dilema:
(...) a questão dos artigos militares e não-militares era
discutida em profundidade nos primeiros anos. Curt Ström era a pessoa que mais nervosa se mostrava
com a possibilidade de estarmos a enviar coisas que pudessem ser utilizadas para fins
militares.
Lembro-me perfeitamente duma reunião com Amílcar Cabral na ASDI. Estávamos a discutir as
listas previamente preparadas e que teriam de ser aprovadas por Ström e, quando chegámos às
catanas, estávamos preocupados com a possibilidade de serem usadas para matar pessoas e dissemo-lo. Amílcar Cabral pegou numa caneta e escreveu: ”Isto é também uma arma...” (116).(..:)
Que até uma mercadoria tão obviamente não-militar como a sardinha pudesse ter um papel importante a desempenhar, num sentido mais lato, na luta de libertação, era algo que ficaria bastante claro mais adiante. Numa entrevista dada em 1996, Lövgren chamava a atenção para o seguinte:
(...) Fornecemos uma grande quantidade de alimentos ao PAIGC, especialmente comida enlatada. A uma
dada altura comprámos cerca de cem toneladas de peixe enlatado, uma quantidade
significativa, a uma fábrica sueca. O fornecedor, a Strömstad Canning, perguntou-me se queríamos
pôr algum rótulo especial neste lote. Pensei que não era má ideia e contactei o Onésimo
Silveira que, na altura, era o representante do PAIGC na Suécia. Ele ficou entusiasmadíssimo com a ideia!
Só depois percebi o porquê de tanta alegria. Ele decidiu colocar no rótulo a
bandeira do PAIGC e o texto ”das zonas libertadas da Guiné-Bissau”.
Anos depois, disseram que o
PAIGC tinha arranjado maneira destas latas aparecerem em vários locais ainda na posse dos
portugueses. Até conseguiram distribuir algumas latas na capital, Bissau. Podem imaginar a eficácia
desta arma psicológica (117). (...)
As autoridades suecas não tardariam contudo a, ”de uma forma
aproximada, equacionar ajuda humanitária com ajuda civil” (118) e, segundo Lövgren,
”ao fim e ao cabo, não demos qualquer atenção ao problema. De facto, nós não fornecíamos
armas nem munições” (119).
Afinal, a definição de ajuda ”civil”, ou ”não-militar” era
feita de forma abrangente. Quando Amílcar Cabral pediu à ASDI, em julho de 1971, que
fornecesse uma estação móvel de rádio para ajudar os esforços de educação do PAIGC (120), o
pedido foi aprovado sem desconfiança.
A estação viria a ser montada em dois camiões
Mercedes Benz, também fornecidos pela Suécia. Os dois transmissores e o
equipamento de estúdio respectivo foram adquiridos em março de 1972. Depois de instalado e da firma
de consultoria oficial (a SWEDTEL) (121) ter dado formação ao pessoal do PAIGC, o
movimento de libertação pôde iniciar, a 19 de Setembro de 1972, as emissões
regulares para a Guiné-Bissau e Cabo Verde, a partir de vários locais no norte da Guiné (122).
Contudo, no início da ajuda aos movimentos de libertação,
deu-se uma discussãomais importante quanto ao fornecimento de veículos,
nomeadamente de camiões. Anders Möllander, o secretário do Comité Consultivo para a Ajuda
Humanitária, acompanhou de perto esse debate, e escreveu mais tarde que ”alguns
argumentavam que meios de transporte tais como camiões poderiam sempre ser usados
para fins militares e que, por isso mesmo, não deveriam ser incluídos na ajuda
sueca” (123).
O contra-argumento do PAIGC e dos movimentos de libertação na África Austral era
que não poderiam deslocar nem distribuir os bens recebidos sem uma capacidade de
transporte adequada. Este último ponto de vista vingou e Lövgren comentou depois:
(...) A principal razão pela qual acabámos por fornecer camiões
foi porque as mercadorias fornecidas pela ASDI tinham de ser transportadas de uma forma ou
doutra, dos portos para os armazéns nas bases do PAIGC.
Afinal, chegámos à conclusão de que
seria razoável disponibilizar um número limitado de camiões ao mesmo tempo que fornecíamos
grandes quantidades decomida. [...]
Daí que tenhamos fornecido Land Rovers e
outros veículos de tracção às quatro rodas. Decorridos alguns anos, esse assunto deixou de
merecer discussão, e até fornecemos veículos das marcas Volvo e Scania, especialmente concebidos
para as forças armadas suecas, mas que também estavam disponíveis em versão ”civil” (124).
Na verdade, a disponibilização de veículos ocupava um lugar
relevante, e muito apreciado, no contexto da ajuda do governo sueco aos movimentos de
libertação (125). No caso do PAIGC, a componente dos transportes representava já em
1970–71 cerca de 11 por cento do valor total da ajuda (126).
