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segunda-feira, 20 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25545: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (28): Cá se fazem, cá se pagam ?!

 

Contos com mural ao fundo > Cá se fazem, cá se pagam!?

por Luís Graça

 

De repente viste-o de perfil. Reconheceste-o logo. Estava sentado, na sala de espera da consulta de oftalmologia. De telemóvel na mão, como quem aguarda uma chamada. Estranha coincidência, pensaste tu. Já não o vias há anos.  Muito antes até da pandemia (agora há o antes e o depois da pandemia, dá jeito para balizar as nossas memórias da “peste”, do latim “peius”, a pior doença…).

Aproximaste-te dele. Sorrateiramente. Por detrás. E sopraste-lhe ao ouvido:

O Mundo é Pequeno…

Era a nossa senha. Ele reconheceu-te de imediato, e respondeu-te com a contrassenha:

− … e a Nossa Tabanca é Grande!

Deram os dois um “alfabravo” efusivo. Um abraço,  na gíria da tropa ou calão de caserna. Eram dois antigos combatentes do tempo da Guiné. 

− Também tu,  por aqui ?!  − perguntou-te, agradavelmente surpreendido.

− Fui ontem operado a uma catarata… E tu ?

− Diabetes!... – respondeu-te ele, lacónico,  entre o descontraído e o conformado.

− Só te faltava mais essa!

− Sabes como é, com a idade juntam-se todas as mazelas, as do corpo e as da alma.

− Estamos a pagar a fatura da Guiné!

E, de repente, interrompeu-te:

− Olha, espera aí, está na hora da Doutora Glicemia !

Percebeste que ele desviava o olhar para o ecrã do telemóvel, depois de receber um toque, impercetível para ti:

− Ah!, a glicemia!...

− Está a “vermelho”… Tenho que ir trincar qualquer coisa…

Sugeriste-lhe que fosse avisar as meninas, antes de ir comer uma sandocha   ao bar do hospital, logo ali no piso zero. E lá foi ele deixar o recado… para, logo de seguida,  regressar ao seu lugar… Vinha a comer um bolo. Reconfortado, e com ar de quem tinha agora todo o tempo do mundo e podia conversar, enquanto não o chamavam para a consulta.

− Já estou melhor – comentou, sorridente, afável.

E logo ali, tu e ele, recordaram aquele fatídico dia treze de janeiro em que, com um intervalo de duas horas, tinham caído ambos em duas minas anticarro. Às portas de Nhabijões, um gigantesco reordenamento populacional, no Leste da Guiné, perto de Bambadinca.

Duas minas!!!... Ele às onze, tu às treze!... Treze do dia treze, que nem sequer era sexta feira. Mas que foi de azar para vinte e tal homens… Há mais de 50 anos atrás. 1971.

− Um pandemónio! – comentaste tu.

Tinhas vindo no “gosse-gosse”, a toda a mecha, com o teu pelotão que estava de piquete na sede do batalhão, em socorro das primeiras vítimas.

− O vosso soldado condutor, que ia a meu lado, teve morte imediata.

− E tu foste logo helievacuado para o hospital.

Pobre S…, comentaram os dois. Aos vinte e um meses de comissão,  a escassos dois meses de regressar a casa e de, finalmente,  ir conhecer a filha nascida  pouco tempo depois de ele embarcar para a Guiné. 

− E ele a pendar que Nhabijões era um serviço maneirinho, sem grandes sobressaltos...

E ali estava o M…, em carne e osso, que um gajo do PAIGC, ele próprio oficial do mesmo ofício, sapador, quis mandar para os quintos do  inferno. O alferes miliciano M…, especialista em minas e armadilhas, destacado em Nhabijões a chefiar a equipa de reordenamentos. Escolhido só porque tinha frequentado  o curso de engenharia do Técnico!... E era mais velho, três anos, do que a generalidade dos outros oficiais milicianos.

Na altura,  Nhabijões era o maior reordenamento em construção na “Spinolândia”. Era, para mais, uma das “meninas bonitas” do “Caco Baldé”: quando lá passava, tinha que ir meter o bedelho, observar o avanço dos trabalhos.  Mandava poisar o helicóptero, dava dois dedos de conversa com a tropa e os civis (que eram “turras”), e lá seguia ao seu destino.

Spínola adorava andar de heli e todos os pilotos se sentiam honrados em levá-lo a bordo,  a seu lado.

− E sem pedir licença a ninguém!... Afinal, ele era o dono daquilo tudo… − observou o M…

E riu-se com o sorriso, bondoso e ingénuo, que sempre lhe conheceste. E já que estavam em maré de confidências, aproveitou para te contar uma história que tu ainda não sabias.

Depois de algumas semanas  (talvez um mês e tal ou dois) no “estaleiro”, e após a alta do hospital, o HM 241, em Bissau,  apresentou-se ao serviço,  em Bambadinca, sede do batalhão a que ele pertencia. Ainda lhe faltava um ano e tal para a acabar a comissão. 

Bateu a pala ao novo “senhor da guerra”, um spinolista (que não era de cavalaria, mas tinha fama de durão), acabado de chegar da região do Oio, para comandar o batalhão. (O anterior comandante tinha “levado com os patins”, por punição do general, o comandante-chefe.)

O novo tenente-coronel  quis “chegar, ver e vencer”, como o Napoleão. Pôs todo o mundo em alvoroço,  a desgrudar o rabo das cadeiras das secretarias, e ele próprio deu o exemplo, indo com a malta operacional da CCAÇ 12 para o mato para reconhecer o seu setor.

À frente do segundo comandante, major de artilharia, perguntou ao M…:

− E você, nosso alferes, o que é que está aqui a fazer ?!

− É sapador, meu comandante, estava no reordenamento de Nhabijões…− apressou-se  o major a esclarecer.

− Estava ? !... E já não está ?!... Vai já na próxima coluna para Sinchã… (Qualquer Coisa, que o M…  não percebeu.)

− Mas..., o meu comandante dá-me licença ?!... É  que eu acabei de regressar do hospital…

− Apanhou uma mina anticarro – acrescentou o 2º comandante.

O tenente-coronel não quis ouvir mais explicações. Visivelmente irritado com tanta gente de baixa na CCS (Companhia de Comando e Serviços), virou-se para o major e intimou-o:

− Tire-me já daqui este inútil!

E assim foi… No dia seguinte, aproveitando a maré, lá seguiu o M…, ainda convalescente, com guia de marcha,  rio Geba abaixo,  com destino a Bissau. Apanhou o “barco turra”, no cais fluvial de Bambadinca, com ordem de se apresentar no  Batalhão de Engenharia, em Brá.

Reclassificado, passaria depois aos “serviços auxiliares”. Deram-lhe 33,3% de incapacidade…

Perguntaste-lhe depois como é que ele tinha vindo à consulta, já que parecia não estar acompanhado por ninguém.

− Desta vez vim de Uber, mas habitualmente é a minha mulher que me traz de carro. 

E lá ficaram os dois à conversa, rememorando a última meia dúzia de anos em que andaram desencontrados, com a pandemia pelo meio…

Em jeito de balanço de uma vida, o M.., que era beirão, acrescentou, entre embevecido e sarcástico:

− Como vês, uma vida! 80 anos, uma guerra, uma mina que me ia quase matando, deficiente das forças armadas,  professor de matemática no ensino secundário,  reformado, três casamentos, três filhos, três netos… E, agora, a flor de cerejeira que me faltava para compor   o ramalhete: uma diabetes!... E, olha, juro-te que nunca fiz mal a Deus!

− Eu também não, confesso,  mas só pode ter sido por termos feito aquela maldita guerra… Deus, se calhar,  não estava do nosso lado, como nos tinham afiançado.

− Achas ?!... Se assim foi, e como se diz na minha terra, Deus castiga  sem pau nem pedra!

− Eu também acho que foi castigo!... Mas porra, logo uma mina!... Eh, pá, eu não sou crente, mas tenho as minhas superstições. Na Guiné aprendi a ter muito respeitinho pelos irãs.  É que havia os bons e os maus. O Amílcar Cabral lixou-se porque não soube distingui-los. Eu usava os amuletos como os meus soldados e os gajos do PAIGC!... Sempre achei que mal não fazia, antes pelo contrário...

− Alguém nos rogou uma praga!

− Mas hoje sei, ao menos, quem nos tramou, quer dizer, quem nos pôs as minas, a tua e  a minha, à saída de Nhabijões.

− Sabes mesmo quem foi ?!...

− Sim, sim… E olha que traziam código postal.

