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sexta-feira, 19 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25760: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (5): No RI 1, fazendo tempo... "Tinha que ir para a guerra, que remédio!"...


1. Retomar (ou dar a conhecer) alguns dos seus escritos é também uma forma homenagear o  A. Marques Lopes (1944-2024), que em vida foi cor inf DFA, na situação de reforma, alf mil at inf, da CART 1690 (Geba, 1967/1968) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968), membro da direção da delegação do Norte da Associação 25 de Abril (A25A) e, em termos históricos, o nosso quarto grão-tabanqueiro mais antigo, depois do fundador, Luís Graça, do Sousa de Castro e do Humberto Reis, tendo  entrado para a nossa tertúlia em 14/5/2005)...

 
Falando dos seus escritos, temos para já a sua página no Facebook e  o seu livro de memórias "Cabra Cega" (Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp., editado também no Brasil). Estamos a selecionar algumas das melhoras páginas que ele nos deixou.  No nosso blogue, tem tem cerca de 280 referências.

"Cabra-Cega: do seminário para a guerra colonial" (Lisboa, Chiado Editora, 2015) é uma autobiografia,  elaborada com recurso ao artifício literário do "alter ego": o livro foi  escrito sob o pseudónimo João Gaspar Carrasqueira, que por sua vez conta a história do seu amigo e confidente António Aiveca...

 Publicou, nos útimos dois anos,  na  sua página do Facebook, diversos excertos do "Cabra Cega", assumindo cada vez mais,  de maneira explícita e consciente, que o personagem "António Aiveca" era ele próprio, António Marques Lopes.... bem como o psudónimo literário, 
João Gaspar Carrasqueira. De  ascendência alentejana, o A. Marques Lopes   nasceu em Lisboa, na Mouraria, em 1944. Vivia em Matosinhos, onde morreu muito recentemente.

Este excerto do seu livro de memórias, é retirado das pp. 165/169 e 187/178, seguindo a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook (aqui a narrativa era já feita na 1ª pessoa do singular). A cena inicial, a conversa entre os aspirantes Aiveca e Gonçalves (pp. 165/169) passa-se no bar de oficiais do RI 1 (Amadora).


No RI 1, Amadora, fazendo tempo... "Tinha que ir para a guerra, que remédio!"...

por A. Marques Lopes 


Quando acabámos de almoçar fomos para o bar de oficiais. Pedimos cafés.

 Não queres um whisky?  
– perguntou-lhe o Gonçalves. (...)

 Chega-me um café.

Os outros dois enfiaram-se numa mesa a jogar poker de dados. Ele e o Gonçalves foram para umas cadeiras que estavam ao canto da sala.

 Então conta lá como é que te livraste daquela treta dos padres?

 
– Ora, fiz como tu. Um dia disse-lhes que me queria vir embora e vim. Mas, antes, andei mais de dois anos a magicar. Na altura em que estava na Filosofia já as minhas dúvidas tinham começado e avolumaram-se de tal modo que o director me mandou para o colégio do Porto, para pensar disse-me ele, vê lá. Tinha-lhe dito que não tolerava aquele ambiente, que havia lá uma cambada de hipócritas que batiam punhetas debaixo dos lençóis à noite, e que no dia seguinte pareciam anjinhos a rezar na igreja. Até lhe disse que também o fazia, não tive medo, mas ele, em vez de me dizer logo para me ir embora,  ainda fez que me massacrasse durante um ano e meio no Porto.

–  É, pá, mas então tinhas-lhe dito logo que querias sair. Eu não demorei tanto tempo. Foi cerca de um mês, só. Fui ter com ele, disse-lhe que não queria continuar e saí calmamente nesse mesmo dia. Fiquei livre, tirei o sétimo ano e fui depois para a Universidade.

 E não arranjaste um emprego?

 
– Não precisei. Os meus pais apoiaram-me. Até alugaram uma casa para mim em Lisboa. Onde ainda estou, aliás  disse como se fosse a coisa mais natural do mundo e levantou o indicador direito  – ah, eu escrevi-te a dizer onde era, lembras-te?

