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sábado, 16 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24661: Os nossos seres, saberes e lazeres (590): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (120): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (11) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
É dia de festa, uma terna e fraterna amizade de quatro décadas acenou-me com um programa que meteu quatro museus, o calcorrear por Namur, sair da cidade aí uns 20 km e fazer uns 8 a 10 a desfrutar a beleza do rio Meuse e o belo património edificado nas suas margens. Segue-se um ágape, um festim de coisas muito boas, até ao remate final de variedades de chocolate belga com uma tisana de frutos do bosque, a gozar da paisagem da floresta em S. Marc, a 4 km de Namur, depois metido no carro e despejado na gare ferroviária até Bruxelas. Dia muito feliz, amanhã é o infortúnio da partida, mas ainda tenho umas coisas para vos contar, Namur tem muito que se lhe diga.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (120):
Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (11)


Mário Beja Santos

Não foi impunemente que recebi instruções para tomar o comboio das 9h na gare central de Bruxelas, havia um extenso programa à minha espera. Chegada festiva, com beijinhos e abraços e prontamente parte-se para o primeiro objetivo operacional, les Bateliers, no centro da velha cidade, bem perto da catedral. Les Bateliers acolhem duas instituições museológicas de Namur, um Museu Arqueológico e um Museu de Artes Decorativas, bem como dois jardins dos quais um ao gosto francês. O Museu Arqueológico de Namur está implantado numa antiga escola dos barqueiros (bateliers). O belo edifício do Museu de Artes Decorativas é a antiga residência particular dos condes de Groesbeeck e marqueses de Croix, é um edifício do século XVIII classificado como património excecional da Valónia. Esta “ilha cultural” aparece associada a outras instituições como o Museu Félicien Rops e os jardins públicos e a casa da poesia.

O Museu de Artes Decorativas, que continua num processo de remodelação, reveste-se de grande interesse, tanto pela sua arquitetura interior como exterior como pela diversidade das coleções que alberga, testemunho dos estilos e gostos desde o século XVII ao século XIX. O processo de conservação e valorização não fica atrás, há um esforço bem visível para criar a atmosfera própria de um palácio nobre do Século das Luzes, graças à sinergia entre o património e o edifício.

O palácio fpi construído para residência do conde Alexandre-François de Groesbeeck, obedece a três regras fundamentais da arquitetura do século XVIII (respeito pela intimidade, procura de uma nova funcionalidade para os espaços de receção pública e vida social e interesse pelo mundo exterior), regras que se podem resumir na expressão: o prazer da vida e a procura do prazer.

Destaca-se o admirável uso da luz, graças a um sistema de pátios interiores e também a sua difusão a partir da cúpula para corredores através das galerias envidraçadas. A disposição das janelas na fachada das traseiras e a sequência de jardins é a marca de abertura ao exterior, cria-se uma comunicação entre a vida da rua e o universo fechado dos jardins.

Duas notas. A primeira tem a ver com a decoração interior, que é magnífica; a superfície mural está decorada com painéis de madeira com molduras simples e geometrias, usa os elementos da tapeçaria, painéis de couro, umbrais das portas decoradas com elementos de cenas grandes, motivos florais e mitológicos. A segunda, prende-se com o facto de o Museu Arqueológico ter dado lugar a uma exposição, para mim de total aprendizagem sobre os Merovíngios que deixaram marca neste local. Achei por bem registar alguns desses elementos de uma civilização sobre a qual pendia o preconceito de ter sido insignificante e até bárbara, estamos hoje na posse de elementos que levam a admitir o contrário, a sempre exaltada civilização Carolíngia teve o seu berço na obra Merovíngia, como aqui se revela dos achados arqueológicos que deixaram nesta região. Também se mostram dois mapas para dar a localização dos merovíngios e a partilha que houve dos diferentes reinos. Espero que apreciem esta primeira visita, quem me conduz olha permanentemente para o relógio, diz que ainda há mais três exposições a visitar, partiremos de Les Batiliers para o Museu de Arte Antiga para visitar a exposição Esculturas de Vanguarda… no século XVI. Prometo pôr a pratos limpos o que vi e as exposições que se seguiram, amigos, amigos, negócios à parte, primeiro temos que nos fartar neste caldeirão cultural, se tiveres fome comes uma banana e um pequeno chocolate, depois de pedalares por estes quatro museus percorrerás um bom troço de Meuse, depois é que terás pitéu, e pela noitinha serás metido no comboio com destino a Bruxelas. Foi um dia e peras.