Explicaste depois ao M…, quem tinha sido: o Mário Mendes, comissário político (ou comandante de bigrupo ?), e o seu sapador, aproveitando a calada da noite... E com a cumplicidade dos habitantes de Nhabijões,  que nessa manhã não quiseram apanhar a boleia do Unimog da tropa que ia buscar o almoço a Bambadinca… (Estavam a par da marosca, os sacanas!)

Um ano e tal depois, a  malta da CCAÇ 12, o mesmo pelotão que tinha apanhado com a potente mina que estoirou com a GMC, limpou o sebo ao Mário Mendes.

− Num duelo digno dos melhores filmes do Faroeste!

− Então, estamos quites!... Cá se fazem, cá se pagam! – arrematou o M…, em jeito de conclusão.

____________

Nota do editor:

Último poste da série > 22 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25422: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (27): Melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um paizinho...

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23291: Efemérides (368): 25 de maio de 1972, há 50 anos: o duelo fatal na Ponta Varela, Xime, em que o apontador da HK 21, da CCAÇ 12, Braima Sané, matou em combate o Mário Mendes, comandante de bigrupo do PAIGC, pelo que foi louvado pelo CAOP2, ele, a sua equipa e o seu comandante de secção, o fur mil José Domingues, natural de Águeda (António Duarte / Luis Graça)


Excerto da História da Unidade: BART 3873 (Bambadinca, 1971/74)- Louvores: Cap III, pág. 4, jullho de 1972


1.  Mensagem, por email, de Antonio Duarte,

[António Duarte, foto à direita:

 (i) ex-fur mil da CART 3493, a companhia do BART 3873, que esteve em Mansambo, Fá Mandinga, Cobumba e Bissau, 1972-1974; 

(ii) foi transferido para a CCAC 12 (em novembro de 1972, e onde esteve em rendição individual até março de 1974; 

(iii) depois da peluda, formou-se em conomista, e trabalhou na Banca, de que está  reformado:

(iv) formador na área bancária, com larga experiência  em Angola; 

(v) tem 57 referências no nosso blogue;

(vi) é um dos históricos da Tabanca Grande, para a qual entrou em 18/2/2006, por mão do Sousa de Castro, da CART 3494] 


Data - quarta, 19/01/2022, 20:04
Assunto - O 'matador' de Mário Mendes

Boa noite, camaradas.

Propositadamente não falei em nomes, porque o blogue é público, lido na Guiné e poderia haver constrangimentos, embora eu acredite que provavelmente os envolvidos já faleceram.

O apontador da HK 21 era o Braima Sané, louvado pelo CAOP2.

Foram também louvados pelo CAOP2, para além do referido Braima, o Ansumane Baldé e o Indrissa Baldé, todos da equipa da HK21.

O furriel era o José Domingues, também ele louvado.

Estou com estes detalhes, porque consultei o livro do BART 3873, onde na página 4, cap III, figuram os louvores de julho de 72. (O Luís possui a publicação digitalizada que há longo tempo disponibilizei e que com a paciência que ele tem, publicou no nosso blogue).

O fur Domingues foi um dos que rendeu os graduados fundadores da CCAÇ 12. Tive há muitos anos a informação, sem confirmação, de que teria falecido bastante novo.

E é tudo. Deixo ao critério do Luís se o detalhe dos nomes ligados a este acontecimento deverão ser publicados no blogue.

Um abraço a todos
António Duarte

2. Comentário do editor LG:

António, meu "neto" da CCAÇ 12, querido amigo e camarada: o prometido é devido.  Faz hoje 50 anos que ocorreu esse duelo fatal, para o Mário Mendes (1943-1972), na Ponta Varela, subsector do Xime.  Ao fim de 50 anos, não há mais segredos a guardar, nomeadamente nos "arquivos públicos". Daí ter republicado, agora na íntegra, o teu email de há 4 meses atrás (*).

Volto a agradecer-te, António, o teu interesse pela história da "nossa" CCAÇ 12 (1969/74), e sobretudo s tuas preocupações com o direito à privacidade (e ao sigilo) dos nossos camaradas guineenses, incluindo o seu sentido de "honra militar" e de lealdade.

Obrigado, António, pelas informações adicionais que me deste ao telefone... Confirmo as informações, que me deste na altura sob reserva, e nomeadamente a identficação completa dos nossos camaradas que foram louvados pelo CAOP2 (Bafatá), na sequência desta operação sobre  a qual só tenhos informação oral (**). (A morte do Mário Mendes só é referida indiretamente na história do BART 3873, cap. II, 2.º fascículo, maio de 1972, pág. 16 ("de harmonia com a correspondência retirada a Mário Mendes (aniquilado pela CCAÇ 12), o IN planeava nova ação na estrada Xime-Bambadinca...").

Infelizmente, só há uma história da CCAÇ 12, e fui eu que a fiz: vai desde a formação e mobilização da CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12, no 1.º trimestre de 1960, até fevereiro de 1971... Como sabes sabes, a CCAÇ 12 foi extinta em agosto de 1974, e nós costumamos distinguir  3 "gerações" de graduados metropolitanos, de rendição indiviual na composição orgânica desta unidade: por exemplo,  eu, da 1.ª geração (1969/71), o Victor Alves, da 2.ª  (1971/72) e tua da 3.ª (1973/74)...

Volto a repetir o que atrás ficou dito;

(...) "Guerra era guerra", diziam-nos os antigos combatentes do PAIGC quando nos encontrámos em Imberém, Gandembel, Guileje e Bissau, por ocasião do Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de março de 2008).

É verdade, "guerra é guerra", morremos e matámos, matámo-nos uns aos outros, naquela guerra. O Mário Mendes "matou" o nosso sold cond auto Manuel da Costa Soares (em 13/1/1971, em Nhabijões), que deixou um filho por conhecer, o Rogério Soares... O Mário Mendes foi morto, um ano e quatro meses depois pelo Braima Sané, e também era casado e tinha filhos...

Os filhos têm o direito de saber como é que os pais morreram na guerra. Não para se vingarem, o que hoje já não faz sentido, mas completarem o "luto", fazerem o seu "choro"...


A paz e a reconciliação entre os povos também passa pelo doloroso processo de falarmos dos nossos mortos, e dos mortos dos nossos inimigos de ontem (, de há 50/60 anos). (...)


Insisto;

Já não há, ao fim de meio século (***), razões para não divulgarmos o nome do "matador" do Mário Mendes. O Braima Sané, infelizmente já não deve estar vivo, se é que não foi  fuzilado pelo PAIGC a seguir à independência, como outros soldados e sobretudo graduados da CCAÇ 12 que transitaram para a CCAÇ 21 (, comandada pelo tenente 'comando' graduado Abdulai Jamanca)... 

Se o Braima fosse vivo, teria hoje 80 anos... (Eu já não o conheci, era da "2.ª geração")... O mesmo se passa com restantes elementos da equipa da HK 21 que, segundo ouvi dizer, pertenciam ao 4.º Gr Comb., o Ansumane Baldé e o Indrissa Baldé.  Nessa altura, os alferes eram O Jaime (hoje e gestor, casado com a dra-Odete Cardoso),  o Sobral (hoje médico oftalmologista em Coimbra), bem como o Ferreira e o Florindo, todos de rendiçao individual. 

Quanto ao fur mil José Domingues, natural de Macinhata do Vouga, Águeda, também já terá morrido, infelizmente, segundo informação do seu conterrâneo, Paulo Santiado, que o conheceu em Bambadinca e nunca mais voltou a encontrá-lo (Vd. comentário ao poste P22924).

Façamos um minuto de silêncio à memória de todos estes homens que já nos deixaram, uns de morte natural, outros de morte violenta, e que um dia se cruzaram nas nossas vidas... Também no dia 19 de janeiro de 2022, quando fazia anos o meu filho João, me custou a adormecer com todos estes "filmes" a "rebobinarem" na minha cabeça: também eu poderia ter ficado em Nhabijões, em 13/1/1973, numa das duas minas A/C, mortíferas, que o Mário Mendes nos deixou, à porta do reordenamento... Se assim fosse, o meu filho também não teria nascido... LG
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Notas do editor:

(*) Vd.poste de 20 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22924: (Ex)citações (400): Não, não foi o Cherno Baldé... Divulgação do nome do "matador" do Mário Mendes no dia 25 de maio de 2022, quando passarem os 50 anos do duelo fatal, na Ponta Varela... (António Duarte / Luís Graça)

)**) Vd. poste de 19 de janeiro de 2022 Guiné 61/74 - P22920: (Ex)citações (399): Ética na guerra? O caso do "matador" do comandante de bigrupo Mário Mendes (1943-1972): "Não se mata um homem de costas", disse ao António Duarte, o apontador da HK 21, do 4º Gr Comb da CCAÇ 12... (Seria o Cherno Baldé?)

