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domingo, 23 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19322: Manuscrito(s) (Luís Graça) (148): Revisitando o Portugal profundo de 1960...Festa de Nª Sra. do Socorro, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses: 7 contos e 600 de foguetório, 2 bandas filarmónicas, 4 quilos de cavacas... para os anjinhos; 450 escudos para os padres; e mil escudos de vinho para os músicos...Quando as festas populares davam prejuízo e os mordomos tinham de abrir os cordões à bolsa, honrando a palavra dada...





Marco de Canaveses > Antiga freguesia de Paredes de Viadores  > Festa de Nossa Senhora do Socorro > Estrutura da despesa e receita > Documento s/d c. 1950/60]. Fonte: Arquivo da Quinta de Candoz

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2018)



1. Gosto de mexer nos papéis antigos: cartas, fotografias, faturas, diários, jornais... Estão lá pedaços dos nosso passado, das nossas vidas, individuais e coletivas 

Ontem, remexendo nos papéis do meu falecido sogro, José Carneiro (1911-1996), voltei a examinar, com mais atenção,  um documento manuscrito, sem data, com a discriminação das despesas e receitas da comissão das festas de Nossa Senhora do Socorro, que se realiza todos os anos, no último fim de semana do mês de julho. É uma romaria antiga, se bem que a capela tenha sido edificada nas últimas décadas do séc. XIX (c. 1875).

Estas terras são antiquíssimas. Já o concelho de Marco de Canaveses é uma criação do liberalismo, remonta a 1852, tendo resultado da anexação dos concelhos de Benviver, Canaveses, Soalhães, Portocarreiro e parte dos de Gouveia e Santa Cruz de Riba Tâmega.

O meu sogro, José Carneiro,  foi várias vezes mordomo destas festas, as fr N. Sra. do Socorro, consideradas uma das maiores e mais concorrids festas populares do concelho. O documento que encontrámos deve dizer respeito ao ano de 1960, segundo informação das mulheres da família que nestas coisas têm melhor memória do que os homens.

A minha cunhada Nitas  [Ana Carneiro] lembra-se, tinha ela 13 anos já feitos, de andar na festa a angariara dinheiro com as florinhas de papel, com um alfinete,  que eram espetadas na lapela do casaco dos cavalheiros, à entrada do recinto. As receitas que daí provieram ainda atingiram uma cifra razoável para a época: c. de 650$00... Mas, mesmo assim, insuficientes para pagar o imposto de selo: selar 35 programas, nas finanças, custava na altura  914$40  (!), uam exorbitância.
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O total de despesas desse  ano ultrapou os 24 contos, o quivalente, a preços de hoje,  a 10 726 euros.  Repare-se, que o foguetório já nessa altura representava quase um terço (31,1%)  do total das despesas.  Havia 4 fogueteiros,  que deitavam fogo à competição, havendo um prémio para o melhor...

Para a contratação de duas bandas de músicas, mais os Zés Pereiras, uns e outros pagos em dinheiro e em géneros, ia a maior fatia do bolo  (41,7%):

  • Banda de música dos Bombeiros Volunários: 4100;
  • Banda de música de Tio Mau: 2500;
  • Zés Pereiras: 450
  • Carne para os músicos: 1222;
  • Vinho para os músicos: 1000.
  • Mercearias, e pão:

Subotal: 10191,6.

As duas rúbricas somavam mais de 70% das despesas...  Ontem como hoje... Com uma diferença: as bandas filarmónicas tem de competir hoje com os "artistas de variedades" e "bandas de música ligeira" que têm cachês de dezenas de milhares de euros.

Deliciosa é a rúbrica das cavacas:  100 escudos de cavacas (4 quilos) para...os anjinhos (que animavam as procissões...). Ou as dos Zés Pereiras (450 escudos), sem esquecer a GNR que não andava a cavalo nem tinha meio de transporte próprio (400 escudos). Nas despesas com os padres (450 escudos),  inclui-se o pregador, que vinha de fora, e cuja obrigação era de arrebatar as almas e de pôr os corações a sangrar...

Apesar da pobreza generalizada (estamos em terras de rendeiros e de grande emigração...), também era vulgar as pessoas ofereceram à Nª Srª do Socorro objetos em ouro (brincos, cordões,  fios, pulseiras, etc.), como forma de pagamento de promessas. Essa prática terá aumentado com a emigração e com a guerra colonial, nos anos 60/70. Ainda me lembro de ver, nos anos 70, já no pós-25d e Abril, o andor da santa coberto de notas, escudos, francos, marcos...