–  Lembro-me, sim. É na Rua Almirante Barroso, ali para os lados do Chile.

O Gonçalves levou o copo do whisky à boca e eu aproveitou para continuar. Queria dizer-lhe antes que ele falasse novamente. Sentiu o à-vontade dele como uma injustiça.

 Pois é, para ti foi fácil, estou a ver, mas para mim não. Tive de ir viver apertadamente numa casa pequena onde já moravam os meus pais e os meus irmãos. Além disso tive de ir trabalhar para os ajudar, porque eles não têm as possibilidades que os teus, pelos vistos, têm. Foram as perspectivas que eu tinha destas dificuldades que também tiveram influência nas minhas hesitações antes de tomar a decisão de me vir embora. E como é que tu saíste assim tão de repente e nem sequer tiveste de esperar que viesse a dispensa dos votos para assinar? Se calhar os teus pais foram-te buscar ou então tinhas dinheiro, sei lá. Mas eu não, tive de esperar até ao fim e que me pagassem o comboio para Lisboa.

Ele tinha pousado o copo e olhava-o seriamente. Interrompeu-o.

– Espera aí, Aivec, tem calma, deixa-me dizer também. É claro que eu tinha dinheiro, sempre tive dinheiro guardado, estava-me borrifando para aquela treta do voto de pobreza. E a dispensa dos votos era problema deles, que o resolvessem, por mim deixei-me da castidade e da obediência. E quanto ao resto 
 apontou-lhe novamente o indicador  –  não penses que eu não tenho consciência das desigualdades que há, não estou de acordo com isso. E, olha, para te provar, estive metido num movimento contra esta situação toda, e é por isso que estou aqui agora. Fiz o primeiro ano na universidade mas, quando tinha começado o segundo, fui preso durante uma acção de contestação. Mandaram-me logo para a tropa.

 
– Estás a ver? – Aiveca apontou-lhe também o dedo, propositadamente, e sorriu, já estava calmo.   – Mais uma diferença. Tu ainda fizeste o primeiro ano, e vieste para a tropa por protestar. Se não te tivesses metido nisso tinhas acabado o curso, certamente, e só virias depois. Comigo não foi assim. Entrei na universidade em Outubro do ano passado mas em Janeiro deste ano já estava em Mafra. Ainda fui a uma repartição qualquer que há na Rua do Passadiço para pedir o adiamento, mas um gajo de lá perguntou-me em que Universidade eu andava. Quando lhe disse que estava em Letras,  o palerma riu-se. Que não davam adiamento porque não queriam atiradores de caneta, só os de canhota na mão.

 É, sei bem. Interessa-lhes é médicos, para tratar dos feridos, cortar braços e pernas, passar certidões de óbito, ou engenheiros, para construir quartéis, abrigos subterrâneos e aldeias para os pretos. Eu andava em Direito, não sei se lhes interessavam os gajos dali, nem sei se me deixariam acabar o curso, é que, sabes?, só não vão para a guerra os filhos e familiares dos governantes ou dos seus amigos.

Baixou a voz e inclinou-se um pouco para mim.

– E tu, estás disposto a ir para a guerra?

Admirou-se com a pergunta, encolhou os ombros e respondeu-lhe.

 É,  pá, o que é que hei-de fazer? É a vida, não há remédio.

–  Não há remédio,  o caraças. Tens de pensar 
–  e abaixou ainda mais a voz    que nós, sobretudo, é que decidimos da nossa vida.

– 'Tá bem, mas há coisas que são inevitáveis, e esta é uma delas.

 Não é nada, pá, não é nada. Tu podes mudar. Até já mudaste uma vez, não é?

Calou-se quando reparou que os oficiais estavam a abandonar o bar. Levantou-se, o Aiveca  também. Desceram até à parada.

 
– Bem, temos de ir embora ao trabalho. Depois vou para Lisboa, só durmo aqui quando estou de serviço. Não queres vir comigo? 

 
– Não. Estou a pensar ir a casa só aos domingos, para ver os velhotes.