(***) Último poste da série > 6 de maio de  2022 > Guiné 61/74 - P23237: Efemérides (367): Faz hoje precisamente 55 anos que um estrangeiro, o ten-cor H. Meyer, adjunto do Adido Militar Americano em Lisboa, participava, com as NT (CART 1525, Bissorã, 1966/67) na Op Beluário... Não sabemos em que circunstâncias nem a que título (Virgínio Briote)

domingo, 8 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23242: 18º aniversário do nosso blogue (13): Memórias cruzadas nas 'matas' da região do Oio - Morés, em junho de 1963: a origem das primeiras bases do PAIGC (Jorge Araújo)


Foto 1 - Citação: (1963-1973), "Coluna de guerrilheiros do PAIGC e carregadores", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43179

Título: Coluna de guerrilheiros do PAIGC e carregadores | Assunto: Coluna de guerrilheiros do PAIGC e carregadores deslocando-se pelo interior da Guiné | Data: 1963 – 1973 (com a devida vénia).



Foto 2 - Citação: (1966), "Gérard Chaliand (n.1934), escritor franco-arménio, conversando com [Osvaldo Vieira (1938-1974)], no Norte.", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43498 (com a devida vénia).



Citação: (01.06.1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_37047

Assunto: Camaradas preparados devem partir. Remetente: Oswaldo [Vieira]. Destinatário: Lucette [Andrade]. Data: Sábado, 1 de Junho de 1963 (com a devida vénia).




 Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); nosso coeditor, e a viver, até há algumas semanas atrás em Abu Dhabi, Emiratos Árabes Unidos. Volta a Portugal por um período mínimo de seis meses.


MEMÓRIAS CRUZADAS NAS ‘MATAS’ DA REGIÃO DO OIO-MORÉS 
EM JUNHO DE 1963 - A ORIGEM DAS PRIMEIRAS BASES 
DO PAIGC -



Mapa da região do Óio-Morés com infografia dos aquartelamentos das NT (a vermelho) e os principais refúgios (depois bases) que foram sendo criados(as) pelo PAIGC ao longo do conflito (a azul). As setas a azul indicam os itinerários utilizados para os ataques e emboscadas.


1. - INTRODUÇÃO

Depois de ontem, 22 de Abril de 2022, ter recordado uma efeméride com cinquenta anos, como foi o caso do “baptismo de fogo” do 4.º Gr Comb da minha CART 3494, por acção da emboscada perpetrada pelo bigrupo do Cmdt Mário Mendes (1943-1972), na Estrada Xime-Bambadinca, no sítio da “Ponta Coli” (foto 3), onde estive no “fio da navalha”, e cujas consequências ditaram a morte prematura do meu/nosso camarada fur mil Manuel da Rocha Bento (1950-1972), natural da Ponte de Sor, e mais dezassete feridos, entre graves e menos graves. 

Do total de vinte e três elementos, de que era constituída esta força militar da CART 3494, apenas cinco saíram ilesos, sendo eu um deles (vd. P9698; P9802; P12232).



Foto 3 > Guiné > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Xime > Estrada Xime-Bambadinca> Ponta Coli 22 de Abril de 1972 (sábado) > Local do combate com o bigrupo do PAIGC comandado por Mário Mendes (1943-1972). A cor vermelha indica as posições dos elementos do bigrupo. A linha azul refere a distribuição das NT, após o início da emboscada dirigida às duas viaturas em que nos fazíamos transportar.

Este acontecimento, que ficará gravado e grafado para a vida, faz-me recuar, inevitavelmente, a cinco dias antes (uma segunda-feira), ou seja, a 17 de Abril de 1972, quando as mesmas forças de guerrilheiros, comandadas pelo mesmo Mário Mendes, emboscaram um grupo da CCAÇ 3490, nossos “vizinhos” do Saltinho, naquela que também ficará marcada para sempre na Historiografia da Guerra, como a «Tragédia de Quirafo», e que o camarada Mário Migueis fez questão de aqui a recordar no P23176, publicado no passado domingo, através de uma dramática e comovente narrativa escrita pela sua mão, mas também pelo seu enorme coração. Obrigado!

Hoje, dia 23 de Abril de 2022, não podia deixar de comemorar outra data importante para os antigos combatentes, particularmente os do CTIG, pela passagem do 18.º Aniversário da criação (ou do início) do Blogue da Tabanca Grande que, como é do domínio público, foi editado pelo camarada Luís Graça, “com o objectivo de ajudar os antigos combatentes a reconstruir o puzzle da memória da guerra da Guiné (1961-1974)”. Para ele vão também os meus PARABÉNS…

Como “prenda de anos”, aqui deixo mais algumas “peças do enorme puzzle da Guerra”, que continua a ser reconstruído graças ao contributo deste grande colectivo, desta vez com mais “memórias cruzadas das matas da região do Óio-Morés”, datadas de Junho de 1963, as quais no próximo ano completarão seis décadas.

Com a presente narrativa, procura-se dar a conhecer os processos que fundamentaram o início da luta armada e os primeiros actores que ficaram incumbidos de organizarem as primeiras bases da guerrilha na Região do Óio-Morés (mapa acima).
 

2. - AS PRIMEIRAS NOTÍCIAS

Seguem-se as primeiras notícias, enviadas a Amílcar Cabral (1924-1973), enquanto secretário-geral do PAIGC, relacionadas com a organização dos grupos de guerrilheiros e dos seus respectivos comandantes, a quem foi atribuída a missão de, por um lado, desenvolverem acções de sabotagem e de guerrilha contra os militares portugueses, europeus e do recrutamento local, e, por outro lado, criarem os seus refúgios (transformados mais tarde em bases) no interior do território da Guiné.

2.1 - O 1.º RELATÓRIO (elaborado por Lourenço Gomes)

▬ Sedhiou, 28 de Junho de 1963 (6.ª feira)

Exmo. Senhor

Secretário-Geral do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde

Saudações combativas.

Conforme combinado com o nosso Secretário-Geral em Dakar, logo após o meu regresso e directamente de Ziguinchor para Samine, contactei com o camarada Ambrósio Djassi [Osvaldo Vieira (1938-1974)] e outros responsáveis, tendo tanto estes como todos os militantes demonstrado grande satisfação por poderem enfim entrar em luta aberta contra os opressores do nosso Povo. O primeiro a entrar foi o Ambrósio Djassi, no dia 23 de Junho (domingo), um outro grupo entrou a 24 de Junho (2.ª feira) e o último a 25 de Junho (3.ª feira).

O camarada Fulacunda Cassamá, que conhece muito bem a área de Quínara, seguiu acompanhado do camarada Quecuta Mané, no dia 23 de Junho (domingo), a fim de, conforme fora determinado pelo Secretário-Geral, procurar entrar em contacto com o camarada Rui Djassi [Faincam (1937-1964)].

Resolvemos que o camarada Tiago Lopes siga para dentro como enfermeiro. Segundo o mesmo camarada informou, se lhe for fornecido o material necessário, poderá, em caso de urgência, efectuar algumas operações. Por esta razão julgamos conveniente que o camarada Tiago Lopes siga para Dakar, agradecendo que alguém do Secretariado Geral contacte com ele, de modo a solucionar o assunto.

● No dia 25 de Junho (3.ª feira), quando do regresso para Sedhiou, devido a ter caminhado 61 km em 24 horas, até hoje ando com dificuldades devido a sentir violentas dores abaixo da espinha. Se continuar assim, terei de seguir para Dakar, a fim de me tratar. Assim que seja recebido esta carta, agradeço comunicarem ao camarada Rui Djassi a saída dos dois camaradas que irão contactar com ele.

Agradeço esperem pelo Relatório onde poderemos dar mais pormenores sobre os trabalhos em Casamansa.

Saudações para todos os camaradas. Um abraço amigo do camarada,

Ass. Lourenço Gomes.





Carta de três paginas, expedida em envelope de correio aéreo, tendo como remente Lourenço Gomes, Chez Anta Diop, Sedhiou (Pasta: 04611.061.009)

Citação: (28.06.1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36849

Assunto: Relata o contacto com Ambrósio Djassi [Osvaldo Vieira] e outros responsáveis no sentido destes entrarem “em luta aberta contra os opressores do nosso Povo”, conforme o que foi combinado com o Secretário-Geral em Dakar | Remetente: Lourenço Gomes | Destinatário: [Amílcar Cabral], Secretário-Geral do PAIGC |  Data: Sexta, 28 de Junho de 1963.