Entrada de les Bateliers, Museu de Artes Decorativas e Arte Merovingia, Namur
Fachada das traseiras do palácio e jardim de gosto à francesa
Reconstituição da mesa de jantar da família do conde
Trenó dos condes de Groesbeeck-de Croix, madeira, ferro e veludo, século XVIII. Ao fundo, um par de bota de postilhão, condutor de correio em besta montada.
Lareira do palácio
Mesa de jogos de diversão
Salamandra de sala
Pormenor de parede com motivo de jogos populares em cima de andas
Pormenores de vestuário de dama do século XIX
Pormenores de um escritório do século XIX
A mancha castanha permite visualizar o território da civilização Merovingia, que precedeu a civilização Carolingia, séculos VI e VII
A partilha do Reino dos Francos
Informação sobre a ourivesaria Merovingia
Peças de vidro merovíngias
Moedas do tempo merovíngio
Reconstituição da cozinha do palácio
Pormenor da cozinha

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24637: Os nossos seres, saberes e lazeres (589): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (119): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (10) (Mário Beja Santos)

sábado, 9 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24637: Os nossos seres, saberes e lazeres (589): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (119): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (10) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Primeiro foi a caminhada pelas ruas de Antuérpia, aí uns 3 quilómetros feitos sem esforço, a temperatura estava amena e a arquitetura é pujante e versátil, a importância de Antuérpia não vem de ontem, pense-se que aquele templo gigantesco neoclássico edificado para o Museu Real das Belas-Artes é da primeira década do século XIX, era já terra flamenga muito próspera, uma agricultura invejável, um centro mundial de lapidação de diamantes, uma praça financeira, e já vimos o testemunho das suas muitas igrejas barrocas, com alfaias religiosas riquíssimas. De regresso a Bruxelas, veio um surto de melancolia, nem vos conto a série de imagens que andei por ali a disparar, ruminações de locais de que já aqui falei até à saturação, selecionei um punhado, na convergência da razão e do coração. Amanhã terá lugar a última romagem, Namur e o Meuse, depois é fazer a bagagem, como sempre vão ficar uns trastes em depósito, o low cost é implacável.
Até já.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (119):
Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (10)

Mário Beja Santos

Que o leitor me permita um desabafo, talvez mesmo uma confissão íntima, nestes lugares belgas, nestes percursos culturais, nestes espaços a que me habituei a calcorrear há décadas, sinto-me não só feliz como eterno devedor de ter feito aqui a minha aprendizagem ao vivo de convivente com o ideal europeu. É facto que devo à cultura universitária o ter conhecido a herança greco-romana, a interseção entre o cristianismo e Carlos Magno, depois das chamadas invasões bárbaras e do recuo do islamismo no nosso continente; e de ter ganho consciência de que o Humanismo foi a catapulta para descobertas científicas ao tempo em que se iniciou a primeira globalização, e por aqui findo, seria longo o itinerário desta cimentação europeia que desaguou com esse histórico lugar de encontro que se chamou a Comunidade Económica Europeia. Procurei estudar, compreender mentalidades, desafios do passado, presente e futuro. Foi graças a uma política minoritária (a dos consumidores) que aqui assentei praça, fui conhecendo gente e habituei-me a trabalho de equipa, a visitar os países com uma outra ótica, mas o meu refefrente foi sempre esta Bélgica, ela própria objeto de uma enorme tensão na convivência entre valões e flamengos, ela é o mais influente baluarte do multiculturalismo, se a pintura flamenga é um dos movimentos estéticos predominantes na pintura mundial, por aqui perpassa um sentimento europeu, basta ver a agenda cultural, desde representações de grupos emigrantes que aqui tanto se orgulham de viver, do teatro ao cinema, do romance à poesia, tudo o que vem de países europeus aqui tem acolhimento. Em suma, e para não estafar o leitor com tanto paraninfo, aqui também me sinto em casa, e com a imensa alegria por aqui ter feito amigos que me recebem e que me dão a honra de os acolher onde vivo.
Tudo isto veio a propósito da felicidade que senti na visita a este Museu Real de Belas-Artes de Antuérpia, agora é mesmo uma despedida sem remissão, passo por uma sala que foi restaurada ao gosto da época do início do século XIX, talvez do dia e da hora está tudo cheio de luz, vejo gente em contemplação, confesso que aquela arte ali exposta não me aquece nem arrefece, mas é a beleza daquela atmosfera que me cala fundo, aqui fica a o registo, adeus, até ao meu regresso.