–  Mas vem lá hoje, pá. O Serafim, aquele gajo que estava à minha frente na mesa durante o almoço, vai também. Anda lá, tenho uma ideia para ver contigo, agora não dá, e acho que te vais interessar.

–  Não, não vou. Prefiro dormir aqui do que na casa apertada dos meus pais. Depois falamos nisso.

O Gonçalves pareceu um pouco desiludido. Parou, pôs a mão esquerda no  ombro do Aiveca e estendeu-lhee a direita. Ele ficou  espantado com o gesto mas estendeu-lhe também a mão, instintivamente.

 – 
É pena, Aiveca. Adeus, se não nos virmos. Hás-de ter notícias minhas –  e afastou-se apressadamente.

Aiveca ficou  especado a vê-lo afastar-se. Estava completamente baralhado com o gesto e as palavras dele. Acabou por ir andando em direcção à CCS com um torvelinho de interrogações na cabeça. Aquela do aperto de mão não era normal num local onde todos se viam durante o dia inteiro, tanto mais que a saudação da praxe era bater a pala, mas isso não era entre eles, claro, porque eram da mesma patente. E o se não nos virmos, o adeus, será que já tinha sido mobilizado e ia formar companhia? Era capaz de ser isso, sim, mas podia ter-lhe dito quando estiveram a falar no bar…


Capa do livro 
"Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial",
de João Gaspar Carrasqueira 
(pseudónimo do nosso camarada
 A. Marques Lopes)
(Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp.
ISBN: 978-989-51-3510-3,

Colecção: Bíos, Género: Biografia).


(...) Na segunda-feira levantou-se cedo, era o hábito que ganhara, e já estava pronto quando foi o toque de alvorada. Vagueou calmamente pela parada, observando tudo o que estava à volta dela, lendo os letreiros que estavam nos vários edifícios indicando a que se destinava cada um. Era uma forma de se inteirar de tudo aquilo, aproveitava aquele tempo para isso, pensando ao mesmo tempo o que é que o capitão lhe destinaria para aquele dia. Vi um soldado que se aproximava.

– O meu aspirante é o aspirante Aiveca ?

–  Sou. O que é que há?

–  O nosso capitão Ferreira quer que vá ter com ele ao gabinete.

Porra que o homem madrugara. Mas ainda bem, ia saber o que fazer. Viu logo que estava com má cara.

– Aiveca, você sabe onde está o aspirante Gonçalves?

 – Não sei, meu capitão, ainda não o vi hoje.

 – Que merda!  – estava mesmo lixado.  – Ele hoje está de serviço à companhia e já devia cá estar!

Olhou depois para ele de modo perscrutador:

– Eu vi que vocês os dois estiveram muito tempo a falar lá ao canto no bar de oficiais. Ele disse-lhe que tinha algum problema?

 Não, meu capitão, não me falou de problema nenhum. Disse-me que depois do serviço ia para casa, como habitualmente…

 É,  pá, tanto tempo e foi só disso que falaram?

Tocou-lhe uma campainha na cabeça e ficou alerta.

 Não foi só isso, meu capitão, claro. Fomos colegas na escola e estivemos a lembrar esses tempos.

Nem esteve para lhe dizer que a escola era o seminário. Não pareceu convencido, mas não insistiu.

– Bem, você vai ficar a substituir o aspirante Gonçalves. Daqui a pouco vai tocar para a formatura e eu vou estar lá para me apresentar a companhia.

Foi assim que entrou no vários serviços à CCS do RI 1. Formaturas, ver se os ranchos estavam bem, prevenções, etc.

O Gonçalves nunca mais apareceu e falou-se durante algum tempo no bar de oficiais, e a meia voz, que ele e o Serafim tinham desertado. Mais uma vez tomou uma atitude e decisão rápidas, pensou Aiveca. Deve ter ido para França, era para onde iam muitos, já sabia. Mas teve condições para isso, como quando saiu do seminário, os paizinhos ajudaram-no e vão continuar a ajudá-lo certamente. Mais uma diferença. Se ele, António Aiveca, quisesse fazer isso como é que podia? Só se fosse para os bidonvilles nos arredores de Paris viver miseravelmente como os milhares de imigrantes que lá estão. Continua a haver coisas que só alguns podem fazer. Tinha de ir para a guerra, que remédio. (...)