 As receitas, nesse ano de 1960, foram inferiores às despesas... O prejuízo foi dividido pelos seis mordomos da comissão organizadora (cabendo 961$63, a cada um…).

 O meu sogro, além de proprietário agrícola, era construtor de ramadas, ofício que herdou do irmão mais velho. Temos registo da sua facturação de 3 ou 4 décadas.  A equipa de ramadeiros era flexível, variando entre 3 a 7, incluindo o próprio construtor e pelo menos um dos seus filhos (primeiro o mais velho, o António que irá para o Brasil e depois para Moçambque,  e a seguir  o Manuel Ferreira Carneiro, no final dos anos e, mais tarde, nos anos de 1963 a 1967, o José Ferreira Carneiro, o benjamim da família, que também foi mobilizado para Angola (1969/71)

Em geral, o construtor ganhava o dobro dos seus oficiais. Os honorários do construtor vão, nesta época (em que praticamente não havia inflação, até  meados dos anos 60) , entre os 30 e os 50 escudos, dependendo do cliente e da distância da obra em relação ao local do estabelecimento principal (que era Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses). As ferramentas eram dele. O material (esteios, em pedra, e mais tarde em cimento, bem como o fio de arame) eram fornecidos pelo cliente (, o proprietário). Fazia ramadas na região mas também em Trás-os-Montes, nas Quintas do Douro.

 Tudo isto para dizer que a soma que ele teve de desembolsar, como mordomo da festa,em 1960, equivalia a um mês de trabalho nas ramadas... Mas a palavra dada para ele era "sagrada",,, Ser mordomo era, de resto,  um privilégio e uma honra.

Enfim, outros tempos, outras gentes, outros princípios, outros valores!... E outras formas de sociabilidade e de de lazer.



Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > 7 de Dezembro de 2007 > A Linha de Caminho de Ferro do Douro, entre o Juncal  e Mosteiró,   vista da Quinta de Candoz.


Foto (e legenda): © Luís Graça  (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Marco de Canaveses, Paredes de Viadores, Adro da Igreja de Nª Sra. do Socorro > 7 de setembro de 2013 > Festa da Família Ferreira  > Fotografia de grupo... Pelas nossas contas, e pelas fotos, teremos tido nesse ano mais de uma centena de presenças. A a nossa grã-tabanqueira Alice Carneiro é filha de Maria Ferreira e José Carneiro.

Foto (e legenda): © Luís Graça  (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17939: Manuscrito(s) (Luís Graça) (127): O Dia de Fiéis Defuntos na Tabanca de Candoz: aqui a tradição ainda é o que era...


Marco de Canaveses > União das Freguesias de Paredes de Viadores e Manhuncelos > Candoz > Quinta de Candoz > 1 de novembro de 2017 > "Antiga casa de caseiro", fechada há mais de 30 anos... Como outras tantas casas cujos "inquilos" morreram...E as enormes teias de aranha ganham o estatuto de marcas do tempo... É sempre estranho e intimidante entrar numa casa fechada...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Manuscrito(s) (Luís Graça) > A comunhão dos vivos e dos mortos > Paredes de Viadores, 1 de novembro de 2017: aqui a tradição ainda é o que era


Dia de Todos os Santos. Na minha terra, na Estremadura, era o dia do "pão por Deus"… Lembro-me, de puto, de andar também de sacola às costas, em bando, de casa em casa, a "pedir o pão por Deus"...Ia-se sobretudo àquelas casas, dos ricos e remediados, que sempre tinham um pão doce, uma broa, uma guloseima ou um tostão para dar às crianças...que, de certo modo, representavam as almas dos fiéis defuntos, em errância pelo mundo.


Aqui, em Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, não há essa tradição, mas é o Dia de Finados (que o calendário litúrgico celebra só amanhã). Estou no recinto da capela de Nossa Senhora do Socorro, no alto da antiga freguesia de Paredes de Viadores, velha ermida cuja origem se perde nos tempos. Terá sido reconstruída por volta de 1877. O cemitério, ao lado, esse, data de 1894.


