Contos com mural ao fundo > Cá se fazem, cá se pagam!?
por Luís Graça
De repente viste-o de perfil. Reconheceste-o logo. Estava
sentado, na sala de espera da consulta de oftalmologia. De telemóvel na mão,
como quem aguarda uma chamada. Estranha coincidência, pensaste tu. Já não o vias
há anos. Muito antes até da pandemia (agora há o antes e o depois da pandemia, dá jeito para balizar as nossas memórias da “peste”, do latim “peius”,
a pior doença…).
Aproximaste-te dele. Sorrateiramente. Por detrás. E
sopraste-lhe ao ouvido:
− O Mundo é Pequeno…
Era a nossa senha. Ele reconheceu-te de imediato, e respondeu-te com a contrassenha:
− … e a Nossa Tabanca é Grande!
Deram os dois um “alfabravo” efusivo. Um abraço, na gíria da tropa ou calão de caserna. Eram dois antigos combatentes do tempo da Guiné.
− Também tu, por aqui ?!
− perguntou-te, agradavelmente surpreendido.
− Fui ontem operado a uma catarata… E tu ?
− Diabetes!... – respondeu-te ele, lacónico, entre o descontraído e o
conformado.
− Só te faltava mais essa!
− Sabes como é, com a idade juntam-se todas as mazelas, as
do corpo e as da alma.
− Estamos a pagar a fatura da Guiné!
E, de repente, interrompeu-te:
− Olha, espera aí, está na hora da Doutora Glicemia !
Percebeste que ele desviava o olhar para o ecrã do
telemóvel, depois de receber um toque, impercetível para ti:
− Ah!, a glicemia!...
− Está a “vermelho”… Tenho que ir trincar qualquer coisa…
Sugeriste-lhe que fosse avisar as meninas, antes de ir comer uma sandocha ao bar do hospital, logo ali no piso zero. E lá foi ele deixar o recado… para, logo de seguida, regressar ao seu lugar… Vinha a comer um bolo. Reconfortado, e com ar de quem tinha agora todo o tempo do mundo e podia conversar, enquanto não o chamavam para a consulta.
− Já estou melhor – comentou, sorridente, afável.
E logo ali, tu e ele, recordaram aquele fatídico dia treze de
janeiro em que, com um intervalo de duas horas, tinham caído ambos em duas minas
anticarro. Às portas de Nhabijões, um gigantesco reordenamento populacional, no
Leste da Guiné, perto de Bambadinca.
Duas minas!!!... Ele às onze, tu às treze!... Treze do dia treze, que nem sequer era sexta feira. Mas que foi de azar para vinte e tal homens… Há mais de 50 anos atrás. 1971.
− Um pandemónio! – comentaste tu.
Tinhas vindo no “gosse-gosse”, a toda a mecha, com o teu pelotão que
estava de piquete na sede do batalhão, em socorro das primeiras vítimas.
− O vosso soldado condutor, que ia a meu lado, teve morte imediata.
− E tu foste logo helievacuado para o hospital.
Pobre S…, comentaram os dois. Aos vinte e um meses de comissão, a escassos dois meses de regressar a casa e de, finalmente, ir conhecer a filha
nascida pouco tempo depois de ele
embarcar para a Guiné.
− E ele a pendar que Nhabijões era um serviço maneirinho, sem grandes sobressaltos...
E ali estava o M…, em carne e osso, que um gajo do PAIGC, ele próprio oficial do mesmo ofício, sapador, quis mandar para os quintos do inferno. O alferes miliciano M…, especialista em minas e armadilhas, destacado em Nhabijões a chefiar a equipa de reordenamentos. Escolhido só porque tinha frequentado o curso de engenharia do Técnico!... E era mais velho, três anos, do que a generalidade dos outros oficiais milicianos.
Na altura, Nhabijões era o maior reordenamento em construção
na “Spinolândia”. Era, para mais, uma das “meninas bonitas” do “Caco Baldé”:
quando lá passava, tinha que ir meter o bedelho, observar o avanço dos
trabalhos. Mandava poisar o helicóptero, dava dois dedos de conversa com a
tropa e os civis (que eram “turras”), e lá seguia ao seu destino.
Spínola adorava andar de heli e todos os pilotos se sentiam
honrados em levá-lo a bordo, a seu lado.
− E sem pedir licença a ninguém!... Afinal, ele era o dono
daquilo tudo… − observou o M…
E riu-se com o sorriso, bondoso e ingénuo, que sempre lhe conheceste. E
já que estavam em maré de confidências, aproveitou para te contar uma
história que tu ainda não sabias.