António Marques Lopes

Página do Facebook do A. Marques Lopes | 19 de janeiro de 2022, 22:00 e livro "Cabra Cega" (2015, pp.  
165/169 e 176/178)


(Seleção, revisão / fixação de texto, título, negritos, itálicos, parênteses retos: LG)

_________

Nota do editor:

(*) Vd. poste anterior da série > 
16 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25749: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (4): Depois de Mafra, o RI1, Amadora, como aspirante miliciano, à espera da mobilização para o ultramar

terça-feira, 16 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25749: O melhor de... A. Marques Lopes 1944-2024) (4): Depois de Mafra, o RI1, Amadora, como aspirante miliciano, à espera da mobilização para o ultramar



Lisboa > s/d (c. 1964/65) > O A. Marques Lopes, ainda jovem estudante,  algures numa esplanada.


Lisboa > s/d  (c. 1964/65) > O A. Marques Lopes, jovem estudante, à civil, antes da tropa. Fotos do álbum da página do Facebook. (Com a devida vénia...)

Fotos: © A. Marques Lopes (2023). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

O A. Marques Lopes,
cadete, COM, EPI Mafra, jan/jul 1966 

1.  O nosso querido amigo e camarada A. Marques Lopes despediu-se da Terra da Alegria no passado dia 5 do corrente, aos 80 anos, perfeitamente consciente de que iria fazer a sua derradeira viagem, aquela que, para nós, mortais, não tem regressso. Reler os seus escritos é, para nós, uma forma de fazer o luto pela sua perda e mitigar a saudade... 

É também uma forma de o homenagear: o que ele deixou escrito na Net bem como o  seu livro "Cabra Cega" (Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp.) continuam a falar por ele. Estamos a selecionar algumas das melhoras páginas que ele nos deixou.   

 O A. Marques Lopes era  coronel art, DFA, na situção de reforma, foi alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967/1968) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968), era membro, em 2005, da direção da delegação do norte da Associação 25 de Abril (A25A) e, em termos históricos, o nosso quarto grã-tabanqueiro mais antigo, depois do fundador, Luís Graça, do Sousa de Castro e do Humberto Reis; entrou para a nossa tertúlia em 14/5/2005...

É autor de "Cabra-Cega: do seminário para a guerra colonial" (Lisboa, Chiado Editora, 2015), autobiografia escrita, com recurso ao artifício lietrário do "alter ego": o livro é escrito sob o pseudónimo João Gaspar Carrasqueira, que por sua vez conta a história do seu amigo e confidente António Aiveca...

Sofrendo de uma doença crónica de evolução prolongada, o A. Marques Lopes, apesar de sre um homem lutador e otmista, sabia que a vida se lhe ia escapando... Na sua página do Facebook, foi assumindo cada vez mais de  maneira explícita e consciente, que o "António Aiveca" era ele, António Marques Lopes.... Aiveca era uma alcunha, do seu pai, alentejano, que veio para a cidade grande para fugir da miséria dos anos 40, em plena segunda guerra mundial. O A. Marqes Lopes nasceu em Lisboa, na Mouraria, em 1944.

Este excerto do seu livro de memórias,  é composto por duas postagens na sua página do Facebook (de 7 de abril de 2022 e de 23 de setembro de 2022),  escritas já na primeira pessoa do singular. lCorrespondem às  páginas 160/165 do seu livro, que reproduzimos, na íntegra,  com a devida vénia...  

Até sempre António Aiveca, até sempre amigo e camarada A. Marques Lopes, "requiescat in pace"


Depois de Mafra, o RI1, como aspirante miliciano, à espera da mobilização paar o ultramar


No RI 1 teve uma surpresa. Encontrou lá o Gonçalves, o amigo do seminário, assim que entrou na porta de armas. Vinha a passar e logo que o viu correu para o Aiveca.