2.2 - O 2.º RELATÓRIO (elaborado por Lourenço Gomes)

▬ Ziguinchor, 07 de Julho de 1963 (domingo)

Exmo. Senhor

Secretário-Geral do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde

Foi com entusiasmo que os nossos camaradas receberam as instruções do nosso Secretário-Geral para iniciarem a luta no norte do País, seguindo assim o exemplo dos bravos irmãos, que heroicamente se têm batido pela independência e liberdade da Pátria, ao sul da nossa Terra.

Todo o povo, de todas as raças, ao ter conhecimento de tal facto, se manifestou exuberantemente, crentes da nossa força, da razão que nos assiste e na fé inquebrantável depositada nos dirigentes que conduzem o nosso grande Partido, o único que representa a nossa Terra e as suas gentes, e que há-de em breve dar-nos uma Pátria nova, livre e progressiva.

Foi explicado aos camaradas que devem contar com muitas dificuldades mas que, na pessoa do nosso Secretário-Geral, o Partido espera deles todo o sacrifício, e confia que saberão corajosamente transpor todos os obstáculos que se lhes venham a deparar, até que sejam coroados os nossos esforços com a Vitória final.

Na reunião efectuada, demonstrou-se ainda a necessidade de não retardar por mais tempo a iniciativa de acção.

Por alguns camaradas, foi manifestada a necessidade urgente de mais armas e munições, em virtude das quantidades recebidas serem consideradas insuficientes.

Foram-lhes explicadas as dificuldades que se nos apresentam e que se torna absolutamente necessário fazer tudo para se poupar no máximo, todo o material e munições.

Disse-lhes ainda que, conforme fora informado pelo nosso Secretário-Geral, se estava a estudar a possibilidade da remessa de material por outra via.

◙ - Entrada dos nossos guerrilheiros no Norte do País.

Conforme comunicamos em telegrama de 28 do mês findo (Junho) e em carta da mesma data (1.º Relatório), em cumprimento das instruções recebidas do camarada Amílcar Cabral, os camaradas entraram no Norte do nosso País, entre 23 e 25 de Junho passado, pela seguinte ordem:

● Dia 23-06-63 (domingo) = três grupos comandados pelo camarada Osvaldo Vieira.

● Dia 24-06-63 (2.ª feira) = dois grupos dirigidos pelo camarada Julião Lopes.

● Dia 25-06-63 (3.ª feira) = dois grupos pelo camarada Chico Té [Francisco Mendes] e um grupo pelo Leandro Vaz, um grupo pelo camarada Hilário Rodrigues “Loló” e ainda um grupo constituído por Felupes, comandados pelo camarada João da Silva.

◙ - Primeiras acções de sabotagem e guerrilhas.

Depois de terem entrado e combinado as acções a desencadearem, os nossos camaradas iniciaram a sua actividade de sabotagem e guerrilhas a partir do dia 30 do mês findo [Junho’63].

Passamos a discriminar aquelas de que temos até então conhecimento:

● Dia 30-06-63 (domingo) = Destruição de 1 ponte entre Mansabá-Bissorã. Idem, entre Olossato-Bissorã. Idem, entre Mansoa-Bissorã. Idem, entre Nhacra-Mansoa.

Todas estas operações de sabotagem, bem como ainda o corte de fios telegráficos e telefónicos, foram realizados na noite de 30 de Junho.

● Dia 01-07-63 (2.ª feira) = Destruição com plástico [petardos] da jangada de Barro e de uma ponte entre Farim e Bigene.

● Dia 02-07-63 (3.ª feira) = Depois de aproximadamente a 7 km de Olossato, donde seguiam para Bissorã, em 3 camiões e 2 jipes, tropas colonialistas portuguesas, foram atacadas pelos nossos guerrilheiros, sob o comando do camarada Mamadu Indjai, tendo, segundo informações dos camaradas, um dos nossos militantes ferido, infligido elevadas baixas nos inimigos, não podendo precisar o número. Aguardamos relatório do interior para melhor podermos informar.


▼► INFORMAÇÃO OFICIAL DA CECA (6.º VOLUME)

Referente aos relatos indicados acima, o livro da Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974), refere no 6.º Volume, na Actividade Operacional, o seguinte: “Generalidades: - O Comandante-Chefe informou a Defesa Nacional do agravamento da situação: "As NT estão em constante actividade mas dispõem de reduzidos efectivos que mal chegam para a ocupação das localidades" e que "o ln, com as suas acções em Xime e margem direita do rio Corubal, pretende ligar-se com as infiltrações do norte e isolar o leste, para seguidamente actuar sobre Bissau e Bafatá". Salienta que "há necessidade de ocupar fortemente o quadrilátero Olossato-Mansabá-Mansoa-Bissorã para manter a ligação com o leste". Informa do trabalho exaustivo do QG e faz notar as faltas em Oficiais (33), Sargentos (64), praças europeias (190) e praças nativas (178), no quadro orgânico do Quartel-General.

No dia 16 de Julho de 1963, foram constituídos sete Sectores (de A a G) em vez dos quatros anteriores e as sedes dos Batalhões respectivamente em Bissau, Bula, Mansoa, Bafatá, Buba, Catió e Tite.

● No 2.º Semestre – Meses de Julho e Agosto;

Em 1 de Julho, o IN colocou abatizes e destruiu um pontão na estrada Mansoa-Bissorã e danificou a jangada de Barro, começando a intensificar as acções no Sector Oeste. Atacou o XIME novamente e emboscou um P/ERec 385, que sofreu 6 (seis) feridos ligeiros. Também se foi infiltrando por Dungal, Binta, Bissorã até Nhacra e cortou um pontão a 4 km de Mansoa. Aniquilou uma secção, causando a morte de 4 praças, sendo 3 nativos.

As quatro baixas foram a do soldado condutor, José Rocha Camacho, da CCAÇ 413, natural de Santa Catarina, Caldas da Rainha. A do soldado condutor, Pedro Mendes Lopes, natural de Bolama, e as dos soldados, Balaque Loquete e Lofane Tchango, ambos naturais de Bissorã, sendo que os três militares de recrutamento local pertenciam à 1.ª CCAÇ/CTIG. (op. cit. pp110-111)

Continua Lourenço Gomes:

◙ - Camarada ferido:

O camarada ferido no encontro acima referido chama-se Ansú Sissé, que esteve no Lar de Conacri e que apresentava ao tempo indícios de desequilíbrio mental.

Encontra-se hospitalizado em Ziguinchor, foi ferido em ambas as pernas, mas só há necessidade de ser operado duma. A operação deve ser efectuada no dia 7 do corrente. O seu estado é satisfatório.

◙ - Necessidade de formação e apetrechamento de mais grupos de guerrilhas.

Estamos crentes que se a luta continuar em bom ritmo, muito em breve as tropas colonialistas portuguesas ver-se-ão obrigadas a retirar de todas as povoações fronteiriças e ficarem ainda isoladas em certos centros, mas para tal facto, há necessidade urgente de formar mais grupos de combate devidamente apetrechados, que completassem o total de trinta ou quarenta grupos, pois há ainda a contar com os manjacos que estavam presos mas já foram libertados, pois que se por enquanto se encontrarem inactivos, dum momento para o outro podem voltar à actividade, sendo conveniente rigorosa vigilância, sobre todos as possíveis sabotagens dos “oportunistas]”.

◙ - Remessa de material via Quinara.

Conforme o combinado com o nosso Secretário-Geral, que devíamos fazer os possíveis de recebermos mais armas e munições via Quinara, para tal efeito fizemos seguir no dia 23 do mês passado os camaradas Fulacunda e Quecuta Mané e outros dois camaradas, que conhecem bem aquela região, para escolherem o melhor caminho para esse fim.

◙ - Situação financeira. Necessidade dum Fundo Permanente para acorrer a despesas imprevistas.

Agradecemos ao nosso Secretário-Geral a melhor atenção para o que já lhe fora exposto no Bureau de Dakar, quanto às dificuldades que decerto virão a seguir com as naturais consequências, referentes ao prosseguimento da luta, pois já se apresentou agora um ferido e ainda a mesma começou noutro dia.

Pedimos licença, portanto, para expor ser de necessidade urgente e absoluta, a existência dum fundo para ocorrer a despesas imprevistas, pois é preferível combater no interior ao lado dos camaradas e sujeitos aos mesmos riscos, que porventura sentirmo-nos impossibilitados de os socorrer e assistir convenientemente por carência de fundos.

