Recordo que a mãe Aurora faleceu inesperadamente vai a fazer dois anos em 19 de Julho. E depois perguntou:
– O pai Rui também quer ir?
– Sim, eu também vou. Quero ver…
– Então, amanhã às 6 horas vamos, por que a missa é às 6.30h.
E pronto. Toca a levantar cedo para não falhar. A Adobe, a Felismina e eu, katuas (velhote) lá vamos andando, a pé, durante 15 minutos rumo à igreja do seminário, onde vai ser celebrada a missa. Reconheço que se eu não fora, o caminho teria sido feito em menos tempo, pois estas duas moçoilas são duas autênticas gazelas. Aquelas horas, já com tanta gente a circular, aqui é assim, o malai (branco) era o alvo das atenções. Algumas pessoas perguntavam à Adobe se eu era amu (padre). E
faziam cumprimentos de reverência. Já na capela repleta de participantes, sendo mais de metade seminaristas e a outra parte familiares das pessoas de quem foram nomeadas as intenções, rezavam-se as laudes em português, enquanto, suponho que um seminarista, recolhia as cestas com as flores e os envelopes com o nome e a esmola do defunto.
Então foi uma celebração “sui generis”: laudes em português, ritual da missa em inglês, homilia em tétum, e cânticos em tétum e em português. E pronto.
Mais uma vivência que me traz reminiscências dos tempos passados em seminário, e um embarramento com a vida desta gente, com os seus valores, com o seu modo de ser.
De regresso a casa, repetem-se as reverências, as saudações, talvez porque com diz a Adobe, muitos pensam que eu sou amu.
08.03.2025, sábado – Sobe a montanha, e verás…
Conforme a nossa promessa, aqui vamos nós buscar as irmãs R.J.M. que vivem em Casait, para lhes irmos mostrar a ESFA (Escola São Francisco de Assis) e o povo de Boebau/Manati.
Esta viagem é sempre uma aventura, devido às dificuldades do caminho e à imprevisibilidade da chuva. Por isso, quem se disponibiliza para tal tem de contar com imprevistos e alguns sustos, dos quais só fica livre quando chega a casa.
Mas como o condutor nos merece toda a confiança (eu direi que conhece todos os buracos do caminho), com certeza que havemos de chegar a bom porto. E passo a passo, quilómetro a quilómetro, lá se fez o caminho.
Como diria a professora Cristina Castilho a primeira vez que visitou Boebau, “tudo vale a pena quando a paisagem que avistamos nos enche a alma!”
Depois de dar-mos a conhecer a escola e a residência dos professores às irmãs visitantes, seguiu-se uma eucaristia celebrada pelo frei Luen, um capuchinho que todos os fins de semana percorre na sua mota aqueles montes e vales para garantir a estes povos (abandonados) alguma assistência religiosa. Houve logo uma grande empatia devido a ideal comum (franciscanos capuchinhos), assim como com todo o povo que participava.
Regressamos logo que possível com receio da chuva, sentindo que os objetivos da visita foram cumpridos. Agora, ficamos à espera da decisão favorável ao nosso pedido, na certeza de que “quem espera sempre alcança”.
09.03.2025, domingo – A caminho do “calvário”…
Se há estradas (caminhos) esburacadas, mal tratadas, enlameadas, apertadas, sobrelotadas e quantas outras coisas mais, o caminho para Ailok Laran, onde eu passo grande parte do tempo das minhas estadias em Timor Leste. Brada aos céus.
A partir do mercado de Perunas é uma desgraça, e é assim desde a minha primeira estadia em 2016. Como é possível que, mesmo às portas de Dili a capital, haja um cartaz de visitas como este?
Tanta circulação de pessoas, motores (motorizadas), carros, carretas, microletes, camionetas, vendedores num caos impressionante, onde é mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que sair ileso desta enorme confusão.
E nós que fazemos este caminho algumas vezes por dia, chegamos a casa desenculatrados, com o corpo feito num molho. Em dias de chuva, os veículos a motor mais parecem saltimbancos que, em dias de chuva se transformam em barcos navegando ao sabor das ondas. Sim, isto mais parece o “cabo das tormentas”.
Até quando estas ruas, estes becos, estas gentes terão de esperar por melhores condições de circulação? O que é mais incompreensível é que por aqui até circula gente importante, com responsabilidades no governo da nação. Até parece que estão contentes com a situação. Nem sei que diga. Eu…Não!
12.03.2025, quarta – Atividade musical na escola CAFE de Liquiçá
Já estava combinado com a professora Teresa Costa, que é a coordenadora do CAFE (Centro de Aprendizagem e Formação Escolar) de Liquiçá. Apesar de já estar aposentado há 16 anos, o bichinho da docência, de ensinar e de aprender com os alunos continua a mexer cá dentro.
E como tenho alguma aptidão para o ensino da música, então é fácil encontrar campo de trabalho seja aonde for. Não foi esta a primeira atividade musical no CAFE de Liquiçá. Já em anos anteriores me ofereci e concretizei atividades musicais nesta escola.