Três anos mais tarde, ou seja, em 1973–74, essa percentagem tinha aumentado para os 18 por cento (127). Do ponto de vista dos custos, o transporte era, na altura, a segunda maior componente do programa de ajuda, a seguir aos alimentos, mas acima dos medicamentos e do equipamento escolar (128).
Só nesse ano, incluiu a disponibilização de doze camiões de grande porte (Volvo) e seis de pequeno (GAZ 66), 15 jipes (Unimog) com atrelado, 2 ambulâncias (Peugeot) e duas carrinhas (Peugeot), bem como peças sobressalentes, pneus, óleos e lubrificantes, etc. (129).
Além disso, foram também fornecidos dez motores fora de bordo para transporte fluvial por meio de piroga e quinhentas bicicletas (130).
_____________
Notas do autor:
110. A questão da ajuda em dinheiro viria a ser levantada em
particular pela FRELIMO de Moçambique. Em Novembro de 1972, a ASDI decidiu que 5 por cento das
verbas anualmente afetadas aos movimentos de libertação poderia ser
transferidas, sob a forma de ajuda em numerário, para a aquisição de bens a
nível local e para financiar custos de exploração. No caso do PAIGC, essa
percentagem correspondia, em 1972–73 a quinhentas mil coroas suecas.
111. Entrevista com Stig Lövgren, pp. 309–12.
112. Com a sua vasta rede de contactos e considerável
experiência, a divisão de aprovisionamento da ASDI conseguia identificar os
melhores fornecedores e obter os melhores preços para o PAIGC e os movimentos
de libertação da África Austral. Mais tarde, viria a organizar cursos de
formação em concursos públicos internacionais para os movimentos. Reconhecendo
a importância de rotinas de contratação pública bem definidas, em geral, e o
contributo significativo dado ao PAIGC, em particular por Stig Lövgren, pouco
tempo depois da independência Luís Cabral, o primeiro presidente da
Guiné-Bissau, convidou Lövgren para ser o responsável pelas importações e
concursos públicos do novo país (Anders Möllander: Sverige i Södra Afrika:
Minnesanteckningar 1970–80 (”A Suécia na África Austral: Memórias 1970–80”),
ASDI, Estocolmo, 1982, p. 19 e entrevista com Stig Lövgren, 313).
113. Entrevista com Stig Lövgren, p. 311: ”Não visitávamos
nem podíamos visitar as zonas libertadas. Tentámos fazê-lo mas, na maior parte
dos casos, o PAIGC arranjou uma desculpa, muito educada, para não nos deixar lá
ir. ”Sobretudo, é claro, por razões de segurança”.
114. Möllander op. cit., p. 17.
115. Entrevista com Mishake Muyongo (ex-SWAPO), p. 87.
116. Entrevista com Stig Lövgren, p. 310.
117. Ibid. Uma das muitas ironias da guerra na Guiné-Bissau
era que as sardinhas em lata, um produto tipicamente português, tinham de ser
adquiridas na Suécia e enviadas para este país, tão rico em peixe. As latas
pesavam 225 gramas cada.
A ”remessa de propaganda” com a bandeira do PAIGC era
composta por cerca de 400.000 latas.
Não é portanto de admirar que o PAIGC
tenha reencaminhado parte do lote dos armazéns do povo para as zonas detidas pelos
portugueses.
Para além de estar mal escrita (”zonas libertas” em vez da
expressão correta, que seria ”zonas libertadas”) a etiqueta identificava
claramente o fornecedor sueco, mas também a Suécia como país de origem.
Os armazéns
do povo recebiam também cigarros, produzidos na Suécia com o rótulo
propagandístico Nô Pintcha, tendo o PAIGC sido também, neste caso, o autor da
embalagem. O fornecimento deste produto não de primeira necessidade à luz do
protocolo de ajuda humanitária foi fortemente criticado.
A Associação Nacional
Sueca de Informação sobre os Malefícios do Tabaco (Nationalföreningen för
upplysning om tobakens skadeverkningar, NTS) enviou uma carta ao Ministro sueco
para a Cooperação Internacional para o Desenvolvimento, a Sra. Gertrud
Sigurdsen, exigindo que ”instruísse imediatamente a ASDI para que substituísse
a planeada operação de exportação de cigarros para a Guiné-Bissau por ajuda em
bens mais de primeira necessidade” (Carta de Eric Carlens e Lars Ramström, NTS,
a Gertrud Sigurdsen, Estocolmo, 25 de Junho de 1974) (SDA).