Julgamos por bem lembrar que nunca tivemos aqui em Casamansa grande facilidades, antes pelo contrário.

Felizmente não há necessidade de mandar o camarada ferido para Dakar, pois se assim acontecesse, não existem fundos que a isso o permitissem, pois já foi com muito boa vontade e contraindo um pequeno empréstimo que se conseguiu a sua vinda de Samine para Ziguinchor.

Foram feitas outras dívidas com a aquisição de plásticos e calças, em Samine, para os camaradas que entraram para dentro e que estavam absolutamente necessitados.

◙ - Assistência Sanitária; medicamentos e material cirúrgico.

Conforme o exposto em nossa carta de 28 do mês findo e segundo opinião do camarada Tiago Lopes, há necessidade de termos na fronteira medicamentos e material para assistência aos camaradas que necessitam de assistência urgente.

◙ - Assuntos a solucionar.

Havendo assuntos a resolver, concernentes a medidas a tomar quanto ao prosseguimento da luta, agradeço seja avisado quando o camarada Amílcar Cabral ou Aristides Pereira se poderão avistar em Dakar com o camarada Lourenço Gomes.

◙ - Máquina de escrever.

Muito embora não sendo indispensável, mas para facilitar o nosso trabalho, agradecíamos caso fosse possível aproveitarem o camarada Tiago Lopes para nos enviarem uma máquina de escrever, muito embora velha, mas ainda utilizável.

◙ - Movimento de “riba casa”.

Esteve ontem em Ziguinchor o Benjamim Bull, que efectuou uma reunião com os seus companheiros de farsa oferecendo-lhes no regresso, no bar do campo de aviação, aperitivos à discrição e dando dinheiro a outros.

Ass. Lourenço Gomes.


▬ O portador deste relatório, será provavelmente o camarada Tiago Lopes que se deve deslocar a Dakar e provavelmente a Conacri - aproveitando um bilhete de avião de ida, que se encontrava na posse do camarada Lourenço Gomes – a fim de lhe serem fornecidos medicamentos e material cirúrgico, para os primeiros socorros a prestar.

◙ - Camarada Honório Vaz

Quanto ao camarada acima referido, logo após a minha chegada, mandei-o procurar a Koldá, onde não se encontrava. Vim depois a saber que tinha seguido para a Gâmbia, onde se fora avistar com o camarada Rafael Barbosa e o Inspector da PIDE.

No meu regresso de Samine no dia 26 de Junho, chegou no mesmo dia o camarada Bebiano d’Almada que partiu no dia seguinte para Koldá, contando-me que o Honório Vaz passou depois também para lá. Como tive de vir a Ziguinchor providenciar sobre o camarada ferido, só após o regresso do camarada Bebiano, poderei comunicar, ou comunicará aquele, o que foi resolvido a respeito do camarada Honório Vaz.




Documento de 8 folhas, de que se só reproduz a primeira, por uma questão de economia de meios e de agilizar a consulta do blogue. O conteúdo foi transcrito pelo Jorge Araújo.



Citação: (07.07.1963), "Relatório sobre o desenvolvimento da luta no Norte", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40096


► Fontes consultadas:

Ø (i) - CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 05222.000.217. Título: Coluna de guerrilheiros do PAIGC e carregadores. Assunto: Coluna de guerrilheiros do PAIGC e carregadores deslocando-se pelo interior da Guiné. Data: 1963-1973. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Fotografias.

Ø (ii) - CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 05360.000.265. Título: Gérard Chaliand, escritor franco-arménio, conversando com [Osvaldo Vieira] no Norte. Assunto: Gérard Chaliand, escritor franco-arménio, conversando com [Osvaldo Vieira, membro do Conselho de Guerra], Frente Norte. Data: c Julho de 1966. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Fotografias.

Ø (iii) - CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 07071.120.068. Assunto: Camaradas preparados devem partir. Remetente: Osvaldo [Vieira]. Destinatário: Lucette [Andrade]. Data: Sábado, 1 de Junho de 1963. Observações: Doc incluído no dossier intitulado Telegramas de Janeiro a Junho de 1963. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Correspondência.

Ø (iv) - CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 04611.061.009. Assunto: Relata o contacto com Ambrósio Djassi [Osvaldo Vieira] e outros responsáveis no sentido destes entrarem “em luta aberta contra os opressores do nosso Povo”, conforme o que foi combinado com o Secretário-Geral em Dakar. Remetente: Lourenço Gomes. Destinatário: [Amílcar Cabral], Secretário-Geral do PAIGC. Data: Sexta, 28 de Junho de 1963. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência manuscrita 1961-1964. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Correspondência.

Ø (v) - Casa Comum, Fundação Mário Soares. Pasta: 07075.147.036. Título: Relatório sobre o desenvolvimento da luta no Norte. Assunto: Relatório assinado por Lourenço Gomes dirigido ao Secretário-Geral do PAIGC, sobre o desenvolvimento da luta no Norte do país. Entrada dos guerrilheiros no Norte da Guiné; primeiras acções de sabotagem e guerrilha; “camarada” ferido; necessidade de formação e apetrechamento de mais grupos de guerrilha; remessa de material via Quinara; necessidades de um fundo permanente para despesas; assistência sanitária; medicamentos e material cirúrgico; envio de máquina de escrever; movimento de “riba casa”. Data: Domingo, 07 de Julho de 1963. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios XI 1961-1964. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.

Ø Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de um óptimo fim-de-semana.
PARABÉNS A TODOS!
Jorge Araújo.
23Abr2022
____________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 6 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23235: 18º aniversário do nosso blogue (12): Entrevista com Leopoldo Senghor, ao "Jeune Afrique", n.º 701, de 15/6/1974, sobre os seus contactos com o gen Spínola e com o PAIGC, reproduzida, em português, no Boletim do MFA, Bissau, n.º 2, 17/6/1974 (Victor Costa, ex-fur mil at inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22924: (Ex)citações (400): Não, não foi o Cherno Baldé... Divulgação do nome do "matador" do Mário Mendes no dia 25 de maio de 2022, quando passarem os 50 anos do duelo fatal, na Ponta Varela... (António Duarte / Luís Graça)


1. Mensagem,  por email,  de Antonio Duarte,  transformada em comentário ao poste P22920 (*)

[António Duarte, foto à esquerda: [ex-fur mil da CART 3493, a companhia do BART 3873, que esteve em Mansambo, Fá Mandinga, Cobumba e Bissau, 1972-1974; foi transferido para a CCAC 12 (em novembro de 1972, e onde esteve em rendição individual até março de 1974; economista, bancário reformado, formador, com larga experiência em Angola; tem mais de meia centena de referências no nosso blogue] 

 
Data - quarta, 19/01/2022, 20:04
Assunto - Cherno Baldé, o "matador" do Mário Mendes ?

Boa noite,  camaradas.

Propositadamente não falei em nomes, porque o blogue é público, lido na Guiné e poderia haver constrangimentos, embora eu acredite que provavelmente os envolvidos já faleceram.

O apontador da HK21 era o Braima S..., louvado pelo CAOP 2.

Foram também louvados pelo CAOP 2, para além do referido Braima, o Ansumane B... e o Indrissa B..., todos da equipa da HK21.

O furriel era o José Domingues, também ele louvado.

Estou com estes detalhes, porque consultei o livro do BART 3873, onde na página 4 cap III, figuram os louvores de julho de 72. (O Luís possui a publicação digitalizada que há longo tempo disponibilizei e que com a paciência que ele tem, publicou no nosso blogue).

O fur Domingues foi um dos que rendeu os graduados fundadores da CCaç 12. Tive há muitos anos a informação, sem confirmação, de que teria falecido bastante novo.

E é tudo.

Deixo ao critério do Luís se o detalhe dos nomes ligados a este acontecimento deverão ser publicados no blogue.

Um abraço a todos
António Duarte


2. Comentário do editor LG:

Obrigado, António, pelos teus esclarecimentos adicionais e pelas tuas preocupações com o direito à privacidade (e ao sigilo) dos nossos camaradas guineenses...

Eu devia ter descartado logo a hipótese do Cherno Baldé, soldado atirador nº mec. 82115269, da minha 1ª secção do meu 4º Gr Comb... (O pelotão que integrei mais vezes durante a minha comissão, tendo embora passado por todos...).