Depois de algumas semanas (talvez um mês e tal ou dois) no “estaleiro”, e após a alta do hospital, o HM 241, em Bissau, apresentou-se ao serviço, em Bambadinca, sede do batalhão a que ele pertencia. Ainda lhe faltava um ano e tal para a acabar a comissão.
Bateu a pala ao novo “senhor da guerra”,
um spinolista (que não era de cavalaria, mas tinha fama de durão), acabado de
chegar da região do Oio, para comandar o batalhão. (O anterior comandante tinha
“levado com os patins”, por punição do general, o comandante-chefe.)
O novo tenente-coronel
quis “chegar, ver e vencer”, como o Napoleão. Pôs todo o mundo em alvoroço, a desgrudar o rabo das cadeiras das secretarias, e ele próprio deu
o exemplo, indo com a malta operacional da CCAÇ 12 para o mato para reconhecer
o seu setor.
À frente do segundo comandante, major de artilharia,
perguntou ao M…:
− E você, nosso alferes, o que é que está aqui a fazer ?!
− É sapador, meu comandante, estava no reordenamento de Nhabijões…− apressou-se o major a esclarecer.
− Estava ? !... E já não está ?!... Vai já na próxima coluna
para Sinchã… (Qualquer Coisa, que o M…
não percebeu.)
− Mas..., o meu comandante dá-me licença ?!... É que eu acabei de
regressar do hospital…
− Apanhou uma mina anticarro – acrescentou o 2º comandante.
O tenente-coronel não quis ouvir mais explicações. Visivelmente
irritado com tanta gente de baixa na CCS (Companhia de Comando e Serviços),
virou-se para o major e intimou-o:
− Tire-me já daqui este inútil!
E assim foi… No dia seguinte, aproveitando a maré, lá seguiu
o M…, ainda convalescente, com guia de marcha, rio Geba abaixo, com destino a Bissau. Apanhou o “barco
turra”, no cais fluvial de Bambadinca, com ordem de se apresentar no Batalhão de Engenharia, em
Brá.
Reclassificado, passaria depois aos “serviços auxiliares”.
Deram-lhe 33,3% de incapacidade…
Perguntaste-lhe depois como é que ele tinha vindo à
consulta, já que parecia não estar acompanhado por ninguém.
− Desta vez vim de Uber, mas habitualmente é a minha mulher
que me traz de carro.
E lá ficaram os dois à conversa, rememorando a última meia
dúzia de anos em que andaram desencontrados, com a pandemia pelo meio…
Em jeito de balanço de uma vida, o M.., que era beirão, acrescentou, entre embevecido e sarcástico:
− Como vês, uma vida! 80 anos, uma guerra, uma mina que me
ia quase matando, deficiente das forças armadas, professor de matemática no ensino
secundário, reformado, três casamentos,
três filhos, três netos… E, agora, a flor de cerejeira que me faltava para
compor o ramalhete: uma diabetes!... E,
olha, juro-te que nunca fiz mal a Deus!
− Eu também não, confesso,
mas só pode ter sido por termos feito aquela maldita guerra… Deus, se calhar, não
estava do nosso lado, como nos tinham afiançado.
− Achas ?!... Se assim foi, e como se diz na minha terra, Deus
castiga sem pau nem pedra!
− Eu também acho que foi castigo!... Mas porra, logo uma
mina!... Eh, pá, eu não sou crente, mas tenho as minhas superstições. Na Guiné
aprendi a ter muito respeitinho pelos irãs. É que havia os bons e os maus. O Amílcar Cabral lixou-se porque não soube distingui-los. Eu
usava os amuletos como os meus soldados e os gajos do PAIGC!... Sempre achei que mal não fazia, antes pelo contrário...
− Alguém nos rogou uma praga!
− Mas hoje sei, ao menos, quem nos tramou, quer dizer, quem nos pôs as minas, a tua e a minha, à saída de Nhabijões.
− Sabes mesmo quem foi ?!...
− Sim, sim… E olha que traziam código postal.
Explicaste depois ao M…, quem tinha sido: o Mário Mendes, comissário político (ou comandante de bigrupo ?), e o seu sapador, aproveitando a calada da noite... E com a cumplicidade dos habitantes de Nhabijões, que nessa manhã não quiseram apanhar a boleia do Unimog da tropa que ia buscar o almoço a Bambadinca… (Estavam a par da marosca, os sacanas!)
Um ano e tal depois, a malta da CCAÇ 12, o mesmo pelotão que tinha apanhado com a potente
mina que estoirou com a GMC, limpou o sebo ao Mário Mendes.
− Num duelo digno dos melhores filmes do Faroeste!
− Então, estamos quites!... Cá se fazem, cá se pagam! –
arrematou o M…, em jeito de conclusão.
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Nota do editor:
Último poste da série > 22 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25422: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (27): Melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um paizinho...