Como os cristãos se recusavam a ser enterrados fora do "solo sagrado" (ou seja, no interior das igrejas ou do seu adro), por razões de saúde pública, foram criados os primeiros cemitérios públicos em Lisboa, nos primórdios do liberalismo (1835). Mas a medida é ferozmente combatida por grande parte do clero e demais apoiantes da "sociedade senhorial", ou seja, do absolutismo...


A revolta minhota da Maria da Fonte, em 1846, tem a ver também com a proibição, do governo de Costa Cabral, de enterrar os mortos nos recintos religiosos e com o protagonismo dos médicos que passam a certificar o óbito... A sublevação popular que se estende a grande parte do país, leva a soluções de compromisso: a maior parte dos cemitérios públicos, sobretudo no Norte, surgem muito tardiamente, já nos finais do séc. XIX, e são construídos com muros, restos de muralhas e ruínas, e como extensão do "recinto sagrado" (a igreja ou capela e o seu adro) ...É o caso deste cemitério paroquial, rural...


Em 1890, Paredes de Viadores tinha pouco mais de um milhar de habitantes, hoje não chega aos 1300 (censo de 2011).Século e meio de depois, a vida e a morte, o profano e o sagrado juntam-se, mais uma vez, no sítio da antiga ermida de Nª. Sra. do Socorro.





Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Capela de Nossa Senhora do Socorro (restaurada em 1877) e Cemitério da freguesia (1894) > 1 de Novembro de 2008 > O recinto de festas da N. Sra. do Socorro, na freguesia de Paredes de Viadores, enche-se de viaturas e pessoas que, aproveitando o feriado de Todos os Santos, vêm celebrar o Dia dos Fiéis Defuntos, ou Dia de Finados, ou simplesmente Dia dos Mortos, que no calendário religioso é a 2 de Novembro. Hoje há missa às 2 horas da tarde. Depois o padre segue para o cemitério para uma breve cerimónia religiosa, aspergindo com água benta as sepulturas. É um acto de comunhão entre vivos e mortos. Antigamente, creio que antes do Vaticano II, havia três missas, seguidas... Mas mesmo hoje a capela, que data de 1877, torna-se pequena para a multidão que aqui se junta. A fé já não é (nem pode ser) a mesma, mas o ritual mantém-se. Como há séculos. (Comparando com a  foto que tirei em 1 de novembro de 2017, mas que não tenho aqui disponível, a única diferença que se pode notar é no parque automóvel, que melhorou, e nas árvores, agora maiores e mais frondosas, à volta do recinto...). (*).

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Há largas dezenas de viaturas, talvez mais do que uma centena, espalhadas em redor do recinto (capela, cemitério, parque das merendas). São duas da tarde. As pessoas da freguesia (que agora faz parte da união das freguesias de Paredes de Viadores e de Manhuncelos) comem à pressa (ou mais cedo) para chegar a tempo e horas da missa e bênção das campas.

A capela está a rebentar pelas costuras e cá fora há outro tanto "povo" (como aqui se diz). Ninguém quer perder este momento único do ano que é a celebração do Dia de Finados no feriado de Todos os Santos. Há muito que o povo aqui substituiu os santos pelos seus queridos mortos. É, em resumo, o dia em que os vivos falam, em voz alta, com os mortos. Ou melhor: comungam...

É muito povo junto para uma pacata freguesia do Marco de Canaveses, de povoamento disperso, que vai de Mondim a Candoz, e que é servida, no Juncal, pelo comboio da belíssima Linha do Douro. "Cheiram" a fumo e a anho assado no forno com arroz, que é a especialidade gastronómica da região (Marco de Canaveses e Baião). Hoje é dia de comer arroz de forno. Como na Páscoa e na festa de Nª Sra. do Socorro, festa rija com muito fogo de artifício, que se realiza nos finais de julho (*). Mas já não vêm a pé, agora é um "povo motorizado". 


Além disso, a capela fica num alto, com um estradão de acesso, empedrado, muito íngreme. As mulheres, antes de sair dos carros, besuntam-se à pressa com o perfume dos frasquinhos que vão rebuscar nas malas. Porque depois da missa e da procissão até ao cemitério, vão-se beijar todos uns aos outros, os primos, os parentes, os vizinhos, os amigos, alguns os quais vieram de longe, de Ermesinde, da Maia, de Matosinhos, do Porto, de Gaia e até de Lisboa, como eu e a Alice...