– É pá! Como é que vieste aqui parar?

– Como tu, Gonçalves, com certeza. Mandaram-me para cá.

– Não é isso, pá. Também saíste dos padres pelos vistos.

– Claro, há mais de dois anos.

– Há já dois anos?! - admirou-se. - Não sabia. É que eu escrevi-te, até te dei a minha morada em Lisboa, mas tu nunca disseste nada.

 Não deu. Quando recebi a tua carta andava grandemente atormentado e não tive cabeça. Depois de sair a minha vida tomou certos rumos, tive de tirar o 7º ano, estive na Universidade, baralhei-me também com algumas coisas. Não me dava para mais nada.

– Ok. A gente há-de falar depois do almoço, se eu puder. Agora tenho aí umas coisas para fazer. Depois conversamos.

Afastou-se apressado. Aiveca foi fazer a apresentação da praxe ao comandante do RI 1.

 – Já sei quem você é. O coronel da EPI falou-me de si.

O coronel carregou num botão que tinha na secretária e entrou logo a seguir uma ordenança.

– Vai dizer ao capitão Ferreira para chegar aqui
 ordenou-lhe.

Bonito, a minha fama já chegou aqui, pensou Aiveca. O coronel continuava.

 Você vai ficar na CCS da unidade, o capitão Ferreira é o comandante. Ele, depois, vai dar-lhe a indicação das suas tarefas.

O capitão compareceu nessa altura.

–  Ó Ferreira, está aqui o aspirante Aiveca, tem a especialidade de atirador mas vai ficar na CCS. Integre-o lá e diga-lhe o que é que ele vai fazer  – parou um pouco  – e , olhe, depois diga a alguém para o levar às instalações dos oficiais. É isto, podem ir.

O Ferreira era um tipo gorducho e andava com ar pesadão. Depois da sala contígua ao gabinete do coronel enveredaram pelo corredor que lhe estava em frente. O capitão balançava o corpanzil e ele, magro, ia ainda estilo cadete instruendo, quase que em marcha de desfile. O capitão parou quando se cruzaram com um sargento e virou-se para ele:

–  Ó Faustino, arranje aí um faxina que vá buscar a mala do nosso aspirante que está na porta d’armas. Que a leve até à porta do meu gabinete e espere lá.

Chegado ao gabinete, o capitão esparramou-se ruidosamente na cadeira fazendo-a gemer.

   Então, nosso aspirante, o que é que sabe fazer?

Que raio de pergunta, apeteceu-lhe dizer. Mas teve calma.

–  Meu capitão, eu sei fazer o que aprendi na EPI.

É mesmo palerma, disse Aiveca para si mesmo. Aqui na tropa e para a tropa o que é que acha que eu faça?

–  Isso para aqui não adianta nada, só quando for para o Ultramar… talvez. O que eu quero saber é o que fazia na vida civil.

Não sabia o que era isso de CCS, nunca ouvira falar de tal em Mafra. Mas, pronto, nada do que aprendera servia ali. A expressão Ultramar é que o alertou.

– Diga lá  insistiu ele.

– Desculpe, meu capitão, estava a pensar –  não lhe disse em quê –, fui estudante na Faculdade de Letras, foi o que fiz.

Não tinha nada que saber que trabalhara num armazém, senão ainda o ligava à malfadada arrecadação de material, nem que estivera no seminário, se calhar ainda o punha a organizar missas e coisas do género.

A resposta pareceu agradar ao capitão.

– Ainda bem. Ando há algum tempo a pensar numa coisa e você é a pessoa indicada para isso, estou a ver. Fica encarregado de fazer um jornal de parede para a companhia. Venha cá depois do almoço para falarmos sobre os conteúdos desse jornal. Além disso, é claro, vai ser integrado nas escalas de serviço dos oficiais da unidade e da companhia. Prontos, veja se o faxina já está aí fora com a sua bagagem e diga-lhe para ir consigo até aos quartos dos oficiais. Você vai ficar num dos que há com duas camas, veja em qual há uma vazia.