Vendo que os
cigarros representavam apenas 185.000 coroas suecas, de uma dotação total para
o PAIGC de 15 milhões, e vendo também que desempenhavam um papel importante na
economia de troca directa dos armazéns do povo, a ministra respondeu que os
bens para os armazéns do povo faziam parte integrante do ”apoio explícito dado
pela Suécia ao trabalho dos movimentos de libertação” e que ”em todos os casos
deste tipo, tem de ficar à responsabilidade da ASDI a avaliação da adequação ou
não do fornecimento de tais produtos” (Carta de Gertrud Sigurdsen a NTS,
Estocolmo, 2 de Julho de 1974) (SDA). Cf. Möllander op. cit., pp. 16–17 e
entrevista com Stig Lövgren, pp. 310–11).
118. Möllander op. cit., p. 17.
119. Entrevista com Stig Lövgren, p. 310. Em Portugal, onde
se registaram as reacções mais veementes contra o alargamento da ajuda aos
movimentos de libertação, nunca se aceitou o carácter humanitário da ajuda.
O
jornal Diário de Notícias dava nota, por exemplo, no início de 1971, que as
exportações suecas de canivetes aos ”terroristas” em África tinha aumentado
consideravelmente (Diário de Notícias, 16 de Janeiro de 1971). Pegou-se nisso
como provadas intenções beligerantes da Suécia (consultar o editorial ”O apoio
do Sr. Olof Palme ao terrorismo em África” em Diário de Notícias, 19 de Janeiro de 1971).
120. Carta de Amílcar Cabral à ASDI, Conacri, 28 de Julho de
1971 (SDA).
121.
Swedish Telecommunication Consulting AB, uma subsidiária da Swedish
Telecommunications Administration.
122. SWEDTEL: ”Estações de radiodifusão na Guiné: Relatório
final”, Estocolmo, Dezembro de 1972 (SDA). Em consequência, centenas de
rádio-transmissores foram fornecidos pela ASDI às zonas libertadas na Guiné-Bissau.
123. Möllander op. cit., p. 18.
124. Entrevista com Stig Lövgren, p. 310.
125. Consultar, por exemplo, as entrevistas com Aaron
Mushimba da SWAPO (p. 84) e com Kumbirai Kangai da ZANU (p. 213–14). Apesar de
não estar ligado à parte da aquisição por concurso público na Suécia, o apoio aos
transportes viria a beneficiar, ao longo dos anos, empresas como a Scania e a
Volvo, às quais os movimentos de libertação davam muitas vezes preferência
sobre outras empresas.
Por exemplo, quando o presidente do MPLA, Agostinho Neto
e o primeiro ministro Olof Palme se encontraram em Lusaca, na Zâmbia, em setembro de 1971, Neto reagiu às notícias que diziam que a ASDI iria fornecer
camiões alemães ou franceses ao seu movimento, dizendo ”não entender porque não
iriam ser entregues veículos suecos em vez desses” (Pierre Schori: Memorando, Estocolmo,
1 de outubro de 1971) (MFA).
Para além de camiões Scania e Volvo, a ASDI
fornecia muitos veículos pesados alemães (Mercedes Benz) e franceses (Berliet).
Os fabricantes britânicos (Land Rover) e japoneses (Toyota) dominavam o sector
dos veículos ligeiros de tracção às quarto rodas.
Em retrospectiva, o antigo
chefe do departamento de aprovisionamento da ASDI, Stig Lövgren, fez o seguinte
comentário em 1996:
”Se há uma coisa que lamento bastante foi o facto de termos
fornecido camiões suecos aos movimentos de libertação, pois devíamos ter
fornecido camiões russos. Na altura, podíamos obter quase três camiões russos
pelo preço de um sueco [...]. Foi um verdadeiro desperdício de dinheiro. Eles
não deviam ter recebido um número tão elevado destas máquinas suecas, tão
técnicas e tão sofisticadas, mas sim camiões o mais simples possível”
(Entrevista com Stig Lövgren, p. 315).
127. SIDA: ”Stöd till PAIGC” / ASDI; ”Ajuda ao PAIGC”,
Estocolmo, 22 de Agosto de 1973 (SDA).
128. De uma dotação total de 15 milhões de coroas suecas, as
principais oito componentes da ajuda sueca ao PAIGC em 1973–74 eram:
- alimentos
(20 por cento)
- transporte (18 por cento)
- têxteis e máquinas de costura (15
por cento)
- mercadoria para os armazéns do povo (13 por cento)
- vestuário e
calçado (11 por cento)
- medicamentos (5 por cento)
- artigos de higiene (3 por
cento)
- e equipamento escolar (2,5 por cento) (ibid.).
129. SIDA: ”Stöd till PAIGC” / ASDI: ”Ajuda ao PAIGC”,
Estocolmo, 25 de Junho de 1974 (SDA).
130. Ibid.
[ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / itálicos / bold, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G ]
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Nota do editor:
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