O Cherno foi vítima da mesma mina A/C que eu, tendo sido ferido em 13/01/71, junto ao Destacamento de Nhabijões. Deve ter sido mais tarde substituído pelo Braima S..., de resto mais velho (em termos de antiguidade na tropa), e que foi para a CCAÇ 12 em rendição individual...

Costumamos distinguir 3 "gerações" na composição orgânica da CCAÇ 12: eu e o Cherno Baldé somos da 1ª geração (1969/71), o Victor Alves é da segunda, tal como o Braima S... Tu, António, és da terceira... Infelizmente, só uma história da unidade, e fui eu que a fiz (,vai até fevereiro de 1971; a CCAÇ 12 foi extinta em agosto de 1974).

Obrigado, António, pelas informações adicionais que me deste ao telefone... Talvez publique o teu comentário, com todos os detalhes por ocasião dos 50 anos destes tristes factos...

"Guerra era guerra", diziam-nos os antigos combatentes do PAIGC quando nos encontrámos em Imberém, Gandembel Guileje e Bissau, por ocasião do Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de março de 2008).

È verdade, "guerra é guerra", morremos e matámos, matámo-nos uns aos outros, naquela guerra. O Mário Mendes "matou" o nosso sold cond auto Manuel da Costa Soares, que deixou um filho por conhecer,o Rogério Soares... O Mário Mendes foi morto, um ano e quatro meses depois pelo Braima S..., e também era casado e tinha filhos...

Os filhos têm o direito de saber como é que os pais morreram na guerra. Não para se vingarem, o que hoje já não faz sentido, mas completarem o "luto", fazerem o seu "choro"...

A paz e a reconciliação entre os povos também passa pelo doloroso processo de falarmos dos nossos mortos,e dos mortos dos nossos inimigos de ontem (, de há 50/60 anos).

Não há razões para não divulgarmos o nome do "matador" do Mário Mendes, quando se completarem os 50 anos sobre o acontecimento, ou seja, em 25 de maio de 2022. O poste já está em modo de edição... O Braima S... infelizmente já não deve estar vivo, se é que não foi  fuzilado pelo PAIGC a seguir à independência, como outros soldados e sobretudo graduados da CCAÇ 12 que transitaram para a CCAÇ 21
 (, comandada pelo tenente 'comando' graduado Abdulai Jamanca)... Se o Braima fosse vivo, teria hoje 80 anos, diz-me o António Duarte.

Faço um minuto de silêncio à memória de todos estes homens que já nos deixaram, uns de morte natural, outros de morte violenta, e que um dia se cruzaram nas nossas vidas... Ontem custou-me à adormecer com todos estes "filmes" na minha cabeça... LG

_________

Nota do editor:

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22920: (Ex)citações (399): Ética na guerra? O caso do "matador" do comandante de bigrupo Mário Mendes (1943-1972): "Não se mata um homem de costas", disse ao António Duarte, o apontador da HK 21, do 4º Gr Comb da CCAÇ 12... (Seria o Cherno Baldé?)


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Contuboel > CIM de Contuboel > 1969 > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > > O Valdemar Queiroz, com os recrutas Cherno Baldé, Sori (Jau ou Baldé) e Umaru Baldé (que, feita a recruta, irão depois para a CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12, a partir de 18 de junho de 1970). Estes mancebos aparentavam ter 16 ou menos anos de idade (!). Eram do recrutamento local e, originalmente, não falavam português. Terá sido este Cherno Baldé o "matador" do Mário Mendes? Em 1969/71, havia dois soldados com este nome, ambos fulas, um deles o sold nº 82115269 Ap Metr Lig HK 21, da 1.ª secção do 4.º Gr Comb (que eu, Luís Graça, integrei muitas vezes ao longo da comissão).

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. C
omentário de António Duarte [ex-fur mil da CART 3493, a companhia do BART 3873, que esteve em Mansambo, Fá Mandinga, Cobumba e Bissau, 1972-1974; foi transferido para a CCAC 12 (em novembro de 1972, e onde esteve em rendição individual até março de 1974; economista, bancário reformado, formador, com larga experiência em Angola; tem mais de meia centena de referências no nosso blogue] (*)


Boa noite Camaradas.

O homem do PAIGC, Mário Mendes, lidera a operação de colocação de minas. Mata e provoca feridos à CCAÇ 12  e, passado mais de um ano,  morre às mãos da mesma companhia de caçadores.

Casualidades da guerra, bem tristes por sinal. Há uma curiosidade sobre a morte do Mário Mendes. À época eu pertencia à companhia de Mansambo, a CART 3493 / BART 3873 e assisti a uma conversa entre o furriel que comandava a secção de HK 21 e o soldado fula que o abateu, em Bambadinca. 

A CCAÇ 12 estava no mato e detetou a presença de tropa do PAIGC. Ficou também claro que a CCAÇ 12 estava detetada, Os dois grupos evoluíram com muito cuidado e, a determinada altura, penso já perto da Ponta Varela,  a CCAÇ 12  abandonou o trilho e emboscou dentro do mato, ficando a HK 21  apontada na direção de onde se pensava que poderiam vir as tropas do PAIGC. 

Passados alguns minutos vem ao trilho um homem deles, que se ajoelhou e percebe-se que tenta "ler" as pegadas. Os restantes estavam emboscados no lado inverso ao da CCAÇ 12. O furriel faz sinal ao nosso militar para abrir fogo. Para espanto dele, em vez de disparar e apanhar o guerrilheiro em causa,  debruçado e de costas, o homem do quarto pelotão emite um ruído do género "pst pst", o guerrilheiro volta-se e nesse momento é abatido. 

Justificou-se então o nosso apontador, que ele nunca mataria um homem pelas costas.

Entretanto fui para a CCAÇ 12  em janeiro de 73 e tive a oportunidade de confirmar com o próprio e reafirmou-me que não matava ninguém pelas costas. 

Em síntese um código ético pouco compatível com a guerra.

Um abraço
António Duarte
Ex fur atirador, CART 3493 e CCAÇ 12 (Mansambo e Xime, dez 71 /jan de 74)


18 de janeiro de 2022 às 19:32

2. Comentário do editor LG:

O nosso coeditor Jorge Araújo já aqui deu mais informação detalhada sobre este encontro fatal do Mário Mendes. (***)

O comandante de bigrupo Mário Mendes (1943-1972)  morreu em 25 de maio de 1972, 5.ª feira, no decurso da Acção Gaspar 5, realizada por seis Grupos de Combate,  três da CART 3494 e outros três da CCAÇ 12. 

O encontro fatal deu-se em Ponta Varela, tendo sido capturada a sua Kalashnikov, três carregadores da mesma arma e ainda documentação que dava conta do calendário de acções planeadas para a zona, atuava no Sector 2, da Frente Xitole-Bafatá (, nomenclatura do PAIGC), em particular no triângulo Xitole-Bambadinca-Xime.  (****)

Quem teria sido o "matador" do Mário Mendes?

No meu tempo, no 4º Gr Comb da CCAÇ 12 (Bambadinca, julho de 1969 / março de 1971), a HK21 fazia parte da 1.ª secção. E o apontador era o Cherno Baldé, fula (F):

4.º Gr Comb | Comandante: alf mil  cav 10548668 José António G. Rodrigues [, já falecido, vivia em Lisboa]

1.ª secção | fur mil 15265768 Joaquim Augusto Matos Fernandes [, engenheiro técnico, vive no Barreiro; destacado para o redoordenamento de Nhabijões, logo em finais de 1969; substituído, em muitas ocasiões, pelo fur mil arm pes inf, Luís Manuel da Graça Henriques]

1º Cabo 18861568 Luciano Pereira da Silva [, morada actual desconhecida];
Soldado Arvorado 82115469 Samba Só (F)
Soldado 82109869 Samba Jau (Mun Metr Lig HK 21) (F)
Sold 82115269 Cherno Baldé (Ap Metr Lig HK 21) (F)
Sold 82117569 Mamai Baldé (F)
Sold 82117869 Ansumane Baldé (Ap Dilagrama) (F)
Sold 82118269 Mussa Jaló (Ap Dilagrama) (FF)
Sold 82118969 Galé Sanhá (FF)

2.ª secção (a do Mort 60 e do dilagrama) era comandada pelo  fur mil at inf 11941567 António Fernando R. Marques [, vive em Cascais, empresário reformado] e  3.ª secção (a do LGFog 8,9) pelo 1.º Cabo 00520869 Virgílio S. A. Encarnação [, vive em Barcarena]:

É de todo provável que o Cherno Baldé, sold nº 82115269 tenha sido louvado (ou até ganho uma cruz de guerra) por este feito. Mas havia outro Cherno Baldé, também fula, soldado 82109669, Mun Metr Lig HK 21, que pertencia à 3.ª secção do 3.º Gr Comb (comandado pelo alf mil at inf Abel Maria Rodrigues [, bancário reformado, Miranda do Douro]. 