Sento-me no muro, enegrecido, do recinto da capela. É já centenário como a capela cujas obras de refundação remontam a  1877, perdendo-se a sua origem no tempo. À volta há sete ou oito oliveiras, bem cuidadas, carregadas de azeitonas, umas já pretas, outras ainda verdes. Lá dentro há um coro de vozes femininas, estridentes. Ouço o “Aleluia”, mas já não sei dizer em que parte vai a missa...


É uma religiosidade ancestral, com profundas raízes socioantropológicas que remontam porventura à época pré-romana e pré-cristã. Quem é vivo e pode deslocar-se, não perde as cerimónias, os gestos, as palavras e as emoções deste Dia de Finados. Pena é que o sol aqui se ponha cedo, por detrás da serra (ou planalto) de Montedeiras. É um catolicismo de raiz pagã, está no ADN desta gente, homem, mulher, criança, velho… “Sou mouro, não há dúvida!”, penso eu com os meus botões.

As campas foram, de véspera, energicamente lavadas e polidas. Com aquele esmero e compulsão que as mulheres do Norte põem nas tarefas de limpeza da casa. Estão cobertas de vistosos ramos de flores e raras são as sepulturas que não têm visitas. Cada família deixa dois, três ou mais círios de 7 dias, acesos. Brancos ou vermelhos, porventura “made in China”. São como as pilhas Duracell que a publicidade diz que duram e duram... À noite, o cemitério é um campo feérico, cheio de mistério, de magia e de interditos. Os vivos e os mortos só se cruzam de dia, e em especial neste dia, o Dia dos Fiéis Defuntos...

Do meu posto de observação, entre uma oliveira e um nicho onde as mulheres vão “queimar” velas de cera, vejo em frente o belo parque de merendas com árvores que mostram a folhagem, de vivas cores outonais. A igreja e a nobreza enquadraram durante séculos esta gente, procurando dar-lhes um sentido para uma vida de "bestas de carga": camponeses, rendeiros, cabaneiros, criados... 


Acendo duas velas por todos os mortos, em todas as guerras do passado deste país que começou aqui, nos vales do Sousa e do Tâmega, e de quem porventura ninguém se vai lembrar neste dia. Na última guerra, a do Ultramar, este concelho perdeu 45 dos seus filhos, mas não encontro, na lista, nenhum combatente aqui de Paredes de Viadores. (Há no concelho, pelo menos, três memoriais ou monumentos aos combatentes da guerra do ultramar, na sede do concelho, em Paços de Gaiolo e em Vila Boa de Quires.)

A fila dos que assistem à missa chega até à grade do portão exterior do recinto da capela. Há carros que continuam a chegar, atrasados ou com gente mais idosa que precisa de apoio de braço para se deslocar até aqui. É já difícil estacionar. Com os lucros da festa de Nª Sra do Socorro, os mordomos vão comprando terras à volta, fazendo muros altos e alindando o sítio.

Reza-se o Padre Nosso com devoção, uns, maquinalmente, outros, mesmo as duas jovens manas, de nariz arrebitado e ar suburbano, que estão aqui ao meu lado, sentadas num banco de pedra. Quem é que não sabe ainda recitar o "Padre Nosso que Estais no Céu", que todos nós, "cristãos, judeus e mouros", aprendemos na escola e na catequese ?

O sino bate, com um som grave, à meia hora das duas da tarde. É espantoso como o sino das nossas igrejas e capelas ainda mexe connosco e as nossas memórias de infância. Estou aqui, a um canto, escrevinhando o meu bloco de notas. E pergunto-me: “Será que eu também sou daqui ?”… 


Venho aqui há 40 anos e ainda há  coisas da idiossincrasia deste povo que me escapam... A Tabanca de Candoz, além da Alice Carneiro, madrinha de guerra de muitos combatentes,  está bem representada, entre amigos e camradas: dos antigos combatentes encontro o Manuel Carneiro (CCP 121 / BCP 12,  BA 12, Bissalanca,1972/74)(**), o José Ferreira, o Zé do Alto,  (que também esteve na Guiné, no início da década de 1970,  antigo presidente da junta de freguesia local, primo da Alice,  empresário); os meus cunhados José Ferreira Carneiro, que esteve em Angola, em Camabatela, 1969/71, e o António Ferreira Carneiro, que foi ferido em Moçambique, Tete, 1964/66)... (O Manuel Carneiro, reformado da CP, residente no Juncal, não tem qualquer ligação de parentesco com a família Carneiro, de Candoz). Falta aqui o Júlio Vieira Marques, exímio tocador de violino, e que a malta da Tabanca de Matosinhos já conhece: também esteve na Guiné em meados dos anos 60 e também faz parte da Tabanca de Candoz.