Claro que a professora Teresa, à semelhança dos coordenadores anteriores, aproveitou logo, e muito bem, a minha disponibilidade, partindo de imediato para o agendamento do dia, horas e grupo.
Mais a mais, há um grupo de alunos que tiveram durante dois anos aulas de Educação Musical, mas que já não tem porque nenhum professor(a) foi aqui colocado este ano pelo ministério de educação de Portugal. Por isso faz todo o sentido aproveitar os recursos já existentes para desenvolver um pouquinho mais as capacidades musicais destes alunos.
Durante mais ou menos duas horas, interpretamos, com a voz, guitarras, lautas e acordeão canções escolhidas pelos participantes e por mim que foram envolvendo alunos e alguns professores de uma forma lúdica e agradável. Não foi necessário utilizar o “pau de chuva “ para fazer os ritmos porque o som da chuva que caía, às vezes abundantemente, serviu de base rítmica perfeitamente.
Os participantes pediram mais, e querem que eu volte lá. Assim
farei, certamente.
13.03.2025, quinta – O Eustáquio é chamado “à atenção”
Quando esta tarde demos entrada no palácio do governo, O Eustáquio foi chamado pelo guarda (segurança) que nos viu em caminho para lhe dar uma repreensão.
– Tens de dar a mão ao senhor katuas (que sou eu) e ajudá-lo a
caminhar.
É que eu, devido a dores que me têm atormentado sobretudo o pé
esquerdo, vinha coxeando e andando com muita dificuldade.
É isto que às vezes me comove. Esta gente tem um respeito impressionante pelas pessoas de idade. E eu, deste cliché, já não me livro. Os quase 80 anos não enganam ninguém, e por isso vou usufruindo destas atitudes carinhosas. É bom ser velho/velhinho – Katuas – em Timor Leste.
13.03 – Palácio do Governo: encontro com o vice- primeiro ministro
Com a preciosa ajuda dos amigos Professora Cristina Castilho e do Senhor Rui Pacheco, foi marcada para hoje uma audiência com o vice primeiro ministro, sr. Dr. Mariano Assanami Sabino.
De manhã, em reunião informal no café Aroma, o sr. Rui Pacheco, eu (que também sou Rui), o Eustáquio e o senhor Nuno Almeida (TUTU) que é assessor do vice-primeiro ministro estivemos preparando este encontro que, na melhor das hipóteses seria de 15 a 20 minutos, acabou por ser uma amena conversa de quase duas horas, onde foram apresentados os projetos de solidariedade da Astil em Timor Leste, e em particular a Escola São Francisco de Assis “Paz e Bem” e os problemas que atualmente enfrentamos.
Das três hipóteses apresentadas pelo senhor vice primeiro ministro com possível apoio do Estado, ressalto a que mais nos convém nos convém: uma parceria com o Estado, em que a gestão da escola seja da responsabilidade da AstilMB (Manatti / Boebau) e os salários dos professores pagos por um dos organismos do Estado (ministério da educação ou ministério dos assuntos sociais).
A ver vamos, pois ainda há muito caminho a fazer. Mas temos a esperança de que o problema vai ser resolvido. Encontramos muito boa vontade nesta equipa deste ministério.
Para além do bom acolhimento que nos proporcionaram, demonstraram que eram bem conhecedores da situação, com sensibilidade e vontade de nos ajudarem. Reconhecem e agradecem a nossa solidariedade e tudo o que temos feito por Timor, particularmente os benefícios que temos proporcionado às crianças esquecidas das montanhas de Boebau e Manati.
Saímos deste encontro muito bem impressionados, e fazemos votos para que esta relação continue…
(...) 14.03,2025, sexta – “Ai, costa, custa!...”
O Eustáquio já me tinha chamado a atenção:
– Tiu, é preciso mudar o filtro e o óleo do carro (pick up). Pode?...
Pois, tem que poder. E vai daí lá se foi comprar o óleo e o filtro. Mas, devido ao estado dos pneus já desgastados, e que na última viagem que fizemos a Boebau deram alguns sustos, achamos que seria logo melhor substituir os sapatos (pneus). Depois de saber lá dos preços nas lojas da especialidade, fez-se a compra e a substituição.
Agora está em condições de subir e descer as montanhas, de nos servir com alegria. Mais uma conta a suportar mas, com maior segurança, é mais fácil fazer o caminho.
17.03.2025, segunda– Afinal, quem manda aqui?...
Estou a falar dos galináceos, que todos os dias convivem connosco, aqui em Ailoik Laran. Já tinha verificado que em todos os rituais destas criaturas, há sempre alguém que comanda, seja de manhã seja à tarde.
Como norma há sempre uma árvore que faz de poleiro, e a subida e a descida da mesma respeita sempre a ordem do rei da capoeira: primeiro os mais pequenos e os mais débeis, seguindo-se depois os voos ascendentes ou descendentes, alguns com mais de cinco metros, de toda a tribo. O capataz, é um galo bonito e altaneiro, muito parecido com o Xico (o galo que há dois anos o sr. Francisco me ofereceu) e que o Eustáquio diz que “parece” ser o filho do galo do Tiu Rui.