A 3.ª secção era comandada pelo fur mil at inf n.º 06559968 José Luís Vieira de Sousa [, natural do Funchal, agente de seguros reformado]. 
___________

Notas do editor:


(***) Vd. poste de:

17 de maio de  2017 > Guiné 61/74 - P17368: Efemérides (251): ... em abril de 2017: o 13º aniversário do nosso blogue, o XII Encontro Nacional da Tabanca Grande, os 43 anos do regresso da minha CART 3494, o 25 de Abril e o fim da guerra, o meu batismo de fogo há 45 anos em emboscada comandada pelo Mário Mendes (que viria a ser abatido um mês depois)...enfim, os nossos encontros e desencontros (Jorge Araújo)

21 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16865: (D)o outro lado do combate (Jorge Araújo) (3): Mário Mendes (1943-1972): o último cmdt do PAIGC a morrer no Xime... Elementos para a sociodemografia do seu bigrupo em 1972: tinha 27.9 anos de idade e 8.9 anos de experiência de conflito...

sábado, 24 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20091: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (13): Hoje faz anos, 73, o António Fernando Marques... Porque recordar é viver duas vezes, e blogar é três... Relembramos o fatídico dia, 13/1/1971, em que o PAIGC nos quis mandar para os anjinhos... O meu querido Marquês, sem acento circunflexo, tem filhos, netos, amigos e camaradas que o adoram... E o Mário Mendes, morto de morte matada 16 meses depois... será que alguém ainda o recorda na sua terra natal? (Luís Graça)


Guiné > Região de Bafatá  > Setor L1 > Bambadinca > CCS / BART 2917 (1970/72) > Janeiro de 1971 > Cemitério de viaturas de Bambadinca... O estado em que ficou o "burrinho", o Unimog 411, conduzido pelo sold cond auto, da CCAÇ 12, António Manuel Soares, que teve morte imediata.

Nhabijões era um grande aglomerado populacional, de maioria balanta, com parentes no "mato", e que era considerada sob "duplo controlo"... A dispersão das diversas tabancas (1 mandinga e 4 balantas: Cau, Bulobate, Dedinca e Imbumbe), sua proximidade ao Rio Geba, fazendo ponto de cambança para a margem direita (Mato Cão, Cuor...) e as duas grandes bolanhas (um delas a de Samba Silate, uma enorme tabanca destruída e abandonada no início da guerra), foram motivos invocados para começar a construir, a partir de novembro de 1969, um dos maiores reordenamentos da Guiné no tempo de Spínola. A aposta era também a conquista da população, fugida no mato e sob controlo do PAIGG, vivendo ao longo da margem direita do Rio Corubal (desde a Ponta do Inglês até Mina / Fiofioli).

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. (Editada e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. O António Fernando Marques, empresário, reformado, natural de Abrantes, residente em Cascais, nosso grã-tabanqueiro, faz hoje 73 anos... 

Foi meu camarada de infortúnio, era fur mil at inf, pertencia como eu à CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71). Vivemos no mesmo quarto, fizemos muitas operações juntos. É um amigo que muito prezo.Chamava-lhe, por brincadeira, o "Marquês sem acento circunflexo".

Esteve 17 dias em estado de coma, no HM 241, e 2 anos hospitalizado, em Bissau e em Lisboa, em 1971/72... Penitencio-me de nunca o ter ido ver ao Anexo do Hospital da Estrela, em Campolide, durante anos perdemos o contacto!... Voltei a revê-lo em 1994, no 1.º encontro do pessoal de Bambadinca, em Fão, Esposende. O nosso blogue ajudou-o a reconstituir esses 17 dias que passou no inferno, um presente envenenado do comandante do PAIGC, Mário Mendes (que morreria mais tarde de morte matada, em 1972, sem completar as 28 luas).  Trágica ironia: foi morto pelos mesmos homens, os do nosso 4.º Gr Comb / CCAÇ 12, a quem calhou uma das minas A/C mandadas pôr por ele, à porta do reordenamento de Nhabijões. Se fosse vivo, diria, em conversa connosco, em Bissau, com a voz de guineense: "Mas... guerra era guerra!"... "Pois é, Mário, sempre e em toda a parte, guerra é guerra!"...

Ele, Marques,  acha que me deve a vida, a mim, e eu, Henriques,  estou-lhe grato pelas mesmas razões. Afinal, se  estou vivo, é porque, suprema ironia,  eu ia no "lugar do morto"... Fui eu que o levei, num correria louca, até ao heliporto de Bambadinca... No lugar dele, não sei se teria sobrevivido... Além disso, ele teve um extraordinário anjo da guarda, de nome... Gina! (*)

Um minuto antes da fatídica mina A/C que nos ia mandando para os anjinhos, disputávamos amigavelmente o "lugar do morto", ou seja, discutíamos sobre quem ia à frente, na GMC, ao lado do condutor... Depois da habitual cantilena, "vais tu, vou eu, vais tu"... ele foi para trás, e eu sentei-me à frente... Azar o dele, sorte a minha: ele ia justamente por cima da dupla roda da GMC do lado direito, que fez accionar a maldita mina... Em 13 de janeiro de 1971, aos 20 meses de Guiné. Aqui fica, em sua homenagem, o filme dos acontecimentos (**).

Recordar é viver duas vezes, e blogar é três (***).

Recordo que foi o  comandante Mário Mendes, em pessoa,  e com o sapador do  seu bigrupo,  que nos pôs essas duas minas A/C, à saída do reordenamento de Nhabijões, acionadas por viaturas nossas em 13/1/1971...  Para o Marques a guerra iria durar mais 2 anos, no calvário dos hospitais... Por sorte, esse não foi o meu dia de azar: ia à frente, o Marques ia atrás, em cima da viatura com 2 secções... Eu estava na altura no 4.º Gr Combate, o mesmo que nos vingaria, matando o  Mário Mendes num duelo fatal, em pleno mato... Um ajuste de contas, a lembrar os filmes do faroeste da nossa infância... 16 meses depois, já eu estava há muito na metrópole!... O Marques está vivo, e tem filhos, netos e amigos que lhe dão hoje os parabéns por estar vivo e de boa saúde... O Mário Mendes, que lhe rouba 17 dias de hoje (em que o Marques esteve em coma), já não está entre os vivos... Será que tem alguém, na sua Guiné natal, que se recorde dele ? (****).


História da CCAÇ 12 (1969/71) > (19) Janeiro de 1971: 1 morto de 6 feridos graves aos 20 meses

O dia 13 seria uma data fatídica para as NT, e em especial para a CCAÇ 12 cujos quadros metropolitanos estavam prestes a terminar a sua comissão de serviço em terras da Guiné. Eis o filme dos acontecimentos:


Guiné > Região de Bafatá > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Da esquerda para a direita, os ex-furriéis milicianos António F. Marques e Luís M. Graça Henriques, da CCAÇ 12 (1969/71), em amena conversa ou talvez disputando amigavelmente o "lugar do morto" (que era ao lado do condutor).

Foto (e legenda): © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. (Editada: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

(i) às 5.45h o 1º Gr Comb detectou, durante a batida à região de Ponta Coli [, subsetor do Xime,] vestígios dum grupo IN de 20 elementos vindos em acção de reconhecimento aos trabalhos da TECNIL na estrada Bambadinca-Xime e locais de instalação das NT;

(ii) às 11.25h, na estrada de Nhabijões-Bambadinca, uma viatura tipo Unimog 411, conduzida pelo sold comd auto Manuel da  Costa Soares, da CCAÇ 12, que ia buscar, a Bambadinca, a 2ª refeição para o pessoal daquele destacamento, accionou uma mina A/C;

(iii) o condutor teve morte instantânea: ficaram gravemente feridos um oficial (CCS / BART 2917), o alf mil Luís sapador Luís R. Moreira, um sargento,  o fur mil Joaquim Fernandes (CCAÇ 12) e uma praça (CCS / BART 2917);

(iv) imediatamente alertadas as NT em Bambadinca, o Gr Comb de intervenção (4º, CCAÇ 12) recebeu a missão de seguir para o local a fim de fazer o reconhecimento da zona, enquanto outras forças acorriam a socorrer os sinistrados.