As pessoas estão há mais de meia hora de pé. Quem está cá fora, a acompanhar a missa, também observa quem chega e como se comporta. Quem chega, abraça, beija ou cumprimenta com aperto de mão quem está ao lado. Todos se conhecem, contrariamente ao pessoal da grande cidade donde eu venho. Todos aqui são primos, parentes, vizinhos ou amigos uns dos outros. Ou foram namorados/as, colegas de escola, companheiros/as da catequese e da comunhão…

Sai, por fim,  a procissão com a cruz à frente e o padre com a caldeirinha de água benta, a caminho do cemitério que fica ao lado, são escassas dezenas de metros de percurso. O sol mal rompe a cortina de nuvens que o estrangula. Dizem que hoje vai chover. O dia está triste, adequado à cerimónia. Continua a rezar-se maquinalmente, eles e elas. Quem está sentado, levanta-se, e toma então lugar na procissão a caminho do cemitério.

Feita a bênção das campas, cada família recolhe-se por uns largos minutos junto da campa dos seus, ajeita os ramos flores, beija os retratos esmaltados dos seus queridos mortos, dá os últimos retoques, faz as suas orações, conta histórias, recorda memórias, mata saudades… Da casa de Candoz, repousam aqui os restos mortais dos nossos dois "mais velhos": Maria Ferreira (1912-1995) e José Carneiro (1911-1996).


Há lágrimas furtivas nalguns rostos...E depois acontece, a seguir, uma descompressão geral. O ambiente torna-se ruidoso e quase festivo e até galhofeiro. A alegria de viver e o forte sentido gregário deste povo não são incompatíveis com o milenar cultos dos mortos. O resto da tarde é passado a beijarem-se e a abraçarem-se, mostrando uns aos outros que estão vivos e bem de vida e de saúde… As mulheres foram ao cabeleireiro, vestiram roupa domingueira, enfim, estão "todas produzidas”, como aqui se diz, com graça.

Chega-se por fim a casa, já noite, com a consciência do dever cumprido, o de velar pelos mortos sem deixar de cuidar dos vivos, duas das 14 obras de misericórdia que fazem parte do legado da nossa ancestral cultura não apenas judaico-cristã como helénica
… “Dei um abraço àquela malta da minha infância, do tempo de escola, que já não via há cinquenta ou sessenta anos… E foi como se fora o último!”, diz alguém de volta ao carro...

Confesso que nunca tinha visto, como aqui, no cemitério da freguesia de Paredes de Viadores, do antigo concelho de Bem Viver, um lugar tão especial, singelo e até ternurento, de socialização. O único dia do ano em que os vivos falam, tu-cá-tu-lá, com os seus queridos mortos. E se juntam, em pé de igualdade, no mesmo espaço,  a antiga nobreza (os "fidalgos" e seus descendentes), o novo clero e o (e)terno povo… 

A um "mouro", como eu, que vem do sul, observador participante, apraz-me registar, com respeito,  no meu bloco,  uma última observação: Aqui a tradição ainda é o que era...(***)


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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

30 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14947: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (12): Há festa na aldeia!...O Grupo de Bombos do Grilo, Baião, na Tabanca de Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses

21 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10702: Tabanca de Candoz: Há a bazuca e a... mazurca; ou aqui não há festa sem música, sem dança no terreiro, sem contradança, valsa, fado, baile mandado..., ou seja, sem as velhas, novas, tunas rurais de Entre Douro e Minho...

2 de novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3394: Blogoterapia (68): Amnésia, vergonha, denegação ou ocultação dos próprios nossos mortos (Luís Graça)

(**) Vd. poste de 7 de outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2163: História de vida (7): Manuel Carneiro, 55 anos, director de rancho folclórico, ex-pára-quedista da CCP 121 / BCP 12 (Luís Graça)

(***) Último poste da série > 30 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17916: Manuscrito(s) (Luís Graça) (126): O fogo que nos redime