Pois, o outro que já foi para os anjinhos, que cantava tão bem (creio que
morreu de tanto cantar). Se assim é, ainda bem, “porque quem sai aos seus não degenera”. O Xico filho também canta que nem um desalmado. Tem uma posse interessante: antes de cantar bate as asas, põe-se firme, estica bem o pescoço, e aí vai o seu canto potente que se faz ouvir por toda a redondeza. Às vezes há outros galos que lhe respondem, mas eu penso que ele pensa ser sempre o maior solista que por aqui anda, até ao dia que, tal como o pai galo, morra a cantar ou que alguém se lembre de lhe “fazer a folha”.
18.03. 2025, terça – Há males que vêm por bem…
Desde há oito dias que me queixo do pé esquerdo. Tentei erradicar a dor, que quando ando me atormenta e me faz coxear, mas a automedicação que tenho tomado não tem conseguido debelar o problema. A quem por nós passa. Hoje tive que ir ao médico(a) da MDC (Medical Dili Center), que depois de verificar a situação, chegou à conclusão (não definitiva) que será o ácido úrico, receitando-me medicamentos para o combater. Com uma recomendação:
– Se isso não passar volte cá.
Esta é a parte mais chata. O malae katuas(velhote) a coxear devido às dores, a causar pena e dó(compaixão) a quem por nós passa. Por outro lado, é impressionante como toda a gente quer ajudar. Só falta levarem-me ao colo, quais samaritanos.
19.03. 2023, quarta – A Escola São francisco de Assis “Paz e Bem” em Boebau / Manati
Faz hoje 7 anos que a ESFA foi inaugurada, com pompa e circunstância. E desde então para cá , contamos sete anos de vida, de caminho, de luta e de trabalho para que a escola seja um centro de educação e de aprendizagem, ao serviço das pessoas desta região, mas sobretudo das centenas de crianças que por aqui vivem.
Quantas alegrias, penas, dores e cansaço nos têm acompanhado.
Quantas esperanças e desilusões, quantas vitórias e derrotas, quantos sóis, quantas luas, quantos quimeras…
Quantas entidades, quantas pessoas, quantos amigos e amigas já a visitaram, e alguns(umas) já ofereceram o seu trabalho voluntário.
Obrigado, sobretudo à ASTIL de Portugal que tudo tem feito para o funcionamento da ESFA, e a todos os que têm contribuído para a concretização deste projeto de solidariedade.
Vamos continuar a lutar para que os nossos desejos se concretizem, nomeadamente a colocação e o pagamento de salários aos professores que lecionam nesta escola. Sem isso, não há continuidade possível. E nós todos queremos que a escola não encerre, por respeito às crianças e aos habitantes destes povos.
Mais até, queremos que a Escola São Francisco de Assis “Paz e Bem” seja um centro ou um polo de desenvolvimento que desenvolve a escolaridade, a cultura e o saber destas gentes através de ateliês cursos que vão de encontro às suas necessidades. O povo do interior de Timor, como o de qualquer outra nação do mundo, é esquecido dos poderes centrais. E tem de haver alguém, pessoas ou instituições, que lhe dê a mão, que o valorize e que o dê a conhecer.
Por conveniência e porque hoje é quarta feira, a festa do 7º aniversário terá lugar no próximo sábado, dia 22, sábado.
20.03.2025, quinta – Guerra aos mosquitos!
Estas criaturas de Deus parece que só existem para nos chatear. E então, estes mosquitos timorenses quando lhes “cheira” a malae, toca a atacar. Uns são quase invisíveis, e pouco ou nada há a fazer, quando nos apercebemos já têm o trabalho feito. Pouco importa que nós, cheios de raiva, disparemos uma palmada no sítio onde eles estiverem (ou não porque já voaram).
Outros um pouco maiores como as melgas, avisam através de som irritante (ultrassom) que vão aterrar. De sobre aviso lá nos preparamos até que ele poise, para de seguida contra atacarmos. Quase sempre as nossas armas são as mãos, que disparamos com toda a força. Algumas vezes acertamos no bicho inimigo, que literalmente fica esborrachado, e exibimos aos outros o troféu.
Outras vezes acontece o insólito: não acertamos no alvo, ficando o bicho a rir-se da nossa aselhice. Por essas e por outras razões é que, já por três vezes, ia ficando sem os meus óculos.
A primeira vez foi uma criança de dois anos, filho da Assun e do Abe, que não sei o que viu na minha cara, me manda um chapada que as cangalhas voaram logo para o chão. Toma que já levas!... A segunda vez foi o Eustáquio, que me mandou ficar quieto, para de seguida me enfiar uma palmada na testa. Vitória! O Eustáquio matou o bicho melga, e fazendo prova do mesmo exibiu o esqueleto e o sangue de que ele se alimentou. A terceira vez, fui eu próprio que dei uma chapada em mim mesmo sem nada conseguir, pois os óculos e o mosquito voaram para onde quiseram.
Tenho que pedir ajuda a Don Quixote e a Sancho Pança para me ajudarem a vencer esta guerra…