–  Meu capitão, posso fazer-lhe uma pergunta?

– Diga.

– O meu capitão falou no Ultramar de uma forma que eu fiquei com a ideia de estar decidido que eu vou para lá. Já está, meu capitão?

Mirou-o com ar de comiseração, como quem observa alguém ingénuo ou atrasado mental. Sentiu isso e ele percebeu. Falou-lhe com voz calma:

– Tem de estar preparado para tal, Aiveca. Todos estão sujeitos, muito mais você que é atirador. Estou a ver que aqueles artistas de Mafra não lhe disseram porque é que veio para aqui, enfiaram-lhe burocraticamente nas mãos a guia de marcha e disseram-lhe toca a andar, sem mais nada. Mas eu vou-lhe dizer. Você e mais três ou quatro que andam aí foram mandados para cá para ficarem à espera de ser mobilizados. Vai ficar aqui uns meses até receber ordens para se apresentar noutra unidade, até pode ser nesta, não sei, para ser integrado numa companhia operacional formada para o Ultramar. É assim. Bem, vá lá ver onde vai ficar.

Agradeceu as explicações e saiu. Não ficou admirado, já sabia o que o esperava, mas, de facto, aqueles tipos de Mafra bem lhe podiam ter logo explicado que o esquema era este.

Ao almoço, na messe de oficiais, ficou na mesa dos aspirantes, com o Gonçalves e mais outros dois. Falaram de Mafra, da «aldeia dos macacos», dos instrutores que tinham tido, de coisas agora já triviais para eles. Aiveca acabou por saber que um deles era do seu curso, tinha chegado há uns dias, tinha estado na 1ª companhia do COM, não na dele, e não o conhecia, nunca se tinham encontrado lá.

 – E tu, há quanto tempo estás cá?  – perguntou ao Gonçalves.

– Estamos cá há seis meses, eu e este  – apontou para o que estava à frente dele.

– Mas, então, vocês devem estar a ser mobilizados, não?

– É claro. Há-de ser já um dia destes Não se esqueceram de nós, com certeza.

– Não pensei que se esperava assim tanto tempo.

– Não me digas que estás com pressa, pá. Está descansado que há-de chegar a tua vez. Não é tarde nem cedo para morrer.

– Deixa-te de agoiros, pá disse o que estava à frente dele, batendo com os nós dos dedos na mesa.  Este gajo está sempre com estas merdas. É sempre muito animador. (...)

António Marques Lopes

Página do Facebook do A. Marques Lopes | 19 de janeiro de 2022, 22:00 e livro "Cabra Cega" (2015, pp.  160/165)


(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, itálicos, parênteses retos: LG)



Capa do livro "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo do nosso camarada A. Marques Lopes) 
(Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp. ISBN: 978-989-51-3510-3, 
Colecção: Bíos, Género: Biografia).


Breve apontamento biográfico do A. Marques Lopes até à partida para o CTIG:

(i) 1944-1951 – Nascido em Lisboa, na Mouraria, acabou por ir viver no Alentejo, até aos 7 anos (Penedo Gordo, arredores de Beja), por razões de saúde da mãe;

(ii) 1951/1955  – Instrução Primária nas Oficinas de S. José, em Lisboa;

(iii) 1955/1964  – Seminário (dos Salesianos);

(iv) 1964/1965 – Trabalha nos Armazéns da AGPL (Administração Geral do Porto de Lisboa) e frequenta a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

(v) janeiro 1966/julho 1966 - COM (Curso de Oficiais Milicianos) na EPI (Escola Prática de Infantaria) em Mafra, onde tirou a especialidade de atirador de infantaria;

(vi) julho 1966 /  dezembro 1966 – Aspirante no RI1 (Regimento de Infantaria nº 1), na Amadora;

(vii) dezembro 1966 / abril 1967 –  Instrutor de um pelotão da CART 1690 (Companhia de Artilharia nº 1690) em Torres Novas e Oeiras, unidade mobilizada para o Ultramar; 

(viii) 15abril1967  – Chegada à Guiné como alferes da CART1690.