Ao chegar junto da viatura minada, o cmdt do 4° Gr Comb, o alf mil cav José António G. Rodrigues, [, já falecido, depois do regresso a Portugal, era funcionário da Segurança Social, em Lisboa] deixou duas praças a fazer a deteção, na estrada e imediações, de outros possíveis engenhos explosivos, no que foram apoiados por alguns elementos do destacamento de Nhabijões, seguindo depois uma pista de peugadas recentes, detectadas nas proximidades, e que se dirigiam para a orla da mata.

Aqui, a 50 metros da estrada, atrás duma árvore incrustada num baga-baga, encontraram-se vestígios muito recentes. Seguindo os rastos através da mata, foi dar-se à antiga tabanca de Imbumbe, um dos cinco núcleos populacionais de Nhabijões, entretanto transferidos para o reordenamento, mas nas proximidades do reordenamento, em Bolubate, aqueles passaram a confundir-se com os do pessoal que trabalhava na bolanha.

Regressado ao local das viaturas, o Gr Comb pelas 13.30h recebeu ordens para recolher, tendo o pessoal tomado lugar no Unimog e na GMC em que tinha vindo. Esta última [onde vinham as secções, comandadas pelos fur mil António Fernando Marques e Luís M. Graça Henriques], entretanto, ao fazer inversão de marcha, e tendo saído fora da estrada com o rodado traseiro, accionaria uma outra mina A/C colocada na berma, a 10 metros da anterior, e que não havia sido detetada pelos picadores.

Em resultado de terem sido projectados, ficaram gravemente feridos o fur mil Marques e os sold Quecuta, Sherifo, Tenen e Ussumane, todos do 4º Gr Comb / CCAÇ 12.

Sofreram escoriações e traumatismos de menor grau o alf mil Rodrigues, o sold trms Pereira e os sold Cherno e Samba.
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Notas do editor:

domingo, 8 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18500: (D)o outro lado do combate (26): outros elementos sociodemográficos dos bigrupos dos cmdt Mário Mendes (1943-1972) e Quintino Gomes (1946-1972) (Jorge Araújo)


Citação: (1963-1973), "Jovem guerrilheiro do PAIGC com a mulher", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43365 (2018-4-6) (Cortesia de Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum / Fundação Mário Soares)


Citação: (1963-1973), "Combatentes a pilar numa tabanca", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43389 (2018-4-6) (Cortesia de Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum / Fundação Mário Soares)


Citação: (1963-1973), "Costureira numa tabanca", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43991 (2018-4-6). (Cortesia de Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum / Fundação Mário Soares)



Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 

(Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue desde março de 2018


GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE
OUTROS ELEMENTOS SOCIODEMOGRÁFICOS DOS BIGRUPOS DOS CMDT MÁRIO MENDES (1943-1972) E QUINTINO GOMES (1946-1972)

1. INTRODUÇÃO

Não podia ficar indiferente aos importantes contributos transmitidos pelos diferentes tertulianos nos seus comentários, postados nos P18487 e P18493, a propósito dos meus trabalhos de investigação sociodemográfica tendo por universo dois bigrupos de guerrilheiros do PAIGC, o primeiro relacionado com o Cmdt Mário Mendes (1943-1972) e este último com o do Cmdt Quintino Gomes (1946-1972), falecidos em combate em Maio e Fevereiro de 1972, no Xime e em Empada, respectivamente.

A todos agradeço os seus comentários de igual modo, mas com particular destaque para os do nosso amigo e colaborador permanente, Cherno Baldé, que continua a ajudar-nos a decifrar alguns dos enigmas socioculturais dos seus pares e da sua terra, território onde passámos mais de dois anos da nossa juventude. Obrigado!

Pelo superior valor que lhes atribui, fui em busca de novos dados sociodemográficos de modo a alargar e/ou a complementar os já publicados.

Em resultado dessa investigação, curta no tempo mas bem-sucedida, apresento-vos abaixo o que consegui apurar, agora no âmbito do "estado civil" de cada um dos sujeitos da investigação, cujo tema poderá servir de ponto de partida para novas reflexões, singulares e colectiva.

Mais uma vez a análise centra-se nos documentos consultados no acervo de Amílcar Cabral disponíveis na CasaComum - Fundação Mário Soares.

Quanto à data da elaboração das fichas de inspecção e coordenação do Conselho de Guerra das FARP/PAIGC, acreditamos que elas tenham ocorrido no início do ano de 1970, uma vez que os documentos agora consultados, que também não estão datados, referem a existência da "Bateria Especial Grad" da Frente Sul e que, como sabemos, foi criada no último trimestre de 1969.


2. RESULTADOS DO ESTUDO SOBRE O "ESTADO CIVIL" DOS CONSTITUINTES DOS DOIS BIGRUPOS

O quadro abaixo foi elaborado a partir das fichas de inspecção coordenação do Conselho de Guerra, já publicadas anteriormente. Foi dividido por bigrupo, correspondente a cada um dos Cmdt's, e agrupado quantitativamente por frequências relacionadas com o ano de nascimento de cada sujeito. Consideram-se apenas as duas variáveis categóricas do "estado civil" referidas na ficha: solteiro e casado.

Não nos é possível referir o ano da "união" ou "uniões", por desconhecimento, uma vez que o segundo documento consultado dá-nos conta da existência de casos de "poligamia".

Na segunda coluna da esquerda indicam-se as idades dos sujeitos no ano de 1970, por ser o ano (deduzimos) em que foi elaborado o documento acima referido, respeitante ao número de sujeitos "casados" em cada um dos bigrupos, número de mulheres e filhos, e que daremos conta em quadros originais obtidos na investigação.


Quadro 1 – distribuição de frequências em relação ao "estado civil" de cada bigrupo

Da análise ao quadro 1, verifica-se que o bigrupo do Cmdt Quintino Gomes regista sete "casados" (20.6%) em trinta e quatro casos, enquanto o bigrupo do Cmdt Mário Mendes tem treze "casados" (34.2%) em trinta e oito casos.

Quando comparados os dois bigrupos, e estratificadas as idades, constata-se que o maior número de "casados", três em cada bigrupo, nasceram no ano de 1946. O bigrupo de Mário Mendes repete igual cifra em 1942.

Por outro lado, os nascidos no ano de 1948 e seguintes, sete (9.7%) eram "solteiros" (n=72), não existindo nenhum "casado".


Quadro 2 – distribuição de frequências dos "casados", mulheres e filhos, do bigrupo do Cmdt Mário Mendes, tendo por base a região da mata do Fiofioli (frente Leste)

Da análise ao quadro 2, verifica-se que os "casados" do bigrupo do Cmdt Mário Mendes eram treze (34.2%), cada um com uma mulher. Dois "casados", no mínimo, não tinham filhos.


Quadro 3 – distribuição de frequências dos "casados", mulheres e filhos, do bigrupo do Cmdt Quintino Gomes, tendo por base a região do Quinara (frente Sul)

Citação: (s.d. [1970]), "Tabela referente ao estado civil e situação familiar dos militares do CE da Frente Sul e Leste", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40459 (2018-4-6) (com a devida vénia)

Da análise ao quadro 3, verifica-se que os "casados" do bigrupo do Cmdt Quintino Gomes eram sete (20.6%), sendo as mulheres em número superior (nove). Algumas das mulheres teriam mais de um filho.


3.  CONCLUSÕES

Da análise aos quadros supra concluímos:

(i) existe diferença no número total de "casados" entre os dois bigrupo;

(ii) no bigrupo do Cmdt Mário Mendes existe um rácio igual entre o número de homens e mulheres, sendo que nem todas as mulheres têm filhos (ou são mães);

(iii) no bigrupo do Cmdt Quintino Gomes, o número de homens é inferior ao das mulheres, o que pressupõe a existência de casos em que há homens que têm mais do que uma mulher (poligamia); neste bigrupo, o número de filhos é superior ao número de mulheres (mães) o que significa a existência de mulheres (mães) com mais de um filho. Pode-se considerar, como hipótese académica, a existência de mulheres sem filhos.

À vossa consideração.
Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
07ABR2018.
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Nota do editor:

Últimos dois postes da série:

6 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18493: (D)o outro lado do combate (25): Jorge Araújo, "adesão" dos blufos balantas ao PAIGC? ... Eu diria antes que eles foram empurrados para os braços do Amílcar Cabral, devido ao terror provocado pelo bombardeamento indiscriminado das suas tabancas, pelas NT, nos anos 1962/63... (Cherno Baldé)

5 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18487: (D)o outro lado do combate (24): estudo sociodemográfico: o caso do bigrupo do cmdt Quintino Gomes (1946-1972) (Jorge Araújo)