Não tenho ilusões, aguardam-me alguns quilómetros de passeio pedestre, bem perguntei aos transeuntes se havia para ali um tram que me levasse até à estação central, que não, dentro de cerca de 1h passaria um autocarro, era o que faltava, ficar aqui especado sem beneficiar da condição de andarilho à força, toca de andar a pé e desfrutar do património de Antuérpia. Aqui ficam algumas amostras de belos edifícios, convém não esquecer que no século XIX, quando o rei Leopoldo era o proprietário do Congo, a Bélgica integrara-se na linha da frente da industrialização, fruia do colonialismo, esta Antuérpia estava pejada de joalheiros e artífices do diamantes, o seu porto era dos mais importantes de todo o Norte da Europa. É, pois, natural, que a cidade guarde marcas desses tempos de prosperiedade que, aliás, nunca desapareceram.
Já palmilhei uma boa distância, ainda acreditei que este tram me trouxesse alívio aos pés, doce engano, mas aproveitei a oportunidade para me despedir da catedral e desta sua bela torre.
A prova provada de que Antuérpia tem andado sempre na vanguarda arquitetónica é este edifício, bem andei às voltas por o captar em comprimento, largura e altura, em vão, mas aqui fica uma imagem que permite ver a prosperiedade do Pós-Guerra, as reminiscências da Arte Deco em confluência com os novos materiais, a adaptação aos espaços calafetados, novas formas de iluminação, etc.
O comércio de luxo muda constantemente de dono, o importante é que não se estrague o que a arquitetura e escultura notabilizaram, aqui há esse cuidado, mesmo quando o que foi comércio de luxo se transferiu para as marcas globais, estamos sempre à espera de encontrar um estabelecimento Zara ou Benetton onde outrora pontificavam os costureiros franceses ou ourivesarias de renome.
Já me despedi de Antuérpia, hoje é dia para me despedir de Bruxelas, porque amanhã vou ser recebido em Namur, é grande a amizade e o acolhimento é de excelência. Há aqui uma pontinha de melancolia, não escondo, volto a fazer uma confissão, tirei fotografias a rodos, fui lançando no éter quase todas elas, repetiam, de um modo geral imagens já tiradas, em visitas anteriores, e assim limitei-me a um quadro sucinto de variações sobre o mesmo tema. Logo a riqueza das pinturas murais, muitas delas associadas à genialidade da banda desenhada belga, veja-se como ninguém vandaliza ou estropia o fulgor do pintor de paredes, veja-se a cor e quentura de ambiente que esta parede projeta.
Estou agora num importante boulevard do centro de Bruxelas, de nome Anspach, conheci-o sempre com tráfego intenso, independentemente de os prédios se terem vindo a degradar quando o centro de Bruxelas se despovoou e as classes endinheiradas optaram por viver em comunidades menos ruidosas, deixaram esta porção de casco histórico fundamentalmente a emigrantes e gente envelhecida e mal remediada. Deu-se depois a gentrificação, ainda em curso, a municipalidade devolveu estas artérias aos peões e ciclistas, o património tem vindo a ser revitalizado através de programas específicos e o resultado está à vista, como aqui se mostra, o automóvel já não é o dono e senhor destes lugares.
É uma sensação maravilhosa andar pelo asfalto, mirando para ambos os lados, para analisar recentes ousadias arquitetónicas, uma delas, imagem abaixo, parece-me de perfeita integração, é uma conversação de estilos que não entram em conflito, mas sabe Deus o que sairá do prédio ao lado, talvez um caixotão de vidros espelhados, isso sim, uma agressão e uma contradição.
Impossível despedir-me de Bruxelas sem contemplar este mítico Teatro La Monnaie, onde tive a dita de assistir a espetáculos fabulosos, óperas como Tristão e Isolda, Boris Godunov, Eliogabalo (de Francesco Cavalli, com tenor português), bailados, concertos, saudosos preços de pechincha, no último andar, nem mexia a cabeça com medo de vertigens. O teatro aderiu à campanha de apoio aos monumentos destruídos na Ucrânia, além de anunciar a ópera Bastarda, de Donizetti, nunca a vi, mais uma razão para voltar.
Cirandei pelo templo de cultura e não resisti a registar as grandes mudanças operadas na criação de mais um andar no teatro. É mesmo lá em cima que eu me sentava, um teto magnificamente pintado.
O soberbo teto de La Monnaie, a grande contradição é a de que o público da plateia paga 170€ para ver esta maravilha à distância e os avarentos como eu pagam 12€ para contemplar o espetáculo de perto.
O átrio de La Monnaie, uma intervenção de génio, não se danificando a estrutura básica Novecentista obteve-se uma atmosfera de modernidade.

A que propósito se vai falar de Simenon? Andava a vasculhar pela Feira da Ladra e vi junto das raízes de uma árvore publicações abandonadas por um vendedor. Há anos que não lia o caso Nahour, uma história espantosa, um drama amoroso de um libanês, jogador profissional da roleta, com uma biblioteca de ciência matemática para apurar os seus cálculos, com o adjunto que passava horas a fio nas salas de jogo dos grandes casinos a anotar resultados. A história começa com um telefonema, altas horas da noite, para casa do inspetor Maigret, quem liga é o seu amigo Dr. Pardon, um médico com quem Simenon e a mulher jantam com a respetiva família, em diferentes romances há diálogos com o Dr. Pardon, estuda-se a alma do criminoso, as razões por que se mata, e muito mais. Ora o que Pardon noticia, em estado de grande aflição, é que apareceu uma cliente baleada, acompanhada por alguém que podia ser o marido ou amante, ele fez o tratamento, retirando a bala, subitamente o casal desapareceu. Maigret põe a funcionar a judiciária, pesquisam-se automóveis e voos da madrugada, a meio da manhã já estão identificados os lugares e vai iniciar-se o interrogatório de quem vive na casa da Nahour, é um drama arrebatador, onde não falta um final feliz, um casal que encontrou a felicidade. Pois andei com este Simenon pelos transportes públicos, suspirei quando acabei a leitura, tinha vontade para ler mais Simenon, deixei-o num banco do metropolitano, só espero ter trazido a felicidade a alguém.

Vou agora para Namur, a primavera está em festa, floresceram as cerejeiras do Japão, enchem as ruas e avenidas de cor. Quando, depois de amanhã, partir para Zaventem, com destino a Lisboa, é uma das últimas imagens felizes de um adeus que convoca um regresso em breve.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24611: Os nossos seres, saberes e lazeres (588): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (118): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (9) (Mário Beja Santos)

sábado, 2 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24611: Os nossos seres, saberes e lazeres (588): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (118): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Não se viaja impunemente até à Antuérpia, a expectativa era enorme, ir conhecer o resultado de 11 anos de obras no interior do Museu Real de Belas-Artes, não vinha aqui desde 1991, saio daqui profundamente agradado, uma inteligente requalificação, espaços amplos, a despeito da manutenção de lugares marcados pelo classicismo do início do século XIX, lindamente restaurados. Despeço-me percorrendo uma área onde coabitam tesouros artísticos do século XV ao nosso tempo. Faço votos para regressar daqui a alguns anos, acontece até que, por falta de transportes públicos, vou agora em marcha forçada percorrer uns quilómetros até à gare rodoviária. Guardei uma imagens que vos vou mostrar. Amanhã o dia será passado em Namur, uma amiga prometeu-me um programa diversificado entre a arte e a natureza, e regresso a Bruxelas feliz e contente, ainda por cima tenho agendada mais uma visita à Feira da Ladra, nesta altura nem posso imaginar que vou comprar, no meio de enorme quinquilharia, um prato na porcelana de Meissen.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (118):
Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (9)

Mário Beja Santos

Despeço-me a custo do Museu Real de Belas-Artes de Antuérpia, a idade não perdoa, há horas a fio que ando para aqui a flanar, ainda com ingenuidade de que a memória consegue absorver todas estas amostras do génio humano. Em jeito de despedida, fujo às secções temáticas, ao tardo-gótico, aos primitivos flamengos, à arte espanhola, deixo os séculos XVII e XVIII em paz e atiro-me com a última energia ao que ainda me é possível lavar a alma entre o impressionismo e a contemporaneidade. Bem gostaria de ir pontuando obra de arte por obra de arte, só servia para entediar o leitor, a ver se reservo a grande salva de artilharia para um incontestável santo do meu culto, René Magritte. Vamos ao desfile, acabo por descobrir que entrei numa sala de exposição com tesouros dos vários séculos, assim seja, já não volto atrás.

Autorretrato, por Rik Wouters.
É para mim um mistério como este desafortunado pintor (morreu com 34 anos e deixou um legado impressionante de centenas de obras) é praticamente desconhecido fora do seu país. É excelente em tudo o que lhe saiu das mãos, a escultura, a pintura, o desenho, um fauvista incondicional a cuja arte plástica tão personalizada me sinto rendido desde que ponho os pés na Bélgica. E quando permaneço em Watermael-Boitsfort há sempre uma visita obrigatória, contemplar uma escultura sua no centro da povoação.

Já aqui mostrei algumas imagens das transformações no interior do Museu de Antuérpia, o arquiteto criou espaços amplamente desafogados, conectados, uma atrativa forma de expor, permitindo que se faça uma circunavegação sem molestar quem queira estar a contemplar, confortavelmente sentado.
Tive a sorte de visitar em Bruges, no ano de 1994, a grande retrospetiva de Hans Memling, alusiva aos cinco séculos da sua morte. Até o quadro dele que pertence ao Museu Nacional de Arte Antiga lá foi parar. O génio deste flamengo mede-se pela intensidade dramática (veja-se a cena clássica da morte de Cristo, o desfalecimento da Virgem), os panejamentos, uma muito peculiar ocupação dos espaços, neste caso do tríptico uma disseminação das figuras em que a espiritualidade é também dada pelos anjos que assistem ao momento dramático da morte de Cristo e assegura uma visibilidade não só à arquitetura da época como aos usos da indumentária. Tudo somado, um pintor à parte, daqueles a quem é possível rapidamente identificar a obra pictórica e dizer instantaneamente: é Memling!
Deus Pai com Cantores e Músicos feitos Anjos, Hans Memling. Peças do altar-mor de uma igreja de um mosteiro em Espanha.
Pormenor do retábulo mencionado acima.
Escultura de Panamarenko, Chisto 1
Hans Memling, retrato de Bernardo Bembo, Homem de Estado e Embaixador de Veneza
Retrato de Pieter Gillis, por Quinten Massys
Madame Récamier, por René Magritte
Uma das muitíssimas versões de René Magritte sobre O Império das Luzes

Não escondo o meu assombro, curvo-me perante a ousadia museográfica, colocar uma escultura de Magritte num espaço de classicismo. A pintura de Magritte baseia-se em jogos conceptuais que nos desconcertam, é uma pintura com uma intensa carga metafórica. Tenho para mim que é o mais original dos génios do surrealismo nas artes plásticas. Já consagrado, e respondendo a encomendas de peso, como a pintura do Teatro Real das Galerias de Bruxelas, alvo de uma retrospetiva em Nova Iorque que culminou numa grande procura dos seus quadros, hoje espalhados por coleções públicas e particulares, nunca deixou o ateliê e as experiências, daí podermos distinguir as diferentes dimensões do seu génio, falando de objetos deslocados, metamorfoseados, em conflitualidade, até mesmo a sua obsessão por variações sobre o mesmo tema, caso do conjunto de pinturas que fez intituladas O Império das Luzes, o que nestas obras se vê é simplesmente uma casa ou um grupo de edifícios entre a folhagem, iluminados pela luz elétrica que irradia das janelas, assim como pela de um ou mais candeeiros. O insólito é que o céu que cobre a cena é de um azul absolutamente diurno, sulcado por nuvens brancas e algodoadas. A coerência da cena é tal que a incompatibilidade do céu com a noite em que se destaca a luz elétrica só se nota após um exame atento do espectador.
Pieter Bruegel, A Dança do Casamento
Obra do artista Christophe Coppens
O jovem imperador Carlos V, por Jan van Beers
Léon Frédéric, Duas Raparigas Camponesas da Valónia
Paisagem com rapariga a saltar à corda, Salvador Dali
Julguei que me ia despedir desta casa que acolhe um acervo de obras plásticas do maior valor andando a cirandar talvez entre o fauvismo e o abstracionismo em moldes atuais; enganei-me na sala, e ainda bem, acabei por rever grandes mestres do século XV, reencontrei Magritte e Dali, saio daqui de papo cheio, agora é só atravessar Antuérpia, ruminar nas coisas belas que vi e sonhar com o dia de amanhã, porventura em Namur, há lá uma amiga que me promete um passei de arromba.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 26 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24590: Os nossos seres, saberes e lazeres (587): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (117): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (8) (Mário Beja Santos)